EVANGELIZACÃO
no presente e no futuro da
América Latina
CONCLUSÕES
DA III CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO
Texto Oficial
Puebla de los Angeles, México,
27-1
a 13-2 de 1979
Amados
Irmãos no Episcopado:
O
intenso trabalho da III Conferência Geral do episcopado Latino-Americano, que
me coube inaugurar pessoalmente e que com particular dileção e interesse para
com a Igreja deste Continente acompanhei nas diversas etapas de seu desenvolvimento,
se condensa nestas páginas que pusestes em minhas mãos.
Conservo
viva a gratíssima recordação de meu encontro convosco, unido no mesmo amor e
solicitude Por vossos povos, na Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe e a
seguir no seminário de Puebla.
Este
documento, fruto de assídua oração, de reflexão profunda e de intenso zelo
apostólico, oferece - assim vo-lo propusestes - um denso conjunto de
orientações Pastorais e doutrinais sobre questões de suma importância. Há de
servir, com seus válidos critérios, de luz e estímulo permanente ;Para a
evangelização no presente e no futuro ala América Latina.
Podeis
sentir-vos satisfeitos e otimistas quanto aos resultados desta Conferência,
preparada com esmero Pelo CELAM, com a participação co-responsável de todas as
Conferências Episcopais. A Igreja da América Latina foi fortalecida em sua
vigorosa unidade, em sua identidade própria, na vontade de oferecer uma
resposta às necessidades e aos desafios atentamente considerados durante vossa
assembléia. Representa, na verdade, um grande passo avante na missão essencial
da Igreja, na missão de evangelizar.
Vossas
experiências, diretrizes, pautas, preocupações e anseios, na fidelidade ao
Senhor, à sua Igreja e à Sé de Pedro, deva converter-se em vida para as
comunidades a que servis.
Para
isso devereis propor-vos em vossas Conferências Episcopais e Igrejas
Particulares planos com metas concretas, nos níveis correspondentes e em
harmonia com o CELAM no âmbito continental.
Queira
Deus que em breve todas as comunidades eclesiais estejam informadas e
penetradas do espírito de Puebla e das diretrizes desta histórica Conferência.
O
Senhor Jesus, Evangelizador por excelência e ele próprio Evangelho, vos abençoe
com abundância.
Maria
Santíssima, Mãe da Igreja e Estrela da Evangelização, guie vossos passos, num
renovado impulso evangelizador do Continente Latino-Americano.
Vaticano,
23 de março de 1979,
na
comemoração de Santo Turíbio de Mogrovejo.
JOANNES
PAULUS PP. II
ABREVEATURAS
AS
Concílio - Vaticano II, Decreto
Apostolicam Actuositatem
AAS
- Acta Apostolicae Sedis
AG
- Concílio Vaticano II, Decreto Ad Gentes
AL
- América Latina
Alocução
- ação Bairro Santa Cecília: De S.S. o Papa João II, no México, em 30 de
janeiro de 1979
Alocução
- Juventude: De S.S. o Papa João Paulo
II, no México, em 30 de janeiro de 1979
Alocução
- Leigos: De S.S. o Papa João Paulo II, no México, em 30 de janeiro de 1979
Alocução
- Oaxaca: De S.S. o Papa João Paulo II aos índios e camponeses, em Oaxaca, em
29 de janeiro de 1979
Alocução
- Operários Monterrey: De S.S. o Papa João Paulo II em 31 de janeiro de 1979
Alocução
- Religiosas: De S.S. o Papa João Paulo II no Colégio de São Miguel, Cidade do
México, em 27 de janeiro de 1979
Alocução
- Sacerdotes: De S.S. o Papa João Paulo II na Basílica de Guadalupe, em 27 de
janeiro de 1979
Alocução
- Seminaristas: De S.S. a Papa João Paulo II, em Guadalajara, em 30 de janeiro
de 1979 Alocução - Universitários: De S.S. o Papa João Paulo II, em 31 de
janeiro de 1979
CD
- Concílio Vaticano II, Decreto Christus Dominus
CEB
- Comunidade Eclesial de Base
CELAM
- Conselho Episcopal Latino-Americano
CLAR- Conferência Latino-Americana de religiosos
CP
- Paulo VI Exortação Communio et Progressio
DIM
- Pio XI, Encíclica Divini Illius Magistri
Discurso
- Inaugural: Discurso de S.S. o Papa João Paulo II na inauguração da III
Conferência Geral do Episcopado Latino-Amerícano, em Puebla, em 28 de janeiro
de 1979
DT
- Documento de Trabalho, de preparação para a III Conferência Episcopal
Latino-Americana
DV
- Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática Dei Verbum
EC
- Sagrada Congregação para a Educação Católica, Documentos sobre a Escola,
Católica
EN
- Paulo VI, Exortação Evangelü Nuntiandi ET Paulo VI, Exortação Evangelica
Testificatio GE Concílio Vaticano II, Declaração sobre a Educação Cristã da
Juventude
GS
- Concílio Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes
Homilia
- Guadalupe: De S.S. o Papa João Paulo II na Basílica de Guadalupe, México, em
27 de janeiro de 1979
Homilia
- México: De S.S. o Papa João Paulo II na Catedral do México, em 26 de janeiro
de 1979 Homilia - Puebla: De S.S. o Papa João Paulo II no Seminário de Puebla,
em 28 de janeiro de 1979 Homilia - S.
Domingo: De S.S. o Papa João Paulo II na Catedral de S. Domingo, em 25 K1e
janeiro de 1979
Homilia
- Zapopán: De S.S. o Papa João Paulo
II, em 30 de janeiro de 1979
LG - Concílio Vaticano II, Constituição
Dogmática Lumen Gentium
MAL
- Mensagem aos Povos da América Latina, da III Conferência Geral
MC
- Paulo VI, Marialis Cultus MCS Meios de Comunicação Social
Med
- Documentos da II Conferência Geral da Episcopado Latino-americano, celebrada
em Medellín, ColBmbia, 1968
MR
- Mutuae Relationes - Cristérios diretivos da relação entre bispos e
religiosos da Igreja
NA
- Concilio Vaticano II, Declaração Nostra Aetate OA Palo VI, Carta. Octogesima.
Adveniens
OT
- Concílio Vaticano II, Dacreto Optatam Totius PC Concílio Vaticano II, Decreto
Perfectae Caritatis PO (aoncílio Vaticano II, Decreto Presbyterorum Or. dinis
PP
- Paulo VI, Populorum Progressio
PT
- João XXIII, Encíclica Pacem m Terris
SC
- Concílio Vaticano II, Constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a liturgia
UR
- Unitatis Redintegratio
Sínodo
de 1971
Sínodo
de 1974
Sínodo
de 1977
Sínodo
da Catequese
Sínodo
da Evangelização
Sínodo
do Sacerdócio Ministerial e Justiça no Mundo
S.S. JOÃO PAULO II
DISCURSO INAUGURAL PRONUNCIADO
NO SEMINÁRIO PALAFOXIANO DE
PUEBLA DE
LOS ANGELES, MÉXICO
28 de
janeiro de 1979
Amados
Irmãos no Episcopado:
Esta
hora que tenho a ventura de viver convosco é certamente histórica para a Igreja
na América Latina. Disto está consciente a opinião pública mundial, estão conscientes
os fiéis de vossas Igrejas locais, estais, sobretudo, conscientes vós que
sereis protagonistas e responsáveis desta hora.
E
também uma hora de graça, assinalada pela passagem do Senhor, por uma
particularíssima presença e ação do Espírito de Deus. Por isso invocamos com
confiança a este Espírito, no princípio dos trabalhos. Por isso também quero
agora suplicar-vos como um irmão a irmãos muito queridos: todos os dias desta
Conferência e em cada um de seus atos, deixai-vos conduzir pelo Espírito,
abri-vos a sua inspiração e a seu impulso; seja ele e nenhum outro espírito
quem vos guie e conforte.
Sob
este Espírito, pela terceira vez nos últimos vinte e cinco anos, bispos de
todos os países, representando o episcopado de todo o Continente
latino-americano, vos congregais para aprofundar juntos o sentido de vossa
missão diante das exigências novas de vossos povos.
A
Conferência que agora se abre, convocada pelo venerado Paulo VI, confirmada
por meu inesquecível predecessor João Paulo I e reconfirmada por mim como um
dos primeiros atos de meu pontificado, se liga com aquela, já longínqua, do Rio
de Janeiro, que teve como seu fruto mais notável o nascimento do CELAM. Contudo
se liga ainda. mais estreitamente com a II Conferência de Medellín, cujo décimo
aniversário se comemora.
Nestes
dez anos quanto caminhou a humanidade e com a humanidade e a seu serviço,
quanto caminhou a Igreja! Esta III Conferência não pode desconhecer esta realidade.
Deverá, pois, tomar como ponto de partida as conclusões de Medellín, com tudo o
que tem de positivo, mas sem ignorar as incorretas interpretações por vezes
feitas e que exigem sereno discernimento, oportuna crítica e claras tomadas de
posição.
Servir-vos-á
de guia em vossos debates o documento de trabalho preparado com tanto cuidado
para que constitua sempre o ponto de referência.
Mas
tereis também entre as mãos a exortação apostólica Evangelü Nuntiandi de Paulo
VI. Com que alegria o grande pontífice aprovou como tema da Conferência `O
presente e o futuro da evangelização na América Latina!
Podem
dizê-1o os que estiverem próximos dele nos meses de preparação da assembléia.
Poderão dar testemunho também da gratidão com que ele soube que o pano de fundo
de toda a Conferência seria este texto, no qual colocou toda sua alma de
pastor, no ocaso de sua vida. Agora que "fechou os olhos para este
mundo", este documento se converte num testamento espiritual que a
Conferência deverá esquadrinhar com amor e diligência para fazer dele outro
ponto de referência obrigatório e ver como colocá-1o em prática. Toda a Igreja
vos é agora decida pelo exemplo que ofereceis, pelo que fazeis e que talvez
outras Igrejas locais farão por sua vez.
O
Papa quer estar convosco no começo de vossos trabalhos, agradecido ao
"Pai das luzes de quem desce todo dom perfeito" (Tg l, 17), por ter
podido acompanhar-vos na solene missa de ontem, sob o olhar materno da Virgem
de Guadalupe, bem como na missa desta manhã. Com alegria permaneceria convosco
em oração reflexão e trabalho; permanecerei, estai certos, em espirito,
enquanto me declama em outra parte a sollicitudo omnium ecclesiarum (2 Cor 1i,
28). Quero ao menos, antes de prosseguir minha visita pastoral pelo México e
antes de regressar a Roma, deixar-vos como prêmio de minha presença espiritual
algumas palavras, pronunciadas com ânsias de pastor e afeto de pai, eco das
principais preocupações minhas a respeito do tema que devereis tratar e a
respeito da vida da Igreja nestes países que me são caros.
1. Mestres da verdade
É
um grande consolo para o pastor universal constatar que vos congregais aqui não
como um simpósio de peritos, não como um parlamento de políticos, não como um
congresso de cientistas ou técnicos, por mais importantes que possam ser estas
reuniões, mas como um fraterno encontro de pastores da Igreja. E como pastores
tendes a viva consciência de que vosso dever principal é de ser mestres da
verdade. Não de uma verdade humana e racional, mas da verdade que vem de Deus,
que traz consigo o princípio da autêntica libertação do homem:
"Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres" (Jo 8, 32).
Esta verdade que é a única a oferecer uma base sólida para uma
"práxis" adequada.
1.1.
Vigiar pela. pureza da doutrina, base da edificação da comunidade cristã, é
pois, junto com o anúncio do Evangelho, dever primeiro e insubstituível do
pastor, do mestre da fé. Com quanta freqüência acentuava isto São Paulo,
convencido da gravidade do cumprimento deste dever. Além da unidade na
caridade, nos compele sempre a unidade na verdade. O muito amado Papa Paulo
VI, na exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, expressava: "O Evangelho
que nos foi entregue é também palavra de verdade. Uma verdade que nos torna
livres e que é a única que procura a paz do coração: isto é o que o povo vai
buscando quando anunciamos a boa nova. A verdade a respeito de Deus, a verdade
a respeito do homem e de seu misterioso destino, a verdade a respeito do mundo
. . . O pregador do evangelho será aquele que, mesmo à custa de renúncias e
sacrifícios, busca sempre a verdade que deve transmitir aos demais. Não vende,
nem dissimula jamais a verdade pelo desejo de agradar aos homens, de causar
assombro, nem por originalidade ou desejo de aparecer... Pastores do Povo de
Deus: nosso serviço pastoral nos pede que guardemos defendamos e comuniquemos
a verdade, sem olhar para sacrifícios" (EN 78).
Verdade
sobre Jesus Cristo
1.2.
De vós, pastores, os fiéis de vossos passes esperam e reclamam antes de tudo
uma cuidadosa e zelosa transmissão de verdade sobre Jesus Cristo. Esta se
encontra no centro da evangelização e constitui seu conteúdo essencial:
"Não há evangelização verdadeira enquanto não se anunciar o nome, a vida,
as promessas, o reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus" (EN
22).
Do
conhecimento vivo desta verdade dependerá o vigor da fé de milhões de homens.
Dependerá também o valor de sua adesão à Igreja e de sua presença. ativa de
cristãos no mundo. Deste conhecimento derivarão opções valores, atitudes e
comportamentos capazes de orientar e definir' nossa vida. cristã e de criar
homens novos e portanto uma humanidade nova pela conversão da consciência
individual e social.
De
uma sólida cristologia deve provir a luz sobre tantos temas e questões doutrinais
e pastorais que vos propondes examinar nestes dias.
1.3.
Devemos, pois, confessar a Cristo diante da história e diante do mundo com
convicção profunda. sentida vivida, como o confessou Pedro: "Tu és o
Cristo, ó Filho de deus vivo" (Ml 16, 16).
Esta
é a Boa Nova num certo sentido única: a Igreja vive por ela e para ela, bem
como tira dela tudo o que possui para oferecer aos homens sem distinção alguma
de nação cultura, raça, tempo, idade ou condição. Por isso "a partir desta
confissão (de Pedro), a história da salvação sagrada e do Povo de Deus devia
adquirir uma nova dimensão . . . (João Paulo II, Homilia na Inauguração Oficial
de seu Pontificado, 2.10.19'78).
Este
é o único Evangelho e "ainda que nós ou um anjo do céu vos anunciasse
outro evangelho diferente... seja anátema! ", como escrevia com palavras
bem claras o Apóstolo (G1 1, 6).
1.4.
Pois bem, correm hoje em muitas partes - o fenômeno não é novo -
"releituras" do Evangelho resultado de especulações te6ricas, mais
que de autêntica meditação da palavra de Deus e de um verdadeiro compromisso
evangélico. Elas causam confusão ao afastar-se dos critérios centrais da fé da
Igreja e se cai na. temeridade de comunicá-las, a modo de cate4uese, às
comunidades cristãs.
Em
alguns casos ou se silencia a divindade de Cristo, ou se incorre de fato em
formas de interpretação contrárias à fé da Igreja. Cristo seria apenas um
"profeta", um anunciador do reino e do amor de Deus. mas não o
verdadeiro Filho de Deus, nem seria portanto o conteúdo e o objeto da mesma
mensagem evangélica.
Em
outros casos se pretende mostrar a Jesus como comprometido politicamente, como
um lutador contra a dominação romana e contra os poderes, e inclusive implicado
na luta de classes. Esta concepção de Cristo como político, revolucionário como
o subversivo de Nazaré não se coaduna com a catequese da Igreja. Confundindo 0
pretexto insidioso dos acusadores de Jesus com a atitude de Jesus mesmo - bem
diferente - se aduz como causa de sua morte o desenlace de um conflito político
e se cala a vontade de entrega do Senhor e mesmo a consciência de sua missão
redentora. Os evangelhos mostram claramente como para Jesus era uma tentação
tudo que alterasse sua missão de servidor de Javé". Não aceita a posição
daqueles que misturavam as coisas de Deus com atitudes meramente políticas.
Rejeita inequivocamente o recurso à violência. Abre sua mensagem de conversão a
todos, sem excluir os próprios publicamos. A perspectiva de sua missão é muito
mais profunda. Consiste na salvação integral por amor transformante,
pacificador, de perdão e reconciliação. Não resta dúvida, por outro lado, que
tudo isto é muito exigente para a atitude do cristão que quer servir de verdade
aos irmãos menores, aos pobres, aos necessitados, aos marginalizados, numa
palavra, a todos os que refletem em suas vidas a face sofredora do Senhor.
1.5.
Contra tais "releituras", pois, e contra suas hipóteses, brilhantes
talvez, mas frágeis e inconsistentes, que delas derivam "a evangelização
no presente e no futuro da América Latina," não pode cessar de afirmar a
fé da Igreja: Jesus Cristo, Verbo e Filho de Deus, se faz homem para
aproximar-se do homem e trazer-lhe, pela força de seu mistério, a salvação,
grande dom de Deus”
É
esta a fé que inspirou vossa história e formou o melhor dos valores de vossos
povos e deverá continuar animando, com todas as energias, o dinamismo de seu futuro.
E esta a fé que revela a vocação de concórdia e unidade que há de afastar os
perigos de guerras neste Continente de esperança,, no qual a Igreja foi fator
tão poderoso de integração. Esta fé, enfim, que, com tanta vitalidade e de tão
variados modos, é expressa pelos fiéis da América Latina através da
religiosidade ou piedade popular.
A
partir desta fé em Cristo, do seio da Igreja, somos capazes de servir ao homem,
a nossos povos, de penetrar com o Evangelho sua cultura, transformar os
corações, humanizar sistemas e estruturas.
Qualquer
silêncio, esquecimento, mutilação ou inadequada acentuação da integridade do
mistério de Jesus Cristo que se aparte da fé da Igreja não pode ser conteúdo
válido da evangelização. "Hoje, sob o pretexto de uma. piedade que é
falsa, sob a aparência enganosa de uma pregação evangélica, se procura negar o
Senhor Jesus", escrevia um grande bispo em meio às duras crises do século
IV. E acrescentava: "Digo a verdade, para que seja conhecida de todos a
causa da desorientação que sofremos. Não posso calar-me" (S. Hilário de
Poitiers, Ad Auxentium, 1-4). Tampouco vós bispos de hoje, quando estas confusões
se derem, podeis calar.
E
a recomendação que o Papa Paulo VI fazia no discurso de abertura. da
Conferência de Medellín: "Falai, falai, pregai, escrevei, tomai posições,
como se afirma, em harmonia de planos e intenções, a respeito das verdades da
fé, defendendo-as e ilustrando-as, com a atualidade do Evangelho, com as
questões que interessam à vida dos fiéis e a proteção dos costumes cristãos..
" (Discurso de S.S. Paulo VI à Assembléia do Episcopado Latino-Americano,
24.8.1968).
Não
me cansarei eu mesmo de repetir, em cumprimento de meu dever de evangelizar, à
humanidade inteira: "Não temais! Abri, ainda mais. abri de par em par as
portas a Cristo! Abri, a seu poder salvador, as portas dos Estados, dos
sistemas econ8micos e políticos, idos extensos campos da cultura, da civilização
e do desenvolvimento" (João Paulo II, Homilia na Inauguração Oficial de
seu Pontificado, 22.10.1978).
Verdade sobre a missão da
Igreja
1.6.
Mestres da verdade, se espera de vós que proclameis sem cessar, e com especial
vigor nesta circunstância, a verdade sobre a missão da Igreja, objeto do credo
que professamos e campo imprescindível e fundamental de nossa fidelidade. O
Senhor a instituiu "como comunidade de vida, de caridade, de verdade"
(LG 9) e como corpo, "pleroma" e sacramento de Cristo em quem habita
toda a plenitude da divindade"
A
Igreja nasce da resposta de fé que nós damos a Com efeito, é através da
acolhida sincera da boa nova que nos reunimos, os que crêem "no nome de
Jesus, para buscar juntos o reino, canstruf-1o, vivê-1o" (EN 13). A Igreja
é "congregação daqueles que, crendo, vêem em Jesus o autor da salvação e o
princípio da unidade e da paz" (LG 9).
Contudo,
por outro lado, nós nascemos da Igreja: ela nos comunica a riqueza de vida e de
graça de que é depositária, nos concebe pelo batismo, nos alimenta com os
sacramentos e a palavra de Deus, nos prepara para. a missão, nos leva ao
desígnio de Deus, razão de nossa existência como cristãos. Somos seus filhos.
Nós a chamamos com legitimo orgulho de nossa mãe, repetindo um título que vem
dos primeiros tempos e atravessa os séculos.
Deve-se,
pois, chamá-1a, respeitá-1a, servi-1a, porque "não pede ter a Deus como
pai quem não possui a Igreja como mãe" (S. Cipriano, De Catholicae
Ecclesiae Unxtate 6, 8). "Não é possível amar a Cristo sem amar a Igreja a
quem Cristo ama" (EN 16), e "na medida, em que alguém ama a Igreja de
Cristo, possui o Espirito Santo" (Santo Agostinho, In Iohannis evangelium,
Tractatus 32, 8).
O
amor à Igreja deve ser feito de fidelidade e de confiança. No primeiro discurso
de meu pontificado, sublinhando o propósito de fidelidade ao Concílio Vaticano
II e à vontade de dedicar meus melhores cuidados ao setor da eclesiologia,
convidei a retomar em mãos a constituição dogmática, Lumen Gentium para meditar
"com renovado afã sobre a natureza e missão da Igreja. Sobre seu modo de
existir e agir. . . Não apenas para conseguir aquela comunhão de vida em
Cristo de todos aqueles que nele crêem e esperam, mas também para contribuir a
tornar mais ampla e estreita a unidade de toda a família humana (João Paulo II,
Mensagem à Igreja e ao Mundo, 17.10.1978).
Repito
agora o convite, neste momento transcendental da evangelização da América
Latina: "A adesão a este documento do Concílio, tal como aparece,
iluminada pela tradição e que contém as fórmulas dogmáticas dada8 há um século
pelo Concílio Vaticano I, será para nós, pastores e fiéis, o caminho certo e o
estfmulo constante - digamo-lo de novo - em relação ao caminhar pelas sendas da
vida e da história" (ibid.).
1.7.
Não existe garantia de uma ação evangelizadora séria e vigorosa, sem uma
eclesiologia bem cimentada.
Primeiro,
porque evangelizar é a missão essencial, a vocação própria, a identidade mais
profunda da Igreja, por sua vez evangelizada. Enviado pelo Senhor, ela envia,
por sua vez, os evangelizadores a pregar, “não a si nem ela, nem ele são donos
e proprietários absolutos para dispor dele a seu bel-prazer” (EN 15). Segundo,
porque “evangelizar não é para ninguém um ato individual e separado, senão
profundamente eclesial... um ato da Igreja” (EN 60) que está sujeita não ao
poder discricionário de critérios e perspectivas individuais, “mas à comunhão
com a Igreja e seus pastores” (EN 60). Por isso uma visão correta da Igreja é
fase indispensável para uma justa visão da evangelização.
Como
poderia haver uma autêntica evangelização, se faltar um acatamento imediato e
sincero ao sagrado magistério com a clara consciência de que, submetendo-se a
ele, o Povo de Deus não aceita uma palavra de homens, senão a verdadeira
palavra de Deus? “Deve-se ter em conta a importância “objetiva” deste
magistério e também defendê-lo das insídias que nestes tempos, aqui e ali, se
voltam contra algumas verdades firmes de nossa fé católica” (João Paulo II, Mensagem à Igreja e ao Mundo,
17.10.1978).
Conheço
bem vossa adesão e disponibilidade à cátedra de Pedro e o amor que sempre lhe
tendes demonstrado. Agradeço-vos de coração, e nome do Senhor, a profunda
atitude eclesial que isto implica e vos desejo o consolo de que também vós
conteis com a adesão leal de vossos fiéis.
1.8.
Na ampla documentação com que tendes preparado esta conferência,
particularmente nas contribuições de numerosas Igrejas, se perceve, por vezes,
um certo mal-estar com respeito à própria interpretação da natureza e missão da
Igreja. Alude-se, por exemplo, entre a separação que alguns estabelecem entre
Igreja e Reino de Deus. Este, esvaziado de seu conteúdo total, é entendido em
sentido mais secularista: ao Reino não se chegaria pela fé e pela pertença à
Igreja, mas pela melhor mudança estrutural e pelo compromisso sócio-político.
Onde existir um certo tipo de compromisso e de práxis pela justiça, ali estaria
já presente o Reino. Esquece-se deste modo que: “A Igreja... recebe a missão de
anunciar o Reino de Cristo e de Deus e instaurá-lo em todos os povos e
constitui na terra o germe e o princípio deste Reino” (LG 5).
Em
uma de suas belas catequeses, o Papa João Paulo I, falando da virtude da
esperança, advertia: “É um erro afirmar que a libertação política, econômica e
social coincide com a salvação em Jesus Cristo; que o Regnum Dei se identifica com o Regnum
hominis” (João Paulo I, Catequese sobre a Virtude Teologal da Esperança,
20.9.1978).
Produz-se
em alguns casos uma atitude de desconfiança para com a Igreja “institucional”
ou “oficial”, qualificada como alienante, à qual se oporia outra Igreja popular
“que nasce do povo” e se concretiza nos pobres. Estas posições poderiam ter
graus diferentes, nem sempre fáceis de precisar, de conhecidos condicionamentos
ideológicos. O Concílio tornou presente qual seja a natureza e missão da
Igreja. E como se contribui para sua unidade profunda e para sua permanente
construção por parte daqueles que possuem a seu cargo ministérios da comunidade
e devem contar com a colaboração de todo o Povo de Deus. Com efeito, “se o
Evangelho que proclamamos aparece despedaçado, por querelas doutrinais,
polarizações ideológicas ou por condenações teorias recíprocas entre cristãos,
a capricho de suas diferentes teorias sobre Cristo e sobre a Igreja e inclusive
por causa de diferentes concepções da sociedade e das instituições humanas,
como pretender que aqueles aos quais se dirige nossa pregação não se mostrem
perturbados, desorientados, e até mesmo escandalizados?” (EN 77).
Verdade sobre o homem
1.9.
A verdade que devemos ao homem é, antes de tudo, uma verdade sobre ele mesmo.
Como testemunhas de Jesus Cristo somos arautos, porta-vozes, servos desta
verdade que não podemos reduzir aos princípios de uma sistema filosófico ou à
pura atividade política, que não podemos esquecer nem atraiçoar.
Talvez
uma das mais notáveis debilidade da civilização atual esteja numa inadequada
visão do homem. A nossa é, sem dúvida, a época em que mais se tem escrito e
falado sobre o homem, a época dos humanismos e do antropocentrismo. Contudo,
paradoxalmente, é também a época das profundas angústias do homem com respeito
a sua identidade e destino, do rebaixamento do homem a níveis antes
insuspeitados, época de valores humanos conculcados como jamais o foram antes.
Como
se explica este paradoxo? Podemos dizer que é o paradoxo inexorável do
humanismo ateu. E o drama do homem amputado de uma dimensão essencial de seu
ser - o absoluto - e colocado deste modo diante da pior redução do próprio ser.
A constituição pastoral Gaudium et Spes toca o fundo do problema quando afirma:
"O mistério do homem só se esclarece no mistério do Verbo encarna-lo"
(GS 22).
A
Igreja possui, graças ao Evangelho, a verdade sobre o homem. Esta se encontra
numa antropologia que a Igreja não cessa de aprofundar e de comunicar. A afirmação
primordial desta antropologia é a do homem como imagem de Deus irredutível a
uma simples parcela da natureza ou a um elemento anônimo da
cidade-humana". Neste sentido, escrevia, Santo Ireneu: "A glória do
homem é Deus, mas o receptáculo de toda ação de Deus, de sua sabedoria, de seu
poder é o homem" (Santo Ireneu, Ad versos haereses, L. III, 20, 2-3).
A
este fundamento insubstituível da concepção cristã do homem, me referi em
particular em minha mensagem de Natal: "Natal é a festa do homem. . O
homem, objeto de cálculo, considerado sob a categoria da quantidade... e ao
mesmo tempo uno, único e irrepetível. . . alguém eternamente idealizado e
eternamente escolhido, alguém chamado e denominado por seu nome" (João
Paulo II, Mensagem de Natal, 25.12.1978).
Diante
de outros tantos humanismos, freqüentemente fechados numa visão do homem
estritamente econômica, biológica ou psíquica, a Igreja possui o direito e o
dever de proclamar a verdade sobre o homem, que ela recebeu de seu mestre Jesus
Cristo. Oxalá não impeça de fazê-1o nenhuma coação externa. Mas,
principalmente, oxalá não deixe ela de fazê-1o por temores ou dúvidas, por
ter-se deixado contaminar por outros humanismos, por falta de confiança em sua
mensagem original.
Quando
pois um pastor da Igreja anuncia com clareza e sem ambigüidades a verdade sobre
o homem, revelada par aquele mesmo que "sabia o que havia na homem"
(Jo 2, 25), deve animá-lo a segurança: de estar prestando 0 melhor serviço ao
ser humano.
Esta
verdade completa sobre o ser humano constitui o fundamento do ensino social da
Igreja, bem como é base, verdadeira libertação. A luz desta verdade, não é o
homem um ser submetido aos processos econômicos ou políticos, mas estes
processos estão ordenados ao homem e submetidos a ele.
Deste
encontro de pastores sairá, sem dúvida, fortificada esta verdade sobre o homem
que ensina a Igreja.
2. Sinais e construtores da
unidade
Vosso
serviço pastoral à verdade se completa por um igual serviço à unidade.
Unidade entre os bispos
2.1
. Esta será, antes de tudo, unidade entre vós mesmos, os bispos. "Devemos
guardar e manter esta unidade - escrevia o bispo São Cipriano num momento de
graves ameaças à comunhão entre os bispos de seu país - sobretudo nós, os
bispos que presidimos na Igreja, a fim de testemunhar que o episcopado é uno e
indivisível. Que ninguém engane aos fiéis nem altere a verdade. O episcopado é
uno . . . " ( São Cipriano, De catholicae Ecclesiae unitate, 6, 8).
Esta
unidade episcopal provém não de cálculo e manobras humanas, mas do alto, do
serviço a um único Senhor, da animação de um único Espírito, do amor a uma
única e mesma Igreja. ,É a unidade que resulta da missão que Cristo nos
confiou, que no Continente latino-americano se desenvolve desde há quase meio
milênio e que vós levais adiante com ânimo forte em tempos de profundas
transformações, enquanto nos aproximamos da final do segundo milênio da
redenção e da ação da Igreja. E a unidade em torno ao Evangelho, do corpo e do
sangue do Cordeiro, de Pedro, vivo em seus sucessores, sinais todos diferentes
entre si, mas todos tão importantes, da presença de Jesus entre nós.
Como
deveis viver, amados irmãos, esta unidade de pastores, nesta Conferência que é
por si mesma sinal e fruto de uma unidade que já existe, mas também antecipação
e princípio de uma unidade que deve ser ainda mais estreita e sólida! Começais
estes trabalhos em clima de unidade fraterna,: que esta unidade seja um
elemento de evangelização.
Unidade
com os sacerdotes, religiosos e povo fiel
2.2.
A unidade dos bispos entre si se prolonga na unidade com os presbíteros,
religiosos e fiéis. Os sacerdotes são os colaboradores imediatos idos bispos,
na missão pastoral, que ficaria comprometida se não reinasse entre eles e os
bispas esta estreita unidade.
Sujeitos
especialmente importantes desta unidade serão também os religiosos e
religiosas. Sei muito bem como foi e continua, sendo importante a contribuição
dos mesmos para a evangelização na América Latina. Aqui chegaram nos albores do
descobrimento e dos primeiros passos de quase todos os países. Aqui trabalharam
continuamente ao lado do clero diocesano. Em diversos países mais da metade,
em outros a grande maioria do presbitério é formado por religiosos. Bastaria
isto para compreender quanto importa, aqui mais que em outras partes do mundo
que os religiosos não só aceitem, mas busquem lealmente uma indissolúvel
unidade de perspectivas e de ação com os bispos. A estes confiou o Senhor a
missão de apascentar o rebanho. A eles corresponde traçar os caminhos para a evangelização.
Não lhes pode não lhes deve faltar a colaboração, ao mesmo tempo responsável e
ativa mas também dócil e confiante dos religiosos, cujo carisma faz deles
agentes tanto mais disponíveis ao serviço do Evangelho. Nesta linha pesa sobre
todos na comunidade eclesial, o dever de evitar magistérios paralelos,
eclesialmente inaceitáveis e pastoralmente estéreis.
Sujeitos
também desta unidade são os leigos, comprometidos individualmente ou
associados em organismos de apostolado para a difusão do Reino de Deus. São
eles que devem consagrar o mundo a Cristo no meio das tarefas cotidianos e nas
diferentes funções familiares e profissionais, em íntima união e obediência
aos legítimos pastores.
Este
dom precioso da unidade eclesial deve ser salvaguardado entre todos os que
formam parte do povo peregrino de Deus, na linha da. Lumen Gentium.
3. Defensores e promotores da
dignidade
3.
1 . Quem está familiarizado com a história da Igreja, sabe que em todos os
tempos houve admiráveis figuras de bispos profundamente empenhados na promoção
e na corajosa defesa da dignidade humana daqueles que o Senhor lhes havia
confiado. Sempre o fizeram sob o imperativo de sua missão episcopal, porque
para eles a dignidade humana é um valor evangélico que não pode ser desprezado
sem grande ofensa ao Criador.
Esta
dignidade é conculcada em nível individual quando não são devidamente levados
em conta valores como a liberdade, o direito a professar a religião, a
integridade física, e psíquica, o direito aos bens essenciais, à vida. É
conculcada em nível social e político, quando 0 homem não pode exercer seu
direito de participação ou é sujeito a injustas e ilegítimas coerções, ou
submetido a torturas físicas ou psíquicas, etc.
Não
ignoro quantos problemas se colocam hoje, neste assunto, na América. Latina.
Como bispos não podeis desinteressar-vos deles. Sei que vos propondes levar a
cabo urna séria reflexão sobre as relações e implicações existentes entre
evangelização e promoção humana ou libertação, considerando, em campo tão amplo
e importante, o específico da presença. da Igreja.
Aqui
é onde encontramos, e leva-nos à prática concretamente, os temas que abordamos
ao falar da verdade sobre Cristo, sobre a Igreja e sobre o homem.
3.2.
Se a Igreja se faz presente na defesa ou na promoção da dignidade do homem, o
faz na linha de sua missão, que, mesmo sendo de caráter religioso e não social
ou político, não pode deixar de considerar o homem na integridade de seu ser. O
Senhor delineou na parábola do bom samaritano o modelo da atenção a todas as necessidades
humanas, e declarou que, em última análise, se identificará com os deserdados -
enfermos, encarcerados, famintos, solitários - a quem se tenha estendida a
mão. A Igreja aprendeu nestas e noutras páginas do Evangelho "5' que sua
missão evangelizadora possui como parte indispensável a ação pela justiça, e as
tarefas de promoção do homem e que entre evangelização e promoção humana
existem laços bem fortes de ordem antropológica,, teológica e de caridade; de
modo que "a evangelização não seria completa se não se levasse em conta a
interpelação recíproca que no curso dos tempos se estabelece entre o Evangelho
e a vida concreta pessoal e social do homem (EN 29).
Tenhamos
presente, por outro lado, que a ação da Igreja em campos como os da promoção
humana, do desenvolvimento, da justiça, dos direitos da pessoa, quer estar
sempre a serviço do homem; e ao homem tal como o vê na, visão cristã da
antropologia que adota. Não necessita pois recorrer a sistemas e ideologias
para amar, defender e colaborar na libertação do homem: no centre da mensagem
da qual é depositária e anunciadora, ela encontra inspiração para agir em favor
da fraternidade, da justiça, da paz, contra todas as dominações escravidões,
discriminações, violências, atentados à liberdade religiosa, agressões contra o
homem e tudo que atenta contra a vida' IB ).
3.3.
Não é pois por oportunismo nem por afã de novidade que a Igreja, "perita
em humanidade" (Paulo VI Discurso na ONU, 5.10.1%5), é defensora dos
direitos humanos. É por um autêntica compromisso evangélico, o qual, como
sucedeu com Cristo, é, sobretudo, compromisso com os mais necessitados.
Fiel
a este compromisso, a Igreja quer manter-se livre diante dos sistemas opostos
para optar só pelo homem. Quaisquer que sejam as misérias ou sofrimentos que
aflijam ao homem; não através da violência dos jogos do poder, dos sistemas
políticos, mas por meio da verdade sobre o homem, caminha para um futuro
melhor.
3.4.
Nasce daí a constante preocupação da Igreja pela delicada questão da
propriedade. Uma prova disto são os escritos dos padres da Igreja através do
primeiro milênio do cristianismo (Santo Ambrósio, De Nabuthe, c. 12 n. 53; PL
14, 749). Claramente o demonstra a sólida doutrina de Santo Tomás de Aquino,
repetida tantas vezes. Em nossos tempos, a Igreja apelou aos mesmos princípios
em documentos de grande alcance como são as encíclicas sociais dos últimos
papas. Com uma força e profundidade particular, falou deste tema o Papa Paulo
VI em sua encíclica Populorum Progressio.
Esta
voz da Igreja, eco da voz da consciência humana, que não cessou de ressoar
através dos séculos em meio dos mais variados sistemas e condições
sócio-culturais, merece e necessita ser ouvida. também em nossa época, quando a
riqueza crescente de uns poucos continua paralela à crescente miséria das
massas.
É
então que adquire caráter urgente o ensinamento da Igreja, segundo o qual sobre
toda propriedade privada pesa uma hipoteca social. Com respeito a este
ensinamento a Igreja possui uma missão a cumprir: deve pregar educar as
pessoas e as coletividades, formar a opinião pública, orientar os responsáveis
dos povos. Deste modo estará trabalhando a favor da sociedade, dentro da qual
este princípio cristão e evangélico acabará dando frutos de uma distribuição
mais justa e eqüitativa dos bens, não só dentro de cada nação, mas também no
mundo internacional em geral, evitando que os países mais fortes usem seu
poder em detrimento dos mais fracos.
Aqueles
sobre os quais recai a responsabilidade da vida pública dos Estados e Nações
deverão compreender que a paz interna e a paz internacional só estarão asseguradas
se vigorar um sistema social e econ6mico baseado sobre a justiça.
Cristo
não permaneceu indiferente diante deste vasto e exigente imperativo da moral social.
Tampouco poderia fazê-1o a Igreja. No espírito da Igreja, que é o espírito de
Cristo, e apoiados em sua doutrina ampla e sólida, voltamos ao trabalho neste
campo.
Deve-se
sublinhar aqui novamente que a solicitude da Igreja visa o homem em sua integridade.
Por
esta razão, é condição indispensável para que um sistema econômico seja justo,
que propicie o desenvolvimento e a difusão da instrução pública e da cultura.
Quanto mais justa for a economia, tanto mais profunda será a consciência da
cultura. Isto se harmoniza perfeitamente com o que afirmava o Concílio: que
para alcançar uma vida digna do homem, não é possível limitar-se a ter mais,
deve-se aspirar a ser mais.
