Apresentação
do livro “Jesus de Nazaré”
de
Sua Santidade o Papa Bento XVI
José Policarpo,
Cardeal-Patriarca de Lisboa
Universidade Católica Portuguesa
Lisboa, 15 de Janeiro de 2008
1. Apresentar o livro “Jesus de Nazaré”, agora em versão
portuguesa, é para mim uma honra e uma responsabilidade. Assumo-a com confiança
e humildade, em espírito de verdadeira comunhão com o autor.
A minha sintonia com o teólogo Joseph Ratzinger vem de velha
data. Nunca tendo sido seu aluno, como outros portugueses o foram, porque nunca
estudei na Alemanha, ele foi verdadeiramente o principal inspirador do percurso
que fiz como docente de Teologia. Os meus alunos desse tempo lembram-se,
certamente, do relevo que teve no meu ensino, sobretudo na Teologia da Fé, a
teologia de Ratzinger.
Mas Joseph Ratzinger é hoje Bento XVI, Sucessor de Pedro e
cabeça do Colégio Episcopal, ao qual pertenço. E nesse quadro a palavra
sintonia é fraca para exprimir os laços que a ele me unem, de profunda
comunhão, alicerçada na fé no mistério da Igreja e não apenas na sintonia
intelectual. Mas senti, ao ler este livro, que ele me desafia a unificar numa
só atitude a sintonia e a comunhão.
2. Devo esclarecer, para que tudo seja claro nestas
minhas palavras, que não me sinto em condições de apresentar a tradução
portuguesa, porque li o livro na versão italiana. De facto quando a versão
portuguesa apareceu, já tinha lido grande parte do livro na versão italiana.
Devo confessar que a versão portuguesa, que experimentei, não exerceu sobre mim
o fascínio suficiente para me fazer mudar de língua – que o tradutor me
compreenda – até porque a unidade que é fruto de uma primeira leitura está
também ligada à língua em que se lê. No entanto, quando citar, hoje e aqui,
literalmente o livro, fá-lo-ei segundo a “versão portuguesa”.
O autor
3. Quem é o autor de “Jesus de Nazaré”? O teólogo Joseph
Ratzinger ou o Papa Bento XVI? Parece que ele próprio não quis dirimir esta
questão, quer ao indicar na capa as duas referências à sua pessoa, quer quando
escreve no prefácio: “Certamente não preciso de dizer expressamente que este
livro não é de modo algum um acto de Magistério, mas unicamente expressão da
minha busca pessoal do “rosto do Senhor” (Sal. 27,8). Por isso, cada um tem a
liberdade de me contradizer” (pg.25).
Quererá esta frase dizer que o teólogo Joseph Ratzinger não
compromete a autoridade de Magistério do Papa Bento XVI? Ele próprio confessa
que o livro, a partir do capítulo 5º, já foi escrito depois da eleição papal.
Como pode um Papa ao escrever o que escreveu sobre Jesus Cristo, de maneira tão
bela e tão profunda, não o considerar expressão do seu magistério ordinário?
Eu, leitor, acolhi-o como tal. Quis apenas garantir aos estudiosos do Novo
Testamento, exegetas e teólogos, que não pretende dirimir, com a autoridade do
Papa, questões disputadas e justas diferenças de opinião científica, nem
confirmar a sua leitura de teólogo.
No decurso da leitura há partes que só podem ser atribuídas
a um grande teólogo, em maravilhosa síntese pessoal adquirida depois de uma
longa vida de investigador e de docente; o prefácio, aliás essencial para a
compreensão do conjunto do livro, em que apresenta uma crítica positiva ao
método exegético “histórico-crítico” e à chamada “exegese canónica”; nas longas
introduções exegéticas, por exemplo à leitura das parábolas nos Evangelhos
sinópticos, e aos textos de São João; na escolha dos princípios metodológicos
da sua análise dos textos e no distanciamento crítico em relação a grandes
exegetas.