Bebei,
pois, irmãos, destas fontes autênticas falai com a linguagem do Concílio, de João
XXIII, de Paulo VI; é a linguagem da experiência, da dor, da esperança da
humanidade contemporânea.
Quando
Paulo VI declarava que o desenvolvimento é o novo nome da paz, tinha presentes
todos os laços de interdependência que existem não só dentro das nações, mas
também fora delas, em nível mundial. Levava em consideração os mecanismos que,
por encontrar-se impregnados não de autêntico humanismo, mas de materialismo,
produzem em nível internacional ricos cada vez mais ricos à custa de pobres
cada vez mais pobres.
Não
existe regra econômica capaz de mudar por si mesma estes mecanismos. Deve-se
apelar, na vida internacional, aos princípios da ética, às exigências da
justiça, ao mandamento primeiro, que é o do amor. Deve-se dar primazia à
moral, ao espiritual, ao que nasce da verdade plena, sobre o homem.
Quis
manifestar-vos estas reflexões, que creio bem importantes, embora não devam
separar-vos do tema central da Conferência: ao homem, à justiça., chegaremos
mediante a evangelização.
3.5.
Diante do que disse até aqui, a Igreja vê com profunda dor "o aumento
maciço, por vezes, de violações de direitos humanos em muitas partes do mundo.
. Quem pode negar que hoje em dia existem pessoas individuais e poderes civis
que violam impunemente direitos fundamentais da pessoa humana, tais como o
direito de nascer, o direito à vida, o direito à procriação responsável, ao
trabalho, à paz, à liberdade e à justiça social; o direito de participar nas
decisões que concernem ao povo e às nações? E que dizer quando nos encontramos
diante de formas variadas de violência coletiva, como a discriminação racial de
indivíduos e grupos, a tortura física e psicológica de prisioneiros e
dissidentes políticos? Cresce o elenco quando olhamos os exemplos de
seqüestras de pessoas, os raptos motivados pelo afã de lucro material que
investem tão dramaticamente contra a vida familiar e a estrutura da
sociedade" (João Paulo II, Mensagem à ONU, 2.12.1998). Clamamos novamente:
Respeitai o homem! Ele é imagem de Deus! Evangelizai para que isto seja uma
realidade! Para que o Senhor transforme os corações e humanize os sistemas
políticos e econômicos, partindo do empenho responsável do homem.
3.6.
Deve-se animar os compromissos pastorais neste campo com uma reta concepção
cristã da libertação. "A Igreja sente o dever de anunciar a libertação de
milhões de seres humanos, o dever de ajudar a que se consolide esta
libertação" (EN 3o); mas sente também o dever correspondente de proclamar
a libertação em seu sentido integral, profundo, como o anunciou e realizou
Jesus. Libertação de tudo o que oprime o homem, mas que é, antes de tudo,
salvação do pecado e do maligno, dentro da alegria de conhecer a Deus e de ser
conhecido por ele" (EN 9). Libertação feita de reconciliação e perdão.
Libertação que nasce da realidade de ser filhos de Deus, a quem somos capazes
de chamar Abba, Pai!, e pelo qual reconhecemos em todo homem um irmão nosso,
capaz de ser transformado em seu coração pela misericórdia. de Deus. Libertação
que nos leva, com a energia da caridade, à comunhão, cujo cume e plenitude
encontramos no Senhor. Libertação como superação das diversas escravidões e
ídolos que o homem se fabrica e como crescimento do homem novo.
Libertação
que, dentro da missão própria da Igreja, não pode reduzir-se à simples e
estreita dimensão econ8mica, política, social ou cultural... que jamais se
pode sacrificar às exigências de uma estratégia qualquer, de uma práxis ou de
um êxito a curto prazo" (EN 33).
Para
salvaguardar a originalidade da libertação cristã das energias que é capaz de
desenvolver, é necessário a todo custo, como pedia o Papa Paulo VI, evitar
reducionismos e ambigüidades: "A Igreja perderia seu significado mais
profundo. Sua mensagem de libertação não teria nenhuma originalidade e se
prestaria a ser dominada e manipulada pelos sistemas ideológicos e pelos
partidos políticos" (EN 32). Existem muitos sinais que ajudam a discernir
quando se trata de uma libertação cristã e quando, ao invés, se nutre, de
preferência, de ideologias que lhe subtraem a coerência com uma visão
evangélica do homem, das coisas, dos acontecimentos. São sinais que derivam dos
conteúdos que anunciam ou das atitudes concretas que assumem os
evangelizadores. É preciso observar, em nível de conteúdos, qual seja a
fidelidade à palavra de Deus, à tradição viva da Igreja, a seu magistério.
Quanto às atitudes deve-se ponderar qual seja seu sentido de comunhão com os
bispos, em primeiro lugar, e com os demais setores do povo de Deus; qual é a
contribuição que se dá à construção efetiva da comunidade e qual a forma de
dirigir com amor sua solicitude para com os pobres, os enfermos, os despojados,
os desamparados, os oprimidos e como descobrindo neles a imagem de Jesus
"pobre e paciente se esforça, em remediar suas necessidades e servir neles
a Cristo" (LG 8). Não nos enganemos: os fiéis humildes e simples, como por
instinto evangélico, percebem espontaneamente quando se serve na Igreja ao
Evangelho e quando ele é esvaziado e asfixiado com outros interesses.
Como
vedes, conserva toda sua validade o conjunto de observações que sobre o tema da
libertação fez a Evangelii Nuntiandi.
3.7.
Tudo que recordamos acima constitui um rico e complexo patrimônio que a
Evangelii Nuntiandi denomina doutrina social ou ensinamento social da Igreja.
Esta nasce à luz da palavra de Deus e do magistério autêntico, da presença dos
cristãos no seio das situações em transformação do mundo, em contato com os
desafios que delas provêm. Tal doutrina social comporta, portanto, princípios
de reflexão, mas também normas de julgamento e diretrizes de ação.
Confiar,
responsavelmente, nesta doutrina social, mesmo quando alguns procuram semear
dúvidas e desconfianças sobre ela, estudá-1a com seriedade, procurar
aplicá-la, ensiná-1a, ser fiel a ela é, num filho da Igreja, garantia de
autenticidade de seu compromisso nas delicadas e exigentes tarefas sociais e
de seus esforços em favor da libertação ou da promoção de seus irmãos.
Permiti,
pois, que recomende à vossa especial atenção pastoral a urgência de
sensibilizar a vossos fiéis a respeito desta doutrina social da Igreja.
Deve-se
colocar particular cuidado na formação de uma consciência social em todos os
níveis e em todos os setores. Quando aumentam as injustiças e cresce dolorosamente
a distância entre pobres e ricos, a doutrina, social, em forma criativa e
aberta aos amplas campos da presença. da Igreja, deve ser precioso instrumento
de formação e de ação. Isto vale, particularmente, em relação aos leigos.
"Competem aos leigos, propriamente, embora não exclusivamente, as tarefas
e o dinamismo seculares" (GS 43). É necessário evitar adulterações e
estudar, seriamente, quando certas formas de suplência mantém sua razão de
ser. Não são os leigos os chamados, em virtude de sua vocação na Igreja, a dar
sua contribuição nas dimensões políticas, econômicas e a estar eficazmente
presentes na tutela. e promoção dos direitos humanos?
4. Algumas tarefas prioritárias
Muitos
temas pastorais, de grande significação, ides considerar. O tempo me impede de
aludir a eles. A alguns me referi ou me referirei nos encontros com os
sacerdotes, com os religiosos, com os seminaristas, com os leigos.
Os
temas que aqui vos assinalo possuem, por diferentes motivos, uma grande
importância. Não deixareis de considerá-los, entre tantos outros que vossa
clarividência pastoral vos indicará.
A família.
Fazei todos os esforços para que haja uma pastoral familiar. Atendei um campo
tão prioritário com a certeza de que a evangelização no futuro depende em
grande parte da "Igreja doméstica". E a escola do amor, do
conhecimento de Deus, do respeito à vida, à dignidade do homem. E esta pastoral
é tanto mais importante quanto a família é objeto de tantas ameaças. Pensai nas
campanhas favoráveis ao divórcio, ao uso de práticas anticoncepcionais, ao
aborto, que destróem a sociedade.
As
vocações sacerdotais e religiosas. Na maioria de vossos países, não obstante um
esperançoso despertar de vocações, é um problema grave e crônico a falta das
mesmas. A desproporção é imensa entre o número crescente de habitantes e o de
agentes da evangelização. Importa isto de modo especial à comunidade cristã.
Toda comunidade deve procurar suas vocações, como sinal inclusive de sua
vitalidade e maturidade. Deve-se reativar uma intensa ação pastoral que,
partindo às vocação cristã em geral, de uma pastoral juvenil entusiasta, dê à
Igreja os servidores de que necessita. As vocações leigas, tão indispensáveis,
não podem ser am.a, compensação. Mas ainda, uma das provas do compromisso do
leigo é a fecundidade nas vocações à vida consagrada.
A juventude.
Quanta esperança a Igreja nela coloca! Quantas energias circulam na juventude,
da América Latina, de que a Igreja necessita. Como devemos estar próximos
dela, nós pastores, para que Cristo e a Igreja, para que o amor do irmão calem
profundamente em seu coração.
Conclusão
Ao
término desta mensagem não posso deixar de invocar uma vez mais a proteção da
Mãe de Deus sobre vossas pessoas e vosso trabalho nestes dias. O fato de que
este nosso encontro tenha lugar na presença espiritual de Nossa Senhora de
Guadalupe, venerada no México e em todos os outros países como Mãe da Igreja na
América Latina, é para mim um motivo de alegria e uma fonte de esperança.
"Estrela da Evangelização", seja ela vossa guia nas reflexões que fareis
e nas decisões que tomareis. Que ela alcance para vós, de seu divino Filho,
audácia de profetas e prudência evangélica de pastores, clarividência de
mestres e segurança. de guias e orientadores; força. de ânimo como testemunhas,
e serenidade, paciência e mansidão de pais.
O
Senhor abençoe vossos trabalhos. Estais acompanhados por representantes
seletos: presbíteros, diáconos, religiosos, religiosas, leigos, peritos,
observadores, cuja colaboração vos será muito útil. Toda a Igreja volta os
olhos para vós, com confiança e esperança. Quereis responder a tais
expectativas com plena fidelidade a Cristo, à Igreja, ao homem. O futuro está
nas mãos de Deus mas, de certo modo, este futuro de um novo impulso
evangelizador, Deus o coloca também nas vossas. "Ide, pois, ensinai a
todos os povos" (Mt29, 19).
S.S.
JOÃO PAULO II
HOMILIA
PRONUNCIADA NA BASÍLICA DE NOSSA SENHORA DE GUADALUPE
DA
CIDADE DO MÉXICO DURANTE A SOLENE CONCELEBRAÇÃO
COM
OS PARTICIPANTES NA CONFERÊNCIA
27 de janeiro de 1979
Salve, Maria!
1.
Quão profunda é minha alegria, queridos irmãos no episcopado e filhos muito
amados, porque os primeiros passos de minha peregrinação, como sucessor de
Paulo VI e de João Paulo I, me trazem precisamente para cá, Trazem-me a ti
Maria, neste santuário do povo do México e de toda a América Latina, no qual há
tantos séculos se manifestou sua maternidade.
Salve, Mãe de Deus!
Pronuncio
com imenso amor e reverência estas palavras, tão simples e ao mesmo tempo tão
maravilhosas. Ninguém poderá saudar-te nunca de um modo mais estupendo do que
como o realizou, um dia, o arcanjo no momento da anunciação. Ave, Maria,
gratis plena, Dominus tecum Repito estas palavras que tantos corações guardam e
tantos lábios pronunciam em todo o mundo. Nós, aqui presentes, as repetimos
juntos, conscientes de que estas são as palavras com as quais Deus mesmo,
através de seu mensageiro, saudou a ti, a mulher prometida no éden, e desde a
eternidade escolhida como mãe do Verbo, mãe da divina sabedoria, mãe do Filho
de Deus.
Salve, Mãe de Deus!
2.
Teu Filho Jesus Cristo é nosso redentor e senhor. É nosso mestre. Todos nós
aqui reunidos somos seus discípulos. Somos os sucessores dos apóstolos,
daqueles a quem o Senhor disse: "Ide, pois, ensinai a todos ;os povos,
batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a
observar tudo quanto lhes mandei. Estarei convosco até a consumação do
mundo" (Ml 28, 19 2d).
Congregados
aqui o sucessor de Pedro e os sucessores dos apóstolos, nos damos conta de como
estas palavras se cumpriram, de modo admirável, nesta terra. Com efeito, desde
que em 1492 começa a gesta evangelizadora do novo mundo, apenas uma vintena de
anos depois chega a fé no México. Pouco mais tarde se cria a primeira sede
arquiepiscopado dirigida por Juan de Zumárraga a quem seguiram outras figuras
de evangelizadores, que estenderam o cristianismo em diferentes e amplas
regiões.
Outras
epopéias religiosas, não menos gloriosas, escreverem no hemisfério sul, homens
como Turíbio de Mogrovejo e outros muitos que mereceriam ser citados numa
longa lista. Os caminhos da fé vêm se alargando sem cessar e, em fins do
primeiro século de evangelização, as sedes episcopais no novo Continente são
mais de 70 com uns quatro missões de cristãos. Um empreendimento singular que
continuará por muito tempo, até abarcar no dia de hoje, após cinco séculos de
evangelização, quase a metade de toda a Igreja católica, arraigada na cultura
do povo latino-americano e formando parte de sua identidade própria.
A
medida que nestas terras se realizava o mandato de Cristo, à medida que com a
graça do batismo se multiplicavam em toda a parte os filhos da adoção divina,
aparece também a mãe. Com efeito, a ti, Maria, o Filho de Deus e ao mesmo tempo
filho teu, do alto da cruz indicou um homem e disse: "Eis aí teu
Filho" (Jo 19, 26). Naquele homem te confiou a cada homem, te confinou a
todos. E tu, que no momento da. anunciação, nestas simples palavras: "Eis
aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra." (Lc 1,38).
concentraste todo o programa de tua vida, abraças a todos, te aproximas de
todos, buscas maternalmente a todos. Deste modo se cumpre o que o último
Concilio declarou a respeito de tua presença no mistério de Cristo e da Igreja.
Perseveras de modo admirável no mistério de Cristo, teu Filho Unigênito,
porque estás sempre onde estiverem os homens seus irmãos, onde está a Igreja.
3.
De fato, os primeiros missionários chegados à América, provenientes de terras
de eminente tradição mariana, junto com os rudimentos da fé cristã, vão ensinando
o amor a ti, Mãe de Jesus e de todos os homens. E desde que o índio Juan Diego
falara da doce senhora do Tepeyac, tu, Mãe de Guadalupe, entras de modo
determinante na vida cristã do povo do México. Não foi menor tua presença em
outras partes, onde teus filhos te invocam com ternos nomes, como Senhora da
Altagracia, da Aparecida, de Lujan e tantos outros não menos íntimos, para não
fazer uma lista interminável, com os quais em cada nação, e mesmo em cada. região, os povos latino-americanos te
expressam sua devoção mais profunda e tu os proteges em seu peregrinar de fé.
O
papa - que vem de um país em que tuas imagens, especialmente uma, a de Jasna
Gora, são também sinal de tua presença na vida da nação, em sua ardorosa
história - é particularmente sensível a este sinal de tua presença aqui, na
vida do povo de Deus no México, em sua história, também ela não fácil e por
vezes até dramática. Contudo estás igualmente presente na vida de tantos outros
povos e nações da América Latina, presidindo e guiando não apenas seu passado
remoto ou recente, mas também o momento atual, com suas incertezas e sombras.
Este papa percebe no fundo de seu coração os vínculos particulares que te unem
a ti com este povo e a este povo contigo. Este povo, que afetuosamente te chama
La Morenita. Este povo - e indiretamente todo este imenso continente - vive sua
unidade espiritual graças ao fato de que tu és a mãe, uma mãe que, com seu
amor, cria, conserva, acrescenta espaços de aproximação entre seus filhos.
Salve Mãe do México, Mãe da
América Latina.!
4.
Encontramo-nos aqui, nesta hora insólita e estupenda às história do mundo.
Chegamos a este lugar conscientes de que nos encontramos num momento crucial.
Com esta reunião de bispos desejamos entroncar com a precedente conferência do
episcopado latino-americano que se realizou, há dez anos, em Medellin,
coincidindo com o Congresso Eucarístico de Bogotá, e na qual tomou parte Paulo
VI de inesquecível memória. Viemos para cá não tanto para voltar a examinar, no
final de dez anos, o mesmo problema, mas para revisá-lo de modo novo e num novo
momento histórico.
Queremos
tomar como ponto de partida o que contém os documentos e resoluções daquela
Conferência, e queremos ao mesmo tempo, sobre a base das experiências destes
dez anos, do desenvolvimento do pensamento e à luz das experiências de toda a
Igreja, dar um justo e necessário passo adiante.
A
Conferência de Medellin realizou-se pouco depois do termino do Vaticano II, o
Concílio do nosso século, e teve por objetivo recolher as colocações e conteúdo
essenciais do Concílio, para aplicá-los e torna-los força orientadora na
situação concreta da Igreja latino-americana.
Sem
o Concílio não teria sido possível a reunião de Medellin, que quis ser um
impulso de renovação pastoral, um novo "espírito" de frente para o
futuro, na plena fidelidade eclesial, na, interpretação dos sinais dos tempos
na América Latina. A intencionalidade evangelizadora era bem clara e está
patente nos 16 temas abordados, reunidos em torno de três grandes áreas,
mutuamente complementares: promoção humana, evangelização e crescimento na fé,
Igreja visível e suas estruturas.
Com
sua opção pelo homem latino-americano visto em sua integridade, com seu amor
preferencial, mas não exclusivo, pelos pobres, com seu ânimo para uma libertação
integral dos homens e dos povos, Medellin, a Igreja ali presente, foi um
chamado de esperança. para metas mais cristãs e mais humanas.
Contudo
dez anos se passaram. Fizeram-se interpretações, por vezes, contraditórias,
nem sempre corretas nem sempre benfazejas para a Igreja. Por isso, a Igreja
busca os caminhos que lhe permitam compreender mais profundamente e cumprir
com maior empenho a missão recebida de Cristo Jesus.
Grande
importância exerceram, a este respeito, as sessões do Sínodo dos bispos que se
celebraram nestes anos, e principalmente a do ano de 1974, centrada sobre a
evangelização, cujas conclusões foram, depois, recolhidas, de modo vivo e
animador, pela exortação apostólica Evangelii Nuntiandi de Paulo VI.
Este
é o tema que, hoje, colocamos sobre nossa mesa de trabalho, ao nos propormos
estudar "A evangelização no presente e no futuro da América Latina".
Encontramo-nos
neste lugar santo para iniciar nossos trabalhos, temos diante dos olhos o
cenáculo de Jerusalém, lugar da instituição da eucaristia. Ao mesmo cenáculo
voltaram os apóstolos depois da ascensão do Senhor para que, permanecendo em
oração com Maria, a Mãe de Cristo, pudessem preparar seus corações para receber
o Espírito Santo, no momento do nascimento da Igreja.
Também
nós viemos aqui para isto, também nós esperamos a descida do Espírito Santo,
que nos fará ver os caminhos da evangelização, através dos quais a Igreja deve
continuar e renascer em nosso grande Continente. Também nós hoje, e nos
próximos dias, desejamos perseverar em oração som Maria, Mãe de Nosso Senhor e
Mestre: contigo, Mãe da Esperança, Mãe de Guadalupe.
5.
Permite pois que eu, João Paulo II, bispo de Roma e papa, junto com meus irmãos
no episcopado que representam a Igreja do México e de toda a América Latina,
neste solene momento, confiemos e ofereçamos a ti, serva do Senhor, todo o
patrimônio do Evangelho da cruz da ressurreição, dos quais todos nós somos
testemunhas, apóstolos, mestre e bispos.
Ó
Mãe, ajuda-nos a sermos fiéis dispensadores dos grandes mistérios de Deus.
Ajuda-mos a ensinar a verdade que teu Filho anunciou e a estender este amor,
que é o principal mandamento e o primeiro fruto do Espírito Santo. Ajuda nos a
confirmar a nossos irmãos na fé, ajuda-nos a despertar a esperança na vida eterna.
Ajuda-nos a guardar os grandes tesouros encerrados nas almas do povo de Deus
que nos foi confiado.
Oferecemos-te
todo este povo de Deus. Oferecemos-te a Igreja do México e de todo o
Continente. Oferecemo-1a a ti como propriedade tua. Tu que penetraste tanto nos
corações dos fiéis, através do sinal de tua presença, que é a tua imagem no
santuário de Guadalupe, vive como em tua casa nestes corações, também no
futuro. Considera te como alguém da casa em nossas famílias, em nossas paróquias,
missões, dioceses e em todos os povos.
E
o faço através da Igreja santa, a qual, imitando-te a ti, Mãe, deseja ser por
sua vez uma boa mãe cuidar das almas em fadas as suas necessidades, anunciando
o Evangelho administrando os sacramentos, salvaguardando a vida das famílias
mediante o sacramento do matrimônio, reunindo a todos na comunidade eucarística
por meio do santo sacramento do altar, acompanhando-os amorosamente desde o
berço até a entrada na eternidade.
Ó
Mãe, desperta nas jovens gerações a disponibilidade ao exclusivo serviço a
Deus. Implora para nós abundantes vocações locais ao sacerdócio e à vida
consagrada.
Ó
Mãe, corrobora a fé de todos os nossos irmãos e irmãs leigos, para que em cada
campo da vida social, profissional, cultural e política ajam de acordo com a
verdade e com a lei que teu filho trouxe à humanidade, para levar todos à
salvação eterna e, ao mesmo tempo, para tornar a vida sobre a terra mais
humana, mais digna do homem.
A
Igreja que desenvolve seu trabalho entre as nações americanas, a Igreja no
México, quer servir com todas as suas forças a esta, causa sublime com um
renovado espírito missionário. ó Mãe, faze que saibamos servi-1a na verdade e
na justiça. Faze que nós mesmos continuemos este caminho e levemos aos demais,
sem nos desviarmos jamais por caminhos tortuosos, arrastando a outros.
Oferecemos-te
e confiamos-te todos aqueles e tudo aquilo que é objeto de nossa
responsabilidade pastoral, coo fiando que tu estarás conosco e nos ajudarás a
realizar o que teu filho nos mandou. Em ti depositamos esta confiança
ilimitada e com ela, eu, João Paulo II, com todos os meus irmãos no episcopado
do México e da América Latina queremos vincular-te, de modo ainda mais forte, a
nosso ministério, à Igreja e a vida de nossas nações. Desejamos colocar em tuas
mãos nosso inteiro porvir, o porvir da evangelização da América Latina,.
Rainha
dos apóstolos, aceita nossa prontidão em servir sem reserva à causa. de teu
Filho, à causa do Evangelho e à causa da paz, baseada na justiça, e no amor
entre os homens e entre os povos.
Rainha
da paz, salva as nações e os povos de todo o Continente, que tanto confiam em
ti, das guerras, do ódio e da. subversão.
Faze
que todos governantes e súditos, aprendam a viver em paz se eduquem para a paz,
realizem o que exigem a justiça e o respeito dos direitos de todo homem para
que se consolide a paz. Aceita esta nossa confiante entrega, ó serva, do
Senhor. Que tua maternal presença. no mistério de Cristo e da Igreja se
converta em fonte de alegria e de liberdade para cada um e para todos: fonte
daquela liberdade por meio da qual "Cristo nos libertou" (G1 5, 1), e
finalmente fonte daquela paz que o mundo não pode dar, mas que só a dá, ele,
Cristo.
Finalmente,
ó Mãe, lembrando e confirmando o gesto de meus predecessores Bento XIV e Pio X,
que te proclamaram Padroeira do México e de toda a América. Latina, te
apresento rim diadema em nome 'de todos os teus filhos mexicanos e
latino-americanos, para que os conserves sob sua proteção guardes sua concórdia
na fé e sua fidelidade a Cristo, teu filho. Amém.
S.S.
JOÃO PAULO II
HOMILIA
PRONUNCIADA NO SEMINÁRIO PALAFOXIANO DE PUEBLA
DURANTE
A EUCARISTIA CELEBRADA NO ESTÁDIO LOCAL COM A PARTICIPAÇÃO
DE
TODOS OS MEMBROS DA
CONFERÊNCIA
E GRANDE CONCURSO DO POVO DE DEUS
28 de janeiro de 1979
Filhos e filhas muito amados,
l.
Puebla, de tos Angeles, o nome sonoro e expressivo de vossa cidade, se
encontra, hoje em dia, em milhões de lábios ao longo da América Latina e em
todo o mundo. Vossa cidade se torna símbolo e sinal para a Igreja latino-americana.
É aqui de fato, que se congregam a partir de hoje, convocados pelo sucessor de
Pedro, os bispos de todo o Continente para refletir sobre a missão dos pastores
nesta parte do mundo, nesta hora singular da história.
O
papa quis subir até este cume de onde parece abrir-se toda a América Latina. E
é com a impressão de contemplar os traços de cada uma das nações que, neste
altar levantado sobre as montanhas, o papa quis celebrar este sacrifício
eucarístico para invocar sobre esta Conferência, seus participantes, e seus
trabalhos, a luz, o calor, todos os dons do Espírito de Deus, Espírito de Jesus
Cristo.
Nada
mais natural e necessário que invocá,-1o esta circunstância. A grande
assembléia que se abre é, cem efeito, em sua essência mais profunda, uma reunião
eclesial: eclesial em razão daqueles que aqui se reúnem, pastores da Igreja de
Deus que está na América Latina; eclesial pelo tema que estuda, a missão da
Igreja no Continente; eclesial por seus objetivos de tornar sempre mais viva e
eficiente a contribuição original que a Igreja tem o dever de oferecer ao bem
estar, à harmonia, à justiça e à paz destes povos. Pois bem, não existe
assembléia eclesial se não estiver aí, na plenitude de sua misteriosa ação, o
Espírito de Deus.
O
papa o invoca com todo o fervor de seu coração. Que o lugar onde se reúnem os
bispos seja um novo cenáculo, muito maior que o de Jerusalém, onde os apóstolos
eram apenas onze naquela manhã, mas, como o de Jerusalém, aberto às chamas do
Paráclito e à força. de um renovado Pentecostes. Que o Espírito cumpra, em
vós, bispos, aqui congregados, a multiforme missão que o Senhor Jesus lhe
confiou: intérprete de Deus para fazer compreender seu desígnio e sua palavra
inacessíveis à simples razão humana, abra a inteligência destes pastores e os
introduza na verdade, testemunha de Jesus Cristo, dê testemunho na consciência
e no coração deles e os transforme, por sua vez, em testemunhas coerentes,
fidedignos, eficientes durante seus trabalhos; advogado ou consolados, infunda
ânimo contra o pecado do mundo e lhes coloque nos lábios o que deverão dizer,
principalmente no momento em que o testemunho custar sofrimento e fadiga.
Rogo-vos,
pois, amados filhos e filhas, que vos unais a mim nesta eucaristia, nesta
invocação ao Espírito. Não é para si mesmos nem por interesses pessoais que os
bispos vindos de todos ris ambientes do Continente, se encontram aqui; é para
vós, povo de Deus nestas terras, e para vosso bem. Participai, pois, nesta III
Conferência também deste modo: pedindo cada dia para todos e cada um deles a
abundância do Espírito Santo.
2.
Já se disse de forma bela e profunda, que nosso Deus em seu mistério mais
íntimo não é uma solidão, mas uma família, pois que leva em si mesmo a
paternidade, filiação e a essência da família que é amor. Este amor, na família
divina, é o Espírito Santo. O tema da família não está, pois, alheio ao tema do
Espírito Santo. Permiti que sobre este tema da família - que certamente ocupará
os bispos durante estes dias - o papa vos dirija algumas palavras.
Sabeis
que com termos densos e prementes a Conferência de Medellin falou da família.
Os bispos, naquele ano de 1%8, viram em vosso grande sentido da família um
traço primordial de vossa cultura latino-americana. Fizeram ver que, para o
bem de vossos países, as famílias latino-americanas deveriam ter sempre três
dimensões: ser educadoras da fé, formadoras de pessoas, promotoras de
desenvolvimento. Sublinharam também os graves obstáculos que as famílias
encontram para cumprir com este tríplice encargo. Recomendaram por isso a
atenção pastoral às famílias, como uma das atenções prioritárias da Igreja no
Continente.
Passados
dez anos, a Igreja na América Latina se sente feliz por tudo o que pôde fazer
em favor da família. Mas reconhece com humildade que muito ainda falta fazer,
enquanto percebe que a pastoral familiar, longe de ter perdido seu caráter
prioritário, aparece hoje ainda mais urgente,
como elemento muito importante na evangelização.
3.
A Igreja está consciente, com efeito, de que nestes tempos a família enfrenta
na América Latina sérios problemas. Ultimamente alguns países introduziram o
divórcio em sua legislação, o qual traz consigo uma nova ameaça à integridade
familiar. Na maioria de vossos países se lamenta que um número alarmante de crianças,
futuro destas nações e esperanças do futuro, nasçam em lares sem nenhuma
estabilidade ou, como se lhes costuma chamar, em "famílias
incompletas". Ademais, em certos lugares do "Continente da
esperança", esta mesma esperança corre o risco de desvanecer-se, pois ela
cresce no seio de famílias, muitas das quais não podem viver normalmente,
porque repercutem, particularmente, nelas os resultados mais negativos do
desenvolvimento: índices verdadeiramente deprimentes de insalubridade, pobreza
e mesmo miséria, ignorância e analfabetismo, condições inumanas de habitações,
subalimentação crônica e tantas outras realidades não menos tristes.
Em
defesa da família, contra estes males, a Igreja se compromete a dar sua ajuda e
convida os governos para que considerem como ponto-chave de sua ação uma
política sócio-familiar inteligente, audaz, perseverante, reconhecendo que ali
se encontra, sem dúvida, o porvir - a esperança - do Continente. Cumpre
acrescentar lua tal política familiar não deve entender-se como um esforço
indiscriminado para reduzir a qualquer preço o índice de natalidade o que meu
predecessor Paulo VI chamava "diminuir o número dos convidados ao
banquete da vida" - quando é notório que mesmo para. o desenvolvimento um
equilibrado índice de população é indispensável. Trata-se de combinar esforços
para criar condições favoráveis à existência de famílias sãs e equilibradas:
“aumentar a comida da mesa” segundo a expressão de Paulo VI.
Além
da defesa da família, devemos falar também da promoção da família. Para tal
promoção devem contribuir muitos organismos: governos e organismos governamentais,
a escola, os sindicatos, os meios de comunicação social, as sociedades de
amigos do bairro, as diferentes associações voluntárias ou espontâneas que florescem
hoje em dia em todas as partes.
A
Igreja deve oferecer também sua contribuição na linha de sua missão espiritual
de anunciar o evangelho e conduzir os homens à salvação, que possui também uma
enorme repercussão sobre o bem-estar da família. O que pode fazer a Igreja
unindo seus esforços aos dos outros? Estou seguro que vossos bispos se
esforçarão por dar a esta questão respostas adequadas, justas, válidas. Lembro-vos
o valor que constitui para a família o que a Igreja faz agora na América
Latina., por exemplo, para preparar os futuros esposos ao matrimônio; para
ajudar as famílias quando atravessam, em sua existência, crises normais que,
bem encaminhadas, podem ser até fecundas e enriquecedoras; para fazer de cada
família cristã uma verdadeira ecclesia domestica, com todo o rico conteúdo
desta expressão; para preparar muitas famílias à missão de evangelizadoras de
outras famílias; para dar relevo a todos os valores da vida familiar; para
ajudar as famílias incompletas; para estimular os governantes a suscitar em
seus países esta política sócio-familiar de que falávamos há pouco. A
Conferência de Puebla certamente apoiará estas iniciativas e talvez sugerirá
outras. Alegra-nos pensar que a História da América Latina terá assim motivos
para agradecer à Igreja o muito que fez, está fazendo e fará pela família neste
vasto Continente.
4.
Filhos e filhas muito amados, o sucessor de Pedro se sente, agora, deste altar,
singularmente próximo a todas as famílias da América Latina. E como se cada lar
se abrisse e o papa pudesse penetrar em cada um deles; casas onde não faltam o
pão nem o bem-estar, mas faltam talvez concórdia e alegria; casas onde as
famílias vivem mais modestamente e na insegurança do amanhã, ajudando se
mutuamente a levar uma existência difícil, mas digna; pobres habitações nas
periferias de vossas cidades. onde há muito sofrimento escondido, embora no
seio delas exista a simples alegria dos pobres; humildes choças de camponeses,
de indígenas, de emigrantes etc. Para cada família em particular o papa quisera
poder dizer uma palavra de ânimo e de esperança. Vós, famílias que podeis
desfrutar do bem-estar, não vos fecheis dentro de vossa felicidade; abri-vos
aos outros para repartir o que vos sobra e a outros lhes falta. Famílias
oprimidas pela pobreza, não desanimeis e, sem ter o luxo por ideal, nem a
riqueza como princípio de felicidade buscai com a ajuda de todos superar os
passos difíceis na espera de dias melhores. Famílias visitadas e angustiadas
pela dor física ou moral, provadas pela enfermidade ou miséria., não
acrescenteis a tais sofrimentos a amargura e o desespero, mas sabei amortecer
a dor com a esperança. Famílias todas da América Latina, estai seguras de que o
papa vos conhece e quer conhecer-vos ainda mais porque vos ama com delicadezas
de pai.
Esta
é, no quadro da visita do papa ao México, a jornada da família. Acolhei, pois,
famílias latino-americanas, com vossa presença aqui, ao redor deste altar,
através do rádio ou da televisão, acolhei a visita que o papa quer fazer a
cada. uma. E dai ao papa a alegria de ver-vos crescer nos valores cristãos que
são os vossos, para que a América Latina encontre em seus milhões de famílias
razões para confiar, para esperar, para lutar, para construir.
ALOCUÇÃO
INTRODUTÓRIA AOS
TRABALHOS
DA III CONFERÊNCIA GERAL
DO
EPISCOPADO LATINO-AMERICANO
1 - Introdução
O
tema da nossa III Conferência Geral é a Evangelização no presente e no futuro
da América Latina. Proclamar hoje e amanhã o Evangelho a nossos povos
latino-americanos, animados pela esperança e ao mesmo tempo torturados no mais
profundo de seu ser pelo desprezo em sua dignidade, é não somente fraterno,
nobre, enriquecedor, mas é também nossa missão, nosso dever, é nossa vida. O
grito de esperança e angústia de nossos povos que chega até esta Conferência e
pede uma resposta profética., exige o compromisso da encarnação da Palavra de
Deus em nossa vida e em nosso anúncio. Aqui estamos como Pastores que vão caminhando
à frente de suas ovelhas (Jo 10,4).
Faz
dois anos que, numa preparação intensa, vimos aprofundando o que significa em
nosso contexto latino-americano evangelizar hoje e amanhã. Temos procurado,
na oração e no estudo pastoral, a maneira de evangelizar hoje e amanhã a nossa
América Latina. Como atuar pastoralmente na América Latina, numa total
fidelidade ao Evangelho? Quais são os critérios e as linhas de uma verdadeira e
autêntica evangelização para a América Latina? Quais deverão ser as opções
pastorais fundamentais para que o Evangelho seja um acontecimento atual e presente,
com toda a sua, vitalidade e força original?
Não
se trata de desenvolver e completar uma ação pastoral já desenvolvida, mas
trata-se de lançar a semente e por as bases de uma transformação da sociedade
latino-americana inspirada pelo Evangelho. necessário pensar na edificação de
uma nova realidade, de uma inserção evangélica na nova sociedade que surge na
América Latina muito ligada com o povo do mundo de hoje e de amanhã. Trata-se
de buscar o caminho para que o Evangelho, através do testemunho de nossa vida e
de sua proclamação sempre nova, seja luz, fermento, sal, água viva para os
povos do nosso Continente.
No
esforço de dois anos chegamos a um ponto do nosso caminho, que é necessário
recordar brevemente, já que ele poderá ser nosso ponto de partida para o
caminhar ulterior. Esse ponto de chegada nos dois anos de preparação é o
Documento de Trabalho.
2 - Natureza do Documento de
Trabalha
O
Documento de Trabalho foi previsto como um instrumento de ajuda à criatividade
dos participantes na III CONFERÊNCIA GERAL. Não quis o Documento de Trabalho
ser uma espécie de Documento Base que os Bispos discutissem propondo emendas. O
Documento de Trabalho quis apenas sintetizar o que os Episcopados haviam
sugerido de modo especial. E desnecessário sublinhar que toda síntese é
relativa, contém suas imperfeições e não consegue dar toda a riqueza, do
pensamento das contribuições.
Por
isso mesmo o Documento de Trabalho foi somente uma peça a mais na marcha a
Puebla. O Documento de Trabalho era um esforço a mais para ilustrar o que
estava sucedendo na, vida da. Igreja de nossos povos; quais são os seus
problemas, suas expectativas, seus anseios? Quais as possíveis opções e linhas
de ação pastoral para a evangelização no presente e no futuro da América
Latina?
Seu
marco de referência ou o horizonte no qual se situa o Documento de Trabalho é o
da história concreta da América Latina. A Igreja, na linha de encarnação da
salvação, há de situar-se adequadamente no presente de nossos povos, recolhendo
sua herança histórica. e projetando-se
dinamicamente para o futuro. E o conjunto histórico concreto de ontem e de hoje
com suas perspectivas de futuro, numa
visão pastoral, que nos dirá o conteúdo evangélico a sublinhar-se na
América Latina; os objetivos que será necessário alcançar e como alcançá-los.
Trata-se da comunicação da Palavra e da Vida de Deus, que deverão ser luz e
fermento de toda a vida humana.
Desde
o século XVI, a história da América Latina esteve ligada à presença e ação
animadora da Igreja. Esta, desde então, não é estranha à vida de nossos povos,
cuja sorte ela tem compartilhado e compartilha: de cujo futuro é também
co-responsável.
3 - A realidade pastoral
Tal
ubicação em nossa história concreta nos tornará sensíveis à vitalidade de
nossas Igrejas e a um conjunto de problemas.
A
vitalidade: no presente de nossas Igrejas percebe-se uma vitalidade nova: a
sede de Deus e sua busca na oração e contemplação; a colegialidade episcopal
cada vez mais vivida; o grande desenvolvimento das pequenas comunidades eclesiais
em comunhão com a hierarquia; os novos ministérios; uma vida de fé mais
profunda por parte de muitos jovens; a ação pastoral intensa dos religiosos e
das religiosas, sobretudo a inserção comunitária cada vez maior nas zonas mais
pobres; o planejamento pastoral em seu processo de participação, em todos os
níveis, das comunidades e pessoas interessadas, educando-as numa e para uma
metodologia de análise da realidade, para a reflexão sobre a realidade a partir
do Evangelho, os objetivos e os meios mais aptos e seu uso mais racional para a
ação pastoral; a presença sempre maior dos bispos entre o povo; a liberdade
cada vez maior frente ao braço secular; uma consciência mais aguda dos leigos
quanto à sua identidade e missão eclesial.
Os problemas: as injustiças de
ontem e de hoje e a mudança sócio-cultural, na passagem para uma sociedade
cada vez mais orientada e dirigida tecnicamente, com aspectos de progresso e
verdade, mas em meio a profundos desequilíbrios, crescentes desigualdades e
ameaças de maior domínio do homem
pelo homem. O fenômeno negativo de uma crescente dominação, de uma crescente tecnocracia, não pode ser esquecido.
Nossa preocupação em meio a essa problemática é tanto mais justificada quanto
mais a sociedade e a cultura emergentes, que têm enormes possibilidades de
libertação e aperfeiçoamento do homem, são caracterizadas por uma falta de
formação mais profunda na fé; por situações lamentáveis de desrespeito à dignidade
do homem e por um espírito secularista consumista tendente à negação do
transcendente e à ruptura da comunhão filial com Deus e da comunhão fraterna
entre os homens.
Essa
problemática torna-se ainda mais grave se levarmos em conta que o continente
latino-americano é um continente cristão, e por ser um continente cristão tem
uma responsabilidade muito particular dentro da Igreja Universal e dentro do
mundo. s. k.: ....
4 - Reflexão doutrinal
Frente
a esses aspectos positivos e negativos, qual é o conteúdo evangélico que deve
ser de modo especial proclamado na América Latina?
O
Santo Padre o disse ontem: devemos proclamar a Jesus Cristo, que é "o
Evangelho de Deus" (Cf. Mc 1,1; Rm 1-3), Jesus Cristo, o Deus peregrino na
história dos homens. Jesus Cristo Servo de Javé, que tomou solidariamente
sobre si nossas enfermidades numa atitude de obediência, pobreza, humilhação,
aniquilamento, morte, e que por sua Ressurreição é constituído Senhor da
criação e da história: ele, o primogênito de toda criatura (Cl 1,15); o
primogênito entre muitos irmãos (Rm 8,29); o primogênito entre os mortos (Cl
1,18); ele, a plenitude de todo o ser (CI 1,19; 2 9-10). Jesus Cristo, o Filho
de Deus, que nos faz nele filhos de Deus. Jesus Cristo que proclama o Reino de
Deus que é, neste mundo e na eternidade, a comunhão do Pai, Filho e Espírito
Santo: "Que todos sejam um como tu, Pai, em mim, e eu em ti, que também
eles estejam em nós" (Jo 17,21). E Jesus Cristo quem veio congregar na
unidade os filhos de Deus dispersos (Jo 11,52), derrubando os ídolos da
riqueza, do poder, do sexo; reconciliando a todos cem Deus; fazendo a paz, ele
que é a nossa paz (Cf Ef 2,14-18).
É
necessária uma exata proclamação de Jesus Cristo, para pôr em sua devida luz a
dignidade do homem.
Qual
é, na verdade, o maior desafio para a evangelização na América Latina?
Tendo
em conta todas as contribuições para esta III CONFERENCIA, devemos afirmar que
o mais urgente é a defesa ou a proclamação da dignidade da pessoa humana, a
proclamação dos direitos fundamentais do homem na América Latina, à luz de
Jesus Cristo. Existe uma mentalidade individualista na América Latina que leva
constantemente ao desrespeito do homem em sua dignidade de imagem e semelhança
divina, de filiação divina. É necessário proclamar que todo homem encarna em si
mesmo a imagem daquele que veio na debilidade da carne para fazer de cada
pessoa um "filho amado no Filho amado" (Cf. Et 1,3-6), escolhido para
ser, pela força do Espírito Santo, configurado com o Senhor Jesus Cristo e
destinado à ressurreição. Por isso, por
ser humano, aqui e agora merece toda honra e todo o respeito, também na sua
cultura, naquilo que é valor. Necessitamos, pois, de uma evangelização que
ajude o homem a ser mais homem, à luz de Jesus Cristo.
5 - Ação evangelizadora
Qual
é, concretamente, o caminho?
É
necessário levar a pessoa humana e os grupos sociais:
-
à tomada de consciência de sua dignidade e da condição na qual se encontram;
-
ao compromisso da renovação de sua vida e da sociedade
segundo os valores do Evangelho, através da vivência da justiça, da
solidariedade humana, da participação na comunhão eclesial e da pobreza
evangélica, sem ódio nem rejeição de qualquer setor social, mesmo privilegiando os pobres, sem julgar e condenar nem apelar
para a violência;
-
à busca de uma libertação que vai além de todos os limites temporais e que tem
sua plena realização na comunhão com Deus, o verdadeiro e único Absoluto"
(Evangelii Nuntiandi, 19);
-
a uma ação com fadas as dimensões do mandamento novo, que é amor inteligente e
crítico (Cf. Evangelii Nuntiandi, 38 ) .
Para
isso se requer uma Igreja que:
-
testemunha
-
proclama
-
celebra
-
atua o Evangelho com JUSTIÇA, AMOR, POBREZA, uma Igreja num PR,OCESSO DINÂMICO
E PERMANENTE de evangelização, de tal forma que todo o cultural, o político, o
econômico, o social, seja lido e discernido a partir do Evangelho.
Dentro
desse marco pastoral, qual é a AÇÃO MAIS URGENTE, a que deve ter PRIORIDADE, e
quais os setores mais necessitados de evangelização?
A
ação mais urgente, prioritária: Conseguir o maior número possível de
EVANGELIZADORES a TEMPO INTEGRAL, agentes que por sua VIDA e sua PALAVRA
proclamem o Evangelho para a nossa América Latina. Daí a importância dos
diversos ministérios com sua ação organicamente planejada. É assim que a
pastoral vocacional é cada dia mais exigente. É por isso que se insistiu muito
nas contribuições dos Episcopados na ministerialidade da Igreja: ministros
nayivos, autóctones, e numa Igreja missionária: ser missionário e ser apóstolo
das nações é condição do cristão.
Os setores mais necessitados de
evangelização:
-
A Família (a Mulher)
-
A Juventude
-
Os Indígenas
-
Os Camponeses
-
O Mundo Operário
-
Os Afro-americanos
-
Os Meios de Comunicação Social.
Conclusão
Os
princípios que estiveram sempre presentes no Documento de Trabalho foram os da
comunhão e participação para chegar à verdadeira e autêntica libertação.
O
modelo da ação evangelizadora foi o das comunidades eclesiais de base, não
tanto na sua estrutura, quanto mais em seu espírito que deve informar a estrutura.
Mais decisivo que a estrutura é o espírito que impregna a estrutura, o espírito
que deve estar presente em toda parte onde o cristão tem uma tarefa a cumprir.
A
responsabilidade nova da América Latina, - um continente de raiz cristã - é o
aprofundamento da fé, que deve ser mais operativa, e isto através da família,
da juventude e das comunidades eclesiais de base com mentalidade missionária.
Trata-se de um empenho mais evangélico da Igreja, num diálogo permanente com as
mesmas culturas vivas no continente .latino-americano e com a nova civilização
que se vai formando pelo fluxo do mundo técnico-científico.
Aloísio
Cardeal Lorscheider
Presidente do CELAM
INTRODUÇÃO
A UMA LEITURA DO DOCUMENTO A PARTIR DA OPÇÃO
PREFERENCIAL
PELOS POBRES
Pe.
BENI DOS SANTOS
Doutor
em Teologia
1. Puebla é mais do que um
Documento
O
documento de Puebla não é um tratado de teologia, isto é, um discurso
sistemático e metódico sobre a compreensão da fé. Não é um documento de
natureza jurídica, destinado a traçar uma conduta obrigatória e devida.
Trata-se de um documento pastoral, que pretende ser fonte de inspiração para a
caminhada da Igreja em nosso continente. Abre pistas, ilumina, denuncia e
anuncia, e, sobretudo, incita à criatividade, ao prosseguimento. E justamente
aqui que se encontra a sua força e autoridade. Ainda mais: dentro de suas
limitações e preocupação com a ortodoxia, reflete, no seu todo, dez anos de
prática de uma Igreja que se definiu pela libertação dos pobres. Nesse sentido,
não se pode esquecer de que Puebla é mais do que um documento. Puebla é também
toda a sua preparação que envolveu inclusive as bases. É tudo o que dessa
Assembléia esperavam os pobres da América Latina, os agentes de pastoral, os
profetas e os teólogos. Puebla é tudo isso que agora estamos realizando no
plano prático e teórico.
O
documento que veio à luz, fruto do trabalho apressado de cerca de 300
representantes, é apenas um momento de Puebla e da caminhada da Igreja n
América Latina. Seus limites evitam que paremos nele como se fosse um ponto de
chegada. Incitam-nos à criatividade, ao prosseguimento, a ulteriores
desenvolvimentos práticos e teóricos.
O
documento, por exemplo, contém propósitos e incentivos libertários, mas não
fornece projetos nem procura detectar os movimentos históricos libertadores que
estão em andamento na América Latina. Essa é uma tarefa do após Puebla, que
compete aos cristãos engajados, às comunidades eclesiais de base, às Igrejas
particulares. Riscos existem. Eles porém são uma dimensão da fé. A caminhada da fé está sempre envolta
em obscuridade e penumbra: "Agora vemos em espelho e de maneira confusa"
(lCor 13,12). Mas é correndo risco que realizamos a entrega pessoal a Deus e ao
próximo.
2. Ver, Julgar e Agir: o Método
O
documento se desdobra em cinco partes: visão pastoral da realidade da América
Latina (primeira parte); desígnio de Deus sobre a América Latina (segunda
parte); a evangelização na Igreja da América Latina: comunhão e participação
(terceira parte); a Igreja missionária a serviço da evangelização na América
Latina (quarta parte); opções pastorais (quinta parte).
Não
se trata de uma justaposição de partes, pois elas possuem uma estrutura e um
eixo. A estrutura se desenvolve segundo o método teológico-pastoral de ver a
realidade analiticamente (primeira parte), julgá-1a
com os critérios da fé (segunda parte) e agir pastoralmente para transformá-1a (terceira, quarta e quinta
parte).
3. Opção preferencial pelos
pobres: o eixo articulador
Ela
constitui o eixo do documento e seu princípio animador. É o ângulo que
permite, apesar das repetições, das redundâncias, justaposições e, até mesmo,
certas contradições, uma visão unitária e coerente.
Embora
esse tema seja objeto do primeiro capítulo da quarta parte, no entanto, ele
pervade, como alma, todo o documento. Pode, até mesmo, ser considerado como algo prévio ao documento, uma vez que
constitui a tônica da evangelização e da pastoral nestes dez anos decorridos de
Medellin a Puebla. Todos os grandes temas de Puebla - visão pastoral da
realidade, verdade integral sobre Jesus Cristo e sobre o homem, a Igreja, a
evangelização, etc. devem, a meu ver, ser examinados a partir da opção preferencial
pelos pobres.
3.1. O que é pobre na América
Latina?
O
documento usa o termo "pobre" no sentido bíblico de anawin: o curvado, o oprimido. O termo
tem, na Bíblia, uma conotação político-social. Designa o escravo, o
estrangeiro, o perseguido, o cativo. Não se trata pois do simples necessitado
mas do oprimido do explorado. Não designa apenas o indivíduo, mas a classe
social explorada a raça marginalizada, o grupo oprimido. Os números 31 a 49 do
documento fazem um elenco dos pobres da América Latina: indígenas e
afro-americanos, camponeses sem terra, operários, desempregados e
sub-empregados marginalizados e aglomerados urbanos, jovens frustrados socialmente
e desorientados, crianças golpeadas pelas pobreza, menores abandonados e
carentes, a mulher. Em outros textos, o documento se refere ainda aos
migrantes e às prostitutas.
Trata-se
não da pobreza evangélica (disponibilidade para acolher a Deus e ao próximo
estilo de vida sóbria e honesta liberdade existencial frente às riquezas) mas
da pobreza anti-evangélica, que é sinônimo de exploração de opressão, de
situação desumana. Trata-se da pobreza de dimensão sócio-política, isto é,
generalizada e estrutural. O documento é bem explícito: "Ao analisarmos
mais a fundo tal situação, descobrimos que essa pobreza não é uma etapa
transitória, e sim produto de situações e estruturas econômicas sociais e
políticas que dão origem a esse estado de pobreza, embora haja também outras
causas da miséria" (30).
3.2.
O que significa "opção"?
"Opção"
quer dizer decisão, tomada de
partido. Entre opressores e oprimidos (no caso latino-americano), a Igreja
toma o partido dos últimos.
Trata-se
de uma decisão política (pois os
pobres são fruto de uma estrutura sócio-política opressora), ética (é um
imperativo moral) e evangélica (pois essa foi a opção de Jesus).
A
opção pelos pobres implica uma mudança de lugar social. O lugar social
condiciona o nosso discernimento: sensibilidade para perceber, leitura da
realidade, decisão. Se estamos, por exemplo, no lugar social do poder do privilégio,
então a nossa leitura da realidade dificilmente se fará fora da perspectiva
funcionalista. Iremos sem dúvida, privilegiar determinados valores como ordem
harmonia, tranqüilidade. Nossa ação provavelmente se desenvolverá numa linha
assistencialista. A própria leitura das Escrituras privilegiará os temas, os
textos e os contextos, que justificam a visão funcionalista da Igreja e do
mundo. No caso da Igreja, por exemplo, correremos o perigo de conceber a sua
unidade de modo meramente vertical, isto é, uma unidade restrita ao dogma, à
moral, à obediência aos legítimos pastores; uma unidade para cima e não para os
lados também, isto é, unidade que implica comunhão de bens, questionamento da
escandalosa presença de opressores e oprimidos na celebração da mesma
eucaristia.
Qualquer
plano de pastoral supõe, como ponto de partida, o questionamento sobre o lugar
social daqueles que vão elaborá-1o.
A opção
preferencial pelos pobres é, no documento, o ângulo, através do qual os bispos
fazem a leitura da realidade latino-americana, abrem pistas, questionam, denunciam
e anunciam. Esse ângulo leva-nos a sublinhar algumas dimensões da cristologia,
eclesiologia e evangelização, muito relevantes para a situação sócio-política
do nosso continente.
3.3. O que significa
"preferencial"?
A partir
do lugar social dos pobres, portanto, a partir de baixo, a Igreja procura evangelizar a todos. . Convida todos a
uma conversão que implica em abraçar a causa dos pobres. É a partir deles e
através do seu dinamismo libertador, que a Igreja procura compreender o
mistério do Reino (cf. Ml 11,25) para anunciá-1o ao mundo inteiro.
Se
existe nos pobres um potencial evangelizador (cf. 1147), então podemos afirmar
que, na América Latina, uma parte da
Igreja (hierarquia, religiosos, elites leigas) está sendo evangelizada pela
outra parte (o povo pobre) através, principalmente, da interpelação e do
questionamento, que conduzem à conversão, à solidariedade, à simplicidade, ao
serviço.
4. Leitura estrutural da
realidade latino-americana
A leitura
funcionalista concebe a sociedade como um todo harmônico, ao qual nos devemos
adotar, e que necessita apenas de remendos. Ela conduz sempre a uma ação
assistencialista e desenvolvimentista, pois supõe que as reformas se façam
dentro de uma estrutura sócio-política que deve permanecer inalterada.
Desenvolver não é libertar, mas apenas trazer os que estão à margem de tal tipo
de sociedade para dentro dela.
A leitura
dialética, ao contrário, permite descobrir os conflitos da sociedade, a
estrutura geradora de opressores e oprimidos. Permite não apenas detectar os
sintomas, mas também suas causas. O pobre é visto não como subdesenvolvido, marginalizado,
mas como oprimido.
Ao
contrário do documento de consulta, o documento elaborado pela Assembléia
possui uma visão dialética da realidade. Refere-se aos "mecanismos
geradores de pobreza" (1160), à "realidade escandalosa da América
Latina" (1154). Vejamos, a título de exemplo, alguns textos:
"Reconhecemos com pesar a presença de muitos regimes de opressão em nosso
continente" (500). Denomina o sistema sócio-político imperante no
continente de "sistema de pecado" (92), "situação de pecado social"
(28), "injustiça institucionalizada" (46). Trata-se de uma denúncia
que toma, até mesmo, o tom de indignação profética: "A luz da fé, vemos a
distância crescente entre ricos e pobres como um escândalo e uma contradição
com o ser cristão. O luxo de uma minoria constitui um insulto à miséria das
grandes massas. Essa situação é contrária ao desígnio do Criador e à honra a
ele devida. Nesta angústia e dor, a Igreja discerne uma situação de pecado
social, aliás, bem mais grave por acontecer em países que se dizem católicos e
que têm a capacidade de poder mudar tal situação". A indignação profética termina com uma espécie de manifesto:
"Que sejam derrubadas as barreiras da exploração.. contra as quais são
impotentes os melhores esforços de promoção" (28).
Esse
manifesto é reforçado pelo fato de os bispos estarem repetindo as palavras de
João Paulo II aos camponeses de Oaxaca. Aliás, os discursos do Papa por
ocasião de sua estada na América Latina, principalmente os pronunciados para
grupos não eclesiásticos, serviram de inspiração para textos relevantes do
documento.
Não
podemos nos esquecer também que o marxismo coletivista e a ideologia da
segurança nacional são também condenados. Aquele, por seu caráter materialista
e idolátrico com respeito à riqueza (cf. 543). Esta, por estar "vinculada
a um determinado modelo econômico-político, de características elitistas e
verticalistas, que suprimem a participação ampla do povo nas decisões
políticas. Pretende justificar-se, em certos países da América Latina, como
doutrina defensora da civilização cristã. Desenvolve um sistema de repressão em
concordância com seu conceito de "guerra permanente" (547). Ainda
mais: se opõe a uma visão cristã do homem como responsável pela realização de
um projeto temporal, e do Estado enquanto administrador do bem comum. Impõe a
tutela do povo exercida por elites políticas de poder militar e leva a uma
acentuada desigualdade de participação nos resultados do desenvolvimento"
(549).
É
bom observar que o documento, embora advirta sobre os perigos não condena o
marxismo como ciência do social, isto é, como método de análise da sociedade
(cf. 543). E a condenação da filosofia marxista não se estende ao socialismo.
A
meu ver, a leitura estrutural do documento de Puebla não dá mais lugar a uma
visão idealista ou romântica da pobreza, nem comporta soluções de ordem reformistas
ou desenvolvimentista. Eis, a propósito, o seguinte texto: "A mudança
necessária de estruturas sociais, políticas e econômicas injustas, não será
verdadeira e total se não for acompanhada pela mudança das estruturas mentais, relativas ao ideal de uma vida
humana digna e feliz, que por sua vez dispõe para a conversão" (1155).
O
novo lugar social leva a Igreja não só a ler dialeticamente o presente, mas
também o passado da América Latina. Nesse passado, encontra luzes (evangelização presente, desde o
início, na formação dos povos latino-americanos, irradiação dos santos e
intrépidos defensores da justiça) e sombras
(cumplicidade, muitas vezes, com os poderes dominantes; problema dos
escravos africanos em prol dos quais a Igreja quase nada fez no plano da evangelização
e libertação) (cf. 13).
Com
relação ao futuro, ela se propõe, no
plano da evangelização, entre outras coisas, a defender a libertação integral,
que inclui e ultrapassa o quadro da existência temporal (cf. 141).
Enfim,
colocando-se mais dentro do universo dos pobres, a Igreja é levada a valorizar
mais a sua cultura e religiosidade (cf. 447,
444, 469, 936).
5. A compreensão teológica da
realidade
Algumas
dimensões relevantes da fé para a realidade latino-americana são sublinhadas
pelo documento.
5.1. A pessoa, a pregação e a
prática de Jesus de Nazaré, Filho de Deus
Na
exposição catequética (preocupada com desvios doutrinários mais fantasiosos que
reais) da verdade integral sobre Jesus de Nazaré, Filho de Deus (cf. 171-218)
e no capítulo dedicado à opção preferencial pelos pobres (cf. principalmente
no. 1141-1i65), podemos encontrar, de modo explícito, aspectos relevantes para
a situação sócio-política da América Latina. Trata-se de política no sentido
amplo e profundo de Aristóteles isto é, compromisso com a justiça, com o bem
comum. Nesse sentido, a política e tudo o que está nela implicado,
principalmente o econômico, constituem uma mediação para a justiça do Reino.
A
encarnação se realiza historicamente num contexto sócio-político de opressão.
Foi tornando-se membro de um povo oprimido, compartilhando sua vida, esperança
e angústia (cf. 175, 176, 177), que o Filho de Deus "assumiu o humano e
todas as criaturas" (188). Portanto, no coração de Jesus de Nazaré
existida a indignação ética contra o colonialismo e, ao mesmo tempo, o anseio
profundo de libertação.
Ele
foi membro de um povo que fez a experiência do cativeiro, fato que provocou, em
sua consciência ética, o imperativo categórico de quebrar todos os laços de
opressão e exploração. Como escrevi em outro lugar, `a experiência de
marginalidade e opressão, feita por Israel, despertou sua consciência ética
para os compromissos da justiça e da libertação de todos os oprimidos. Esses
compromissos são freqüentemente reavivados pela pregação profética".
E
com justiça, pois, que Puebla observa: "Ele encarnou perante a justiça
salvadora do seu Pai o clamor que pede libertação e redenção para todos os homens"
(194). Sua encarnação tem pois uma amplidão universal: tornando-se membro de um
povo escravo (cf. F1 2,7), ele fez da pobreza o universal concreto do humano,
isto é, a possibilidade de amar o homem por aquilo que ele é, e não por aquilo
que ele tem.
Sem
pertencer a nenhum partido político ou religioso de sua época, ele desenvolveu
uma pregação que incomodou, que questionou radicalmente as estruturas opressoras,
a exploração do homem pelo homem, a autoridade encarada como domínio e não como
serviço (cf. Ml 20, 25-28; Mc 10,42-45; Jo 13,1-16). A um povo oprimido, clamando por libertação, ele prega o Reino de Deus, que enfeixa todas as
libertações históricas e as abre ao transcendente. Puebla o confirma: “. . . o
Reino de Deus passa por realizações históricas, não se esgota nem se identifica
com elas" (192-193). E a partir do lugar social dos pobres que ele anuncia
o Evangelho da libertação (cf. 190-191).
Sua
morte foi conseqüência da causa que
abraçou: a justiça para os pobres. Portanto, foi um assassinato, uma
conseqüência "da injustiça e do mal do mundo" (194). Morte injusta
que ele assumiu em atitude ablativa: gesto de amor ao Pai e redenção dos
homens.
Em
virtude da encarnação, a sua paixão se prolonga no sofrimento de todos os
oprimidos, de tal modo que devemos ver nos rostos
dos pobres da América Latina (indígenas, afro-americanos, desempregados e
subempregados, camponeses sem terra, operários, etc.) "os traços do
Cristo sofredor, o Senhor que nos questiona e interpela" (31-39).
Na
sua ressurreição, encontra-se a garantia e a promessa de um mundo novo,
plenamente libertado (cf. 108).
Ligado
à cristologia, o documento sublinha o significado, para a América Latina, da
profetisa Maria de Nazaré, presente,
desde o início, na evangelização do nosso continente: "No seu cântico
Magnificat (Lc 46-55), Maria proclama que a salvação de Deus tem muito a ver
com a justiça em favor dos pobres. É
também de Maria que surge o compromisso autêntico com os demais homens,
nossos irmãos, e especialmente com os mais pobres e necessitados, e com a
necessária transformação da sociedade" (Dist. do Papa em Zapopán) (1144;
cf. também: 282-303 ) .
5.2. A Igreja latino-americana
no seguimento de Jesus de Nazaré
Nos
últimos dez anos decorridos de Medellin, a Igreja em nosso continente (melhor
dizendo, a parte hierárquica e ministerial da Igreja, a ela somados os
religiosos e setores leigos) mudou de lugar social: caminhou bastante do
centro para a periferia, assumindo a causa dos pobres e participando da paixão
do povo. Sentiu na própria carne o aguilhão do opressor. Não é sem razão que
Puebla observa: "Os últimos dez anos na América Latina têm sido
duros" (266). E noutro lugar: "A denúncia profética da Igreja e seus
compromissos concretos com o pobre, trouxeram-Ihe freqüentes perseguições e
vexames de vários tipos. Até os pobres têm sido as primeiras vítimas desses vexames"
(1138). Mas, como povo peregrino, continuam os bispos, "caminhamos na
certeza de que o Senhor saberá transformar a dor, o sangue e a morte que, no
caminho da história, vão deixando os nossos povos e a nossa Igreja, em
sementes de ressurreição para a América Latina" (266).
O
novo lugar social possibilitou à Igreja na América Latina assumir
verdadeiramente a missão profética de ser a consciência crítica da sociedade,
chegando ao ponto de romper com o sistema político-económico implantado no
continente: o capitalismo liberal.
A doutrina
social da Igreja jamais usou, com relação ao capitalismo, a mesma severidade
demonstrada com relação ao marxismo e socialismo. Puebla, neste ponto realizou
um avanço. Após descrever o estado de escandalosa pobreza da América Latina,
mostra que essa pobreza generalizada é gerada pelo sistema capitalista (cf.
47). Caracteriza-o como idolatria da riqueza, materialista e praticamente
ateu (cf. 312). Por isso, não receia denominá-1o "sistema de pecado"
(92), e a realidade por ele implantada, "injustiça
institucionalizada" (495). E, conseqüentemente, substitui a tradicional
linguagem desenvolvimentista e reformista pela linguagem libertadora.
5.3. Evangelização articulada
com a defesa dos direitos humanos e com a libertação
A dignidade
do homem é decifrada à luz do mistério de Cristo (cf. 305-339). Daí surge a
íntima relação entre a evangelização e a defesa dos direitos humanos, políticos
e sociais, num continente que vive em "permanente violação da dignidade
da pessoa" (41). Os bispos não receiam afirmar que, na América Latina,
"o melhor serviço ao irmão é a evangelização que o liberta das injustiças,
o promove integralmente e o dispõe como filho de Deus" (1145).
O
tema libertação, por sua vez, aparece também como eixo articulador da
evangelização. Libertação tem, no contexto latino-americano, uma dimensão
acentuadamente econômica e política. Supõe destruição da dependência que gera a
exploração e a opressão. Supõe uma ação destinada a mudar as estruturas. Supõe
a transformação da consciência submersa e muda o povo pobre em consciência
crítica, para que, despertado o seu dinamismo libertador, ele mesmo se
transforme em agente da libertação.
A evangelização é, por natureza,
libertadora. O termo "evangelizar" aparece no Antigo Testamento
ligado ao profetismo. Isaías (61,1-2) fala da alegre notícia (evangelho), cujo
conteúdo é a libertação das diversas categorias de pobres: cegos, cativos,
prisioneiros. Na sinagoga de Nazaré, Jesus se apresenta como profeta desse evangelho
libertador (cf. Lc 4,18-19).
Fiel
ao conteúdo libertário da evangelização, Puebla soube bem articulá-1a com a
libertação dos pobres do nosso continente, afirmando que a libertação pertence
à íntima natureza da evangelização (cf. 480). A luz da Evangelii Nuntiandi, propõe como tarefa
evangelizadora da Igreja em nosso continente ". . . o dever de anunciar a
libertação de milhões de seres humanos, entre os quais a Igreja identifica
muitos dos seus filhos; o dever de acelerar essa libertação, de dar testemunho
e de garantir que ela seja total" (26). Por isso mesmo, a evangelização
supõe o conhecimento da realidade (cf. 85) e o compromisso do Povo de Deus para
superar "a situação de miséria, marginalizarão, injustiça e corrupção, que
fere o nosso continente" (281).
5.4.
Dimensão política da fé e da salvação
A
fé, resposta ao anúncio do Evangelho, opera através da caridade que, em nosso
continente, deve ter uma dimensão sócio-política bem acentuada. O próximo, a
quem devemos amar, na América Latina, são, sobretudo, grupos humanos e estratos
sociais carentes e humilhados. "O Evangelho, diz o documento, deve ensinar
que, ante as realidades em que vivemos, não é possível hoje na América Latina
amar verdadeiramente os irmãos, e portanto a
Deus, sem comprometer-se, no nível pessoal e em muitos casos até em nível
de estruturas, com o serviço e a promoção dos grupos humanos e estratos
sociais mais carentes e humilhados, com todas as conseqüências no plano dessas
realidades temporais" (327).
Muitas
vezes, as virtudes teologais foram apresentadas numa perspectiva
assistencialista, aptas a serem manipuladas ideologicamente pelos opressores,
uma vez que a finalidade delas consistia em fortalecer os pobres para que
pudessem suportar as injustiças presentes.
O
documento de Puebla desideologiza as virtudes teologais. A fé, que opera através da caridade, se
expressa no compromisso de transformação das estruturas opressoras. Não pode
ser de nenhum modo privatizada. As palavras do documento são fortes e
explícitas: "A Igreja condena aqueles que tendem a reduzir os espaços da
fé à vida pessoal ou familiar, excluindo a ordem profissional, econômica,
social e política, como se o pecado, o amor, a oração e o perdão não tivessem
aí relevância" (515).
A
esperança, por sua vez, não consiste em cruzar os braços e deixar acontecer,
mas em "forjar a história de açorda com a "práxis" de Jesus.. (279>, pois nele encontramos a
"atitude de total confiança (no Pai) e ao mesmo tempo de máxima
corresponsabilidade" (276).
Também
a salvação, apresentada
tradicionalmente numa dimensão
estritamente individual, desencarnada e a histórica (apta a ser ideologizada
para mascarar realidades injustas) é apresentada num dimensão histórica e política:
"Todavia, esta salvação tem `laços de união muito fortes' com a promoção
humana em seus aspectos de desenvolvimento e libertação (EN 31), que são parte
integrante da evangelização. Tais aspectos brotam da própria riqueza da
salvação e do agir da caridade de Deus em nós, à qual esses aspectos se
subordinam" (355).
Na
antropologia do documento, encontra-se a concepção de homem não como razão e
liberdade abstratas, mas com feixe de relações. Por isso o documento evita todo
dualismo na consideração do pecado e da conversão. Fala sempre do pecado
pessoal e social (cf. 1224), da conversão individual e estrutural (cf. 1221 e
30) ou social (cf. 16). No social, no econômico, no político, existe, pois, um
teológico implícito, uma referencia ao Reino de Deus e à salvação.
6.
A partir da opção preferencial pelos
pobres, construir a civilização do amor, baseada na comunhão e na participação
(cf. 570, 588, 639, 1113, 1165).
"Comunhão
e participação" é um tema freqüente no documento, que envolve e informa
outros temas.
Não
se trata, como pode parecer à primeira vista de uma expressão para conciliar
posições antagônicas e salvar uma unidade meramente formal, isto é, sem nenhum
compromisso.
A
comunhão, de que fala o documento, torna-se verdade na ação transformadora do
mundo (cf. 182), para destruir tudo aquilo que é negação da comunhão: o ódio, a
exploração, a escravidão (cf. 182). Comunhão que consiste num processo
contínuo de construção da fraternidade (cf. 188) "até a plena comunhão e
participação que constituem a própria vida de Deus" (197).
Esse
processo de comunhão se estende a todas as dimensões da vida do homem em
sociedade: "A comunhão a ser
construída entre os homens é uma comunhão que abrange todo o seu ser, desde as
raízes pessoais do amor e deve manifestar-se na vida, mesmo a econômica, social
e política. Produzida pelo Pai, Filho e Espírito Santo é a comunicação de sua
própria comunhão trinitária" (215). Enfim, uma comunhão que se expressa na
libertação, pois a força do pecado,
experimentada "até os limites extremos" na realidade sócio-política
da América Latina, é uma "flagrante contradição do plano divino" de
conduzir os homens à comunhão plena, da qual as comunhões temporais e
históricas são os primícias" (218). Essa comunhão que se realiza na
história através da libertação, e que deve ser aberta à plena comunhão com
Deus, "é a comunhão
ansiosamente procurada pelas multidões do nosso continente" (216).
Um
texto do documento resume, a meu ver, o conteúdo histórico e libertador da
expressão "comunhão e participação" dentro da realidade de injustiça
institucionalizada da América Latina: "Porque o pecado, força de ruptura,
criará permanentemente obstáculos ao crescimento no amor e na comunhão, tanto
no coração dos homens, como nas diversas estruturas por ele criadas, nas quais
o pecado de seus autores imprimiu também sua marca de destruição. Neste
sentido, a situação de miséria, marginalização, injustiça e corrupção, que
fere o nosso continente, exige do Povo de Deus e de cada cristão um autêntico
heroísmo no seu compromisso evangelizador, para que se possa superar tão
grandes obstáculos. Frente a semelhante desafio, a Igreja sente-se incapaz e
pequena. Contudo, sente-se animada por Maria, cuja poderosa intercessão
permitirá superar as "estruturas de pecado" na vida pessoal e social,
obtendo a "verdadeira libertação" que vem de Cristo Jesus..."
(281).
APRESENTAÇÃO
Este
texto reúne o trabalho realizado na III Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano à qual nos convocou o Santo Padre como pastores, representantes
de nossas comunidades.
À
Conferência de Puebla, como se sabe, precederam dois anos de preparação com a
ativa e generosa participação de todas as Igrejas da América Latina.
Houve,
efetivamente, uma campanha de fervorosa oração, um processo de consulta e de
contribuições principalmente das Conferências Episcopais, sistematizados no
Documento de Trabalho. Este serviu como instrumento de estudo e orientação.
Tivemos
a graça da presença pessoal do Sucessor de Pedro, o Papa João Paulo II. Sua
palavra, na histórica visita à América Latina, especialmente a dirigida aos
participantes da III Conferência, na homilia durante a concelebração na
Basílica de Guadalupe, na homilia no Seminário de Puebla e sobretudo no discurso
inaugural, foi precioso critério, estímulo e orientação para nossas
deliberações. Por isso, se publica integralmente no presente volume.
Em
razão da extensão do tema, rico e dinamizador, da III Conferência, tornava-se
necessário estabelecer prioridades e uma adequada articulação entre os
diversos pontos que deram origem às 21 comissões de trabalho, em torno de
núcleos ou grandes unidades com os temas correspondentes. Este sistema de
trabalho, complementado por contribuições em plenários e semiplenários que
garantiam a maior participação (de bispas, presbíteros, diáconos, religiosos,
leigos, membros convidados e peritos), foi aprovado por unanimidade no início
de nossa assembléia.
O
conteúdo dos núcleos e temas não pretende ser um tratado sistemático de
teologia dogmática ou pastoral. Isso foi expressamente descartado. Procurou-se
considerar aspectos de maior incidência na evangelização, colocando-nas numa
perspectiva definida de pastores.
Muito
embora a Conferência de Puebla, com seu acervo de contribuições e a intensidade
de seu trabalho, se resuma neste Documento, ela é acima de tudo um espírito: o
espírito de uma Igreja que se projeta com renovado vigor ao serviço de nossos
povos cuja realização há de seguir o chamado de vida e transformação de quem
colocou seu tabernáculo no coração de nossa própria história.
A
Conferência de Puebla é além disso princípio de uma nova etapa no processo de
nossa vida eclesial na América Latina. O Santo Padre assim a considera, ao afirmar
que ela é "um grande passo avante", em sua carta de 23 de março de
1979.
Estas
páginas têm a força de uma nova missão a que Cristo nos envia: "Ide e
pregai o Evangelho a todos os povos" (Ml 16,15).
Estas
orientações devem interessar profundamente a nossa pastoral. Há de desencadear
um processo de assimilação e interiorização de seu conteúdo, em todos os
níveis, para levá-lo à prática. Será necessário aprofundá-lo na oração è no
discernimento espiritual. Neste caminho, as Conferências Episcopais têm sua
clara responsabilidade: são elas sobretudo que deverão traduzir e concretizar,
de acordo com suas circunstâncias, suas possibilidades e os mecanismos
apropriados, estas diretrizes. Também é tarefa das Igrejas particulares, e
nelas das paróquias, dos movimentos apostólicos, das comunidades eclesiais de
base e, enfim, de todas as nossas comunidades, fazer que Puebla, Puebla em
peso, se volte para a vida com toda a sua carga evangelizadora.
Além
disso, Puebla é um espírito de comunhão e participação que, à maneira de uma
linha de orientação, apareceu nos documentos preparatórios e animou as
jornadas da Conferência. Neles dizíamos:
"A linha teológico-pastoral, na Documento
de Trabalho, aparece configurada por dois pólos complementares: a comunhão e a
participação (co-participação) ".
"Mediante
a evangelização plena, importa restaurar e aprofundar a comunhão com Deus e,
como elemento também essencial, a comunhão entre os homens. De modo que o
homem, ao viver a filiação em ,fraternidade, seja imagem viva de Deus dentro da
Igreja e do mundo, em sua qualidade de sujeito ativo da história."
"Comunhão
com Deus, na f é, na oração, na vida sacramental. Comunhão com os irmãos nas
diversas dimensões de nossa existência. Comunhão na Igreja, entre os
episcopados e com o Santo Padre. Comunhão nas comunidades cristãs. Comunhão de
reconciliação e de serviço. Comunhão que é raiz e motor de evangelização.
Comunhão com nossos povos."
"Participação
na Igreja, em todos os seus níveis e tarefas. Participação na sociedade, em seus
diferentes setores; nas ações da América Latina; em seu necessário processo de
integração, com atitude de constante diálogo. Deus é amor, família, comunhão; é
fonte de participação em todo o seu mistério trinitário e na manifestação de
sua nova revelação com os homens pela filiação e destes entre si, pela
fraternidade" (Documento de Trabalho, Apresentação, 3.3).
A III Conferência se distinguiu pela
concórdia de vontades em torno de seu tema e do conteúdo coerente de seu
Documento final. Com efeito, foi aprovado por 179 placet e 1 voto em branco.
Apesar
da conveniência de umas articulação maior do Documento que evitasse repetições,
numerosas num trabalho desenvolvido fundamentalmente em comissões,
preferiu-se por razão de objetividade, não suprimir tais repetições. A assembléia, com efeito, não teve
oportunidade de levar a cabo essa árdua e delicada tarefa.
Fez-se
o possível para se indicar a referênc2a a passagens em que os determinados
temas são tratados especialmente.
A revisão do tecto limitou-se quase
exclusivamente a aspectos meramente redacionais. Para isso levaram-se em conta
numerosas correções e indicações das comissões de trabalho, bem como a lista de
erratas elaborada pelas mesmas. Além disso, se realizou um trabalho paciente de
confronto de citações, recorrendo-se às fontes respectivas. Algumas ligeiras
modificações foram aprovadas pelo Santo Padre.
Tudo
o que expressamos constitui nossa esperança e a isso nos comprometemos diante
de Maria, que acreditou e se pôs a caminho pressurosa, para anunciar a Boa
Nova que palpitava em suas entranhas.