Mas há outras partes do livro claramente marcadas pela
missão pastoral que hoje desempenha: a aplicação dos textos evangélicos ao
mundo actual; a fundamentação de uma espiritualidade encarnada; as suas
implicações morais no existir da Igreja e dos cristãos; no convite contínuo que
nos faz a lermos os acontecimentos da nossa história à luz de Cristo e do
Evangelho. Há uma página, segundo as indicações do próprio autor, escrita já
depois de ser Papa, onde é difícil não adivinhar uma meditação pessoal sobre o
seu novo ministério de Sucessor de Pedro. Trata-se do comentário ao diálogo de
Jesus com São Pedro, depois da ressurreição, em que Cristo confirma a missão de
Pedro, narrado no Capítulo XXI de São João. O contexto é a afirmação de Cristo
“Eu sou o Bom Pastor”, antecedida de outra que explica a primeira: “Eu sou a
Porta”. Leiamos esta página onde a profundidade teológica exprime a meditação
do Pastor que hoje exerce o ministério de Pedro: “O modo como se desenrola
concretamente este entrar através de Jesus visto como porta está patente no apêndice
do Evangelho, no capítulo 21: a introdução de Pedro no próprio ministério
pastoral de Jesus. Por três vezes, o Senhor diz a Pedro: «Apascenta os meus
cordeiros» (ou analogamente: «as minhas ovelhas»: 21,15-17). Pedro é nomeado
claramente pastor das ovelhas de Jesus, é investido no ofício pastoral do
próprio Jesus. Mas, para poder desempenhá-lo deve entrar pela «porta». A este
entrar, ou melhor, a este deixá-lo entrar através da porta (10,3), se refere a
tríplice pergunta: «Simão, filho de João, tu amas-Me?» Temos aqui, em primeiro
lugar, a dimensão muito pessoal da vocação: Simão é chamado pelo nome, com o
seu nome próprio «Simão» e com a sua ascendência genealógica. E a pergunta
versa sobre o amor, que lhe permite tornar-se um só com Jesus. Deste modo, é
«através de Jesus» que chega às ovelhas: não as considera como próprias – de
Simão Pedro –, mas como o «rebanho» de Jesus. E porque chega a elas através da
«porta» que é Jesus, porque chega unido no amor com Jesus, as ovelhas escutam a
sua voz, a própria voz de Jesus: não seguem Simão, mas Jesus que na pessoa e
por meio dele vem ter com elas, de tal modo que, na sua condução, é o próprio
Jesus quem guia.
Depois, toda a cena da investidura termina com a palavra de
Jesus a Pedro: «Segue-Me» (21,19). Este episódio recorda a cena posterior à
primeira confissão de Pedro, quando este tentou desviar o Senhor do caminho da
cruz e Jesus lhe disse: «Vai-te da minha frente» – por outras palavras: Para
trás de Mim – exortando depois todos a tomarem a cruz e a «segui-Lo» (Mc.
8,33s). Também o discípulo, que agora como pastor vai adiante dos outros, deve
«seguir» Jesus. Isto inclui, como o Senhor anuncia a Pedro depois da entrega do
ofício pastoral, a aceitação da cruz, a disponibilidade para dar a própria
vida. Deste modo se concretiza a palavra: «Eu sou a porta». É precisamente
assim que o próprio Jesus continua a ser o pastor” (pg. 346-347).
No fundo, este livro ajuda-nos a interiorizar a maneira como
Deus conduz a Sua Igreja: deu-nos um Papa que é um grande teólogo. Cada um de
nós, quando recebe uma missão, é chamado a pôr ao serviço dela tudo o que somos
e temos, o nosso passado e o nosso presente. A vasta informação e reflexão
teológica de Joseph Ratzinger é hoje posta ao serviço da sua missão de Sucessor
de Pedro. E ele consegue, na clareza do seu pensamento, na beleza da sua
expressão e no testemunho da sua vida interior, exprimir de forma bela e
acessível para o Povo de Deus, a profundidade do seu pensamento, a variedade da
sua informação, a vastidão da sua cultura. Mas não separemos o Papa e Joseph
Ratzinger: também neste livro, é o mestre que nos ensina, o pastor que nos
conduz.
O objectivo do livro
4. Podemos defini-lo com as próprias palavras do autor:
“quis fazer a tentativa de apresentar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real,
como o Jesus histórico em sentido verdadeiro e próprio” (pg. 23). Várias vezes
relembra este objectivo: “escutar Jesus, para assim O conhecermos” (pg. 279);
“este livro, sendo uma obra sobre Jesus, enfrenta primeiramente a questão a respeito
do Senhor, tratando o tema eclesiológico apenas na medida necessária para a
correcta compreensão da figura de Jesus” (pg. 369); “este livro procura
compreender o caminho de Jesus sobre a Terra e a Sua pregação, não a elaboração
teológica na fé e no pensamento da Igreja primitiva” (pg. 397).