PRESIDÊNCIA
- Card. Sebastião Baggio
Prefeito
da Sagrada Congregação para os Bispos e Presidente da Comissão Pontifícia para
a América Latina - CAL
- Card. Aloísio Lorscheider
Arcebispo
de Fortaleza, Brasil
Presidente
da CNBB
Presidente
do Conselho Episcopal Latino-Americano CELAM
- Mons. Ernesto Corripio
Ahumada
Arcebispo
do México SECRETÁRIO GERAL
- Mons. Alfonso López Trujillo
Arcebispo
Coadjutor de Medellin, Colômbia
Secretário
Geral do CELAM
MENSAGEM
AOS POVOS DA AMÉRICA LATINA
Nossa palavra: palavra de fé, de esperança e amor
1.
De Medellin a Puebla dez anos se passaram, Na verdade, com a II Conferência
Geral do Episcopado Latino-Americano, inaugurada solenemente pelo Santo Padre
o Papa Paulo VI, de feliz memória, abriu-se, no seio da Igreja da América
Latina, um novo período de sua vida.
Sobre
o nosso Continente, marcado com o sinal da esperança cristã e super-onerado de
problemas, "Deus difundiu uma luz imensa que resplandece no rosto
rejuvenescido de sua Igreja" (Apresentação dos Documentos de Medellin).
Em
Puebla de los Angeles reuniu-se a III Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano, para reconsiderar os temas debatidos anteriormente e
assumir compromissos novos, sob a inspiração do Evangelho de Cristo.
Esteve
conosco na abertura dos trabalhos, no meio de solicitudes pastorais que nos
comoveram profundamente, o Pastor Universal de nossa Igreja, S. Santidade o
Papa João Paulo II. Suas palavras iluminadas traçaram linhas amplas e profundas
para nossos estudos e deliberações, em espírito de comunhão eclesial.
Alimentados
pela força e pela sabedoria do Espírito Santo e colocados sob a proteção maternal
de Maria Santíssima, Senhora de Guadalupe, com dedicação, humildade e
confiança, estamos chegando ao fim de nossa tarefa ingente. Não podemos sair
de Puebla para nossas Igrejas particulares sem dirigir uma palavra de fé, de
esperança e de amor ao Povo de Deus da América Latina e que seja extensiva a
todas as nações do mundo.
Antes
de tudo, queremos identificar-nos: somos Pastores da Igreja Católica e
Apostólica, que nasceu do coração de Jesus Cristo, o Filho do Deus vivo.
Nossa interpelação e pedido de
perdão
2.
Nossa primeira pergunta, neste colóquio pastoral, diante da consciência
coletiva é a seguinte: - Vivemos de fato o Evangelho de Cristo em nosso
Continente?
Esta
interpelação, que dirigimos aos cristãos, também pode ser analisada por todos
aqueles que não participam de nossa fé.
O
cristianismo, que traz consigo a originalidade do amor, nem sempre é praticado
em sua integridade nem mesmo por nós cristãos. É certo que existe grande
heroísmo oculto, muita santidade silenciosa, muitos e maravilhosos gestos de
sacrifício. Contudo, reconhecemos que ainda estamos longe de viver tudo o que
pregamos. Por todas as nossas faltas e limitações pedimos perdão, também nós
pastores, a Deus e a nossos irmãos de fé e de humanidade.
Queremos
não só ajudar os outros a se converter, mas também converter-nos, nós
próprios, juntamente com eles, de tal modo que nossas dioceses, paróquias,
instituições, comunidades e congregações religiosas, longe de serem obstáculo
sejam um incentivo para que se viva o Evangelho.
Lançando
um olhar sobre nosso mundo latino-americano, com que espetáculo deparamos? Não
se faz mister aprofundar o exame. A verdade é que aumenta, cada dia mais, a
distância entre os muitos que têm pouco e os poucos que têm muito. Estão
ameaçados os valores de nossa cultura. Estão sendo violados os direitos
fundamentais do ser humano.
As
grandes realizações que se levam a cabo em favor do homem não chegam a
resolver, de maneira adequada, os problemas que nos desafiam.
A nossa contribuição
3.
Mas o que é que temos para oferecer-vos no meio das graves e complexas questões
do nosso tempo? De que modo podemos colaborar para o bem-estar dos nossos
povos latino-americanos, quando uns persistem em manter a qualquer preço os
seus privilégios, outros se sentem abatidos e os demais promovem gestões para a
própria sobrevivência e a clara afirmação de seus direitos?
Queridos
irmãos, mais uma vez queremos declarar que, ao tratar de problemas sociais,
econômicos e políticos, não o fazemos como mestres da matéria ou cientistas,
mas sim, em perspectiva pastoral, como intérpretes dos nossos povos, confidentes
de seus anseios, sobretudo os dos mais humildes, que são a grande maioria da
sociedade latino-americana.
O
que é que temos para oferecer-vos? Como Pedro, diante do pedido que lhe foi
dirigido pelo paralítico, à porta do templo, vos declaramos, ao considerar a
grandeza dos desafios estruturais de nossa realidade: Não temos ouro nem prata
para vos dar, mas damo-vos o que temos: Em nome de
Jesus
Cristo Nazareno, levantai-vos e andai. E o doente se ergueu e proclamou as
maravilhas do Senhor.
Aqui,
a pobreza de Pedro se faz riqueza e a riqueza de Pedro se chama Jesus de
Nazaré, morto e ressuscitado e sempre presente, por seu Espírito Divino, no
Colégio Apostólico e nas incipientes comunidades que se formaram debaixo da
sua direção. Jesus cura o doente. O poder de Deus exige dos homens o máximo de
esforço para que surja e dê fruto sua obra de amor, através de todos os meios
disponíveis: forças do espírito, conquistas da ciência e das técnicas, em favor
do homem.
O
que é que temos para vos oferecer? João Paulo II, no discurso inaugural do seu
pontificado, responde-nos, de maneira incisiva e admirável, apresentando Cristo
como resposta de salvação universal: "Não temais, abri de par em par as
portas a Cristo! Abri ao seu poder salvador as portas dos Estados, dos sistemas
econômicos e políticos, dos extensos campos da cultura. da civilização e do
desenvolvimento" (João Paulo II, Homilia
na Inauguração de seu Pontificado, 22.10.78).
É
aí, para nós, que reside a potencialidade das sementes de libertação do homem
latino-americano, a nossa esperança de poder construir, dia a dia, a realidade
do nosso autêntico destino. E assim o homem deste Continente, objeto de nossas
preocupações pastorais, tem para a Igreja um significado essencial, porque
Jesus Cristo assumiu a humanidade e sua condição real. com exceção do pecado.
E. ao fazê-1o, associou, ele em pessoa, a vocação imanente e transcendente de
todos os homens.
O
homem que luta, sofre e às vezes fica exasperado, não desanima nunca e quer acima
de tudo
viver
o sentido pleno de sua filiação divina. Por isso é importante que seus direitos
sejam reconhecidos; que sua vida não seja uma espécie de abominação: que a
natureza, obra de Deus, não seja devastada contra as suas legítimas aspirações.
O
homem exige, pela força dos argumentos mais evidentes, a supressão da violência
física e moral, dos abusos do poder, das manipulações do dinheiro, dos excessos
do sexo; exige, numa palavra, que se cumpram os preceitos do Senhor, porque o
que afeta a dignidade do homem fere, de algum modo, o próprio Deus. "Tudo
é vosso; vós sois de Cristo e Cristo é de Deus" (1 Cor 3,21-23 ) .
O
que nos interessa, como pastores, é a proclamação integral da verdade sobre
Jesus Cristo, sobre a natureza e a missão da Igreja, sobre a dignidade e a
desatinação do homem.
Nossa
mensagem, por isso mesmo, se sente iluminada de esperança. As dificuldades que
encontramos, os desequilíbrios que assinalamos não significam sinais de
pessimismo. O contexto sócio-cultural em que vivemos é tão contraditório, em
sua concepção e modo de atuar, que não só contribui para a escassez dos bens
materiais nas casas dos mais pobres, mas também - o que é mais grave - tende a
tirar-lhes sua maior riqueza, que é Deus. A
comprovação dessa realidade nos leva a exortar a todos os membros
conscientes da sociedade a que revejam seus projetos e, por outro lado, nos
impõe o dever sagrado de lutar pela conservação e aprofundamento do sentido de
Deus na consciência do povo. Como Abrão, lutamos e lutaremos contra toda a
esperança, isto é, nunca deixaremos de esperar na graça e no poder de Deus,
que estabeleceu com seu povo a Aliança inquebrantável, apesar das nossas
prevaricações.
E
comovedor sentir-se na alma do povo a riqueza espiritual transbordante de fé,
de esperança. e amor. Neste sentido a América Latina é um exemplo para os
outros continentes e amanhã poderá ampliar sua sublime vocação missionária para
além das próprias fronteiras.
Por
isso mesmo, sursum corda! Ao alto os
corações, queridos irmãos da América Latina, porque o Evangelho que pregamos é
uma Boa Nova tão magnífica que converte e transforma os esquemas mentais e
afetivos, uma vez que chega a comunicar a grandeza da desatinação do homem,
prefigurada em Jesus Cristo Ressuscitado.
Nossas
preocupações pastorais a respeito dos homens mais humildes, impregnadas de
humano realismo, não incluem qualquer intenção de excluir de nosso pensamento e
de nosso coração a outros representantes do quadro social em que vivemos. São
antes advertências, sérias e oportunas para que não se alarguem as distâncias,
não se multipliquem os pecados, não se afaste o Espírito de Deus da família
latino-americana.
Cremos
que a revisão do comportamento religioso e moral dos homens deve refletir-se
na esfera do processo político e econômico de nossos países; por isso
convidamos a todos, sem distinção de classes, a que aceitem e assumam a causa
dos pobres, como se estivessem assumindo e aceitando sua própria causa, a
própria causa de Jesus Cristo. "Tudo o que fizestes a um desses meus
irmãos mais pequeninos a mim o fizestes" (Ml 25,40).
O episcopado latino-americano
4.
Irmãos, não vos impressioneis com as notícias de que o episcopado está
dividido. Há diferenças de mentalidade e de opinião, mas vivemos, na verdade,
o princípio da colegialidade; completando nos uns aos outros, segundo as
capacidades dadas por Deus. Só assim é que poderemos enfrentar o grande desafio
da evangelização no presente e no futuro da América Latina.
Sua
Santidade o Papa João Paulo II apontou em seu discurso inaugural três
prioridades pastorais: a família, a juventude e as vocações.
A família
5.
Convidamos, pois, com especial carinho, a família da América Latina a tomar o
seu lugar no coração de Cristo e a transformar-se cada vez mais em ambiente privilegiado
de evangelização, de respeito à vida e ao amor comunitário.
A juventude
6.
Convidamos de coração os jovens a vencer os obstáculos que ameaçam seu direito
de participação, consciente e responsável, na construção de um mundo melhor.
Não lhes desejamos a ausência pecaminosa na mesa da vida nem a triste capitulação
ante os imperativos do prazer, do indiferentismo ou da solidão voluntária e
improdutiva. Já passou a hora do protesto, traduzido em formas exóticas ou
através de exaltações intempestivas. Tendes uma capacidade imensa. Chegou o
momento da reflexão e da aceitação plena do desafio de viver, em plenitude. os
valores essenciais do autêntico humanismo integral.
Os agentes de pastoral
7.
Com palavras afetuosas e confiantes saudamos aos abnegados agentes de pastoral
de nossas Igrejas particulares, sem distinguir as categorias a que pertençam.
Exortando-vos a continuar vossos trabalhos em favor do Evangelho, concitamo-vos
a desenvolver um esforço crescente em prol da pastoral das vocações, onde se
incluem os ministérios que se confiam aos leigos em razão de seu batismo e de
sua confirmação. A Igreja precisa de mais sacerdotes diocesanos e religiosos,
quanto possível sábios e santos para o ministério da Palavra e da Eucaristia e
para a maior eficácia do apostolado religioso e social. E necessita de leigos
que tenham consciência da missão que lhes cabe no interior da Igreja e na
construção da cidade secular.
Os homens de boa vontade e a
civilização do amor 8. Queremos dirigir-nos, agora,
a todos os homens de boa vontade e a quantos exercem cargos ou desempenham
funções nos mais variados campos da cultura, da ciência, da política, da
educação, do trabalho, dos meios de comunicação social e da arte.
Convidamo-vos
a serdes construtores abnegados da "Civilização do Amor", segundo a brilhante visão de Paulo VI, a qual se
inspira na palavra, na vida e na plena doação de Cristo e se baseia na justiça.
na verdade e na liberdade. Estamos seguros de obter assim vossa resposta aos
imperativos da hora presente e à tão ambicionada paz interna e social, no
âmbito das pessoas, famílias, países, continentes e até do universo inteiro.
Desejamos
explicitar o sentido orgânico da civilização do amor, nesta hora difícil mas
cheia de esperança da América Latina.
O
que é que nos impõe o mandamento do amor?
O
amor cristão ultrapassa as categorias de todos os regimes e sistemas, porque
traz consigo a força insuperável do Mistério Pascal, o valor do sofrimento da
cruz e as marcas da vitória e da ressurreição. 0 amor gera a felicidade da
comunhão e inspira os critérios da participação.
A
justiça, como se sabe, é um direito sagrado de todos os homens, conferido pelo
próprio Deus. Está enxertada na própria essência da mensagem evangélica. A
verdade, esclarecida pela fé, é fonte perene de discernimento para nosso
comportamento ético. Exprime as formas autênticas de uma vida digna. A liberdade
é um dom precioso de Deus, conseqüência de nossa condição humana e fator
indispensável de progresso para os povos.
A
civilização do amor repudia a violência, o egoísmo, o esbanjamento, a
exploração e os desatinos morais. À primeira vista, parece uma expressão falha
da energia que é necessária para que se enfrentem os graves problemas de nossa
época. Entretanto, nós vos garantimos: não existe palavra mais forte do que
esta no dicionário dos cristãos. Identifica-se com a própria força de Cristo.
Quem não crê no amor também não crê naquele que disse: "Dou-vos um novo
mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos tenho amado" (Jo
15,12).
A
civilização do amor propõe a todos a riqueza evangélica da reconciliação
nacional e internacional. Não existe gesto mais sublime do que o perdão. Quem
não sabe perdoar não será perdoado.
Na
balança das reponsabilidades comuns é preciso colocar muita renúncia e
solidariedade para o correto equilíbrio das relações humanas. A meditação desta
verdade levaria nossos países a reverem seu comportamento com relação aos expatriados
com sua seqüela de problemas, de acordo com o bem comum, em caridade e sem
detrimento da justiça. Existem em nosso continente inúmeras famílias
traumatizadas.
A civilização do amor condena as
divisões absolutas e as muralhas psicológicas que separam violentamente os
homens, as instituições e as comunidades internacionais. Por isso defende
ardorosamente a tese da integração da América Latina. Na unidade e na
variedade há elementos de valor continental que merecem ser apreciados e
aprofundados, muito mais do que os simples interesses nacionais. Convém
recordar a nossos países da América Latina a urgente necessidade de se
conservar e incrementar o patrimônio continental da paz, porque seria, de fato,
uma tremenda responsabilidade histórica o rompimento dos laços da amizade
latino-americana, quando temos a convicção de que existem recursos jurídicos e
morais para a solução dos nossos problemas de interesse comum.
A civilização do amor rejeita a sujeição
e a dependência tão prejudiciais à dignidade da América Latina. Não aceitamos
ser satélites de nenhum país do mundo nem tampouco das ideologias que lhe são
peculiares. É fraternalmente que queremos viver com todos, porque repudiamos os
nacionalismos acanhados e irredutíveis. Já é tempo de que a América Latina
faça esta advertência aos países desenvolvidos: não permitiremos que nos
imobilizem, que ponham obstáculos ao nosso progresso, que nos explorem; ao
contrário, é mister que nos ajudem, com grandeza de alma, a vencer as barreiras
do nosso subdesenvolvimento, respeitando nossa cultura, nossos princípios,
nossa soberania, nossa identidade, nossos recursos naturais. Neste espírito
cresceremos unidos como irmãos e membros da mesma família universal.
Outro
ponto que nos faz estremecer as entranhas e o coração é a corrida
armamentista, que não cessa de fabricar instrumentos de morte. Ela implica a
dolorosa ambigüidade de confundir o direito à defesa nacional com ambições
desmedidas e ilícitas. Tal corrida não tem capacidade de construir a paz.
Terminando
nossa mensagem convidamos, com respeito e confiança, a todos os responsáveis
pela ordem política e social a que meditem nestas reflexões, tiradas de nossa
experiência, filhas de nossa sensibilidade pastoral.
Acreditai:
desejamos a Paz e, para alcançá-la, é preciso eliminar os elementos que
provocam as tensões entre o ter e o poder, entre o ser e suas mais justas
aspirações. Trabalhar pela justiça, pela verdade, pelo amor e pela liberdade,
dentro dos parâmetros da comunhão e da participação, é trabalhar pela paz
universal.
Palavra de conclusão
9.
Em Medellin, terminamos nossa mensagem com esta afirmação: "Temos fé em
Deus, nos homens, nos valores, no futuro da América Latina". Em Puebla,
retomando a mesma profissão de fé, divina e humana, proclamamos:
Deus
está presente e vivo, por Jesus Cristo libertador, no coração da América
Latina. Cremos no poder do Evangelho.
Cremos
na eficácia do valor evangélico da comunhão e da participação para gerar
criatividade, promover experiências e novos projetos pastorais.
Cremos
na graça e no poder do Senhor Jesus que penetra a vida e nos impele para a
conversão e a solidariedade.
Cremos
na esperança que alimenta e fortalece o homem em sua caminhada para Deus, nosso
Pai.
Cremos
na civilização do amor.
Que
Nossa Senhora de Guadalupe, Padroeira da América Latina, nos acompanhe,
solícita como sempre, nesta peregrinação de Paz.
PRIMEIRA PARTE
VISÃO
PASTORAL
DA
REALIDADE LATINO-AMERICANA
O objetivo desta visão histórica é:
SITUAR nossa
evangelização em continuidade com a que foi realizada nos últimos cinco séculos
e cujos fundamentos ainda perduram, depois de ter dado origem a um radical
substrato católico na AL. Este substrato se revigorou ainda mais depois do
Concílio Vaticano II e da II Conferência geral do Episcopado celebrada em
Medellin, com a consciência, cada vez mais clara e mais profunda, que tem a
Igreja de sua missão fundamental: a evangelização.
EXAMINAR,
com visão de pastores, alguns aspectos do atual contexto sócio-cultural em que
a Igreja realiza sua missão e, outrossim, a realidade pastoral que hoje se
apresenta à evangelização, com suas projeções para o futuro.
CONTEÚDO
Título
I. Visão histórica: os grandes momentos da Evangelização na AL.
Título
II. Visão pastoral do contexto sócio-cultural.
Título
III. Realidade pastoral da AL, hoje.
Título
IV . Tendências atuais e evangelização no futuro.
CAPÍTULO I
VISÃO
HISTÓRICA DA REALIDADE
LATINO-AMERICANA
Os
grandes momentos da evangelização na América Latina
A
Igreja recebeu a missão de levar aos homens a Boa Nova. Para realizar
eficazmente esta missão, a Igreja sente a necessidade de conhecer o povo
latino-americano em seu contexto histórico, com suas variadas circunstâncias.
É mister que este povo continue a ser evangelizado como herdeiro de um passado,
como protagonista do presente, como construtor de um futuro, como peregrino em
busca do Reino definitivo.
A
evangelização é a missão própria da Igreja. A história da Igreja é,
fundamentalmente, a história da evangelização de um povo que vive em constante
gestação, nasce e se enxerta na existência secular das nações. A Igreja, ao
encarnar-se, contribui vitalmente para o nascimento das nacionalidades e
imprime-lhes profundamente um caráter particular. A evangelização está nas
origens deste Novo Mundo que é a AL. A Igreja faz-se presença nas raízes e na
atualidade do Continente. Quer servir, dentro do quadro da realização de sua
missão própria, ao melhor porvir dos povos latina-americanos, à sua libertação
e crescimento em todas as dimensões da vida. Medellin já lembrava as palavras
de Paulo VI sobre a vocação da AL: "Unificar,
em uma síntese nova e genial, o antigo e o moderno, o espiritual e o
temporal, o que os outros nos legaram e nossa própria originalidade" (Med.
intr. 1) .
A AL forjou, na confluência, por vezes
dolorosa, das mais diversas raças e culturas, uma nova mestiçagem de etnias e
formas de existências e pensa mento que permitiu a gestação de uma neva raça,
depois de vencidas as duras separações que precederam.
A geração de um povo e de uma cultura é
sempre dramática: luzes e sombras a envolvem. A evangelização, como tarefa humana, está submetida às vicissitudes
da história, mas busca sempre transfigurá-las com o fogo do Espírito, no
caminho de Jesus Cristo, centro e sentido da história universal e da de todos e
cada um dos homens. Sob o aguilhão das contradições e dilacerações dos tempos
da colonização e no meio de um agigantado processo de dominações e culturas
ainda não encerrado, a evangelização constituinte da AL é um dos capítulos relevantes
da história da Igreja. Em face de dificuldades tão desmedidas quanto inéditas,
ela respondeu com uma capacidade criadora cujo alento sustenta viva a
religiosidade popular da maioria de nossos povos.
Nosso
radical substrato católico, com suas formas vitais de religiosidade vigente,
foi estabelecido e dinamizado por uma imensa legião missionária de bispos,
religiosos e leigos. Em primeiro plano, temos as realizações de nossos santos,
como Turíbio de Mogrovejo, Rosa de Lima, Martinho de Porres, Pedro Claver, Luís
Beltran e outros. Ensinam-nos todos que, superadas as debilidades e a covardia
dos homens que os cercavam e às vezes os perseguiam, o Evangelho, em sua
plenitude de graça e de amor, foi e pode ser vivido na AL como sinal da grandeza espiritual e da verdade de Deus.
Intrépidos
lutadores em prol da justiça e evangelizadores da paz como Antônio de
Montesinos, Bartolomeu de Ias Casas, João de Zumárraga, Vasco de Quiroga, João
dal Valle, Julião Garcés, José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e tantos outros
que defenderam os índios perante os conquistadores e encomenderos até com a própria morte, como o bispo Antônio
Valdivieso, demonstram, com a evidência dos fatos, como a Igreja faz a promoção
da dignidade e da liberdade do homem latino-americano. Esta realidade foi
reconhecida com gratidão pelo Santo Padre João Paulo II, ao pisar pela primeira
vez as terras do Novo Mundo, quando se referiu "àqueles religiosos que
vieram anunciar Cristo Salvador, defender a dignidade dos indígenas, proclamar
seus direitos invioláveis, favorecer sua promoção integral, ensinar aos habitantes
do Novo Mundo a fraternidade que teriam de viver como homens e como filhos de
um mesmo Deus que é o Senhor e Pai" (João Paulo II, Discurso em sua chegada a S. Domingos, AAS LXXI p. 154,
25-1-1979 ) .
A obra evangelizadora da Igreja da AL é o resultado do esforço unânime de
missionários de todo o povo de Deus. Aí estão as incontáveis iniciativas de
caridade, assistência, educação e, de modo exemplar as originais sínteses de
evangelização e promoçâo humana das missôes franciscanas, agostinianas,
dominicanas, jesuíticas, mercedárias e outras. Aí estão a generosidade e o sacrifício evangélico de muitos
cristãos, em que, por sua abnegação e oração, a mulher teve papel essencial. Aí
está a criatividade na pedagogia da fé - a vasta rede de recursos que conjugava
todas as artes, desde a música, o canto e a dança, até à arquitetura, à pintura
e ao teatro. Toda esta capacidade pastoral está associada a um momento de
grande reflexão teológica e a uma dinâmica intelectual que dá vida e impulso a
universidades, escolas, dicionários, gramáticas, catecismos em diversas línguas
indígenas e aos mais significativos relatos históricos sobre as origens de
nossos povos. E está. associada igualmente a uma extraordinária proliferação de
confrarias e ìrmandades de leigos que chegam a ser a alma e a espinha dorsal da
vida religiosa dos crentes e a fonte remota, mas fecunda, dos atuais movimentos
comunitários da Igreja latino-americana.
É
certo que a Igreja, em seu labor apostólico, teve de suportar o peso dos desfalecimentos,
das alianças com os poderes da terra, de uma visão pastoral incompleta e da
força destruidora do pecado: mas não é menos certo - e forçoso é reconhecê-1o!
- que a evangelização que transforma a AL no "Continente da
Esperança" tem sido muito mais poderosa do que as sombras que
lamentavelmente a acompanharam no interior do contexto histórico onde lhe coube
viver. Para nós, cristãos de hoje, isto será um desafio, a fim de sabermos
estar à altura do melhor de nossa história e de termos a capacidade de
responder aos desafios deste nosso tempo latino-americano, com fidelidade
criadora.
Aquela
fase da evangelização, tão decisiva na formação da AL, após um ciclo de
estabilização, cansaço e rotina, foi seguida pelas grandes crises do século
XIX e dos começos do nosso. Estas provocavam perseguições e grandes amarguras
na Igreja, que esteve submetida a enormes incertezas e a conflitos que a
abalaram até aos fundamentos. Superando esta prova tão dura, ela conseguiu,
com potente esforço, reconstruir-se e sobreviver. Hoje em dia, sobretudo a
partir do Concílio Vaticano II, a Igreja se foi renovando, pouco a pouco com
autêntico dinamismo evangelizador e captando as necessidades e as esperanças
dos povos latino-americanas. A energia
que convocou seus bispos a Lima, ao México, à cidade do Salvador na Bahia e a
Roma manifesta-se ativa nas Conferências do Episcopado Latino-Americano do Rio
de Janeiro e de Medellin, que ativaram as suas energias e a prepararam para os
desafios do futuro.
Sobretudo
a partir de Medellin, tem conseguido a Igreja uma nítida consciência de sua
missão e tem-se aberto com lealdade ao diálogo. Por isso vem perscrutando os
sinais dos tempos e está generosamente disposta a evangelizar, a fim de
contribuir para a construção de uma sociedade nova, mais justa e mais fraterna,
que é uma clamorosa exigência dos nossos povos. Deste modo, a tradição e o
progresso, que antes pareciam antagônicos na AL, enfrentando-se mutuamente, conjugam-se hoje em busca de uma
nova síntese, que irmane as possibilidades do porvir com as energias que
provêm de nossas raízes comuns. Destarte, neste vasto movimento de renovação
que inaugura uma época nova, no meio dos desafios recentes, retomamos nós, pastores,
a tradição secular dos bispos do Continente e nos preparamos para levar, com
esperança e fortaleza, a mensagem da salvação evangélica a todos os homens,
preferentemente aos mais pobres e esquecidos.
Através
de uma rica experiência histórica, cheia de luzes e de sombras, a grande missão
da Igreja tem sido seu compromisso na fé com o homem da AL: para sua salvação
eterna, para sua superação espiritual e plena realização humana.
Movidos
pela inspiração que vem dessa grande missão de ontem, queremos aproximar-nos,
com olhos e coração de pastores e cristãos, da realidade do homem
latino-americano de hoje, para interpretá-lo e compreendê-lo, a fim de
analisarmos nossa missão pastoral partindo desta mesma realidade.
CAPÍTULO II
VISÃO SÓCIO-CULTURAL
DA REALIDADE LATINO-AMERICANA
2.1.
Introdução
Como
pastores, peregrinamos com o povo latino-americano através de nossa história,
com muitos elementos de base comuns, mas também com os matizes e as diferenças
de cada nação. Partindo do Evangelho que nos apresenta Jesus Cristo como 0 que
passou fazendo o bem e amando a todos sem distinção, e iluminados pela fé,
situamo-nos na realidade do homem latino-americano, que é expressa em suas
esperanças, em seus triunfos e suas frustrações. Impele-nos esta fé a discernir
as interpelações de Deus nos sinais dos tempos, a dar testemunho, a anunciar
e a promover os valores evangélicos da comunhão e da participação; e a
denunciar tudo o que, em nossa sociedade, vai contra a filiação que tem sua
origem em Deus Pai, e contra a fraternidade dos homens em Cristo Jesus.
Como
pastores, discernimos êxitos e malogros nestes últimos anos. Apresentamos esta
realidade, não com o intento de provocar desânimo, mas antes querendo estimular
a todos os que tenham possibilidade de melhorá-1a. A Igreja da AL tem
procurado ajudar o homem "a passar de situações menos humanas a mais
humanas" (PP 20). Tem-se esforçado
por convocar as pessoas para uma contínua conversão individual e social. Pede
que todos os cristãos colaborem na transformação das estruturas injustas,
comuniquem valores cristãos à cultura
global
em que estão inseridos, e, conscientes dos resultados já obtidos, se animem a
continuar trabalhando pelo seu aperfeiçoamento.
Enumeramos,
com alegria, alguns dados que nos enchem de esperança:
-
O homem latino-americano tem uma tendência inata a acolher as pessoas; a
partilhar o que tem, a viver a caridade fraterna e o desprendimento (sobretudo
no meio dos pobres); a compadecer-se do sofrimento alheio. Valoriza muito os
vínculos especiais da amizade oriundos do apadrinhamento, e preza não menos a
família e as relações que estabelece.
-
Tomou consciência mais clara da própria dignidade, do seu desejo de
participação política e social, embora estes direitos estejam espezinhados em
muitos lugares. Proliferam as organizações comunitárias, como movimentos
cooperativistas e outros, sobretudo nos meios populares.
-
Existe um interesse crescente pelos valores autóctones e pelo respeito à
originalidade das culturas indígenas e de suas comunidades. Além disto há um
profundo amor à terra.
-
Nosso povo é jovem, e, onde tem tido oportunidades de habilitar-se e
organizar-se, tem revelado surpreendente capacidade de se promover e de consolidar
suas justas reivindicações.
-
O significativo progresso econômico que nosso continente alcançou demonstra que
seria possível erradicar a extrema pobreza e melhorar a qualidade de vida do
nosso povo; ora, se existe a possibilidade, existe, conseqüentemente, a
obrigação.
Nota-se
um certo crescimento da classe média, embora em determinados lugares ela tenha
sofrido alguma deterioração.
São
claros os progressos no setor da educação. Entretanto nos múltiplos encontros
pastorais com nosso povo, percebemos também - como o Santo Padre João Paulo II
em seus contatos com camponeses, operários e estudantes - o seu profundo
clamor cheio de angústias, esperanças e aspirações ao qual queremos fazer eco:
deste modo seremos a grande "voz de quem não pode falar ou de quem é
silenciado" (Alocução Oaxaca 5 AAS LXXI p. 208). Assim nos situamos no
dinamismo de Medellin, cuja visão da realidade assumimos e que se tornou fonte
de inspiração para tantos de nossos documentos pastorais na última década.
O
que Paulo VI apresentou na Evangelii
Nuntiandi reflete lucidamente a realidade de nossos países: "E bem
sabido em que termos falaram, durante o último Sínodo, numerosos bispos de
todos os continentes e sobretudo os bispos do Terceiro Mundo, com um acento
pastoral em que vibravam as vozes de milhões de filhos da Igreja que constituem
tais povos. Povos - já o sabemos - empenhados com todas as suas energias no
esforço e na luta para superar tudo o que os condena a ficarem à margem da
vida: fome, enfermidades crônicas, analfabetismo, empobrecimento, injustiça nas
relações internacionais, especialmente nas de comércio, situações de neocolonialismo
econômico e cultural por vezes tão cruel quanto o político etc. A Igreja,
repetiram os bispos, tem o dever de anunciar a libertação de milhões de seres
humanos, entre os quais há muitos filhos seus; o dever de ajudar a nascer esta
libertação, de dar testemunho da mesma, de fazer que seja total. Nada disto é
estranha à evangelização" (EN 30).
2.2.
Compartilhar as angústias
Preocupam-nos
as angústias de todos os membros do povo, qualquer que seja a sua condição
social: sua solidão, seus problemas familiares, a falta de sentido que não
poucos vêem na vida. E mais especialmente queremos, hoje, compartilhar as angústias
que nascem de sua pobreza.
Vemos,
à luz da fé, como um escândalo e uma contradição com o ser cristão, a brecha
crescente entre ricos e pobres. O luxo de alguns poucos converte-se em insulto
contra a miséria das grandes massas. Isto é contrário ao plano do Criador e à
honra que lhe é devida. Nesta angústia e dor, a Igreja discerne uma situação de
pecado social, cuja gravidade é tanto maior quanto se dá em países que se dizem
católicos e que têm a capacidade de mudar: "que se derrubem as barreiras
da exploração . . . contra as quais se estraçalham seus maiores esforços de
promoção" (João Paulo II, Alocução
Oaxaca 5 AAS LXXI p. 209). Comprovamos,
pois, como o mais devastador e humilhante flagelo a situação de pobreza
desumana em que vivem milhões de latino-americanos e que se exprime, por
exemplo, em mortalidade infantil, em falta de moradia adequada, em problemas de
saúde, salários de fome, desemprego e subemprego, desnutrição, instabilidade no
trabalho, migrações maciças, forçadas e sem proteção.
Ao
analisar mais a fundo tal situação, descobrimos que esta pobreza não é uma
etapa casual, mas sim o produto de determinadas situações e estruturas
econômicas, sociais e políticas, embora haja também outras causas da, miséria.
A situação interna de nossos países
encontra, em muitos casos, sua origem e apoio em mecanismos que, por estarem
impregnados não de autêntico humanismo, mas de materialismo, produzem, em nível
internacional, ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais
pobres. Esta realidade exige, portanto, conversão pessoal e transformações
profundas das estruturas que correspondam às legítimas aspirações do povo a uma
verdadeira justiça social; tais mudanças ou não se deram ou têm sido demasiado
lentas na experiência da AL.
Esta
situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições
concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de
Cristo, o Senhor (que nos questiona e interpela ) : - feições de crianças,
golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer, impedidas que estão de realizar-se,
por causa de deficiências mentais e corporais irreparáveis, que as
acompanharão por toda a vida; crianças abandonadas e muitas vezes exploradas
de nossas cidades, resultado da pobreza e da desorganização moral da família;
-
feições de jovens, desorientados por não encontrarem seu lugar na sociedade e
frustrados, sobretudo nas zonas rurais e urbanas marginalizadas, por falta de
oportunidades de capacitação e de ocupação;
-
feições de indígenas e, com freqüência, também de afro-americanos, que, vivendo
segregados e em situações desumanas, podem ser considerados como os mais pobres
dentre os pobres.
-
feições de camponeses, que, como grupo social, vivem relegados em quase todo o
nosso continente, sem terra, em situação de dependência interna e externa,
submetidos a sistemas de comércio que os enganam e os exploram;
-
feições de operários, com freqüência mal remunerados, que têm dificuldade de
se organizar e defender os próprios direitos;
-
feições de subempregados e desempregados, despedidos pelas duras exigências das
crises econômicas e, muitas vezes, de modelos desenvolvimentistas que submetem os
trabalhadores e suas famílias a frios cálculos econômicos;
-
feições de marginalizados e amontoados das nossas cidades, sofrendo o duplo
impacto da carência dos bens materiais e da ostentação da riqueza de outros
setores sociais;
-
feições de anciãos cada dia mais numerosos, freqüentemente postos à margem da
sociedade do progresso, que prescinde das pessoas que não produzem.
Compartilhamos
com nosso povo de outras angústias que brotam da falta de respeito à sua
dignidade de ser humano, imagem e semelhança do Criador e a seus direitos
inalienáveis de filhos de Deus.
Países
como os nossos, onde com freqüência não se respeitam os direitos humanos
fundamentais vida, saúde, educação, moradia, trabalho . . . acham-se em
situação de permanente violação da dignidade da pessoa humana.
Somam-se
a isto as angústias produzidas pelo abuso do poder, típicas dos regimes de
força. Angústias causadas pela repressão sistemática ou seletiva, acompanhada
de delação, de violação da privacidade, de pressões exageradas, de torturas,
de exílios.
Angústias
em numerosas famílias pelo desaparecimento de seus entes queridos, dos quais
não conseguem teria menor notícia. Insegurança total por detenções sem ordem
judicial. Angústias ante uma justiça - submissa ou manietada. A Igreja, como afirmam os Sumos
Pontífices, "por força de um autêntico- compromisso evangélico", deve
fazer ouvir a sua voz, denunciando e condenando estas situações, sobretudo
quando os governos ou responsáveis se confessam cristãos.
Angústias
provocadas pela violência da guerrilha, do terrorismo e dos seqüestras,
efetuados por extremistas de sinais diversos, que comprometem igualmente o
convívio social.
Em
muitos de nossos países, a falta de respeito à dignidade do homem se exprime
também na ausência de participação social nos vários níveis. Referimo-nos de
modo particular à sindicalização. A legislação trabalhista, em muitos lugares,
aplica-se arbitrariamente ou não é levada em consideração. Sobretudo nos países
onde há regimes de força, vê-se com maus olhos a organização de operários,
camponeses e grupos populares e adotam-se medidas repressivas para impedi-1a.
Este tipo de controle e limitação não acontece com os sindicatos patronais,
que podem agir com todo o seu poder para assegurar os próprios interesses.
Em
alguns casos a politizarão exasperada das cúpulas sindicais distorce a
finalidade de sua organização.
Nos
últimos anos, comprova-se, ainda, a deterioração do quadro político, com grave
prejuízo da participação dos cidadãos na condução do seu próprio destino.
Também aumenta, com freqüência, a injustiça que se pode chamar de
institucionaliza. Além disso, grupos políticos extremistas, ao empregarem
meios violentos, provocam novas repressões contra os setores populares.
A
economia de mercado livre, na. sua expressão mais rígida, que ainda vigora em
nosso continente e é legitimada por ideologias liberais, tem alargado a
distância entre ricos e pobres, pelo fala de antepor o capital ao trabalho, o
econômico ao social. Grupos minoritários nacionais, associados às vezes a
interesses de fora, têm-se aproveitado das oportunidades que lhes oferecem
estas formas envelhecidas de mercado livre, para se desenvolverem em proveito
próprio e às custas dos interesses dos setores populares majoritários.
As
ideologias marxistas se têm difundido no mundo operário, estudantil e docente
e em outros meios com a promessa de maior justiça social. Na prática, suas
estratégias têm sacrificado muitos dos valores cristãos e, portanto, humanos
ou caído em irrealismos utópicos, inspirando-se em políticas que, ao utilizar
a força como instrumento fundamental, incrementam a espiral da violência.
As
ideologias da Segurança Nacional têm contribuído para fortalecer, em muitas
ocasiões, o caráter totalitário ou autoritário dos regimes de força e
alimentado o abuso do poder e da violação dos direitos humanos. Há casos em
que pretendem proteger suas atitudes com uma profissão de fé cristã, que é,
contudo, subjetiva.
Os
tempos de crise econômica que nossos países estão vivendo (não obstante a
tendência para a modernização) com forte crescimento da economia, mas
enfrentando menor ou maior dureza, aumentam as angústias de nossos povos.
Entretanto uma tecnocracia gélica aplica modelos de desenvolvimento que exigem
dos setores mais pobres um custo social realmente desumano, tanto mais injusta
quanto não é compartilhado por todos.
2. 3. Aspectos
culturais
A
AL é constituída de várias raças e grupos culturais com processos históricos
diferentes. Não é uma realidade uniforme e contínua. Existem, contudo,
elementos que constituem um patrimônio cultural comum de tradições históricas e
de fé cristã.
Infelizmente,
o desenvolvimento de algumas culturas é muito precário. Na prática se
desconhecem, se marginalizam e até se destroem valores pertencentes à antiga e
rica tradição do nosso povo. Por outro lado, iniciou-se uma revalorização das
culturas autóctones.
Em
razão de influências externas dominantes ou por imitação alienante de formas de
vida ou valores importados, as culturas tradicionais de nossos países viram-se
deformadas e agredidas, minando-se assim nossa identidade e nossos valores
específicos. Compartilhamos, pois, com o nosso povo, as angústias causadas
pela inversão de valores que está na raiz de muitos dos males acima mencionados,
a saber:
-
o materialismo individualista, valor supremo de muitos homens de hoje, que
atenta contra a comunhão e a participação, impedindo a solidariedade; e o
materialismo coletivista que subordina a pessoa ao Estado;
-
o consumismo, com sua ambição descontrolada de sempre se "ter mais",
que vai afagando o homem contemporâneo num imanentismo que o fecha aos valores
evangélicos do desprendimento e da austeridade, paralisando-o para a comunhão
solidária e a participação fraterna;
-
a deterioração dos valores básicos da família que desintegra a comunhão
familiar, eliminando a participação co-responsável de todos os seus membros e
tornando-os presa fácil do divórcio e do abandono do lar. Em alguns grupos
culturais, a mulher encontra-se em condições de inferioridade; - a degeneração
da honradez pública e privada; as frustrações, o hedonismo que incita para os
vícios: o jogo, as drogas, o alcoolismo, a devassidão. Educação e Comunicação
Social como transmissores de cultura.
-
A educação tem progredido muito nos últimos anos; tem aumentado a escolaridade,
embora a deserção seja ainda considerável; tem diminuído 0 analfabetismo, ainda
que não suficientemente nas regiões de população autóctone e camponesa. Apesar
deste progresso, há deformações e despersonalizações devidas à manipulação de
grupos minoritários de poder, preocupados com assegurar seus próprios
interesses e impor suas ideologias. - Os traços culturais que apresentamos
sofrem a pesada influência dos meios de comunicação social. Através deles, os
grupos de poder político, ideológico e econômico penetram de modo sutil no ambiente
e no modo de viver do nosso povo. Há manipulação das informações por partes
dos diversos poderes e grupos. Isto se concretiza de modo particular no caso
da publicidade. Esta introduz falsas expectativas, cria necessidades fictícias
e muitas vezes contradiz os valores fundamentais de nossa cultura
latino-americana e do Evangelho. O uso indevido da liberdade nestes meios leva
a invadir o campo da vida. íntima das pessoas, geralmente indefesas. Estes
meios penetram todas as áreas da vida humana (lar, centros de trabalho, lugares
de lazer, praças) 24 horas por dia. Por outro lado, levam a uma mudança
cultural que gera uma nova linguagem c49).
2.4. Raízes profundas destes
fatos
Queremos
indicar algumas das suas raízes mais profundas, para oferecer nossa
contribuição e cooperar nas mudanças necessárias, a partir de uma perspectiva
pastoral que perceba mais diretamente as exigências do povo:
a)
A vigência de sistemas econômicos que não consideram o homem como centro da
sociedade, nem realizam as profundas mudanças que se fazem necessárias, para a
construção de uma sociedade justa.
b)
A falta de integração entre as nossas nações que, entre outras conseqüências
graves, tem esta igualmente: apresentamo-nos como entidades pequenas, sem peso
de negociação, no conceito internacional.
c)
O fato da nossa dependência econômica, tecnológica, política e cultural: a
presença de grupos multinacionais que muitas vezes velam por seus próprios
interesses à custa do bem do país que os acolhe; a perda do valor de nossas
matérias-primas comparado com o preço dos produtos elaborados que adquirimos.
d)
A corrida armamentista, o grande crime de nosso tempo, que é produto e causa de
tensões entre países irmãos. Ela faz com que se destinem muitos recursos à
compra de armas em vez de se empregarem na solução de problemas vitais.
e)
A falta de reformas estruturais na
agricultura, adaptadas a cada realidade e que enfrentem com decisão os graves
problemas sociais e econômicos dos camponeses: o acesso à terra e aos meios que
tornem possíveis a melhoria da produtividade e da comercialização.
f)
A crise de valores morais: a
corrupção pública e privada, a ganância do lucro desmedido, a venalidade, a
falta de esforço, a carência de sentido social, de justiça vivida e
solidariedade, a fuga de capitais e de cérebros . . . tudo isso enfraquece e
até impede a comunhão com Deus e a fraternidade.
g)
Finalmente, nós, como pastores, sem pretender determinar o caráter técnico
destas raízes, vemos que no mais profundo delas há um mistério de pecado: a
pessoa humana, convocada a dominar o mundo, impregna os mecanismos da sociedade
de valores materialistas.
2.5. Localização no interior de
um continente com graves problemas demográficos
Observamos
que em quase todos os nossos países se tem experimentado um acelerado
crescimento demográfico. É jovem a maioria de nossa população. As migrações
internas e externas levam a um senso de desenraizamento. As cidades crescem desordenadamente,
com perigo de se transformarem em megalópoles incontroláveis: é cada dia mais
difícil oferecerem-se os serviços básicos de alimentação, hospitais, escolas,
etc . . . exarcebando-se assim a marginalização social, cultural e econômica. O
aumento dos que buscam trabalho foi mais rápido do que a capacidade de dar
emprego do próprio sistema econômico atual. Há instituições internacionais que
propiciam e governos que aplicam ou apóiam políticas de antinatalidade,
contrárias à moral familiar.
CAPÍTULO III
VISÂO
DA REALIDADE ECLESIAL,
HOJE,
NA AMÉRICA LATINA
3.1. Introdução
A
visão da realidade que acabamos de apresentar em seu contexto social mostra-nos
que também o povo latino-americano vai caminhando entre angústias e
esperanças, entre frustrações e expectativas.
As
angústias e frustrações, se as consideramos à luz da fé, têm por causa o
pecado, cujas dimensões pessoais e sociais são muito amplas. As esperanças e
expectativas de nosso povo nascem de seu profundo sentido religioso e de sua
riqueza humana. Como tem olhado a Igreja para esta realidade? Como a tem
interpretado? Tem descoberto, pouco a pouco, a maneira certa de enfocá-1a, à
luz do Evangelho? Tem chegado a discernir os aspectos em que ela ameaça
destruir o homem, objeto do infinito amor de Deus? Em que outros aspectos por
sua vez, se tem realizado a Igreja, progressivamente, de acordo com os
amorosos planos do Pai? Como é que ela se tem construído, pouco a pouco, para
realizar a missão salvadora que o Senhor Jesus lhe confiou e que deve
projetar-se em situações concretas e atingir homens concretos? Que tem feito
ela, diante da realidade em constante mutação, nos últimos dez anos?
Estas
são as grandes perguntas que nos fazemos a nós mesmos, como pastores e a que
trataremos de responder, a seguir, tendo presente que a missão fundamental da
Igreja é evangelizar, aqui e agora, com os olhos voltados para o futuro.
3.2. Em face das mudanças
Até
o instante em que nosso continente foi alcançado e envolvido pela vertiginosa
corrente de mudanças culturais, sociais, econômicas, políticas e técnicas da
época moderna, o peso da tradição ajudava a comunicação do Evangelho: o que a
Igreja ensinava do púlpito era ciosamente recebido no lar e na escola e
sustentado pelo ambiente social. Hoje em dia já não acontece o mesmo. O que a
Igreja propõe é aceito ou não, dentro de um clima de mais liberdade, com
marcado sentido crítico. Os próprios camponeses, antes fortemente isolados, vão
adquirindo agora espírito de crítica em razão das facilidades de contato com o
mundo atual, que lhes são oferecidas pelo rádio e pelos meios de transporte; e
também pelo trabalho conscientizador dos agentes de pastoral.
O
crescimento demográfico excedeu a capacidade que a Igreja tem, presentemente,
de levar a todos a Boa Nova. Também faltam os sacerdotes, escasseiam as
vocações sacerdotais e religiosas, houve deserções, as Igrejas não contam com
leigos mais diretamente comprometidos nas funções eclesiais, surgiram crises
nos movimentos apostólicos tradicionais. Os ministros da Palavra, as paróquias
e outras estruturas eclesiásticas são insuficientes para satisfazer à fome de
Evangelho sentida pelo povo latino-americano. Os vazios têm sido preenchidos
por outros, o que tem levado, em não poucos casos, ao indiferentismo e à
ignorância religiosa. Ainda não se conseguiu uma catequese que atinja a vida
integralmente.
O
indiferentismo, mais do que o ateísmo, passou a ser um problema enraizado em
grandes setores dos grupos intelectuais e profissionais, da juventude e até da
classe operária. A própria ação
positiva da Igreja em defesa dos direitos humanos e o seu comportamento em
relação aos pobres têm levado grupos economicamente poderosos, que se consideravam
líderes do catolicismo, a se sentirem como que abandonados pela Igreja, que,
segundo eles, teria deixado sua missão "espiritual". Há muitos outros
que se dizem católicos "à sua maneira" e não acatam os postulados
básicos da Igreja. Muitos valorizam mais a própria "ideologia" do que
sua fé e pertença à Igreja.
Muitas
seitas se têm mostrado clara e pertinazmente não só anti-católicas, mas até
injustas contra a Igreja e têm procurado minar os seus membros menos
esclarecidos. Devemos confessar com humildade que, em grande parte, até em
determinados setores da Igreja, uma falsa intepretação do pluralismo religioso
permitiu a propagação de doutrinas errôneas e discutíveis sobre a fé e a
moral, produzindo confusão no povo de Deus.
Todos
estes problemas são agravadas pela ignorância religiosa em todos os níveis,
desde os intelectuais até os analfabetos. Comprovamos, todavia, que tem havido
um progresso muito positivo através da catequese, especialmente a de adultos.
A ignorância e o indiferentismo
religioso levam muitos a prescindir dos princípios morais, quer pessoais quer
sociais, e a fechar-se no ritualismo ou na prática social de certos sacramentos
e de exéquias, como sinal de pertença à Igreja.
A secularização - que reivindica para os
afazeres terrenos uma autonomia legítima e que pode contribuir para purificar
as imagens de Deus e da Religião - tem degenerado, com freqüência, na perda do
valor do religioso ou no secularismo que volta as costas a Deus e lhe nega, a
presença. na vida pública. A imagem
da Igreja como aliada dos poderes deste mundo tem mudado na maior parte dos nossos
países. A firme defesa que ela tem feito dos direitos humanos e seu
compromisso com uma real promoção social levou-a para mais perto do povo,
embora, por outro lado, ela tenha sido alvo da incompreensão ou do afastamento
de determinados grupos sociais.
Urgida
pelo mandato de Cristo a pregar o Evangelho a toda criatura e exigida pela
imensidade desta tarefa e pelo processo das transformações, a Igreja da AL tem
sentido a sua insuficiência humana e, ao mesmo tempo, experimentado que o Espírito
de Cristo a move e inspira e compreendido que não lhe é possível, sem cair em
pecado de infidelidade à sua missão, ficar na retaguarda e imóvel, ante as
exigências de um mundo em transformação. Desde a I Conferência Geral do
Episcopado, realizada no Rio de Janeiro, em 1955, e que deu origem ao Conselho
Episcopal Latino-Americano (CELAM), e, ainda com mais vigor, depois do Concílio
Vaticano II e da Conferência de Medellin, a Igreja tem conquistado
paulatinamente a consciência cada vez mais clara e profunda de que a
evangelização é sua missão fundamental e de que não é possível o seu
cumprimento sem que se faça o esforço permanente para reconhecer a realidade e
adaptar a mensagem cristã ao homem de hoje, dinâmica, atraente e
convincentemente.
Pode-se
dizer que, nesta atitude de busca, a Igreja da AL desencadeou uma atividade
quase febril e organizou, em todos os níveis, reuniões de estudo, cursos,
institutos, encontros, jornadas sobre os mais variados temas, todos orientados
de algum modo para o aprofundamento da mensagem e para o conhecimento do homem,
em suas situações concretas e em suas aspirações.
3.3. Em face do clamor por
justiça
Do
coração dos vários países que formam a AL
está subindo ao céu um clamor cada vez mais impressionante. É o grito de
um povo que sofre e que reclama justiça, liberdade e respeito aos direitos fundamentais
dos homens e dos povos.
Há
pouco mais de dez anos, a Conferência de Medellin já apontava a constatação
deste fato, ao afirmar: "Um clamor surdo brota de milhões de homens,
pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma
parte" (Pobreza da. Igreja, 2).
O
clamor pode ter parecido surdo naquela ocasião. Agora é claro, crescente,
impetuoso e, nalguns casos, ameaçador.
A
situação de injustiça que descrevemos na parte anterior nos leva a refletir
sobre o grande desafio que nossa pastoral enfrenta para ajudar o homem a passar
de situações menos humanas a situações mais humanas. As profundas diferenças
sociais, a extrema pobreza e a violação dos direitos humanos - que ocorrem em
muitas regiões - são desafios lançados à evangelização. Nossa missão de levar
Deus até aos homens e os homens até Deus implica também em construirmos no meio
deles uma sociedade mais fraterna. Esta situação social não tem deixado de
acarretar tensões para o próprio seio da Igreja: tensões produzidas ou por
grupos que enfatizam "o espiritual" de sua missão, ressentindo-so
dos seus trabalhos de promoção social ou por grupos determinados a transformar
a missão da Igreja em mero trabalho de promoção humana. Fenômenos novos que
preocupam são a participação de sacerdotes na política partidária não apenas
de maneira individual, como alguns já haviam feito antes, mas também como
grupos de pressão ou a aplicação à atividade pastoral feita em certos casos,
por alguns deles, de análises sociais com forte conotação política.
A consciência que a Igreja tem de sua
missão evangelizadora tem-na levado a publicar, nestes últimos dez anos,
numerosos documentos sobre a justiça social; a criar organismos de
solidariedade em favor dos que sofrem, de denúncia contra as violações e de
defesa das direitos humanos; a encorajar a opção de sacerdotes e religiosos
pelos pobres e marginalizados; a suportar em seus membros a perseguição e, às
vezes, a morte, como testemunho de sua missão profética. Sem dúvida, há ainda
muito por fazer, para que a Igreja se mostre mais unida e solidária. O temor
do marxismo impede a muitos de enfrentar a realidade opressiva do capitalismo
liberal. Pode-se dizer que, diante do perigo de um sistema claramente marcado
pelo pecado, as pessoas se esquecem de denunciar e combater a realidade já
implantada de outro sistema igualmente marcado pelo pecado. É necessário
prestar atenção a este, sem esquecer as formas históricas, atéias e violentas
do marxismo.
Em face de si mesma, urgida
por um povo que pede o pão da Palavra de Deus e reclama a justiça, colocada na
atitude de escuta deste povo profundamente religioso e, por isso mesmo, povo
que coloca em Deus toda a sua confiança,, a Igreja, nestes últimos dez anos,
tem realizado grandes esforços para dar uma resposta pastoral adequada a esta
situação.
Apesar
do que foi indicado anteriormente, foram surgindo e amadurecendo felizes
iniciativas e experiências. Se, de um lado, há famílias que se desagregam e
se destroem, corroídas pelo egoísmo. pelo isolamento, pela ânsia de bem-estar,
pelo divórcio legal ou de fato, por outro lado, é certo que há famílias que
são verdadeiras "Igrejas domésticas" em cujo seio se vive a fé e na
fé se educam os filhos e em que se dá bom exemplo de amor, de entendimento
mútuo e de irradiação de amor ao próximo na paróquia e na diocese.
Por
um lado - não podemos negá-1o - produzem-se dolorosos conflitos de geração
entre pais e filhos. Há jovens que procuram unicamente o prazer ou a conquista
de posições lucrativas e de prestígio, imbuídos de uma filosofia que é de
"arrivismo" e de dominação. Mas, por outro lado, graças à educação
que se realiza nas famílias e nos colégios que renovaram seu sistema educativo,
existem nos grupos juvenis, jovens que vibram com o descobrimento de Cristo e
que vivem intensamente comprometidos com o próximo, e particularmente com o
pobre.
As
comunidades eclesiais de base que em 1968 eram apenas uma experiência
incipiente amadureceram e multiplicaram-se sobretudo em alguns países. Em
comunhão com os seus bispos e como o pedia Medellin, converteram-se em centros
de evangelização e em motores de libertação e de desenvolvimento. A vitalidade das CEBs começa a dar seus
frutos; é uma das fontes de onde brotam os ministérios confiados aos leigos:
animação de comunidades, catequese, missão.
Em
alguns lugares não se deu a atenção conveniente ao trabalho de formação de
CEBs. É lamentável que em algumas partes interesses visivelmente políticos as
pretendam manipular e afastar da autêntica, comunhão com seus bispos.
Florescem
igualmente outros grupos eclesiais de cristãos formados por leigos de um e
outro sexo: à luz do Evangelho eles refletem sobre a realidade que os rodeia e
buscam formas originais de exprimir sua fé na palavra de Deus e de a pôr em
prática.
Com
estes grupos a Igreja se apresenta em pleno processo de renovação da vida da
paróquia e da diocese, mediante uma catequese que é nova não apenas na sua
metodologia e no uso de meios modernos, mas também na apresentação do conteúdo
que é vigorosamente orientado no sentido de introduzir na vida motivações
evangélicas em busca do crescimento em Cristo.
A
liturgia conseguiu notáveis purificações de costumes simplesmente ritualistas.
É celebrada em paróquias renovadas e em grupos reduzidos - participação
pessoal e ativa tal como pede a constituição Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II. Lamentavelmente
houve grupos que reagiram contra a renovação. E outros introduziram abusos.
Para a celebração dos sacramentos, apesar da resistência encontrada a
princípio, a Igreja já conseguiu o estabelecimento e a aceitação, talvez com
raras exceções, de cursos catequéticos pré-sacramentais, e na própria
celebração, obteve também a proclamação da Palavra. Com isto a vida cristã se
vai iluminando e aprofundando.
As dolorosas tensões doutrinais,
pastorais, psicológicas entre agentes pastorais de tendências diferentes,
embora ainda subsistam, vão sendo gradualmente superadas, mediante a prática
do diálogo aberto e construtivo. Para se ajudarem e se sustentarem mutuamente
na vida espiritual de pastores, em muitos lugares, os sacerdotes têm-se
organizado em grupos. Não raro, colaboram pastoralmente, nestes grupos,
religiosos e leigos.
A ajuda generosa que nossas Igrejas e o CELAM receberam das Igrejas irmãs da
Europa e da América do Norte. em pessoal e recursos financeiros, tem
contribuído significativamente para o esforço evangelizador de todo o
Continente. Por esta ajuda exprimimos o nosso agradecimento. Este fato é um
sinal da caridade universal da Igreja. O esforço para inserir esta contribuição
nos planos das Igrejas locais constitui um sinal de respeito e comunhão.
Para
concluir esta descrição da realidade eclesial, queremos chamar a atenção para o
seguinte: na Igreja da AL está se vivendo a comunhão, naturalmente com alguns
vazios e deficiências em diversos níveis.
Vive-se
a comunhão em núcleos menores: a comunhão das famílias cristãs nas CEBs e nas
paróquias. Realizam-se esforços para uma intercomunicação das paróquias.
Vive-se
a comunhão intermediária, a da Igreja particular ou diocese, que serve de
ligação entre as bases menores e a universal. De igual modo, vive-se a
comunhão entre as dioceses, em nível nacional e regional, comunhão que é
expressa nas Conferências Episcopais e em nível latino-americano, no CELAM.
Existe
a comunhão universal que nasce da vinculação com a Sé Apostólica e com o
conjunto das Igrejas de outros continentes. A Igreja da AL tem
consciência de sua vocação específica, do papel que desempenha e da
contribuição que dá para o conjunto da Igreja universal e para essa comunhão
de Igrejas que tem sua expressão culminante em nossa adesão ao Santo Padre,
Vigário de Cristo e Supremo Pastor.
A atividade ecumênica, expressa no
diálogo e nos esforços conjuntos em favor da promoção humana, inscreve-se no
caminho que leva à unidade desejada.
A revalorização da religiosidade
popular, apesar de seus desvios e ambigüidades, exprime a identidade religiosa
do povo. Ao purificar-se de
eventuais deformações, ela oferece um lugar privilegiado à evangelização. As
grandes devoções e celebrações populares têm sido um distintivo do catolicismo
latino-americano; elas conservam valores evangélicos e são sinal de pertença à
Igreja.
3.4. Estruturas de
evangelização
As paróquias
Observa-se
que a organização pastoral da paróquia, seja territorial seja pessoal, depende
antes de tudo daqueles que a integram e da união que existe entre seus membros
como comunidade humana.
A
paróquia rural acha-se geralmente identificada., em suas estruturas e serviços,
com a comunidade existente. Ela tem procurado criar e coordenar CEBs que
correspondam aos grupos humanos dispersos na área paroquial. As paróquias
urbanas, por sua vez, assoberbadas pelo número de pessoas que devem atender,
têm-se visto na necessidade de dar maior ênfase ao serviço litúrgico e sacramental.
Torna-se cada vez mais necessária a multiplicação de pequenas comunidades
territoriais ou ambientais que correspondam a uma evangelização mais
personalizante.
A escola
Este
é um lugar de evangelização e comunhão. O número de escolas e colégios
católicos tem diminuído em proporção com as exigências da comunidade, mas por
outro lado, existe maior consciência da necessidade da presença de cristãos
comprometidos com as estruturas educativas estatais e particulares que não
pertençam à Igreja. Os centros educativos católicos abrem-se cada dia mais para
todos os setores da sociedade.
3.5. Ministérios e carismas
i3ispos
A
imagem e a situação do bispo mudou talvez nestes últimos anos. Percebe-se
maior espírito de colegialidade entre os bispos e maior corresponsabilidade
com o clero, religiosos ou religiosas e com os leigos, sobretudo em nível de
Igreja particular, embora seja de lamentar que nem sempre se tenha em conta a
necessária coordenação regional ou nacional.
Hoje,
de maneira especial, pede-se ao bispo um testemunho evangélico pessoal, maior
aproximação dos sacerdotes e do povo. Sem nenhuma dúvida, atualmente há mais
simplicidade e pobreza na forma de vida dos bispos. .
A
multiplicação de dioceses favoreceu o contato entre o bispo e a comunidade
diocesana.
Presbíteros
A
escassez de sacerdotes é alarmante, embora em alguns países se verifique o
ressurgimento das vocações. Os sacerdotes vivem sobrecarregados de trabalho
pastoral sobretudo onde não tem havido suficiente abertura aos ministérios
confiados aos leigos e a cooperação com a missão dos sacerdotes. É alentador o
espírito de sacrifício de muitos presbíteros que assumem corajosamente a solidão
e o isolamento sobretudo no mundo rural. Todavia ainda persistem métodos
pastorais inadaptados às circunstâncias atuais e à pastoral orgânica.
Na
formação sacerdotal, embora haja insuficiência numérica de formadores, não têm
faltado experiências valiosas; em alguns casos tem havido exageros que se vão
superando.
Diáconos permanentes
O
diácono permanente é algo de novo em nossas Igrejas. São bem aceitos em suas
comunidades, mas o número é ainda muito pequeno. Embora as CEBs sejam o
ambiente adequado para o surgimento de diáconos, na maioria, algumas tarefas
pastorais se confiam antes a leigos (delegados da Palavra, catequistas,
etc...).
Vida consagrada
A
vida consagrada oferece uma grande força para a evangelização da AL. Tem vivido
um bom período tentando definir sua identidade e seu carisma,
reinterpretando-o no contexto das novas necessidades e de sua inserção no
conjunto da pastoral diocesana.
Os
religiosos em geral conseguiram a própria renovação; cresceram as relações
pessoais em nível de comunidade e também entre as diferentes famílias
religiosas. Aumentou sua presença. nas regiões pobres e difíceis. São
religiosos que têm a seu encargo a maioria das missões indígenas.
Em
certas ocasiões houve conflitos no seio dos religiosos, causados pela maneira
de se integrarem na pastoral de conjunto ou por causa da inserção insuficiente;
também por falta de apoio comunitário e de preparação para o trabalho social
ou pela carência de maturidade para viver experiências novas.
As comunidades
contemplativas, baluarte espiritual da vida diocesana, passaram também por um
período de crise. Agora, em vários países, elas assistem a um grande
reflorescimento de vocações. Os institutos seculares também têm florescido em
nosso Continente.
Leigos O
seu sentido de pertença. à Igreja aumentou em toda parte, não só pelo
compromisso eclesial mais estável, mas também por sua participação mais ativa
nas assembléias litúrgicas e nas tarefas apostólicas. Em muitos países as CEBs
são prova desta incorporação e deste desejo de participação. O compromisso do
laicato com o temporal, tão necessário para a mudança de estruturas, tem sido
insuficiente. Em geral, poder-se-ia dizer que há uma valorização maior da
necessária participação do laicato na vida da Igreja.
A mulher merece uma menção especial:
tanto a religiosa quanto a dos institutos seculares e as simples leigas
participam atualmente, cada vez mais, das tarefas pastorais, embora, em muitos
lugares, ainda exista o medo desta participação.
CAPÍTULO IV
TENDENCIAS ATUAIS E
EVANGELIZAÇAO NO FUTURO
4.1. Na sociedade
Olhando
para o mundo atual com olhos de pastores, comprovamos algumas tendências que
não podemos deixar de levar em conta:
A
AL continuará mantendo um ritmo acelerado de aumento de população e de
concentração nas cidades grandes. Tornar-se-ão mais agudos os problemas que
afetam os serviços públicos. A população
vai ser majoritariamente jovem e terá dificuldade crescente em encontrar local
de trabalho. Por outro lado, a sociedade do futuro apresenta-se mais aberta e
pluralista; por outro, é submetida ao influxo cada vez maior dos ditames dos
meios de comunicação, que irão programando cada vez mais a vida do homem e da
sociedade.
Parece
que a programação da vida social corresponderá cada dia mais aos modelos
buscados pela tecnocracia, sem correspondência com os anseios de uma ordem
internacional mais justa, em face da tendência à cristalização das desigualdades
do momento.
No
quadro internacional, vai-se tomando consciência da limitação dos recursos do
nosso planeta e da necessidade de sua racionalização. Alguns querem reduzir a
população, sobretudo nos países pobres; outros propõem a "prosperidade
racionada", isto é, uma sobriedade compartilhada em vez da riqueza
crescente não compartilhada.
Em
face destas tendências, sentimo-nos solidários com o povo da AL, do qual
fazemos parte, e com sua história. Queremos perscrutar suas aspirações, tanto
as que ele exprime claramente quanto as que apenas balbucia e que nos parece
serem estas:
-
Uma qualidade de vida mais humana, sobretudo por sua irrenunciável dimensão
religiosa; sua busca de Deus, do Reino que Jesus Cristo nos trouxe, que, às
vezes, é intuído confusamente pelos mais pobres, com um vigor privilegiado.
-
Uma distribuição mais justa dos bens e das oportunidades; e trabalho justamente
remunerado, que permita o sustento digno de todos os membros da família e que
reduza a brecha existente entre o luxo desmedido e a indigência.
-
Uma convivência social fraterna. na qual se fomentem e tutelem os direitos
humanos; em que as metas a serem alcançadas se decidam pelo cone senso e não
pela força ou violência; em, que ninguém se sinta ameaçado pela repressão,
pelo terrorismo, pelos seqüestras e pela tortura.
-
Mudanças estruturais que assegurem uma situação de justiça para as grandes
maiorias.
-
Que se levem em conta todos os cidadãos e que eles sejam considerados pessoas
responsáveis e sujeitos da história, com capacidade de participar livremente
das opções políticas, sindicais etc. e da eleição de seus governantes.
-
Que todos participem da produção e compartilhem os progressos da ciência e da
técnica moderna, tendo também acesso à cultura e ao lazer digno.
Tudo
isso levará a uma maior integração de nossas populações, em consonância com as
tendências universais para uma sociedade, como sói dizer-se, mais global e
planetária, potenciada por meios de comunicação de amplíssimo alcance. Mas,
enquanto houver grandes setores da população que não chegue a satisfazer a
estas aspirações legítimas, e outros a conseguem com excesso, os bens reais do
mundo moderno equivalem a fontes de frustrações crescentes e de trágicas
tensões. O contraste notório e provocante entre os que nada possuem e os que
ostentam sua opulência é um obstáculo insuperável a que se estabeleça o reinado
da paz.
Se
não mudarem as tendências atuais, continuará a deteriorar-se a relação do homem
com a natureza pela exploração irracional de seus recursos e a contaminação do
ambiente, com o aumento de graves prejuízos para o homem e para o equilíbrio
ecológico.
O
homem de hoje aspira, promovendo o bem universal e realizando-se
completamente, a ter a liberdade de viver e de exprimir sua fé.
Numa
palavra, nosso povo deseja uma libertação integral que não se esgote no quadro
de sua existência temporal, mas que se projete na plena comunhão com Deus e
com os irmãos na eternidade, comunhão que já se começa a realizar, embora
imperfeitamente, na história.
4.2. Na Igreja
A
Igreja, através de sua, atuação e de sua doutrina social, faz suas estas
aspirações do homem latino-americano. Basta recordar, aqui, o vigoroso apelo
da Conferência de Medellin que exprimiu a vontade de fazer que o anúncio do
Evangelho consiga desencadear entre nós toda a sua força de fermento
transformador.
Esta
Conferência, reiterando aquele apelo, quer pôr a serviço dos nossos povos os
recursos de uma ação pastoral adaptada às circunstâncias presentes.
A Igreja, cada vez mais, faz questão de
ser independente dos poderes deste mundo, para assim dispor de um amplo
espaço de liberdade que lhe permita realizar seu labor apostólico, sem
interferências estranhas: o exercício do culto, a educação da fé e o
desenvolvimento das variadíssimas atividades que levam os fiéis a traduzir em
sua vida privada, familiar ou social, os imperativos morais que emanam esta
mesma fé. Assim, livre de compromissos, apenas com seu testemunho de ensino, a
Igreja merecerá mais credibilidade e será melhor ouvida. Desta maneira, será
evangelizado o próprio exercício do poder em ordem ao bem comum.
A Igreja acompanha com profunda simpatia
a procura realizada pelos homens; sintoniza com seus anseios e esperanças, e
não aspira a outra coisa senão servi-tos, alentando seus esforços e iluminando
seus passos, fazendo-os conhecer o valor transcendente de sua, vida e de sua
ação.
A
Igreja assume a defesa dos direitos humanos e se solidariza com os que lutam
por eles. A esse propósito nos apraz recordar, aqui, por seu especial valor,
dentro da ampla doutrina sobre a matéria, o discurso de S.S. João Paulo II ao
Corpo Diplomático, de 20 de outubro de 1978: "A Santa Sé atua nesta esfera
sabendo que a liberdade, o respeito à vida e à dignidade das pessoas - que
jamais são instrumento - a igualdade de tratamento, a consciência profissional
no trabalho e a procura solidária do bem comum, o espírito de reconciliação, a
abertura aos valores espirituais, são exigências fundamentais da vida
harmoniosa em sociedade, do progresso dos cidadãos e de sua civilização".
A
Igreja tem intensificado seu compromisso com os setores desfavorecidos
financeiramente, advogando sua promoção integral. Esta atitude dá alguns a
impressão de que ela deixa de lado as classes abastadas.
Acentua
melhor o valor evangélico da pobreza que nos faz disponíveis para a construção
de um mundo mais justo e mais fraterno. Sente vivamente a situação penosa dos
que não possuem o necessário para viver uma vida digna. Convida a todos a
transformar suas mentes e corações segundo a escala de valores do Evangelho.
A Igreja confia mais na força da verdade
e na educação para a liberdade e a responsabilidade do que em proibições, já
que sua lei é o amor.
4.3. Evangelização no futuro
A
evangelização dará prioridade à proclamação da Boa Nova, à catequese bíblica e
à celebração litúrgica, como resposta à crescente ânsia do povo pela Palavra
de Deus.
Procurará
com o máximo empenho salvar a unidade, porque Deus o quer e também para aproveitar
todas as energias disponíveis, concentrando-as num plano orgânico de pastoral
de conjunto, evitando-se assim a dispersão infecunda de esforços e serviços.
Esta pastoral se apresenta em diversos níveis: diocesano, nacional,
continental.
Dará
importância à pastoral urbana com a criação de novas estruturas eclesiais,
que, sem desconhecer a validade da paróquia renovada, permitam que se
enfrente a problemática apresentada pelas enormes concentrações humanas de
hoje. Também multiplicará esforços para atender melhor à pastoral do campo.
Empenhar-se-á
em recrutar novos agentes de pastoral, tanto clérigos quanto religiosos e
leigos. Adaptará a formação destes agentes às exigências das comunidades e dos
ambientes:
Enfatizará
a importância dos leigos, tanto quando desempenham ministérios na Igreja e para
a Igreja, como quando, cumprindo a missão que lhes é própria, são enviados,
como vanguarda sua, ao meio do mundo, para refazerem, de acordo com o plano de
Deus, as estruturas sociais, econômicas e políticas.
Para
formar os leigos e dar-lhes sólido apoio em sua vida e ação, procurará
incorpora-los às organizações e movimentos apostólicos e potenciará todos os
seus instrumentos de formação, de modo particular os que são próprios do campo
da cultura. Somente assim é que se obterá um laicato amadurecido e
evangelizador.
Reconhecerá
a validade da experiência das CEBs e estimulará seu desenvolvimento em comunhão
com os pastores.
A Igreja terá de empenhar-se decididamente
em educar a fé cristã do povo
simples, naturalmente religioso, e o preparará, de forma adequada, para receber
os sacramentos.
A Igreja dará maior importância aos
meios de comunicação social e empregá-los-á para a evangelização.
Tanto
o CELAM com todos os seus serviços quanto as Conferências Gerais do Episcopado
latino-americano são uma. expressão da integração pastoral da Igreja da AL.
Esta integração se deverá ir acentuando para benefício das Igrejas particulares.
A
voz coletiva dos episcopados tem despertado interesse crescente na opinião
pública, embora encontrando freqüentes reservas em determinados setores
dominantes que têm pouca, sensibilidade social, e isto é sinal de que a Igreja
está ocupando seu lugar de Mãe e Mestra de todos.
De
qualquer forma, a Igreja deve estar disposta a assumir com coragem e alegria as
conseqüências de sua missão, que o mundo nunca aceitará sem resistência.
SEGUNDA PARTE
DESÍGNIO
DE DEUS SOBRE
A
REALIDADE DA AMÉRICA LATINA
A
Igreja na AL sente-se íntima e realmente solidária com todo o povo do
Continente 5'. Esteve, durante quase cinco séculos, a seu lado e em seu
coração. Não pode não estar, agora, nesta encruzilhada da história.
Depois
de termos olhado, como pastores, com os olhos da fé e do coração, a realidade
do nosso povo, perguntamo-nos neste momento: Qual será o desígnio de salvação
que Deus dispôs para a AL? Quais os caminhos de libertação que ele nos apresenta?
Sua
Santidade João Paulo II deu-nos a resposta: a Verdade a respeito de Cristo, da
Igreja e do Homem.
Meditamos
sobre ela, tendo como pano de fundo as aspirações e sofrimentos de nossos
irmãos latino-americanos.
Evangelizados
pelo Senhor em seu Espírito, somos, enviados
para levar a Boa Nova a todos os irmãos especialmente
aos mais pobres e esquecidos. Esta empresa evangelizadora nos conduz à plena
conversão e comunhão com Cristo, na Igreja; ela impregnará nossa cultura;
levar-nos-á à autêntica promoçâo de nossas comunidades e a uma presença
crítica e orientadora diante das ideologias e políticas que condicionem a sorte
de nossas nações.
CONTEÚDO
Capítulo
I. Conteúdo da evangelização
Capítulo
II. O que é evangelizar?
CAPÍTULO I
CONTEÚDO
DA EVANGELIZAÇÃO
Queremos
agora iluminar a nossa angústia pastoral com a luz da verdade que nos torna
livres. Não é uma verdade que possuamos como de próprio. Ela vem de Deus.
Diante do seca esplendor, fazemos a experiência da nossa pobreza. Propomos agora
anunciar as verdades centrais da evangelização: Cristo, nossa esperança, está no meio de nós, como enviado do Pai,
animando com seu Espírito a Igreja e oferecendo sua palavra e sua vida ao homem
de hoje, para levá-1o à sua libertação integral.
A Igreja, mistério de comunhão, povo de Deus a serviço dos homens, continua sendo
evangelizada através dos tempos e levando a todos a Boa Nova. Maria é, para a
Igreja, motivo de alegria e fonte de inspiração por ser a estrela da
Evangelização e a Mãe dos povos da AL.
O Homem, por
sua dignidade de imagem de Deus, merece nosso compromisso em favor de sua libertação
e realização total em Cristo Jesus. Só em Cristo se revela a verdadeira
grandeza e só nele é que se conhece, em plenitude, a realidade mais profunda do
homem. Por isso, nós, pastores, falamos ao homem e lhe anunciamos a alegria de
se ver assumido e enaltecido pelo próprio Filho de Deus, o qual quis participar
com este próprio homem das alegrias, dos trabalhos e sofrimentos desta vida e
da herança de uma vida eterna.
1. A VERDADE A RESPEITO DE
CRISTO, O SALVADOR QUE ANUNCIAMOS
1.l. Introdução
A
pergunta fundamental do Senhor: "E vós quem dizeis que sou?" (Ml 16,
15), dirige-se permanentemente ao homem latino-americano. Hoje, como ontem,
poderiam registrar-se diversas respostas. Nós, que somos membros da Igreja, só
temos uma, a de Pedro: "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo" (Ml 16,
16).
Profundamente
religioso ainda antes de ser evangelizado, o povo latino-america,no, na sua
grande maioria, crê em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Entre
outras, são expressão desta fé os múltiplos atributos de poder, salvação ou
consolo que o povo lhe atribui; os títulos de juiz e de rei que lhe dá; as
invocações que o vinculam a lugares e regiões; a devoção ao Cristo padecente,
ao seu nascimento no presépio e à sua morte na cruz; a devoção ao Senhor
ressuscitado; e, mais ainda, a piedade para com o Sagrado Coração e sua presença
real na eucaristia, manifestada nas primeiras comunhões, na adoração noturna,
na procissão do Corpo de Deus e nos Congressos Eucarísticos. Estamos
conscientes de nossa insuficiente proclamação do Evangelho e das carências do
nosso povo em sua vida de fé. No entanto, herdeiros de quase 500 anos de
história evangelizadora e dos esforços realizados principalmente depois de
Medellin, vemos com prazer que o abnegado trabalho do clero e das congregações
religiosas, o desenvolvimento das instituições católicas e dos movimentos apostólicos
dos leigos, dos grupos de jovens e das comunidades eclesiais de base têm
produzido, em numerosos setores do povo de Deus, uma aproximação maior ao
Evangelho e a busca da face sempre nova de Cristo, que cumula seus legítimos
anseios de libertação integral.