O autor confessa, logo no início do prefácio: “Cheguei a
este livro sobre Jesus após um longo caminho interior” (pg. 11), o que faz dele
um testemunho pessoal: “unicamente a expressão da minha busca pessoal do «rosto
do Senhor»” (pg. 25). Testemunho de um crente que percorreu um longo
caminho em busca do «rosto do Senhor», situa essa busca no contexto de uma
viragem na leitura exegética dos Evangelhos, a partir da década de 50. Depois
do tempo das muitas e belas «vidas de Cristo», que apresentavam uma imagem de
Cristo a partir dos Evangelhos, as correntes exegéticas - é citado o método
histórico-crítico - acentuam a ruptura entre o Jesus histórico e o Jesus da fé,
que se afastam cada vez mais um do outro e a figura de Jesus Cristo, em que
acreditamos, apresenta-se com contornos vagos, pouco definidos, uma espécie de
nebulosa que acaba por confundir os crentes. “Como resultado comum de todas
estas tentativas ficou a impressão de que, em todo o caso, de seguro sabemos
muito pouco sobre Jesus e de que a sua imagem só posteriormente foi plasmada
pela fé na sua divindade. Entretanto, esta impressão penetrou profundamente na
consciência comum do cristianismo. Uma tal situação é dramática para a fé,
porque torna incerto o seu verdadeiro ponto de referência: a amizade íntima com
Jesus, da qual tudo depende, corre o perigo de cair no vazio” (pg. 12-13).
Daí o objectivo claramente expresso: pôr a claro a imagem de
Cristo que nos dão os Evangelhos, mostrando que o Cristo em que acredito é o
Cristo histórico. Isto supõe uma análise das vantagens e dos limites do método
histórico-crítico, do seu confronto com novas correntes de exegese e com os
mais recentes documentos do Magistério sobre a interpretação da Sagrada
Escritura. A realidade histórica de Jesus de Nazaré foi sempre um desafio de
fé, aquela atitude de abandono ao mistério que permitiu penetrar no
conhecimento da realidade humana de Cristo: foi assim que Maria O acolheu no
seu seio, que guardou em silêncio no seu coração o Seu crescimento em estatura,
em sabedoria e em graça; foi por isso que Ele atraiu os discípulos que O
seguiram; foi na fé que os miraculados acolheram o dom da vida; só na fé se
pode mergulhar no sofrimento da paixão e reconhecê-lo, como o Mesmo e completamente
outro, na ressurreição. O Jesus histórico não é desligável da fé, nem o Cristo
da fé é desligável do realismo histórico da Sua existência. História e fé
interpenetram-se na leitura dos textos evangélicos.
5. Como todos os testemunhos autênticos, este
arrasta-nos para o centro da cena, torna-nos, com o autor, protagonistas da
caminhada. O autor procura este envolvimento dos leitores, centrando-os, não em
si mesmo, como é natural em qualquer escritor, mas em Jesus Cristo, e essa é
uma atitude pastoral. Termina assim o prefácio que, como já disse, é introdução
essencial à leitura: “pareceu-me urgente sobretudo apresentar a figura e a
mensagem de Jesus na Sua actividade pública, para favorecer no leitor o
crescimento de uma relação viva com Ele” (pg. 26). E é impressionante como o
conseguiu. Damos por nós a percorrer a aventura de descobrir Jesus Cristo, a
ser interpelados por Ele, a desejar segui-l’O, a sentir a exigência de O seguir
até às últimas consequências.
Quero terminar esta apresentação enunciando aspectos
concretos deste seguimento de Jesus que o livro provoca em nós e que são já da
ordem da espiritualidade e da visão cristã de todas as coisas. Este livro
sugere um ritmo de leitura: o ritmo da caminhada de cada um de nós, com Jesus
dos Evangelhos, até à consumação da Páscoa na nossa vida.