Isto
não se realiza sem problemas. Colocados entre os esforços para apresentar
Cristo como força motora da nossa história e inspiradora da verdadeira
mudança social e as tentativas de limitá-1o ao campo da consciência individual,
cremos necessário esclarecer o seguinte:
É
dever nosso anunciar claramente, sem deixar dúvidas ou equívocos, o mistério da
Encarnação: tanto a divindade de Jesus Cristo, tal como professa a fé da
Igreja, quanto a realidade e a força de sua dimensão humana, e histórica.
Devemos
apresentar Jesus de Nazaré compartilhando a vida, as esperanças e as angústias
do seu povo e mostrar que ele é o Cristo, crido, proclamado e celebrado pela
Igreja.
A
Jesus de Nazaré, consciente de sua missão: anunciador e realizador do Reino e
fundador de sua Igreja, a qual tem Pedro como alicerce visível Jesus Cristo
vivo, presente e atuante na, Igreja e na história.
Não
podemos desfigurar, parcializar ou ideologizar a pessoa de Jesus Cristo, nem fazendo dele um político, um líder,
um revolucionário ou um simples profeta, nem reduzindo ao campo do meramente
privado Aquele que é o Senhor da História.
Fazendo
eco ao discurso do Santo Padre ao inaugurar nossa Conferência, afirmamos:
"Qualquer silêncio, esquecimento, mutilação ou inadequada acentuação da
integridade do mistério de Cristo que se aparte da fé da Igreja, não pode ser
conteúdo válido da evangelização". Uma coisa são as "releituras do
Evangelho, resultado de especulações teóricas" e "as hipóteses,
talvez brilhantes porém frágeis e inconsistentes que delas derivam" e
outra a "afirmação da fé da Igreja: Jesus Cristo Verbo e Filho de Deus, se
faz homem para aproximar-se do homem e presenteá-1o, pela força de seu
mistério, com a salvação, grande dom de Deus" (João Paulo II, Discurso Inaugural I, 4. I, 5 AAS LXXI,
p. 190, 191).
Vamos
falar de Jesus Cristo. Vamos proclamar, uma vez mais a verdade da fé a respeito
de Cristo. Pedimos a todos os fiéis que acolham esta doutrina libertadora. Seu
próprio destino temporal e eterno está ligado ao conhecimento na fé e ao seguimento
no amor daquele que, pela efusão de seu Espírito, nos torna capazes de imitá-1o
a Ele a quem chamamos e que é de fato o Senhor e o Salvador.
Solidários
com os sofrimentos e as aspirações do nosso povo, sentimos a urgência de lhe
dar o que é nosso especificamente: o mistério de Jesus de Nazaré, filho de
Deus. Sentimos que esta é a "Força de Deus" (Rm 1, 16), capaz de
transformar nossa realidade pessoa? e social e de encaminhá-1a para a liberdade
e a fraternidade, para a manifestação plena do Reino de Deus.
1.2. O homem "criado
maravilhosamente"
A
Sagrada Escritura nos ensina que não somos nós, os homens, os que amamos
primeiro. Foi Deus que primeiro nos amou: Ele planejou e criou o mundo em Jesus
Cristo, sua própria imagem m criada. Ao fazer o mundo, Deus criou os homens
para que participássemos desta comunidade divina de amor: o Pai com seu Filho
Unigênito no Espírito Santo.
Este
desígnio divino, que, para o bem dos homens e para a glória da imensidade de
seu amor, o Pai concebeu no Filho antes da criação do mundo (Et 1,9), ele no-1o
revelou, de acordo com o projeto misterioso que tivera de levar até à
plenitude a história dos homens, realizando por meio de Jesus Cristo a unidade
do universo, tanto terrestre quanto celeste 63
O
homem, eternamente idealizado e eternamente eleito 6 em Jesus Cristo, devia
realizar-se como imagem criada de Deus, refletindo em si mesmo e na convivência
com seus irmãos, o mistério divino da comunhão, através de uma atuação que chegasse
a transformar o mundo. Assim, devia ter na terra o lar de sua felicidade e não
um campo de batalha, em que reinasse a violência, o ódio, a exploração e a
escravidão.
1.3. Do Deus verdadeiro aos
ídolos falsos
O
homem, porém, já desde o início rejeitou o amor de seu Deus. Não teve interesse
pela comunhão com ele. Quis construir, prescindindo de Deus, um reino neste
mundo. Em vez de adorar ao Deus verdadeiro adorou os ídolos, as obras de suas
mãos, as realidades deste mundo; adorou-se a si próprio. Por isso o homem se
dilacerou interiormente. Penetraram no mundo o mal, a morte e a violência, o
ódio e o medo. Estava destruída a convivência fraterna.
Rompido
assim pelo pecado o eixo primordial que submete o homem ao domínio amoroso do
Pai, irromperam todas as escravidões. A realidade latino-americana faz-nos experimentar
amargamente, até aos extremos limites, esta força do pecado que é a contradição
flagrante do plano de Deus.
1.4. A promessa
No
entanto Deus pai não abandonou o homem ao poder do seu pecado. Uma e outra vez
reinicia com ele o diálogo. Convida homens concretos para uma aliança, a fim de
construírem o mundo partindo da fé e da comunhão com ele, aceitando ser os
seus colaboradores no seu desígnio de salvação. A história de Abraão e a eleição do povo de Israel, a história de
Moisés - libertação do povo da escravidão do Egito e a aliança do Sinai - a
história de Davi e de seu reinado, o cativeiro de Babilônia e o retorno à Terra
Prometida mostram-nos a mão poderosa de Deus Pai, que anuncia, promete e começa
a realizar a libertação do pecado e de suas conseqüências em favor de todos os
homens.
1.5. "O Verbo se fez carne
e habitou entre nós" (Jo 1, 14 ) : A Encarnação
E
chegou "a plenitude dos tempos" (G1 4, 4). Deus Pai enviou ao mundo
seu Filho Jesus Cristo, Senhor nosso, Deus verdadeiro "nascido do Pai de
todos os séculos" e homem verdadeiro nascido da Virgem Maria por obra do
Espírito Santo. Em Cristo e por Cristo une-se aos homens Deus Pai. O Filho de
Deus assume o humano e o criado e restabelece a comunhão entre seu Pai e os
homens. O homem conquista uma dignidade altíssima e Deus irrompe na história do
homem, isto é, no peregrinar humano rumo à liberdade e à fraternidade, que
aparecem agora como caminho que leva à plenitude do encontro com ele.
A Igreja da AL quer anunciar, portanto, a verdadeira face de Cristo, porque
nele resplandecem a glória e a bondade do Pai que tudo prevê e a força do
Espírito Santo que anuncia a libertação verdadeira e integral de todos e de
calda um dos homens do nosso povo.
1.6. Ditos e fatos: A vida de
Jesus
Jesus
de Nazaré nasceu e viveu pobre no meio do seu
povo de Israel compadeceu-se das multidões e fez o bem a todos. Este povo,
acabrunhado pelo pecado a pela dor, esperava a libertação que ele lhes
prometeu. No meio dele Jesus anuncia.: "Completou-se o tempo; chegou o
Reino de Convertei-vos e crede no Evangelho" (Mc 1, 15). Ungido pelo
Espírito Santo para anunciar o evangelho aos povos, para proclamar a liberdade
dos cativos, a recuperação da vista dos cegos e a libertação dos oprimidos.
Jesus nos entrega e confia, com as Bem-aventuranças e o Sermão da Montanha, a
grande proclamação da Nova Lei do Reino de Deus.
As
palavras Jesus juntou os fatos: ações prodigiosa5 e atitudes surpreendentes
que mostram que o Reino anunciado já se tornou presente, que ele é o Sinal
eficiente da nova presença do Pai na história, o portador do poder
transformante de Deus, que sua presença desmascara o maligno, que o amor de
Deus redime e mostra o alvorecer de um homem novo num mundo novo.
Entretanto
as forças do mal rejeitam este serviço de amor: é a incredulidade do povo e de
seus parentes, são as autoridades políticas e religiosas de seu tempo e a
incompreensão de seus próprios discípulos. Acentuam-se então em Jesus os traços
dolorosos do "Servo de Javé", de que se fala no livro do profeta
Isaías (Is 53). Com amor e obediência, total ao Pai, expressão humana de seu
eterno caráter de Filho, empreende seu caminho de doação abnegada, repelindo a
tentação do poder político e todo recurso à violência. Agrupa em torno de si
uns poucos homens tirados de diversas
categorias
sociais e políticas de seu tempo. Embora confusos e às vezes infiéis, move-os
o amor e o poder que dele irradiam: são constituídos fundamento de sua Igreja,
atraídos pelo Pai e iniciam o caminho do seguimento de Jesus.
Este caminho não é auto-afirmação arrogante do saber ou do poder do homem nem o
ódio ou a violência, mas a doação desinteressada e sacrificada do amor. Amor
que privilegia os pequenos, os fracos, os pobres. Amor que congrega e integra
a todos em uma fraternidade que é capaz de abrir a rota de uma nova história.
Assim
Jesus, de modo original, próprio, incomparável, exige um seguimento radical
que abrange o homem todo e todos os homens, que envolve todo o mundo e o cosmo
todo. Esta radicalidade faz que a conversão seja um processo nunca encerrado,
tanto em nível pessoal quanto em nível social. Porque, se o Reino de Deus
passa por realizações históricas, não se esgota nem se identifica com elas.
1.7. O mistério pascal: morte e
vida
Cumprindo
o mandato recebido de seu Pai, Jesus entregou-se livremente à morte na cruz,
meta do caminho de sua existência. O portador da liberdade e do gozo do Reino
de Deus quis ser a vítima decisiva da injustiça e do mal deste mundo. A dor da criação é assumida pelo
Crucificado que oferece sua vida; em sacrifício por todos: Sumo Sacerdote que
pode compartilhar as nossas fraquezas, Vítima Pascal que nos redime de nossos
pecados, Filho obediente que encarna, perante a justiça salvadora de seu Pai, o
clamor de libertação e de redenção de todos os homens.
Por
isso o Pai ressuscita a seu Filho de entre os mortos: Eleva-o gloriosamente à
sua destra. Cumula-o com a força vivificante do seu Espírito. Estabelece-o
como Cabeça de seu Corpo que é a Igreja. Constitui-o Senhor do mundo e da
história. Sua ressurreição é sinal e penhor da ressurreição a que todos estamos
chamados e da transformação final do universo. Por ele e nele quis o Pai
recriar o que havia antes criado.
Jesus
Cristo, exaltado, não se apartou de nós. Vive no meio de sua Igreja,
especialmente na Sagrada Eucaristia e na proclamação de sua palavra. Está
presente no meio dos que se reúnem em seu nome e na pessoa dos pastores que
envia; e quis identificar-se, num gesto de ternura particular, com os mais
fracos e os mais pobres.
No
centro da história humana fica assim implantado o Reino de Deus,
resplandecente na face de Jesus ressuscitado. A justiça de Deus triunfou da injustiça dos homens. Com Adão
principiou a história velha. Com Jesus Cristo, o novo Adão, principia a
história nova. Esta recebe o impulso indefectível que levará todos os homens,
transformados em filhos de Deus pela eficácia do Espírito, a um domínio do
mundo cada dia mais perfeito, a uma comunhão entre os irmãos cada dia melhor
realizada, à plenitude da comunhão e participação que constituem a própria vida
de Deus. Assim proclamamos a Boa Nova da pessoa de Jesus Cristo aos homens da
América Latina, chamados a serem homens novos pela novidade do batismo e da
vida segundo o Evangelho '2, para sustentarem seu esforço e revigorarem sua
esperança.
1.8. Jesus envia seu Espírito
de filiação
Cristo
ressuscitado e exaltado à direita do Pai infunde seu Espírito Santo sobre os
apóstolos no dia de Pentecostes e depois sobre todos os que foram chamados
'3.
A aliança nova que ele estabeleceu com
seu Pai interioriza-se pelo Espírito Santo, que nos dá a lei da graça e da
liberdade que ele próprio escreveu em nossos corações. Por isso a renovação dos
homens e conseqüentemente a da sociedade vai depender, em primeiro lugar, da
ação do Espírito de Deus. As leis e estruturas deverão ser animadas pelo
Espírito que vivifica os homens e faz com que o Evangelho se encarne na
história.
A América Latina, que desde as origens
da evangelização selou esta aliança com o Senhor, tem de renová-1a agora e
vivê-1a pela graça do Espírito em todas as suas exigências de amor, de entrega
e de justiça.
O
Espírito que encheu o mundo assumiu também o que havia de bom nas culturas
pré-colombianas. Ele próprio as ajudou a receber o Evangelho. Ele continua
despertando, hoje, anseio de salvação libertadora no coração de nossos povos.
Urge, por isso, descobrir sua presença autêntica na história deste Continente.
1.9. Espírito de verdade e de
vida, de amor e liberdade
O
Espírito Santo é chamado por Jesus de "Espírito de verdade" e é
encarregado de nos conduzir à verdade total. Dentro de nós dá testemunho de que
somos filhos de Deus e de que Jesus ressuscitou e é "o mesmo ontem, hoje
e através dos séculos" (Hb 13,8) . Por isso é que ele é o principal
evangelizador, que anima a todos os evangelizadores e os assiste para que
transmitam a verdade total, sem erros nem limitações.
O
Espírito Santo é "doador de vida". É água viva que jorra da fonte,
Cristo, que ressuscita aos que morreram pelo pecado e que nos faz odiar o pecado,
sobretudo em um momento de tanta corrupção e desorientação como o atual.
Ele
é Espírito de amor e liberdade. Ao enviar-nos o Espírito de seu Filho, o Pai
"difunde seu amor em nossos corações" (Rom 5,5), convertendo-nos do
pecado e concedendo-nos a liberdade de filhos. Esta liberdade vincula-se
necessariamente à filiação e à fraternidade. Quem é livre segundo o Evangelho
só se compromete com ações que sejam dignas de Deus seu Pai e dos homens seus
irmãos. 1.10. O Espírito reúne na
unidade e enriquece na diversidade
Jesus
Cristo, Salvador dos homens, difunde seu Espírito sobre todos, sem acepção de
pessoas. Quem, ao evangelizar, exclui de seu amor ainda que seja uma única,
pessoa, não possui o Espírito de Cristo. Por isso a ação apostólica, tem de compreender
a todos os homens, destinados a se tornarem filhos de Deus.
"O
Espírito Santo unifica na comunhão e no ministério e provê sua Igreja com
diversos dons hierárquicos e carismáticos através dos tempos, vivificando, como
se fosse sua alma, as instituições eclesiásticas" _(AG 4). Portanto, longe
de serem um obstáculo para a evangelização, a hierarquia e as instituições são
instrumentos do Espírito e da graça.
Os
carismas nunca estiveram ausentes da Igreja. Paulo VI expressou sua
complacência para com a renovação espiritual que aparece nos meios e lugares
mais diversos e que leva à oração de alegria, à união íntima com Deus, à
fidelidade ao Senhor e a uma profunda comunhão de almas. Do mesmo modo
procederam várias Conferências Episcopais. Contudo esta renovação exige dos
pastores bom senso, orientação e discernimento, para que se evitem exageros e
desvios perigosos .
A ação do Espírito Santo chega também
àqueles que não conhecem a Cristo, pois "o Senhor quer que todos os homens
se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade" ( 1Tm 2,4 ) .
1.11. Consumação da desígnio de
Deus
A
vida trinitária, de que Jesus Cristo nos faz participantes, somente na glória
é que chegará à plenitude. A Igreja,
peregrina enquanto instituição humana e terrena, reconhece com humildade seus
erros e pecados que obscurecem a face de Deus em seus filhos. Mas está decidida
a continuar sua atuação evangelizadora a fim de permanecer fiel à sua missão
com a confiança posta na fidelidade de seu fundador e no poder do Espírito.
Jesus Cristo procurou sempre a glória do Pai e consumou sua entrega a ele na
cruz. Jesus é "o Primogênito entre muitos irmãos" (Rm 8,29). Ir ao
Pai: nisto consistiu o caminhar terreno de Jesus Cristo. A partir de então, ir
ao Pai é o caminhar terreno da Igreja, povo de irmãos. Somente no encontro com
o Pai acharemos a plenitude que seria utópico procurar no tempo. Enquanto a
Igreja espera a união consumada com seu esposo divino, "o Espírito e a
Esposa dizem: vem Senhor Jesus" (Ap 22,17-20).
1.12. Comunhão e participação
Depois
da proclamação de Cristo que nos revela o Pai e nos dá seu Espírito, chegamos a
descobrir as raízes últimas de nossa comunhão e participação.
Revela-nos
Cristo que a vida divina, é comunhão trinitária. Pai, Filho e Espírito vivem,
em perfeita intercomunhão de amor, o mistério supremo da unidade. Daqui procede
todo amor e toda comunhão, para a grandeza e dignidade da existência humana.
Por
Cristo, único Mediador, participa a humanidade da vida trinitária. Cristo hoje
sobretudo por sua atividade pascal, nos leva a participar do mistério de Deus.
Por sua solidariedade conosco, nos torna capazes de vivificar pelo amor nossa
atividade e transformar nosso trabalho e nossa história em gesto litúrgico,
isto é, de sermos protagonistas com ele da construção da convivência e das
dinâmicas humanas que refletem o mistério de Deus e constituem sua glória que
vive.
Por
Cristo, com ele e nele, passamos a participar da comunhão de Deus. Não há outro
caminho que leve até ao Pai. Vivendo em Cristo, chegamos a ser seu corpo
místico, seu povo, povo de irmãos, unidos pelo amor que derrama em nossos
corações o Espírito. Esta é a comunhão à qual chama o Pai por Cristo e por seu
Espírito. Para ela se orienta toda a história da salvação e nela se consuma o
desígnio amoroso do Pai que nos criou.
A comunhão que se há de construir entre
os homens abrange-lhes todo o ser desde as raízes do amor, e há de se
manifestar em toda a sua vida, até na sua dimensão econômica, social e política..
Produzida pelo Pai, o Filho e o Espírito é a comunicação de sua própria
comunhão trinitária. Esta é a comunhão que as multidões de nosso Continente
procuram com ânsia, quando confiam na providência do Pai ou confessam a Cristo
como Deus Salvador, quando buscam a graça do Espírito nos sacramentos da
Igreja e até quando traçam sobre si o sinal da cruz "Em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo".
"Nesta
comunhão trinitária do povo e da família de Deus veneramos ao mesmo tempo e
invocamos a intercessão da Virgem Maria e a de todos os Santos. Qualquer
testemunho autêntico de amor que oferecemos aos bem-aventurados se dirige por
sua própria natureza, a Cristo e, por Cristo, a Deus" ( LG 50 ) .
A evangelização é um chamado à
participação na comunhão trinitária. Qualquer outra comunhão, embora não
constitua o destino último do homem, é, animada pela graça, primícias dela.
A evangelização leva-nos a participar
dos gemidos do Espírito, que quer libertar a criação inteira. O Espírito que
nos move para esta libertação abre-nos o caminho para a unidade de todos os
homens entre si e de todos os homens com Deus, até que "em todos Deus seja
tudo" (lCor 15,28).
2. A VERDADE A RESPEITO DA
IGREJA: O POVO DE DEUS SINAL E SERVIÇO DE COMUNHÃO
Cristo
que sobe até o Pai e se oculta aos olhos da humanidade continua evangelizando
visivelmente através da Igreja, sacramento de comunhão dos homens no único Povo
de Deus, peregrino na história. A este
povo Cristo envia seu Espírito, "que impele cada um a anunciar o
Evangelho e que no fundo da consciência faz aceitar e compreender a palavra de
salvação" (EN 75).
2.1. A Boa Nova de Jesus e a
Igreja
Duas presenças inseparáveis
A
presença viva de Cristo na história, na cultura e em toda a realidade da AL é manifesta. Tal presença, no
sentir de nosso povo, está unida inseparavelmente à presença da Igreja, porque
através dela é que o Evangelho de Cristo ressoou em nossas terras. Esta
experiência contém, no seu íntimo, uma profunda intuição de fé acerca da natureza
profunda, da Igreja.
A Igreja e Jesus Evangelizador
A
Igreja é inseparável de Cristo, porque ele mesmo a fundou por um ato expresso
de sua vontade, sobre os doze, cuja cabeça. é Pedro, constituindo-a
sacramento universal e necessário de salvação. A Igreja não é um "resultado"
posterior nem uma simples conseqüência "desencadeada" pela ação
evangelizadora de Jesus. Com certeza nasce desta ação, mas de modo direto, pois
é v próprio Senhor que convoca seus discípulos e lhes comunica o poder de seu
Espírito, dotando a comunidade nascente de todos os meios e elementos
essenciais que o povo católico professa como de instituição divina.
Além
disto, Jesus aponta sua Igreja como caminho normativo. Não fica, pois, à
discrição do homem o aceitá-1a ou não, sem conseqüências: "quem vos ouve
a mim ouve; quem vos rejeita é a mim que rejeita" (Lc 10,16 ) . Foi o que
o Senhor disse aos seus apóstolos. Por isto mesmo aceitar a Cristo exige
aceitar a sua Igreja (PO 40c). Esta é parte do Evangelho, do legado de Jesus e
objeto de nossa fé, de nosso amor, de nossa lealdade. E isto que manifestamos
ao rezar: "Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica".
Mas
a Igreja cá também depositária e transmissora do Evangelho. Prolonga na terra,
fiel à lei da encarnação visível, a presença e a ação evangelizadora de
Cristo. Com ele, vive a Igreja para evangelizar. Esta ë sua felicidade e
vocação peculiar (EN 14) : proclamar aos homens a pessoa e a mensagem de Jesus.
Esta
Igreja é uma só: a que foi edificada sobre Pedro e que o próprio Senhor denomina
"minha Igreja" (Ml 16,18). Só na Igreja católica é que ocorre a
plenitude dos meios de salvação (UR 36), legados por Jesus aos homens, mediante
os apóstolos. Temos por isso, o dever de proclamar a excelência de nossa
vocação à Igreja Católica (LG 14) .
Estai, vocação é ao mesmo tempo imensa graça e responsabilidade.
A Igreja e o Reino que anuncia
Jesus
A
mensagem de Jesus tem como centro a proclamação do Reino, que nele mesmo se
torna presente e chega, até nós. Este Reino, sem ser uma realidade separável
da Igreja (LG 8a), transcende seus limites visíveis. Porque se realiza de certo
modo onde quer que Deus esteja reinando mediante sua graça, seu amor, vencendo
o pecado e ajudando os homens a crescer até conseguir a grande comunhão que
lhes é oferecida em Cristo. Esta ação Deus acontece também no coração dos
homens que vivem fora do âmbito
perceptível da Igreja. E isto não significa de modo nenhum que a pertença à
Igreja seja diferente.
Por
isso é que a Igreja recebeu por missão anunciar e instaurar o Reino em todos
os povos. Ela é o sinal do Reino. Nela se manifesta de modo visível o que Deus
está realizando silenciosamente, no mundo inteiro. É o lugar onde se concentra
ao máximo a ação do Pai, que, na força do Espírito de amor, busca solícito os
homens para partilhar com eles - em gesto de ternura inexprimível a sua
própria vida trinitária. A Igreja é
também o instrumento que introduz o Reino entre os homens, para conduzi-tos à
sua meta definitiva. "Ela constitui já na terra o germe e o princípio
desse Reino" ( LG 5 ) . Este germe deve crescer na história sob o influxo
do Espírito até o dia em que "em todos Deus seja tudo" (lCor 15,28).
Até então a Igreja permanecerá perfectível sob muitos aspectos, necessitada de
permanente auto-evangelização, de maior conversão e purificação.
Não
obstante o Reino já se encontra nela. A presença
da Igreja em nosso Continente é uma Boa Nova, porque ela, se bem que apenas em
germe, cumula plenamente as esperanças e os anseios mais profundos dos nossos
povos.
Nisto
é que está o "mistério" da Igreja: uma realidade humana feita de
homens pobres e limitados, mas penetrada pela presença insondável e pela
força do Deus trino que nela resplandece, apela e salva.
Mas
a Igreja de hoje ainda não é aquilo que está chamada a ser. É importante ter
isto em conta para se evitar uma falsa visão triunfalista. Mas, por outro lado,
não se deve enfatizar demais o que lhe falta, pois nela já está presente e
atuante, de modo eficaz, neste mundo, a força que operará o Reino definitivo.
2.2. A Igreja vive em mistério
de comunhão como Povo de Deus
Nosso
povo gosta de peregrinações. Nelas o cristão simples celebra a felicidade de
se sentir imerso no meio de uma multidão de irmãos, que caminham juntos para
Deus que os espera. Este gesto constitui um sinal e um sacramental esplêndido
da grande visão da Igreja, oferecida pelo Concílio Vaticano II: a família de
Deus concebida como Povo de Deus, peregrina ao longo da história, caminhando
para o seu Senhor.
O
Concílio realizou-se num momento difícil para nossos povos da AL. Foram anos de problemas, de busca
ansiosa da própria identidade, anos marcados por um despertar das massas
populares, por tentativas de integração da nossa América, anos precedidos pela
fundação do CELAM (1955) . Este preparou o ambiente do povo católico, para
abrir-se com certa facilidade a uma Igreja que também se apresenta como
"povo" e povo universal, povo que penetra os outros povos, para
ajuda-los a irmanar-se e a crescer, rumo a uma grande comunhão, como essa que a
AL começava a vislumbrar. Medellin
divulga esta nova visão tão antiga quanto
a própria história bíblica.
Hoje,
dez anos depois, a Igreja da AL encontra-se
em Puebla em condições ainda melhores para reafirmar, cheia de alegria e de
felicidade, sua realidade de Povo de Deus. Neste período após Medellin,
nossos povos vivem momentos importantes de encontro consigo mesmos, reencontram
o valor de sua história, das culturas indígenas e da religiosidade popular. No
meio deste processo descobre-se a presença desse outro povo que acompanha com
sua história os nossos povos naturais. Começa-se a apreciar a contribuição dele
como fator unificante de nossa cultura que ele tão ricamente fecunda com a
seiva do Evangelho. Foi uma fecundação recíproca, já que a Igreja consegue
encarnar-se em nossos valores originais e desenvolver, assim, novas expressões
da riqueza do Espírito.
A
visão da Igreja, enquanto Povo de Deus, aparece além disto como necessária para
completar o processo de transição que foi acentuado em Medellin: transição de
um estilo individualista de se viver a fé para a grande consciência comunitária
para a qual o Concílio nos abriu a todos.
O
Povo de Deus é um povo universal. É a família de Deus na terra, povo santo,
povo que peregrina na história, povo enviado.
A Igreja é um povo universal destinado a
ser "luz das nações" (Is 49,6; Lc 2,32) . Não é constituído nem por
raça nem por língua nem por qualquer particularidade humana. Nasce de Deus,
pela fé em Jesus Cristo. Por isso não entra em litígio com nenhum outro povo e
pode encarnar-se em todos eles, a fim de introduzir em suas histórias o Reino
de Deus. Assim "fomenta e assume e, ao assumir, purifica, fortalece e
eleva todas as capacidades, riquezas e costumes dos povos no que têm de
bom" (LG 13 b).
Povo, Família de Deus
Nosso
povo latino-americano chama espontaneamente o templo material de "casa de
Deus" porque intui que ali se reúne a Igreja como "Família de
Deus". É a mesma expressão que a Bíblia usa repetidamente e também o
Concílio, para exprimir a realidade mais profunda e íntima do Povo de Deus (S1
60,8; Dt 32,8s; Ef 2,19; Rm 8,29). Esta visão da Igreja toca profundamente o
homem da AL que tem em alta estima os valores da família e que procura com
ânsia, em face da frieza crescente do mundo moderno, a maneira de salvá-los.
Nota-se uma reação em muitos países tanto no despontar da pastoral familiar
quanto na multiplicação das CEBs, onde se torna possível - a nível de
experiência humana - uma intensa vivência da realidade da Igreja como família
de Deus.
Muitas
paróquias e dioceses acentuam também o aspecto familiar. Sabem que o
latino-americano necessita de uma família e que a procura e que desta maneira
encontrará na Igreja respostas para as suas necessidades. Não se trata aqui de
uma tática psicológica, mas sim da fidelidade à própria identidade. Porque a
Igreja não é o lugar em que os homens "se sentem", mas o lugar em que
"se fazem" - real, profunda, ontologicamente - "família de
Deus". Convertem-se verdadeiramente em filhos do Pai em Jesus Cristo «,
que os torna participantes de sua vida, pelo poder do Espírito mediante o
batismo. Esta graça da filiação divina é o grande tesouro que a Igreja deve
oferecer aos homens de nosso Continente.
Da
filiação em Cristo nasce a fraternidade cristã. O homem moderno não tem
conseguido construir uma fraternidade universal na terra, porque procura uma
fraternidade descentrada e sem origem comum. Esqueceu que os homens só têm uma
maneira de se tornarem irmãos: reconhecer que p ,, cedem do mesmo Pai.
A
Igreja, família de Deus, é o lar onde cada filho e cada irmão é também senhor,
destinado a participar do domínio de Cristo sobre a criação e da história.
Este domínio deve ser aprendido e conquistado mediante um continuado processo
de conservação e assimilação ao Senhor.
O
fogo que dá vida à família de Deus é o Espírito Santo. É ele que suscita a
comunhão de fé, esperança e caridade ou amor, que constitui como que sua alma
invisível, sua dimensão mais profunda, a raiz do compartilhar cristão em outros
níveis. E, uma vez que a Igreja é formada por homens dotados de corpo e alma, a
comunhão interior deve exprimir-se visivelmente. A capacidade de compartilhar
será sinal da profundidade da comunhão interior e de sua credibilidade para
fora. Daí a gravidade e o escândalo de tudo que é desunião na Igreja. Na Igreja
é que se julga a própria missão que Jesus confiou à Igreja: sua capacidade de
ser sinal de que Deus quer por meio dela transformar os homens em família sua.
Os
problemas que afetam a unidade da Igreja provêm da diversidade de seus membros.
Esta multidão de irmãos que cristo reuniu na Igreja não constitui uma realidade
monolítica. Eles vivem sua unidade a partir da diversidade com que o Espírito
presenteou cada um, diversidade que se deve entender como colaboração prestada
à riqueza do todo.
Esta
diversidade pode fundar-se simplesmente na maneira de ser de cada um, na função
que a cada um corresponde no interior da Igreja e que distingue nitidamente o
papel da hierarquia do papel do laicato. Ou em carismas mais especiais que o
Espírito suscita como o da vida religiosa ou outros parecidos. Por isso a
Igreja é como um corpo que, gerado constantemente, alimentado e renovado pelo
Espírito, cresce na direção da plenitude de Cristo.
A
força que assegura a coesão da família de Deus no meio das tensões e dos
conflitos é em primeiro lugar a própria vitalidade de sua comunhão na fé e no
amor. Isto supõe não só o desejo e a determinação da unidade, mas também a
coincidência na verdade plena de Jesus Cristo. Também asseguram e constróem a
unidade da Igreja os sacramentos. A Eucaristia significa nesta unidade a sua
realidade mais profunda, pois congrega o povo de Deus como família que
participa de uma única mesa onde a vida de Cristo, entregue sacrificalmente,
se faz a única vida de todos.
A
Eucaristia orienta-nos de modo imediato para a hierarquia sem a qual ela é
impossível; porque foi aos apóstolos que o Senhor deu o mandato de celebrá-1a
"em minha memória" (Lc 22,19). Os pastores da Igreja, sucessores dos
apóstolos, constituem por isso mesmo o centro visível onde se constrói, aqui
na terra, a unidade da Igreja. Segundo o Concílio o papel dos pastores é eminentemente
paterno (LG 28; CD 16; PO 9). Torna-se então evidente que acontece na Igreja o
que acontece em toda família: a unidade dos filhos se realiza -
fundamentalmente - na direção do alto. Quando a comunicação com a Igreja se enfraquece
e até se rompe, são também os pastores os ministros sacramentais da
reconciliação. Este caráter paterno não deixa que ninguém esqueça que os
pastores estão no interior da família de Deus a serviço desta família. São
irmãos chamados a cuidar da vida que o Espírito suscita, livremente, nos demais
irmãos. É dever dos pastores respeitar esta vida, acolhê-1a, orientá-1a e promovê-1a,
ainda que tenha nascido independentemente da iniciativa deles. Por isso é
necessário cuidado para "não extinguir o Espírito nem desprezar a
profecia" (1Ts 5,19). Os pastores vivem para os outros. "Para que
tenham a vida e a tenham em abundância" ( Jo 10,10 ) . Tarefa de unidade
não significa exercício de poder arbitrário. Autoridade é serviço prestado à,
vida. Estes serviços dos pastores inclui o direito e o dever de corrigir e
decidir, com a clareza e a firmeza que sejam necessárias.
Povo Santo
Povo
de Deus, em que habita o Espírito, é também um Povo Santo. Mediante o batismo,
o próprio Espírito o tornou participante da vida divina, o ungiu como povo
messiânico e o revestiu da Santidade da vida divina recebida. Esta santidade
recorda ao Povo de Deus a dimensão vertical e constituinte da sua comunhão. É
um povo que não apenas nasce de Deus, mas também se orienta para ele, como povo
consagrado, para render-lhe culto a glória. O Povo de Deus aparece assim como o
seu templo vivo, morada de sua presença entre os homens. Nele, nós cristãos somos pedras vivas.
Os
cidadãos deste povo devem caminhar na terra, fias como cidadãos do céu, com seu
coração enraizado em Deus, através da oração e da contemplação. Esta atitude
não significa fuga diante do terreno, mas sim condição para uma entrega fecunda
aos homens. Porque quem não aprendeu a adorar a vontade do Pai no silêncio da
oração, dificilmente conseguirá fazê-1o quando sua condição de irmão lhe pedir
renúncia, dor ou humilhação.
O
culto que Deus nos pede - expresso na oração e na liturgia - prolonga-se na
vida cotidiano através do esforço que se faz para converter tudo em oferenda e
oblação. Como membros de um povo já santificado pelo batismo, somos chamai dos,
nós cristãos, a manifestar esta santidade. "Sede perfeitos como o vosso
Pai celeste é perfeito" ( Mt 5,48 ) . Esta santidade exige o cultivo
tanto das virtudes sociais como da moral pessoal. Tudo o que atenta contra a
dignidade do corpo humano que é chamado a ser templo de Deus implica profanação
e sacrilégio e entristece o Espírito. Vale isto para o homicídio e a tortura,
mas também para a prostituição, para a pornografia, o adultério, o aborto e
qualquer outro abuso sexual. Neste mundo não conseguirá nunca a Igreja viver,
em plenitude, sua vocação universal para a santidade. Permanecerá sempre
composta de justos e pecadores. Mais:
pelo coração de cada cristão passa a linha que divide a parte que temos de justos
da que temos de pecadores.
Povo Peregrino
A
Igreja, concebendo-se como povo, se define como uma realidade no seio da
história que caminha para uma meta ainda n.o alcançada.
Por
ser um povo histórico, a natureza da Igreja exige visibilidade em nível de
estrutura social. O Povo de Deus considerado como "família" já tinha
a conotação de uma realidade visível, porém num plano eminentemente vital. A
acentuação do caráter histórico sublinha a necessidade que há de se exprimir
tal realidade como instituição.
Este
caráter social institucional se manifesta na Igreja através de uma estrutura
visível e clara que ordena a vida de seus membros, determina suas funções e
relações, seus direitos e deveres. A Igreja
enquanto Povo de Deus reconhece apenas uma autoridade: Cristo. Ele é o pastor
que a guia. Todavia os laços que a prendem a ele são muito mais profundos do
que os de um simples trabalho de direção. Cristo é a autoridade da Igreja no
sentido mais profundo da palavra, porque é seu autor. Porque é fonte de sua,
vida e unidade, sua cabeça. Esta capitalidade é a misteriosa relação vital que
o vincula a todos os seus membros. Por isso a participação de sua autoridade
aos Pastores ao longo da, história nasce e parte desta mesma realidade. É
muito mais do que um simples poder jurídico. É verdadeira participação no mistério
de sua capitalidade. E por isso é uma realidade de ordem sacramental.
Os
Doze, presididos por Pedro, foram escolhidos por Jesus para participar dessa
misteriosa relação que o prende à sua Igreja. Foram constituídos e consagrados
por ele como sacramentos vivos de sua presença, para torna-los presente e
visível, como cabeça e pastor, no meio de seu povo. Desta comunhão profunda no
mistério é que decorre como conseqüência o poder de "atar e desatar".
Considerado em sua, totalidade, o mistério hierárquico é uma realidade de ordem
sacramental, vital e jurídica com a própria Igreja.
Este
mistério foi confiado a Pedro e aos outros apóstolos, cujos sucessores são hoje
em dia o Romano Pontífice e os bispos, a quem se unem como colaboradores os
presbíteros e diáconos. Os pastores da Igreja não a guiam apenas em nome do
Senhor: exercem também a função de mestres da verdade e presidem
sacerdotalmente ao culto divino. O dever de obediência do Povo de Deus aos
pastores que o conduzem funda-se menos em considerações jurídicas do que no respeito
de quem crê que neles o Senhor tem uma presença sacramental. Esta é sua
realidade objetiva de fé, independente de toda consideração pessoal.
Na
AL, desde o Concílio e Medellin,
percebe-se uma grande mudança na maneira de se exercer a autoridade dentro da
Igreja. Acentuou-se o seu caráter de serviço e sacramento, como também a sua
dimensão de afeto colegial. Esta encontrou sua expressão não apenas a nível do
conselho presbiterial diocesano, mas também através das conferências
episcopais e do CELAM.
Esta
visão da Igreja, enquanto povo histórico e socialmente estruturado, é um marco
ao qual obrigatoriamente deve referir-se também a reflexão teológica a respeito
das CEBs de nosso Continente, pois introduz elementos que permitem complementar
o acento que as referidas comunidades colocam no dinamismo vital das bases e
na fé que é compartilhada com mais espontaneidade em comunidades pequenas. A Igreja como povo histórico
institucional representa a estrutura mais ampla, universal e definida, dentro
da qual se devem inscrever vitalmente as CEBs, para não correrem o risco de
degenerar em anarquia organizativa, por um lado, ou em elitismo fechado e
sectário, por outro.
Alguns
dos aspectos do problema da "Igreja popular" ou dos
"magistérios paralelos" se insinuam nesta linha: a seita tende sempre
ao auto-abastecimento quer jurídico quer doutrinal; integradas na totalidade
do Povo de Deus, as CEBs evitarão com certeza estes escolhos e corresponderão
às esperanças que a Igreja da AL nelas
deposita.
O
problema da "Igreja popular", ou seja, a Igreja que nasce do povo,
apresenta diversos aspectos. Se se entende Igreja popular como aquela que
procura encarnar-se nos meios populares do nosso Continente e que, por isso
mesmo, surge da resposta de fé que os grupos do povo dêem ao Senhor, evita-se o
primeiro obstáculo: a negação aparente da verdade fundamental que ensina que a
Igreja sempre nasce de uma primeira iniciativa que "vem do alto",
isto é, do Espírito que a suscita e do Senhor que a convoca. Esta designação,
porém, parece pouco feliz. Todavia, a "Igreja popular" aparece como
distinta de "outra", identificada como a Igreja "oficial"
ou "institucional", que é acusada de ser "alienante". Isto
implicaria uma divisão no interior da Igreja e uma negação inaceitável da
função da hierarquia. Tais posições, de acordo com João Paulo II, poderiam
ser inspiradas por conhecidos condicionamentos ideológicos.
Outro
problema candente na América Latina e relacionado com a condição histórica do
Povo de Deus é o das mudanças na Igreja. Ao caminhar através da história, a
Igreja muda necessariamente, mas apenas no exterior e acidentalmente. Não se
pode falar, portanto, de uma contraposição entre a "Igreja nova" e a
"Igreja velha", como alguns o pretendem (João Paulo II, Catedral do
México). O problema das mudanças tem feito sofrer a muitos cristãos, que viram
cair por terra uma forma de viver a Igreja que eles julgaram completamente
imutável. É importante ajuda-los a distinguir os elementos divinos dos
elementos humanos da Igreja. Cristo, enquanto Filho de Deus, permaneceu sempre
idêntico a si mesmo, mas em seu aspecto humano foi mudando sem cessar: de
estatura, de rosto, de aspecto. O mesmo acontece com a Igreja.
Em outro extremo estão
os que quiseram viver uma mudança contínua. Não é este o sentido de ser
peregrinos. Não estamos à procura de tudo. Existe algo que já possuímos na
esperança, mas com segurança e do qual devemos dar testemunho. Somos
peregrinos, mas também somos testemunhas. Nossa atitude é de tranqüilidade e
de alegria por aquilo que já encontramos e de esperança pelo que ainda nos
falta. Tampouco é certo que todo caminho se faz andando. O caminho pessoal, em
suas circunstâncias concretas, sim, mas o largo caminho que é comum aos povos
de Deus já está aberto, já foi percorrido por Cristo e pelos santos, e em
especial pelos santos da América Latina: os que morreram defendendo a integridade
da fé e a liberdade da Igreja, servindo aos pobres, servindo aos índios,
servindo aos escravos. Foi percorrido igualmente pelos que alcançaram os mais
altos cumes da contemplação. Eles caminham conosco. Ajudam-nos com sua
intercessão. Ser peregrino implica sempre uma cota inevitável de insegurança e
de risco. Ela é acrescida pela consciência de nossa fraqueza e nosso pecado. É
parte do morrer cotidiano em Cristo. A fé
no-1o permite assumir com esperança pascal. Os últimos dez anos têm sido
violentos em nosso Continente. Mas caminhamos na certeza de que o Senhor saberá
transformar a dor, o sangue e a morte, que no caminho da história vão deixando
os nossos povos e a nossa Igreja, em sementes de ressurreição para a América
Latina. Reconforta-nos o Espírito Santo e a Mãe fiel, sempre presentes no caminhar
do Povo de Deus.
Povo enviado por Deus
Na
força da consagração messiânica do batismo, o Povo de Deus é enviado para
servir ao crescimento do Reino nos demais povos. É enviado como povo profético
que anuncia o Evangelho ou faz discernimento das vozes do Senhor no coração da
história. Anuncia onde se manifesta a presença de seu Espírito. Denuncia onde
opera o mistério da iniqüidade, mediante fatos e estruturas que impedem uma
participação mais fraterna na construção da sociedade e no desfrutar dos bens
que Deus criou para todos.
Nos
últimos dez anos comprovamos a intensificação da função profética. Assumir tal
função tem sido trabalho duro para os pastores. Temos procurado ser a voz dos
que não têm voz e testemunhar a mesma predileção do Senhor com os pobres e os
que sofrem. Cremos que nossos povos sentiram que estamos mais perto deles. Com
certeza conseguimos iluminar e ajudar. Com certeza, também, poderíamos ter
feito mais. Agora, colegialmente, tentaremos interpretar a passagem do Senhor
pela América Latina.
Outra
forma privilegiada de evangelizar é a celebração da fé na liturgia e nos
sacramentos. Aí aparece o Povo de Deus como Povo Sacerdotal, investido de um
sacerdócio universal do qual participam todos os batizados, mas que difere essencialmente
do sacerdócio hierárquico.
2.3. O Povo de Deus a serviço
da Comunhão Um povo servidor
O
Povo de Deus, como Sacramento universal de salvação, está inteiramente a
serviço da comunhão dos homens com Deus e do gênero humano entre si '°°. A Igreja é, portanto, um povo de servidores. Seu modo
próprio de servir é evangelizar; é um serviço que só ela pode prestar.
Determina sua identidade e a originalidade de sua contribuição. Este serviço
evangelizador da Igreja se dirige a todos os homens, sem distinção. Mas nele
sempre há de refletir a especial predileção de Jesus pelos mais pobres e
sofredores.
Dentro
do Povo de Deus, todos - hierarquia, leigos, religiosos são servidores do
Evangelho. Cada qual segundo seu papel e carisma próprios. A Igreja, como servidora do Evangelho,
serve ao mesmo tempo a Deus e aos homens; mas para conduzir estes ao Reino de
seu Senhor, o único de quem ela, junto com a Virgem Maria, se proclama escrava
e a quem subordina todo seu serviço humano.
A Igreja, sinal de comunhão
A
Igreja evangeliza, em primeiro lugar, mediante o testemunho global de sua vida.
Assim, na fidelidade à sua condição de sacramento, trata de ser mais e mais um
sinal transparente ou modelo vivo da comunhão de amor em Cristo que anuncia e
se esforça por realizar. A pedagogia da encarnação nos ensina que os homens
necessitam de modelos preclaros que os guiem 'o'. A América Latina necessita igualmente de tais modelos.
Cada
comunidade eclesial deveria esforçar-se por constituir para o Continente um
exemplo de modo de convivência onde consigam unir-se a liberdade e a solidariedade,
onde a autoridade se exerça com o espírito do Bom Pastor, onde se viva uma atitude
diferente diante da riqueza, onde se ensaiem formas de organização e estruturas
de participação, capazes de abrir caminho para um tipo mais humano de
sociedade, e, sobretudo, onde inequivocamente se manifeste que, sem uma
radical comunhão com Deus em Jesus Cristo, qualquer outra forma de comunhão
puramente humana acaba se tornando incapaz de sustentar-se e termina fatalmente
voltando-se contra o próprio homem.
A Igreja, escola de forjadores
de história
Para
os próprios cristãos, a Igreja deveria transformar-se num lugar em que
aprendem a viver a fé experimentando-a e descobrindo-a encarnada nos outros. Do
modo mais urgente, deveria ser a escola onde se eduquem homens capazes de fazer
história, para levar eficazmente com Cristo a história de nossos povos até ao
Reino.
Diante
dos desafios históricos que enfrentam nossos povos, encontramos entre os
cristãos dois tipos de reações extremas: os "passivistas", que crêem
não poder e não dever intervir, esperando que só Deus atue e liberte; os
"ativistas", que numa perspectiva secularizada, consideram Deus
distante, como se houvesse entregue a completa responsabilidade da história aos
homens, os quais, por essa razão, procuram angustiada e freneticamente levá-1a
para diante.
A atitude de Jesus foi outra. Nele
culminou a sabedoria ensinada por Deus a Israel. Este havia encontrado Deus em
meio de sua história. Deus o convidou a forjá-1a juntos, em Aliança. Ele marcava
o caminho e a meta e exigia a colaboração livre e confiante de seu Povo. Jesus
aparece igualmente, atuando na história, pela mão de seu Pai. Sua atitude é,
ao mesmo tempo, de total confiança e de máxima corresponsabilidade e
compromisso. Porque sabe que tudo está nas mãos do Pai, que cuida das aves e
dos lírios do campo. Mas sabe também que a ação do Pai procura passar através
da sua.
Como
o Pai é o protagonista principal, Jesus procura seguir seus caminhos e ritmos.
Sua preocupação de cada instante consiste em sintonizar fiel e rigorosamente
com a vontade do Pai. Não basta conhecer a meta e caminhar para ela. Importa
conhecer e esperar a horalo3, que para cada passo o Pai assinalou,
perscrutando os sinais de sua Providência. Dessa docilidade filial dependerá
toda a fecundidade da obra.
Além
disso, Jesus entende perfeitamente que não só se trata de libertar os homens do
pecado e de suas dolorosas conseqüências. Ele sabe muito bem o que hoje tanto
se cala na América Latina: que se deve libertar a dor pela dor, isto é,
assumindo a Cruz e convertendo-a em fonte de vida pascal. Para que a América
Latina seja capaz de converter suas dores em crescimento para uma sociedade
verdadeiramente participada e fraterna, precisa educar homens capazes de
forjar a história segundo a "práxis" de Jesus, entendida como a
explicitamos a partir da teologia bíblica da história. O Continente precisa de
homens conscientes de que Deus os chama para atuar na aliança com ele. Homens
de coração dócil, capazes de tornar seus os caminhos e o ritmo que a
Providência indique. Especialmente capazes de assumir sua própria dor e a de
nossos povos e converte-los, com espírito pascal, em exigência de conversão
pessoal, em fonte de solidariedade com todos os que compartilham este
sofrimento e em desafio para a iniciativa e a imaginação criadoras.
A Igreja, instrumento de
comunhão
Através
da ação de cristãos evangelicamente comprometidos, a Igreja pode completar sua
missão de Sacramento de salvação tornando-se instrumento do Senhor, que
dinamize eficazmente em direção a ele a história dos homens e dos povos.
A realização histórica desse serviço
evangelizador será sempre árdua e dramática, porque o pecado, força de ruptura,
há de impedir constantemente o crescimento no amor e a comunhão tanto a partir
do coração dos homens, como a partir das diversas estruturas por eles criadas,
nas quais o pecado de seus autores imprimiu sua marca destruidora. Neste
sentido, a situação de miséria, marginalidade, injustiça e corrupção que fere
nosso Continente, exige do Povo de Deus e de cada cristão um autêntico
heroísmo em seu compromisso evangelizador, a fim de poder superar semelhantes
obstáculos. Diante de tal desafio, a Igreja sabe que é limitada e pequena, mas
se sente animada pelo Espírito e protegida por Maria. Sua poderosa intercessão
lhe permitirá superar as "estruturas do pecado" na vida pessoal e
social e lhe obterá a "verdadeira libertação", que vem de Cristo
Jesus (João Paulo II, Zapopán 11).
2.4. Maria, Mãe e modelo da
Igreja
Em
nossos povos, o Evangelho tem sido anunciado, apresentando a Virgem Maria como
sua realização mais alta. Desde os primórdios - em sua aparição e invocação de
Guadalupe - Maria tornou-se o grande sinal, de rosto materno e misericordioso,
da proximidade do Pai e de Cristo com quem ela nos convida a entrar em
comunhão. Maria foi também a voz que deu impulso à união dos homens e dos
povos. Como em Guadalupe, os outros santuários marianos do Continente são sinais
do encontro da fé da Igreja com a história latino-americana.
Paulo
VI afirmou que a devoção a Maria é um elemento "qualificador" e
"intrínseco" da "genuína piedade da Igreja" e do
"culto cristão". Isto é uma experiência vital e histórica da América
Latina. Esta experiência, reafirma-o João Paulo II, pertence à íntima,
"identidade própria destes povos" (João Paulo II, Zapopán 2).
Sabe
o povo que encontra Maria na Igreja Católica. A piedade mariana é com freqüência o vínculo resistente que mantém
fiéis à Igreja setores que carecem de atenção pastoral adequada.
O
povo fiel reconhece na Igreja a família que tem por mãe a mãe de Deus. A Igreja confirma o seu instinto
evangélico segundo o qual Maria é o modelo perfeito do cristão, a imagem ideal
da Igreja. Maria, Mãe da Igreja
A
Igreja "instruída pelo Espírito Santo venera" Maria "como mãe
muito amada, com afeto de piedade filial" (LG 13) . Foi nessa fé que o
Papa Paulo VI quis proclamar Maria "Mãe da Igreja"
Foi-nos
revelada a fecundidade maravilhosa de Maria. Ela torna-se Mãe de Deus, Mãe do
Cristo histórico, no Fiat da anunciação, quando o Espírito Santo a cobre com
sua sombra. É Mãe da Igreja porque é Mãe de Cristo, Cabeça do Corpo Místico.
Além disso, é nossa Mãe "por ter cooperado com seu amor" ( LG 53 ),
no momento em que do coração
transpassado de Cristo nascia a família dos redimidos; "por isso é nossa
Mãe na ordem da graça" (LG 61). É a vida de Cristo que irrompe vitoriosa
em Pentecostes, onde Maria implorou para a Igreja o Espírito Santo Vivificador.
A Igreja, pela evangelização, gera novos
filhos hoje. Esse processo que consiste em "transformar a partir de dentro
", em "renovar a própria humanidade" (EN 18) é um verdadeiro
renascimento. Neste parto, sempre renovado, Maria é nossa Mãe.
Ela,
gloriosa no céu, atua na terra. Participando do domínio do Cristo ressuscitado,
"cuida com amor materno dos irmãos de seu filho, que ainda
peregrinam" ( LG 62 ) ; seu grande cuidado é este: que os cristãos
"tenham vida abundante e cheguem à maturidade da plenitude de
Cristo".
Maria
não vela apenas pela Igreja. Tem um coração tão grande quanto o mundo e
intercede ante o Senhor da história por todos os povos. Isto bem registra a fé
popular que põe nas mãos de Maria, como rainha e mãe, o destino de nossas
nações. Enquanto peregrinamos, Maria será a mãe educadora da fé ( LG 63 ) .
Ela cuida que o Evangelho nos penetre intimamente, plasme nossa vida de cada
dia e produza em nós frutos de santidade. Ela precisa ser cada vez mais a
pedagoga do Evangelho na América Latina.
Maria
é verdadeiramente Mãe da Igreja. Marca o Povo de Deus. Paulo VI faz sua uma
fórmula concisa da tradição: "Não se pode falar de Igreja sem que esteja
presente Maria" (MC 28). Trata-se de uma presença feminina, que cria o
ambiente de família, o desejo de acolhimento, o amor e o respeito à vida. É
presença, sacramental dos traços maternais de Deus. É uma realidade tão profundamente
humana e santa que desperta nos crentes as preces da ternura, da dor e da
esperança.
Maria, Modelo da Igreja
Modelo em sua relação com
Cristo
Segundo
o plano de Deus em Maria, "tudo se refere a Cristo e tudo depende
dele" (MC 25). Toda sua existência é uma plena comunhão com seu Filho. Ela
deu seu sim a esse desígnio de amor. Aceitou-o livremente na anunciação e foi
fiel à palavra dada até o martírio do Gólgota. Foi a fiel companheira do
Senhor em todos os caminhos. A maternidade divina levou-a a uma entrega total.
Foi uma doação generosa, cheia de lucidez e permanente, unida a uma história
de amor a Cristo íntima e santa, uma história única que culmina na glória.
Maria,
levada ao máximo na participação com Cristo, é íntima colaboradora de sua
obra. Foi "algo inteiramente distinto de uma mulher passivamente remissiva
ou de religiosidade alienante" (MC 37). Ela não é apenas o fruto admirável
da redenção; é também sua cooperadora ativa. Em Maria se manifesta
preclaramente que Cristo não anula a criatividade dos que o seguem. Ela,
associada a Cristo, desenvolve todas as suas capacidades e responsabilidades
humanas, até chegar a ser a nova Eva juntamente com o novo Adão. Maria, por sua
livre cooperação na nova aliança de Cristo, é junto a ele protagonista da
história. Por esta comunhão e participação, a Virgem Imaculada vive agora
imersa no mistério da Trindade, louvando a glória de Deus e intercedendo pelos
homens.
Modelo para a vida da Igreja e
dos homens Neste momento, em que nossa Igreja Latino-Americana
quer dar um novo passo de fidelidade ao seu Senhor, olhamos para a figura viva
de Maria. Ela nos ensina que a virgindade é uma entrega exclusiva a Jesus
Cristo, em que a fé, a pobreza. e a obediência ao Senhor se tornam fecundas
pela ação do Espírito. Assim, também a Igreja quer ser mãe de todos os homens,
não à custa de seu amor a Cristo, afastando-se dele ou postergando-o, mas
precisamente pela sua comunhão íntima e total com ele. A virgindade materna de Maria conjuga, no mistério da Igreja, essas
duas realidades: toda de Cristo e com ele, toda servidora dos homens.
Silêncio, contemplação e adoração que dão origem à mais generosa resposta à missão,
à mais fecunda evangelização dos povos.
Maria,
Mãe, desperta o coração do filho adormecido em cada. homem. Assim, nos leva a
desenvolver a vida do batismo pela qual nos tornamos filhos. Ao mesmo tempo
esse carisma materno faz crescer em nós a fraternidade e assim Maria faz com que
a Igreja se sinta uma família.
Maria
"é reconhecida como modelo extraordinário da Igreja na ordem da fé. É
aquela que crê, pois nela resplandece a fé como dom, abertura, resposta e
fidelidade. É a discípula perfeita que se abre à palavra e se deixa penetrar
por seu dinamismo. Quando não a compreende e fica surpresa, não a repele, ou
põe de lado; medita-a e conserva-a. E quando a palavra lhe soa dura aos
ouvidos, persiste confiantemente no diálogo de fé com Deus que lhe fala; assim
na cena do encontro com Jesus no templo, assim em Caná, quando seu filho a
princípio rejeita sua súplica. Fé que leva a subir ao Calvário e a associar-se
à cruz, como a única árvore da vida. Pela sua fé é a Virgem fiel em quem se
cumpre a bem-aventurança maior: "feliz aquela que acreditou" ( Lc
1,45 ).
O
Magnificat é espelho da alma de Maria. Neste poema conquista o seu cume a
espiritualidade dos pobres de Javé e o profetismo da Antiga Aliança. É o
cântico que anuncia o novo Evangelho de Cristo. É o prelúdio do Sermão da Montanha.
Aí Maria se nos manifesta vazia de si própria e depositando toda sua confiança
na misericórdia do
Pai.
No Magnificat manifesta-se como modelo "para os que não aceitam
passivamente as circunstâncias adversas da vida pessoal e social, nem são
vítimas da alienação, como se diz hoje, mas que proclamam com ela que Deus
‘exalta os humildes' e se for o caso `derruba os poderosos de seus
tronos'..." (João Paulo II, Homilia Zapopán, 4 - AAS LXXI p.230).
Bendita entre todas as mulheres
A
Imaculada Conceição apresenta-nos em Maria o rosto do homem novo redimido por
Cristo, no qual Deus recria ainda "mais admiravelmente" (Coleta da
Natividade de Jesus) o projeto do paraíso. Na Assunção se nos manifestam o
sentido e o destino do corpo santificado pela graça. No corpo glorioso de Maria
começa a criação material a ter parte no corpo ressuscitado de Cristo. Maria,
arrebatada ao céu, é a integridade humana, corpo e alma, que agora reina
intercedendo pelos homens, peregrinos na história. Essas verdades e mistérios
iluminam o Continente onde a profanação do homem é uma constante e onde muitos
se fecham num fatalismo passivo.
Maria
é mulher. É "a bendita entre todas as mulheres". Nela dignifica Deus
a mulher elevando-a a dimensões inimagináveis. Em Maria o Evangelho penetrou a
feminilidade, redimiu-a e exaltou-a. Isto é de importância capital para nosso
horizonte cultural, em que a mulher deve ser valorizada muito mais e em que
suas tarefas sociais se estão definindo com mais clareza e amplidão. Maria é
uma garantia para a grandeza da mulher, mostra a forma específica do ser
mulher, com essa vocação de ser alma, dedicação que espiritualiza a carne e
que encarne o espírito.
Modelo de serviço eclesial na
América Latina
A
Virgem Maria fez-se a serva do Senhor. A
Escritura apresenta-a como alguém que indo visitar Isabel por ocasião do
parto, presta-lhe o serviço muito maior de anunciar-lhe o Evangelho com as
palavras do Magnificat. Em Caná está atenta às necessidades da festa e sua
intercessão provoca a fé dos discípulos que "acreditam nele" (Jo
2,11). Todo serviço que Maria presta aos homens consiste em abri-los ao
Evangelho e convida-los a obedecer-lhe: "Fazei o que vos disser" (Jo
2,5). Deus se fez carne por meio de Maria, começou a fazer parte de um povo,
constituiu o centro da, história. Ela é o ponto de união entre o céu e a terra.
Sem Maria desencarna-se o Evangelho, desfigura-se e transforma-se em
ideologia, em racionalismo espiritualista.
Paulo
VI assinala a amplidão do serviço de Maria com palavras que têm um eco muito
atual em nosso Continente: ela é "a mulher forte que conheceu a pobreza e
o sofrimento, a fuga e o exílio (cf. Ml 2,13-22 ) ; situações estas que não
podem escapar à atenção de quem quiser dar apoio, com espírito evangélico, às
energias libertadoras do homem e da sociedade. Apresentar-se-á Maria como a
mulher que com a sua ação favoreceu a fé da comunidade apostólica, em Cristo
(cf. Jo 2, 1-12) e cuja função materna se dilatou, vindo a assumir no Calvário,
dimensões universais" (MC 3?).
O
povo latino-americano conhece bem tudo isso. A Igreja tem consciência de que "o que importa é evangelizar
não de maneira decorativa como se se tratasse de um verniz superficial"
(EN 20). Esta Igreja que com nova lucidez e nova decisão quer evangelizar no fundo,
na raiz, na cultura do povo, volta-se para Maria para que o Evangelho se torne
mais carne, mais coração na América Latina. Esta é a hora de Maria, isto é, o
tempo do Novo Pentecostes a que ela preside com sua oração, quando, sob o
influxo do Espírito Santo, a Igreja inicia um novo caminho em seu peregrinar.
Que Maria seja nesse caminho "estrela de evangelização sempre renovada"
(EN 81).
3. A VERDADE A RESPEITO DO
HOMEM: A DIGNIDADE HUMANA
Visão
cristã do homem, quer à Luz da fé, quer à luz da razão, para julgar sua
situação na América Latina a fim de se contribuir na construção de uma sociedade
mais cristã e, portanto, mais humana.
1.
Visões inadequadas do homem na América Latina
1.1.
Introdução
No
mistério de Cristo, Deus baixa até ao abismo do ser humano para restaurar por
dentro sua dignidade. Oferece-nos assim a fé em Cristo, os critérios fundamentais
para se obter uma visão integral do homem que, por sua vez, ilumina e completa
a imagem concebida pela filosofia e as contribuições das outras ciências
humanas, a respeito do ser do homem e de sua realização histórica.
Por
seu lado tem a Igreja o direito e o dever de anunciar a todos os povos a visão
cristã da pessoa humana, país sabe que precisa dela para iluminar a própria
identidade e o sentido da vida e porque professa que toda violação da
dignidade humana é injúria ao próprio Deus, cuja imagem é o homem. Portanto, a
evangelização no presente e no futuro da América Latina exige da Igreja uma palavra
clara sobre a dignidade humana. Por meio dela se quer retificar ou integrar
tantas visões inadequadas que se propagam em nosso Continente das quais umas
atentam contra a identidade e a genuína liberdade, outras impedem a comunhão;
outras não promovem a participação com Deus e com os homens.
A
América Latina constitui o espaço histórico em que se dá o encontro de três
universos culturais: o indígena, o branco e o africano, que foram enriquecidos
posteriormente por diversas correntes migratórias. Aí se dá, ao mesmo tempo,
uma convergência de maneiras diferentes de ver o mundo, o homem e Deus, e de
reagir frente a eles. Forjou-se uma espécie de mestiçagem latino-americana.
Embora em seu espírito permaneça uma base de vivências religiosas marcadas pelo
Evangelho, emergem também e se misturam cosmovisões alheias à fé cristã. No
decorrer do tempo, teorias e ideologias introduzem em nosso continente novos
enfoques sobre o homem, que parcializam ou deformam aspectos de sua visão integral
ou a ela se fecham.
1.2.
Visão determinista.
Não
se pode desconhecer na, AL a erupção
da alma religiosa primitiva à qual se prende uma visão da pessoa como
prisioneira das formas mágicas de ver o mundo e de atuar sobre ele. O homem não
é dono de si, mas vítima de forças ocultas. Nesta visão determinista, não
encontra outra. atitude senão colaborar com essas forças ou aniquilar-se diante
delas”. Acresce ainda, às vezes, a crença na
reencarnação por parte dos adeptos de várias formas de espiritismo e de
religiões orientais. Não poucos cristãos, ignorando a autonomia própria da
natureza e da história, continuam crendo que tudo o que acontece é determinado
e imposto por Deus.
Uma
variante desta visão determinista, porém, mais de tipo fatalista e social, se
apóia na idéia errônea de que os homens não são fundamentalmente iguais. Tal
diferença articula nas relações humanas muitas discriminações e marginalizações
incompatíveis com a dignidade do homem. Mais do que na teoria, essa falta de
respeito à pessoa se manifesta em expressões e atitudes daqueles que se julgam
superiores aos outros. Por isso, com freqüência, domina uma situação de desigualdade
em que vivem operários, camponeses, índios, empregadas domésticas e tantos
outros setores.
1.3.
Visão psicologista
Restrita
até agora a certos setores da sociedade latino-americana, ganha cada vez mais
importância a idéia de que a pessoa humana se reduz, em última instância, a
seu psiquismo. Na visão psicologista do homem, segundo sua expressão mais
radical, a pessoa se apresenta como vítima do instinto fundamental erótico ou
com um simples mecanismo de resposta a estímulos, carente de liberdade.
Fechada para Deus e para os homens, uma vez que a religião, como a cultura e a
própria história seriam apenas sublimações do instinto sensual, a negação da
própria responsabilidade conduz não poucas vezes ao pansexualismo e justifica
o machismo latino-americano.
1.4. Visões economicistas
Sob
o signo do econômico, podem-se assinalar na América Latina três visões do homem
que, embora distintas, têm raiz comum. Das três talvez a menos consciente e,
apesar de tudo, a mais generalizada seja a visão consumiste. A pessoa humana está como que lançada na
engrenagem da máquina da produção industrial; é vista apenas como instrumento
de produção e objeto de consumo. Tudo se fabrica e se vende em nome dos
valores do ter, do poder e do prazer, como se fossem sinônimos da felicidade
humana. Impede-se assim o acesso aos valores espirituais e promove-se, em
razão do lucro, uma aparente e mui onerosa "participação" no bem
comum.
A serviço da sociedade de consumo, mas
projetando-se para além da mesma, o liberalismo econômico, de práxis
materialista, apresenta-nos uma visão individualista do ser humano. Segundo
esta visão, a dignidade da pessoa está na eficácia econômica e na liberdade
individual. Encerrada em si própria e com freqüência aferrada ao conceito
religioso de salvação individual, cega-se para as exigências da justiça social
e coloca-se a serviço do imperialismo internacional do dinheiro, a que se
associam muitos governos esquecidos de suas obrigações em relação ao bem comum.
Oposto
ao liberalismo econômico de forma clássica e em luta permanente contra as suas
conseqüências injustas, o marxismo clássico substitui a visão individualista
do homem por uma visão coletivista, quase messiânica, do mesmo. A meta existencial do ser humano
coloca-se no desenvolvimento das forças materiais de produção. A pessoa não é originariamente sua
consciência; é antes constituída por sua existência social. Despojada do
arbítrio interno que lhe pode assinalar o caminho da realização pessoal,
recebe suas normas de comportamento unicamente daqueles que são responsáveis
pela mudança das estruturas sócio-político-econômicas. Desconhece, portanto,
os direitos humanos, especialmente o direito à liberdade religiosa, que está
na base de todas as liberdades. Desta forma, a dimensão religiosa, cuja origem
estaria nos conflitos da infra-estrutura econômica, se orienta para uma
fraternidade messiânica sem relação com Deus. Materialista e ateu, o humanismo
marxista reduz o ser humano, em última instância, às estruturas externas.
1.5. Visão estatista
Menos
conhecida, mas atuante na organização de não poucos governos da AL, a visão que
poderíamos denominar estatista do homem tem sua base na teoria da Segurança
Nacional. Submete o indivíduo ao serviço ilimitado da suposta guerra total
contra os conflitos culturais, sociais, políticos e econômicos e através
deles, contra a ameaça do comunismo. Ante este perigo permanente, real ou
possível, se limitam, como em toda situação de emergência, as liberdades
individuais; e a vontade do Estado se confunde com a vontade da Nação. O
desenvolvimento econômico e o potencial bélico sobrepõem-se às necessidades das
massas abandonadas. Embora necessária a toda organização política, a Segurança
Nacional, vista sob este ângulo, apresenta-se como um absoluto acima das pessoas.
Em seu nome institucionaliza-se a insegurança dos indivíduos.
1.6. Visão cientificista
A
organização técnico-científica de certos países está gerando uma visão cientificista
do homem, cuja vocação é a conquista do universo. Nesta visão só se reconhece
como verdade o que pode ser demonstrado pela ciência. O próprio homem é reduzido
à sua definição científica,. Em nome da ciência justifica-se tudo, até o que
constitui uma afronta à, dignidade humana. Simultaneamente se submetem as
comunidades nacionais às decisões de um novo poder, a tecnocracia. Uma espécie
de engenharia social pode controlar os espaços de liberdade dos indivíduos e
instituições, com o risco de reduzi-tos a meros elementos de cálculo.
2.
Reflexão doutrinal
2.1.
Proclamação fundamental
É
grave obrigação nossa proclamar, ante os irmãos da AL, a dignidade que é
própria de todos, sem nenhuma distinção e que, contudo, vemos conculcada tantas
vezes de maneira extrema. Ao reivindicar tal dignidade move-nos a revelação que
está contida na mensagem e na própria pessoa de Jesus Cristo: "Ele
conhecia o que há no homem" (Jo 2,25); contudo não hesitou em "tomar
a forma de escravo" (F1 2,7), nem se recusou a viver até à morte junto dos
postergados, para fazê-los participantes da exaltação que ele próprio mereceu
de Deus Pai.
Professamos
pois que todo homem e toda mulhernl4>, por mais insignificantes que
pareçam, têm em si a nobreza inviolável que eles próprios e os demais devem
respeitar e fazer respeitar, incondicionalmente; professamos também que toda a
vida humana merece por si mesma, em qualquer circunstância, sua dignificação; e
que toda convivência humana tem que fundar-se no bem comum, que consiste na
realização cada vez mais fraterna da dignidade comum e que exige não se
instrumentalizem uns em favor de outros e que todos estejam dispostos a
sacrificar até seus bens particulares.
Condenamos
todo menosprezo, diminuição ou injúria às pessoas e seus direitos
inalienáveis; todo atentado contra a vida humana, desde a que está oculta no
seio materno até à que se julga inútil e a que definha na velhice; toda
violação ou degradação da convivência entre os indivíduos, os grupos sociais
e as nações.
É
certo que o mistério do homem só se ilumina perfeitamente pela fé em Jesus
Cristo, o qual tem sido para a AL fonte histórica do anseio de dignidade, que
hoje é clamoroso em nossos povos cheios de fé e sofridos. Só a aceitação e o
seguimento de Jesus Cristo nos abrem para as certezas mais reconfortantes e
para as exigências mais fecundas e difíceis da dignidade humana, uma vez que
esta tem sua raiz na vocação gratuita para a vida que o Pai Celeste vai fazendo
ouvir, de modo novo, através dos combates e das esperanças da história. Mas não
temos dúvida de que, ao lutar pela dignidade, estamos unidos a outros homens
lúcidos que se esforçam sinceramente por libertar-se de enganos e atos de
paixão e seguem a luz do Espírito que o Criador lhes concedeu para reconhecer
na própria pessoa e na pessoa dos outros um dom magnífico, um valor
irrenunciável, uma tarefa transcendente.
Deste
modo, sentimo-nos urgidos a cumprir, por todos os meios, o que pode ser o
imperativo original desta hora de Deus, em nosso Continente: uma audaciosa
profissão de cristianismo e uma promoção eficiente da dignidade humana e de
seus fundamentos divinos, precisamente entre os que mais necessitam, ou porque
a desprezam ou sobretudo porque, sofrendo este desprezo, buscam - talvez às
cegas - a liberdade dos filhos de Deus e o advento do homem novo em Jesus
Cristo.
2.2. Dignidade e liberdade
Deve-se
revalorizar entre nós a imagem cristã dos homens. É forçoso e indispensável que
volte a ressoar essa palavra em que se vem cristalizando desde há muito tempo
um sublime ideal de nossos povos, LIBERDADE. Esta liberdade é a um tempo dom e
tarefa. Ela não se alcança verdadeiramente sem a libertação integral e é, em
sentido válido, meta do homem segundo nossa fé, uma vez que "para a
liberdade é que Cristo nos libertou" (G1 5,1) a fim de que tenhamos vida e a tenhamos em abundância, como
"filhos de Deus e co-herdeiros do próprio Jesus Cristo" (Rm 8,17).
A
liberdade implica sempre aquela capacidade que todos temos, em princípio, de
dispor de nós mesmos, a fim de irmos construindo uma comunhão e uma
participação que hão de se plasmar em realidades definitivas, em três planos
inseparáveis: a relação do homem com o mundo como senhor, com as pessoas como
irmão e com Deus como filho.
Pela
liberdade, projetada sobre o mundo material da natureza e da técnica, o homem -
sempre em comunidade de múltiplos esforços - consegue a realização inicial de
sua dignidade: submeter este mundo, através do trabalho e da sabedoria, e humanizá-1o
de acordo com os desígnios do Criador.
Mas
a dignidade do homem verdadeiramente livre exige que ele não se deixe
enclausurar nos valores do mundo, particularmente nos bens materiais, mas
que, como ser espiritual que é, se liberte de qualquer escravidão e vá mais
além até ao plano superior das relações pessoais onde se encontra consigo e com
os demais. A dignidade dos homens se
realiza aqui, no amor fraterno, entendido com toda a amplitude que o Evangelho
lhe deu e que inclui o serviço mútuo, a aceitação e promoção prática dos
outros, especialmente dos mais necessitados.
Entretanto
não seria possível a obtenção autêntica e permanente da dignidade humana neste
nível, se não estivéssemos ao mesmo tempo autenticamente libertados para
realizar-nos no plano transcendente. Este é o plano do Bem Absoluto no qual
está sempre em causa a nossa liberdade, até quando parecemos ignorá-1o. É o
plano da confrontação iniludível com o mistério divino de alguém que, na
qualidade de Pai, chama os homens e lhes dá a capacidade de ser livres, que os
guia providencialmente e, já que eles podem fechar-se a ele e até mesmo
rejeitá-1o, os julga e sanciona para a vida ou para a morte eterna, de acordo
com aquilo que tenham realizado livremente. É uma imensa responsabilidade que
é outro sinal da grandeza mas também do risco que se inclui na dignidade
humana.
Através
da unidade indissolúvel destes três planos aparecem melhor as exigências de
comunhão e participação que brotam desta dignidade. Se no plano transcendente
se realiza em plenitude nossa liberdade pela aceitação filial e fiel de Deus,
entramos em comunhão de amor com o mistério divino e participamos de sua
própria vida. O contrário é romper com o amor filial, repelir e desprezar o
Pai. São duas possibilidades extremas que a revelação cristã chama graça e
pecado. Elas, porém, não se realizam a não ser estendendo-se simultaneamente
aos outros dois planos, com incensas conseqüências para a dignidade humana.
O
amor de Deus que nos dignifica radicalmente se faz necessariamente comunhão de
amor com os outros homens e participação fraterna; para nós, hoje em dia, deve
tornar-se sobretudo obra de justiça para com os oprimidos, esforço de
libertação para quem mais precisa. De fato, "ninguém pode amar a Deus a
quem não vê, se não ama o irmão a quem vê" ( 1 Jo 4,20 ) . Todavia a
comunhão e a participação verdadeiras só podem existir nesta vida projetadas no
plano bem concreto das realidades temporais, de tal modo que o domínio, o uso
e a transformação dos bens da terra, dos bens da cultura, da ciência e da técnica
se vão realizando em um justo e fraterno domínio do homem sobre o mundo,
tendo-se em conta o respeito da ecologia. O Evangelho nos deve ensinar, em
face das realidades em que vivemos imersos, que não se pode atualmente na AL
amar de verdade o irmão nem portanto a Deus sem que o homem se comprometa em
nível pessoal e, em muitos casos, até em nível estrutural com o serviço e
promoção dos grupos humanos e dos estratos sociais mais pobres e humilhados,
arcando com todas as conseqüências que se seguem no plano destas realidades
temporais.
Mas
a uma atitude pessoal de pecado, à ruptura com Deus que degrada o homem,
corresponde sempre, no plano das relações interpessoais, a atitude de egoísmo,
de orgulho, de ambição e inveja que geram injustiça, dominação e violência em
todos os níveis; corresponde à luta entre indivíduos, grupos, classes sociais
e povos bem como á corrupção, o hedonismo, a exacerbação sexual e a
superficialidade nas relações mútuas. Conseqüentemente se estabelecem
situações de pecado que, em nível mundial, escravizam a tantos homens e
condicionam adversamente a liberdade de todos.
Temos
de nos libertar deste pecado; do pecado que destrói a dignidade humana.
Libertamo-nos participando da vida nova que Jesus Cristo nos traz e também pela
comunhão com ele no mistério da sua morte e ressurreição, sob a condição de
vivermos este mistério nos três planos já indicados, sem tornar exclusivo
nenhum deles. Assim não o reduziremos nem ao verticalismo da união espiritual
com Deus desencarnada, nem ao simples personalismo existencial feito de laços
entre indivíduos ou pequenos grupos, nem muito menos ao horizontalismo
sócio-econômico-político.
2.3. O
homem renovado em Jesus Cristo
O
pecado está minando a dignidade humana que Jesus Cristo resgatou. Através de
sua mensagem, de sua morte e ressurreição, ele nos deu a vida divina: dimensão
insuspeitada e eterna da nossa existência terrena. Jesus Cristo, que está vivo
em sua Igreja, sobretudo entre os mais pobres, quer hoje enaltecer esta
semelhança com o Deus de seu povo: pela participação do Espírito Santo em
Cristo também nós podemos chamar a Deus de Pai e nos tornarmos radicalmente
irmãos. Ele nos faz tomar consciência do pecado contra a dignidade humana, que
se alastra pela AL; enquanto este pecado destrói a vida divina do homem, é o
maior dano que uma pessoa pode causar-se a si mesma e aos demais. Cristo,
finalmente, nos oferece a sua graça mais abundante que o nosso pecado. Dele vem
o vigor que nos permite libertar-nos a nós e libertar os outros do mistério da
iniqüidade. Jesus Cristo restaurou a dignidade original que os homens tinham
recebido ao se: em criados por Deus à sua imagem, ao serem chamados a uma santidade ou consagração total ao
Criador e destinados a conduzir a história até a manifestação definitiva deste
Deus que difunde sua bondade para alegria eterna de seus filhos em um Reino que
já começou.