Aprender a ler a Sagrada Escritura
6. Já os Padres da Igreja afirmaram que toda a Escritura nos
fala de Jesus Cristo. Partindo da escola chamada da “exegese canónica”, a que
ele chama “exegese teológica”, o autor propõe-nos uma leitura de toda a
Escritura a partir de Cristo, da Sua pessoa, do Seu ensinamento, sobretudo da
Sua morte e ressurreição. Esta unidade entre Cristo e a Escritura é a expressão
máxima da unidade entre a Escritura e o Povo de Deus, o seu verdadeiro autor,
e, portanto, também da unidade entre Cristo e a Igreja. Só ao ritmo do Povo de
Deus, conduzido pelo Espírito, os diversos autores e livros se tornam a
Escritura. O processo da constituição da Escritura, no diálogo de aliança
de um Povo crente com Deus que lhe fala e de quem compreende progressivamente a
mensagem, é da mesma natureza da aventura da Escritura na Igreja, onde o Povo
crente lê e relê e compreende sempre de novo. Mas digamo-lo com as palavras do
autor: “A exegese moderna mostrou como as palavras transmitidas na Bíblia se
tornam Escritura através de um processo de incessantes releituras: os textos
antigos, numa situação nova, são retomados, compreendidos e lidos de modo
novo”. A formação da Escritura “é um processo da Palavra, que revela, a pouco e
pouco, as suas potencialidades interiores; estas de certo modo estavam
presentes como sementes que se abrem apenas perante o desafio de novas
situações, novas experiências e novos sofrimentos. Quem observa este processo a
partir de Jesus Cristo pode reconhecer uma direcção no todo: que o Antigo e o
Novo Testamento pertencem um ao outro” (pg. 19-20). Na introdução às parábolas
afirma: “Assim, a estranha explicação de Jesus sobre o sentido das suas
parábolas conduz-nos precisamente à compreensão do seu significado mais
profundo, com uma única condição, como o exige a natureza da Palavra de Deus
escrita: lermos a Bíblia e sobretudo os Evangelhos como uma unidade e um todo,
que, em todas as suas estratificações históricas, exprime uma mensagem
intrinsecamente concatenada” (pg. 246).
Esta leitura cristocêntrica da Sagrada Escritura ensina-nos
a acolher toda a Palavra da Escritura como um caminho para Jesus Cristo. É Ele,
a Palavra eterna, que faz daquele conjunto de escritos uma única Escritura, a
Palavra de Deus para o Seu Povo.
Cristo torna-se, assim, o sentido da vida e da
História
7. Que os acontecimentos narrados pelos Evangelhos encontram
em Jesus Cristo a sua fonte de sentido é óbvio. Mas na convergência de toda a
Escritura para Cristo, é toda a história da humanidade que encontra em Cristo o
seu sentido último. E continua a ser assim na Igreja, Povo de Deus, que
continua a reler, sempre de novo, as Escrituras e a escutá-las como Palavra de
Deus. Nelas, o cristão percebe que o homem e a sua história só se decifram
verdadeiramente em Jesus Cristo. Continuamente o autor passa do texto
evangélico para as situações concretas da humanidade actual, redimida e a
precisar de ser redimida. A propósito das tentações de Jesus no deserto (pg.
57), a propósito do “venha a nós o Vosso Reino” (pg. 193s), e do “livrai-nos do
mal” (pg. 217; 228); a propósito da parábola dos vinhateiros, que matam o
próprio filho do proprietário da vinha (pg. 324), etc. Fica claro que a
doutrina social da Igreja brota do próprio Evangelho.
Toda a espiritualidade cristã só pode estar
centrada em Jesus Cristo
8. Neste percurso à procura do rosto de Jesus, vão-nos sendo
sugeridos os caminhos e as atitudes espirituais dos discípulos de Cristo e fica
claro que toda a espiritualidade cristã brota de Jesus Cristo e leva a Jesus
Cristo. Antes de mais, o respeito pela santidade e transcendência de Deus,
expressa na súplica “o Teu nome seja santificado”. Apoderar-se de Deus
reduzindo-O à nossa dimensão é afastar-se do Deus verdadeiro, torná-l’O
irreconhecível (pg. 192-193). O sentido do sofrimento como caminho de
purificação (pg. 216-217), o sentido da pobreza e do abandono, o contentar-se
com o necessário, a renúncia às seguranças garantidas pelo acumular de bens
(pg. 199s).
9. O itinerário que percorremos com o autor não é
individual, mas comunitário. Pai “Nosso”, o “nosso” pão. É o “nós” da Igreja, a
nova família dos discípulos (pg. 221s), que encontra coesão nesta busca
comunitária do rosto de Jesus. Como o autor mostra continuamente, a caminhada
de Jesus é uma caminhada para Jerusalém, para a Páscoa, onde a vontade do Pai
será cumprida na terra como no Céu. A leitura deste livro pode transformar-se
na nossa caminhada para a Páscoa, pois só no rosto do Crucificado, transformado
com a luz da ressurreição, identificaremos verdadeiramente o rosto de Cristo.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
Fonte:
http://www.patriarcado-lisboa.pt