Em
Jesus Cristo chegamos a ser filhos de Deus, irmãos seus e participantes de seu
destino, como agentes responsáveis movidos pelo Espírito Santo para
construirmos a Igreja do Senhor.
Em
Jesus Cristo descobrimos a imagem do "homem novo" (Cl 3,10) à qual
fomos configurados pelo batismo e pela qual fomos assinalados pela confirmação
- imagem também daquilo a que todo homem é chamado a ser, fundamento último de
sua dignidade. Ao apresentar a Igreja, mostramos como nela tem de se expressar
e realizar comunitariamente a dignidade humana. Em Maria encontramos a figura
concreta em que culmina toda libertação e santificação na Igreja. Estas figuras
têm que robustecer hoje os esforços dos fiéis latino-americanos em sua luta em
prol da dignidade humana.
Perante
Cristo e Maria devem revalorizar-se na AL os grandes traços da verdadeira
imagem do homem e da mulher: sendo todos fundamentalmente iguais membros da
mesma estirpe, apesar da diversidade de sexos, de línguas, de culturas e de
formas de religiosidade, temos por vocação comum um destino único que - por
incluir o alegre anúncio de nossa dignidade - nos converte em evangelizados e
evangelizadores de Cristo neste Continente.
Nesta
pluralidade e igualdade de todos, cada um . conserva seu lugar e seu valor
irrepetíveis, pois também cada homem latino-americano deve sentir-se amado por
Deus e escolhido por ele desde toda a eternidade, por mais que os homens não
apreciem esse valor e esse lugar ou por pouco que cada um se estime a si
próprio. Como pessoas em diálogo, não podemos realizar nossa dignidade senão
como senhores co-responsáveis de um destino comum do qual Deus nos tornou
capazes, inteligentes, isto é, aptos para discernir a verdade e segui-1a
diante do erro e do engano, livres, isto é, não submetidos inexoravelmente aos
processos econômicos e políticos, embora nos reconheçamos humildemente
condicionados por eles e obrigados a humanizá-los, submetidos, ao invés, a uma
lei moral que vem de Deus e se faz ouvir na consciência dos indivíduos e dos
povos, ensinando, admoestando, repreendendo e enchendo-nos da verdadeira
liberdade dos filhos de Deus.
Por
outro lado, Deus nos deu á existência em um corpo pelo qual temos a
possibilidade de nos comunicar com os outros e de enobrecer o mundo. Por
sermos homens, precisamos da sociedade onde estamos imersos e que vamos
transformando e enriquecendo com a nossa contribuição em todos os níveis, desde
a família e os grupos intermediários até ao Estado, cuja função indispensável
consiste no serviço das pessoas e da própria comunidade internacional. É
necessária a sua integração, sobretudo a integração latino-americana.
Alegramo-nos, por isso, de que também em nossos povos se crie uma legislação em
defesa dos direitos humanos.
A Igreja tem obrigação de pôr em relevo
este aspecto integral da evangelização, primeiro pela constante revisão de sua
própria vida e depois pelo anúncio fiel e pela denúncia profética. Para que
tudo isso se faça de acordo com o espírito de Cristo, devemos exercitar-nos no
discernimento das situações e dos chamados concretos que o Senhor faz em cada
tempo. Isto exige atitude de conversão e de abertura e um sério compromisso com
aquilo que foi reconhecido como autenticamente evangélico.
Só
assim se chegará a viver o que é mais característico da mensagem cristã a
respeito da dignidade humana, a qual está em ser mais e não ter mais. Isto se
viverá tanto entre os homens que, acossados pelo sofrimento, miséria,
perseguição e morte, não vacilam em aceitar a vida no espírito das
bem-aventuranças, quanto entre aqueles que, renunciando a uma vida de prazer e
de facilidades, se dedicam a praticar de um modo realista, no mundo de hoje,
as obras de serviço aos outros, critério e medida pelos quais Jesus Cristo há
de julgar até aqueles que não o tiverem reconhecido.
CAPÍTULO II
O
QUE É EVANGELIZAR?
Nosso
povo clama pela salvação e pela comunhão que o Pai lhe preparou e, no meio de
suas lutas por viver e encontrar o sentido profundo da vida, espera de nós,
bispos, o anúncio da Boa Nova.
O
que é pois evangelizar? Quem espera o nosso anúncio de salvação? Qual é a
transformação das pessoas e das culturas que a semente
do
Evangelho tem de fazer germinar? O que é que nos ensina a Igreja sobre a
autêntica libertação cristã? Como evangelizar a cultura e a religiosidade de
nosso povo? O que diz o Evangelho ao homem que anseia por sua promoçâo e quer
viver seu compromisso político-social?
Propomos
agora nossa reflexão sobre estas interrogações.
CONTEÚDO
1.
Evangelização: dimensão universal e critérios
2.
Evangelização e cultura
3.
Evangelização e religiosidade popular
4.
Evangelização, libertação e promoção humana 5. Evangelização, ideologias e
política
1. EVANGELIZAÇAO: DIMENSAO
UNIVERSAL E CRITÉRIOS
1.1. Situação
Há
cinco séculos que estamos evangelizando a América Latina. Hoje vivemos um
momento grande e difícil desta evangelização. É verdade que a fé de nossos
povos se exprime com evidência. No entanto constatamos que nem sempre ela chega
à sua maturidade, e está ameaçada pela pressão secularista, pelos abalos
provocados pelas mudanças culturais, pelas ambigüidades teológicas existentes
em nosso meio e pelo influxo de seitas proselitistas e de sincretismos que vêm
de fora. Nossa evangelização está marcada por algumas preocupações particulares
e por acentos mais fortes:
-
a redenção integral das culturas, antigas e novas, do nosso Continente tendo
em conta a religiosidade de nossos povos;
-
a promoção da dignidade do homem e a libertação de todas as servidões e
idolatrias
-
a necessidade de fazer com que a força do Evangelho penetre até ao centro de
decisão, "às fontes inspiradoras e aos modelos de vida social e
política" (EN 19).
Nossos
evangelizadores padecem, em certos casos, de uma espécie de confusão e
desorientação a respeito de sua identidade, do próprio significado da
evangelização, do seu conteúdo e de suas motivações profundas.
Para
responder a esta situação e dar um novo impulso à evangelização, queremos dizer
uma palavra clara e esperançosa que estimule a evangelizar, com prazer e
audácia, os nossos povos, em quem percebemos um anseio profundo de receber o
Evangelho de Cristo. Para este fim recordamos o sentido da evangelização, sua
dimensão e destino universal, como também os critérios e sinais que lhe
manifestam a autenticidade.
1.2. O ministério da
evangelização
A
missão evangelizadora é de todo o Povo de Deus. Esta é sua vocação primordial,
"sua identidade mais profunda" (EN 14). É a sua felicidade. O Povo de
Deus com todos os seus membros, instituições e planos existe para evangelizar.
O dinamismo do Espírito de Pentecostes anima-o e envia-o a todos os povos.
Nossas Igrejas particulares hão de escutar, com renovado entusiasmo, o mandato
do Senhor: "Ide, pois, e fazei discípulos meus todos os povos" (Ml
28,19).
A Igreja converte-se cada dia à palavra
da verdade. Segue pelos caminhos da história a Cristo encarnado, morto e
ressuscitado e faz-se seguidora do Evangelho para transmiti-1o aos homens, com
plena fidelidade.
A partir da pessoa chamada à comunhão
com Deus e com os homens, o Evangelho deve penetrar em seu coração, em suas
experiências e modelos de vida, em sua cultura e ambientes, para fazer uma
humanidade nova com homens novos e caminharem todos na direção de uma nova
maneira de ser, julgar, viver e conviver. Este é um serviço que a todos nós
obriga.
Afirmamos
que a evangelização "deve conter sempre uma proclamação clara de que em
Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, morto e ressuscitado, se oferece a
salvação a todos os homens, como dom da graça e misericórdia de D2us" (EN
27 ) . E aqui está o que é a base, o centro e ao mesmo tempo o cume de seu
dinamismo, o conteúdo essencial da evangelização.
A
evangelização dá a conhecer Jesus como 0 Senhor que nos revela o Pai e nos
comunica seu Espírito. Ela chama-nos à conversão que é reconciliação e vida
nova, leva-nos à comunhão com o Pai que nos torna filhos e irmãos. Faz brotar,
pela caridade derramada em nossos corações, frutos de justiça, perdão,
respeito, dignidade e paz no mundo.
A salvação que Cristo nos oferece dá
sentido a todas as aspirações e realizações humanas, mas questiona-as e
excede-as infinitamente. Embora "comece certamente nesta vida, tem sua plenitude
na eternidade" ( EN 27 ) . Origina-se em Cristo, em sua encarnação, em
toda a sua vida e alcança-se de maneira definitiva, em sua morte e ressurreição.
Prossegue na história dos homens pelo mistério da Igreja sob o influxo
permanente do Espírito que a precede, acompanha e lhe dá fecundidade
apostólica.
Esta
mesma salvação, centro da Boa Nova é "libertação do que oprime o homem,
mas sobretudo libertação do pecado e do maligno, na alegria de se conhecer a
Deus e de ser conhecido por ele, de a pessoa o ver e de se entregar a ele"
( EN 9 ) . Mas esta salvação tem "vínculos muito fortes" com a
promoção humana em seus aspectos de desenvolvimento e de libertação, parte
integrante da evangelização. Estes aspectos brotam da própria riqueza da
salvação, da ativação da caridade de Deus em nós, a que estes aspectos estão
subordinados. A Igreja "não
necessita, portanto, de recorrer a sistemas e ideologias para amar e defender
a libertação do homem e colaborar com ela: no centro da mensagem de que é depositária
e pregoeira, encontra inspiração para atuar em prol da fraternidade, da,
justiça e da paz; para agir contra as dominações, escravidões, discriminações,
violências e atentados à liberdade religiosa, contra as agressões ao homem e a
tudo quanto atenta contra a vida" (João Paulo II, Discurso Inaugural III,
2 ) .
A
Igreja, mediante seu dinamismo evangelizador, gera este processo:
-
Dá testemunho de Deus, revelado em Cristo pelo Espírito, que dentro de nós
clama Abba "Pai" c1381. Assim comunica a experiência de sua fé nele.
-
Anuncia a Boa Nova de Jesus Cristo, mediante a palavra da vida: este anúncio
suscita a fé, a pregação, a catequese progressiva que a alimenta e educa.
-
Gera a fé, que é conversão do coração e da vida, entrega da pessoa a Jesus Cristo;
dá a participação de sua morte, para que a vida de Cristo se manifeste em cada
homem. Esta fé, que também denuncia o que se opõe à construção do Reino,
implica em rupturas que são necessárias e às vezes dolorosas.
-
Leva ao ingresso na comunidade dos fiéis, que perseveram na oração, na
convivência fraterna e celebram a fé e os seus sacramentos, cujo ápice é a
Eucaristia.
-
Envia como missionários aos que receberam o Evangelho com ânsias de que todos
os homens sejam oferecidos a Deus e de que todos os povos o louvem c141).
Assim
a Igreja, em cada um dos seus membros, é consagrada em Cristo pelo Espírito, é
enviada a pregar a Boa Nova aos pobres e a "buscar e salvar o que estava
perdido" (Lc 19,10).
1.3. Dimensão e destino
universal da evangelização
A
evangelização tem de calar fundo no coração do homem e dos povos. Por isso sua
dinâmica procura a conversão pessoal e a transformação social. A evangelização
há de estender-se a todos os povos; por isso sua dinâmica procura a universalidade
do gênero humano. Ambos estes aspectos são de atualidade para evangelizar hoje
e amanhã a América Latina.
O
fundamento desta universalidade é, antes de tudo, o mandato do Senhor:
"Ide, pois, fazei discípulos meus todos os povos" (Ml 28,19) e a unidade
da família humana, criada por um mesmo Deus que salva e assinala com sua graça.
Cristo, a morto por todos, atrai a todos por sua glorificação no Espírito.
Quanto mais convertidos a Cristo, tanto mais somos arrastados por seu anseio
universal de salvação. Assim sendo, quanto mais vital é a Igreja particular,
tanto mais tornará presente e visível a Igreja universal e mais forte será o
seu movimento missionário na direção dos outros povos.
O
nosso primeiro serviço para formar uma comunidade eclesial mais viva consiste
em fazer a nossos cristãos mais fiéis e amadurecidos em sua fé, alimentando-os
com uma catequese adequada e uma liturgia renovada. Eles serão fermento no
mundo e darão à evangelização extensão e vigor. Outra tarefa consiste em
atender às situações que mais precisam de evangelização:
-
Situações permanentes: nossos indígenas, habitualmente marginalizados quanto
aos bens da sociedade e, em alguns casos, ou não evangelizados ou
evangelizados de forma insuficiente; os afro-americanos tantas vezes
esquecidos.
-
Situações novas (AG 6) que nascem de
mudanças sócio-culturais e exigem uma outra evangelização: pessoas que emigram
para outros países; grandes aglomerações urbanas no próprio país; massas de
todos os estratos sociais em precária situação de fé; grupos expostos aos
influxos de seitas e ideologias que não lhes respeitam a identidade, que
confundem e provocam divisões.
-
Situações particularmente difíceis: grupos cuja evangelização é urgente, mas
muitas vezes adiada: universitários, militares, operários, jovens, mundo da
comunicação social etc.
Finalmente
chegou para a América Latina a hora de intensificar os serviços recíprocos
entre as Igrejas particulares e de estas se projetarem p certo que nós próprios
precisamos de missionários, mas devemos dar de nossa pobreza. Por o iro lado
nossas Igrejas podem oferecer algo de original e importante; o seu sentido de
salvação e libertação, a riqueza de sua religiosidade popular, a experiência
das Comunidades Eclesiais de Base, a floração de seus ministérios, sua esperança
e a alegria de sua fé. Já se realizaram esforços missionários que se podem
aprofundar e se devem ampliar.
Não
podemos deixar de agradecer a generosa ajuda da Igreja universal e nesta ajuda
a das Igrejas irmãs pedindo que continuem a nos acompanhar especialmente na
formação de agentes autóctones. Assim nos sentiremos sempre fortalecidos para
assumir este compromisso universal e teremos maior capacidade de responder ao
serviço próprio de nossa Igreja particular.
1.4. Critérios e sinais de
evangelização
O
evangelizador participa da fé e da missão da Igreja que o envia. Necessita de
critérios e sinais que permitam discernir o que corresponde de fato à fé e à
missão da Igreja, isto é, à vontade de seu Senhor. "Cada um considere como
constrói, pois ninguém pode lançar outro fundamento. além do que foi lançado,
que é Jesus Cristo" (1 Cor 3, 10-11) . "Portanto, assim como
acolhestes a Cristo Jesus, o Senhor, continuai a guiar-vos por ele.
Arraigai-vos nele e edificai-vos sobre ele, perseverai na fé que vos foi
ensinada e transbordai em ações de graça!" (Cl 2,6-7) c143).
Estes
critérios e sinais são inspiradores de uma evangelização autêntica e viva. As distorções e perplexidades fretam ou
paralisam seu dinamismo. Apresentamos os seguintes critérios fundamentais: - A Palavra de Deus contida na Bíblia e na
tradição viva da Igreja, particularmente expressa nos símbolos ou profissões
de fé e dogmas da Igreja. A Sagrada
Escritura deve ser a alma da evangelização. Mas não adquire só por si a clareza
perfeita. Deve ser lida e interpretada dentro da fé viva da Igreja. Nossos
símbolos ou profissões de fé resumem a Sagrada Escritura e explicitam
substâncias de mensagem pondo em relevo a "hierarquia das verdades".
-
A Fé do Povo de Deus. É a fé da Igreja universal que se vive e exprime
concretamente em suas comunidades particulares. Uma comunidade particular
concretiza em si mesma a fé da Igreja universal e deixa de ser comunidade
privada e isolada; supera sua própria particularidade na fé da Igreja total.
-
O magistério da Igreja. O sentido da Escritura, dos símbolos e das formulações
dogmáticas do passado não brota só do próprio texto, mas também da fé da
Igreja. No seio da comunidade encontramos a instância de decisão e
interpretação autêntica e fiel da doutrina da fé e da moral; é o serviço do
sucessor de Pedro que confirma a seus irmãos na fé e dos bispos
"sucessores dos apóstolos no carisma da verdade" (DV 8).
-
Os teólogos prestam um serviço importante à Igreja: sistematizam a doutrina e
as orientações do magistério em uma síntese de contexto mais amplo, traduzem-na
para uma linguagem adaptada ao tempo: submetem a uma nova investigação os
fatos e as palavras reveladas por Deus, para referí-las a novas situações
sócio-culturais, ou a novas descobertas e problemas suscitados pela ciência,
pela história ou pela filosofia. Servindo assim à Igreja, procurarão não
causar prejuízo à fé dos fiéis, seja com explicações difíceis, seja divulgando
questões discutidas e discutíveis.
-
O trabalho teológico implica certa pluralidade que resulta do uso de
"métodos e modos diferentes para conhecer e expressar os divinos mistérios".
Existe, portanto, um pluralismo bom e necessário que procura exprimir as
legítimas diversidades, sem afetar a coesão e a concórdia. Também existem
pluralismos que fomentam a divisão.
-
Todos participamos da missão profética da Igreja. Sabemos que o Espírito
distribui seus dons e carismas para o bem de todo o corpo. Devemos recebê-1o
com gratidão, mas seu discernimento, isto é, o juízo a respeito de sua
autenticidade e a regulamentação do seu exercício, corresponde à autoridade
na Igreja, à qual compete, antes de tudo não sufocar o Espírito, mas sim experimentar
tudo e reter o que é bom.
Algumas
atitudes nos revelam a autenticidade da evangelização:
-
Uma vida de profunda comunhão eclesial.
-
A fidelidade aos sinais da presença
e da ação do Espírito nos povos e nas culturas que sejam expressão das
legítimas aspirações dos homens. Isto supõe respeito, diálogo missionário,
discernimento, atitude caridosa e operante.
-
A preocupação de que a palavra da verdade chegue ao coração dos homens e se
faça vida.
-
A contribuição positiva para a
edificação da comunidade.
-
O amor prefencial e a solicitude para com os pobres e necessitados.
-
A santidade do evangelizador (EN
76), cujas notas características são o sentido da misericórdia, a firmeza e a
paciência nas tribulações e perseguições, a alegria de a pessoa saber que é
ministro do Evangelho ( EN 80 ) .
Em
conclusão, o que se pede ao servidor do Evangelho é que seja encontrado fiel.
Sua fidelidade cria comunhão; "dela emana uma grande força
apostólica" (PC 15) que enriquecerá a
Igreja com frutos abundantes do Espírito.
2. EVANGELIZAÇAO DA CULTURA
2.1. Cultura e culturas
Nova
e valiosa contribuição pastoral da exortação Evangelii Nuntiandi está no chamado de Paulo VI a que se enfrente a tarefa da
evangelização da cultura e das culturas ( EN 20 ) .
Com
a palavra "cultura" indica-se a maneira particular como em
determinado povo cultivam os homens sua relação com a natureza, suas relações
entre si próprios e com Deus (GS 53b), de modo que possam chegar a "um
nível verdadeira e plenamente humano" (GS 53a). É "o estilo de vida
comum" (GS 53c) que caracteriza os diversos povos; por isso é que se fala
de "pluralidade de culturas" (GS
53c) c153).
A cultura assim entendida abrange a
totalidade . da vida de um povo: o conjunto dos valores que o animam e dos
desvalores que o enfraquecem e que, ao serem partilhados em comum por seus
membros, os reúnem na base de uma mesma "consciência coletiva" ( EN
18 ) . A cultura abrange,
outrossim, as formas através das quais estes valores ou desvalores se exprimem
e configuram, isto é, os costumes, a língua, as instituições e estruturas de
convivência social, quando não são impedidas ou reprimidas pela intervenção de
outras culturas dominantes.
No quadro
desta totalidade, a evangelização procura alcançar a raiz da cultura a zona de
seus valores fundamentais, despertando uma conversão que possa ser a base e a
garantia da transformação das estruturas e do ambiente social.
O
essencial da cultura é constituído pela atitude com que um povo afirma ou nega
sua vinculação religiosa com Deus, pelos valores ou desvalores religiosos.
Estes têm a ver com o sentido último da existência e radicam naquela região
mais profunda onde o homem encontra respostas para as perguntas básicas e
definitivas que o atormentam, quer as encontre numa orientação positivamente
católica ou, pelo contrário, numa orientação atéia. E por isso que a religião
ou a irreligião são inspiradoras de todas as restantes ordens culturais familiar,
econômica, política,, artística, etc... enquanto as libera para a ordem da
transcendente ou as encerra em seu próprio sentido imanente. A evangelização, que leva em consideração
o homem todo, procura atingi-1o em sua totalidade, a partir de sua dimensão
religiosa.
A cultura é uma atividade criadora do
homem pela qual ele responde à vocação de Deus que lhe pede que aperfeiçoe toda
a criação (Gênese) e nela as próprias capacidades e qualidades espirituais e
corporais.
A cultura vai-se formando e
transformando à base de uma contínua experiência histórica e vital dos povos.
Transmite-se através de um processo de tradição genealógica. O homem, portanto,
nasce e desenvolve-se no seio de uma determinada sociedade, condicionado e
enriquecido por uma cultura particular. Ele recebe-a e modifica-a criativamente
e continua a transmiti-1a. A cultura
é uma realidade histórica e social.
Sempre
submetidas a novos desenvolvimentos, à interpenetração e ao encontro
recíprocos, passam as culturas, em seu processo histórico, por períodos em que
se vêem desafiadas por novos valores ou desvalores e pela necessidade de
realização de novas sínteses vitais. Nestes períodos, a Igreja se sente chamada
a estar presente juntamente com o Evangelho, particularmente nas fases em que
decaem e morrem velhas formas, segundo as quais o homem organizou seus valores
e sua convivência para dar lugar a sínteses novas''. É melhor evangelizar as
novas formas culturais logo ao nascer e não quando já cresceram e se estabilizaram.
É este o desafio global que no momento a Igreja enfrenta, já que "se pode
falar, com razão de uma nova época da história humana" (GS 54). Por isso a Igreja da América
Latina procura dar novo impulso à evangelização em nosso Continente.
2.2. Opção pastoral da Igreja
da América Latina: a evangelização da própria cultura, no presente em vista do
futuro
Finalidade da evangelização
Cristo
enviou sua Igreja para anunciar o Evangelho a todos os homens, a todos os
povos. Uma vez que cada um dos homens nasce no seio de uma cultura, a Igreja
procura alcançar, por meio de sua ação evangelizadora não só o indivíduo senão
também a cultura do povo. Procura "alcançar e transformar pela força do Evangelho
os critérios de juízo, os valores determinantes, os pontos de interesse, as
linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da
humanidade, que estão em contraste com a palavra de Deus e com o projeto da
salvação. Poder-se-ia exprimir isso dizendo: importa evangelizar - não de maneira
decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em
profundidade, e isto até às suas raízes - a cultura e as culturas do
homem" ( EN 19-20 ) .
Opção pastoral
A
ação evangelizadora de nossa Igreja latino-americana há de ter como meta. geral
a constante renovação e transformação evangélica de nossa cultura, quer
dizer, a penetração pelo Evangelho, dos valores e critérios que a inspiram, a
conversão dos homens que vivem segundo esses valores e a mudança que, para ser
mais plenamente humanas, requerem as estruturas em que aqueles vivem e se
expressam.
Para
isso, é de primeira importância atender à religião de nossos povos, não só
assumindo-a como objeto de evangelização, mas também, por estar já
evangelizada, como força ativamente evangelizadora.
2.3.
Igreja, fé e cultura
Amor aos povos e conhecimento
de sua cultura A fim
de desenvolver sua ação evangelizadora com realismo, a Igreja há de conhecer a
cultura da América Latina. Mas ela parte, antes de tudo, de uma profunda
atitude de amor aos povos. Deste modo, não só por via científica, mas também
pela conatural capacidade de compreensão efetiva que dá o amor, poderá conhecer
e discernir as modalidades próprias de nossa cultura, suas crises e desafios
históricos e solidarizar-se, em conseqüência disso, com ela no seio de sua
história. Um critério importante que há de guiar a Igreja em seu esforço de
conhecimento é o seguinte: importa verificar para onde se orienta o movimento
geral da cultura e não tanto os entraves que se detêm no passado, as expressões
atualmente vigentes e não tanto as meramente folclóricas.
A tarefa da evangelização da cultura em
nosso Continente deve ser .focalizada sobre o pano de fundo de uma arraigada
tradição cultural, desafiada pelo processo de transformação cultural que a
América Latina e o mundo inteiro vêm vivendo nos tempos modernos e que
atualmente chega a seu ponto de crise.
Encontro da fé com as culturas
A
Igreja, Povo de Deus, quando anuncia o Evangelho e os povos acolhem a fé,
neles se encarna e assume suas culturas. Instaura assím não uma identificação,
mas duma estreita vinculação com ela. Por um lado, efetivamente, a fé
transmitida pela Igreja é vivida a partír de uma cultura pressuposta, isto é,
por fiéis "vinculados profundamente a uma cultura, e a construção do
Reino não pode deixar de servir-se de elementos da cultura e das culturas
humanas" c'61). por outro lado, continua válido, na ordem pastoral, o
princípio de encarnação formulado por Santo Ireneu: "O que não é assumido
não é redimido".
O
princípio geral de encarnação se concretiza em diversos critérios particulares:
As culturas
não são terreno vazio, carente de autênticos valores. A evangelização da Igreja não é um processo de destruição, mas de
consolidação e fortalecimento desses valores; uma contribuição ao crescimento
dos "germes do Verbo" presentes nas culturas.
Com
maior interesse assume a Igreja os valores especificamente cristãos que
encontra nos povos já evangelizados e que são vividos por estes segundo sua
própria modalidade cultural.
A Igreja, parte, em sua evangelização,
daquelas sementes lançadas por Cristo e desses valores, frutos de sua própria
evangelização.
Tudo
isso implica que a Igreja - e obviamente a Igreja particular - se esmere por
adaptar-se, realizando o esforço de transvasamento da mensagem evangélica para
a linguagem antropológica e para os símbolos da cultura em que se insere c163).
A Igreja, ao propor à Boa Nova, denuncia
e corrige a presença do pecado nas culturas, purifica e exorcisa os
desvalores. Estabelece, por conseqüência, uma crítica das culturas, uma vez que
o reverso do anúncio do Reino de Deus é a crítica das idolatrias, isto é, a
crítica dos valores erigidos em ídolos ou dos valores que uma cultura assume
como absolutos sem que o sejam. A Igreja
tem a missão de dar testemunho do "verdadeiro Deus e do único
Senhor". .
Não
se pode considerar como violação a evangelização que é um convite a que se
abandonem as falsas concepções de Deus, procedimentos antinaturais e
manipulações aberrantes do homem feitas pelo homem.
A tarefa específica da evangelização
consiste em "anunciar a Cristo" c165) e convidar as culturas não a
ficar sob um esquema eclesiástico, mas sim a acolher pela fé o domínio espiritual
de Cristo, fora de cuja verdade e graça não poderão encontrar sua plenitude.
Deste modo pela evangelização a Igreja procura que as culturas se renovem, se
elevem e se aperfeiçoem pela presença viva do Ressuscitado, centro da história
e do seu Espírito (EN 18,20,23; GS 58d, 61a).
2.4. Evangelização da cultura
na AL
Já
foram indicados os critérios fundamentais que orientam a ação evangelizadora
das culturas. Nossa Igreja, por seu lado, realiza a referida ação nesta área
humana especial da AL. Seu processo
histórico-cultural já foi descrito ( cf. Parte I ) . Retomamos agora brevemente
os principais dados estabelecidos na primeira parte deste documento, para poder
discernir os desafios e problemas que o momento atual coloca para a
evangelização.
Tipos de cultura e fases no
processo cultural
A
AL tem sua origem no encontro da raça hispano-lusitana com as culturas
pré-colombianas e africanas. A mestiçagem
racial e cultural marcou fundamentalmente este processo, e sua dinâmica indica
que no futuro continuará marcando.
Este
fato não nos pode fazer desconhecer a persistência de várias culturas
indígenas ou afro-americanas em estado puro e a existência de grupos com
diversos graus de integração nacional. Posteriormente, durante os dois últimos
séculos, afluem novas correntes migratórias, sobretudo no Cone Sul, que trazem
modalidades próprias integrando-se basicamente no estrato cultural preexistente.
Na
primeira época, isto é, do século XVI ao XVIII se lançam as bases da cultura
latino-americana e de seu real substrato católico. Sua evangelização foi
suficientemente profunda para que a fé passasse a ser constitutiva de sua
essência e da sua identidade, dando-lhe a unidade espiritual que subsiste,
apesar da anterior divisão em diversas nações e apesar de estar marcada por
rupturas em nível econômico, político e social.
Esta
cultura impregnada de fé e, com freqüência, sem uma catequese conveniente,
manifesta-se nas atitudes próprias da religião de nosso povo, penetradas de um
profundo sentimento de transcendência e ao mesmo tempo da proximidade de Deus.
Traduz-se em uma sabedoria popular com expressões contemplativas que orienta o
modo peculiar como o homem latino-americano vive sua relação com a natureza e
com os outros homens, num sentido de trabalho e festa, de solidariedade, de
amizade e parentesco. Traduz-se igualmente no sentimento de sua própria
dignidade que não é diminuída pela vida pobre e singela que leva.
E
uma cultura que, conservada de um modo mais vivo e articulando toda a
existência nos setores pobres, está marcada especialmente pelo coração e suas
intenções. Exprime-se não tanto nas categorias e na organização mental
características das ciências, mas nas artes plásticas, na piedade que se faz
vida e nos espaços de convivência solidária. Esta cultura, primeiro a mestiça e
depois pouco a pouco a dos diversos agrupamentos indígenas e afro-americanos,
começa no século XVIII a sofrer o impacto da chegada da civilização
urbano-industrial, dominada pela mentalidade físico-matemática e pela idéia de
eficácia.
Esta
civilização é acompanhada de fortes tendências à personalização e à
socialização. Produz uma acentuada aceleração da história, que exige de todos
os povos um grande esforço de assimilação e criatividade, para que suas
culturas não sejam postergadas ou até eliminadas.
A cultura urbano-industrial com a
conseqüente e a intensa proletarização dos setores sociais e até de diversos
povos, é controlada pelas grandes potências que detêm a ciência e a técnica.
Este processo histórico tende a tornar cada vez mais agudo o problema da
dependência e da pobreza.
O
advento da civilização urbano-industrial acarreta igualmente problemas no
plano ideológico e chega a ameaçar as próprias raízes de nossa cultura, uma
vez que esta civilização nos chega de fato, em seu real processo histórico,
impregnada de racionalismo e inspirada em duas ideologias dominantes: o
liberalismo e o coletivismo marxista. Em ambas se aninham a tendência não só a
uma legítima e desejada secularização, mas também a do secularismo.
No
quadro deste processo histórico surgem em nosso Continente fenômenos e
problemas particulares e importantes: a intensificação das migrações e dos
deslocamentos de população do campo para a cidade; a presença de fenômenos
religiosos como o da invasão de seitas, que por parecerem marginais, não devem
ficar desapercebidas ao evangelizador; a enorme influência dos meios de
comunicação social como veículos de novas diretrizes e modelos culturais; o
anseio da mulher por sua promoção, de acordo com sua dignidade e peculiaridade
no conjunto da, sociedade; o surgimento de um mundo operário que será decisivo
na nova configuração de nossa cultura.
A ação evangelizadora: desafios e problemas
Os
fatos acima indicados são os desafios que a Igreja há de enfrentar. Neles se manifestam
os sinais dos tempos, que apontam o futuro para onde vai o movimento da
cultura. A Igreja deve discerni-tos,
para poder consolidar os valores e derrubar os ídolos que alentam esse processo
histórico.
A cultura universal em ascensão
A
cultura urbano-industrial, inspirada na mentalidade científico-técnica,
promovida pelas grandes potências e marcada pelas ideologias mencionadas,
pretende ser universal. Os povos, as culturas particulares, os diversos grupos
humanos, são convidados, e mais ainda, obrigados a integrar-se nela.
Na
América Latina esta tendência traz de novo à tona o problema da integração das
etnias indígenas no quadro político e cultural das nações, precisamente por
estas se verem compelidas a avançar a um desenvolvimento maior, a ganhar novas
terras e braços para uma produção mais eficaz, para poder integrar-se com maior
dinamismo no curso acelerado da civilização universal.
Os
níveis que esta nova universalidade apresenta são diversos: o dos elementos
científicos e técnicos como instrumentos de desenvolvimento; o de certos
valores que são acentuados, como os do trabalho e de uma crescente posse de
bens de consumo; o nível de um "estilo de vida" total que traz
consigo uma determinada hierarquia de valores e preferências.
Nesta
encruzilhada histórica, alguns grupos étnicos e sociais se fecham em si
mesmos, defendendo sua própria cultura, num isolamento infrutuoso; outros, em
contrapartida, se deixam absorver facilmente pelos estilos de vida que
instaura o novo tipo de cultura universal.
A Igreja, em sua tarefa evangelizadora,
procede com fino e laborioso discernimento. Por seus próprios princípios
evangélicos, contempla com satisfação os progressos da humanidade para a integração
e comunhão universal. Em virtude de sua missão específica, se sente enviada,
não para destruir, mas para ajudar as culturas a se consolidarem em seu
próprio ser e identidade, convocando os homens de todas as raças e povos a se
reunirem, pela fé, sob Cristo, no mesmo e único Povo de Deus.
A Igreja promove e fomenta até mesmo o
que vai além desta união católica na mesma fé e que se concretiza em formas de
comunhão entre as culturas e de integração justa nos níveis econômico, social
e político.
Mas
ela questiona, é claro, aquela "universalidade", que é sinônimo de
nivelamento e uniformidade, que não respeita as diferentes culturas, debilitando-as,
absorvendo-as ou eliminando-as. Com maior razão a Igreja não aceita aquela
instrumentação da universalidade que equivale à unificação da humanidade
mediante uma injusta e lesante supremacia e domínio de uns povos ou setores
sociais sobre outros povos e setores.
A Igreja da América Latina se propõe
reencetar com renovado vigor a evangelização da cultura de nossos povos e dos
diversos grupos étnicos para que germine ou seja reavivada a fé evangélica e
para que esta, como base de comunhão, se lance em formas de justa integração
nos quadros respectivos de uma nacionalidade, de uma grande pátria
latino-americana e de uma integração universal que permita a nossos povos o
desenvolvimento de sua própria cultura, capaz de assimilar de modo próprio as
descobertas científicas e técnicas.
A cidade
Na
passagem da cultura agrária para a urbano-industrial, a cidade se transforma
em propulsora da nova civilização universal. Este fato requer um novo
discernimento por parte da Igreja. Globalmente, deve inspirar-se na visão da
Bíblia, a qual ao mesmo tempo que comprova positivamente a tendência dos homens
à criação de cidades onde conviver de um modo mais associado e humano, é
crítica da dimensão desumana do pecado que nelas se origina.
Assim
sendo, nas atuais circunstâncias, a Igreja não alenta o ideal da criação de
megalópoles que se tornam irremediavelmente desumanas, como tampouco de uma
industrialização excessivamente acelerada que as atuais gerações tenham que
pagar às custas de sua própria felicidade, com sacrifícios desproporcionais.
Por
outro lado, reconhece que a vida urbana e as transformações industriais
levantam problemas até agora desconhecidos. Em seu interior se modificam os
modos de vida e as estruturas habituais da vida: a família, a vizinhança, a
organizarão do trabalho. Alteram-se igualmente as condições de vida do homem
religioso, dos fiéis e da comunidade cristã.
As
características anteriores constituem aspectos do chamado "processo de
secularização", ligado evidentemente ao surgimento da ciência e da técnica
e à urbanização crescente.
Não
há razão de se pensar que as formas essenciais da consciência religiosa
estejam exclusivamente ligadas à cultura agrária. É falso dizer que a passagem
para a civilização urbano-industrial acarrete necessariamente a abolição da
religião. Contudo, constitui um evidente desafio, ao se condicionar com novas
formas e estruturas de vida, a consciência religiosa e a vida cristã.
A Igreja se encontra pois diante do
desafio de renovar sua evangelização, de modo que possa ajudar aos fiéis a
viver sua vida cristã no quadro dos novos condicionamentos que a sociedade
urbano-industrial cria para a vida de santidade; para a oração e a
contemplação; para as relações entre os homens, que se tornam anônimas e
arraigadas no meramente funcional; para uma nova vivência do trabalho, da
produção e do consumo.
O secularismo
A
Igreja assume o processo de secularização no sentido de uma legítima autonomia
do secular como justo e desejável, conforme entendem a GS e a EN. Contudo, a passagem para a civilização
urbano-industrial, considerada não em abstrato, mas em seu real processo
histórico ocidental, é inspirada pela ideologia que chamamos "secularismo".
Em
sua essência, o secularismo separa e opõe o homem com relação a Deus; concebe a
construção da história como responsabilidade exclusiva do homem, considerado em
sua mera imanência. Trata-se de "uma concepção do mundo segundo a qual
este último se explica por si mesmo, não sendo necessário recorrer a Deus: Deus
seria pois supérfluo e até mesmo um obstáculo. Este secularismo, para
reconhecer o poder do homem, acaba se colocando acima de Deus ou mesmo
negando-o. Novas formas de ateísmo - um ateísmo antropocêntrico, não abstrato
e metafísico, mas prático e militante - parecem derivar dele. Em união com este
secularismo ateu, nos é proposta todos os dias, sob as formas mais diversas,
uma civilização de consumo, o hedonismo erigido em valor supremo, uma vontade
de poder e de domínio, de discriminações de toda espécie: constituem elas
outras tantas inclinações desumanas deste "humanismo" ( EN 55 ) .
A Igreja, pois, em sua tarefa de
evangelizar e suscitar a fé em Deus Pai providente e em Jesus Cristo,
ativamente presente na história humana, passa por um confronto radical com esse
movimento secularista. Vê nele uma ameaça à fé e à própria cultura de nossos
povos latino-americanos. Por isso, uma das incumbências fundamentais do novo
impulso evangelizador há de ser atualizar e reorganizar o anúncio do conteúdo
da evangelização partindo da própria fé de nossos povos, de modo que estes
possam assumir os valores da nova civilização urbano-industrial, numa síntese
vital cujo fundamento continue sendo a fé em Deus e não o ateísmo, conseqüência
lógica da tendência secularista.
Conversão e estruturas
Ficou
assinalada a incoerência entre a cultura de nossos povos, cujos valores estão
marcados de fé cristã, e a condição de pobreza em que muitas vezes permanecem
retidos injustamente.
Sem
dúvida, as situações de injustiça e de pobreza extrema são um sinal acusador de
que a fé não teve a força necessária para penetrar os critérios e as decisões
dos setores responsáveis da liderança, ideológica e da organização da
convivência social e econômica de nossos povos. Em povos de arraigada fé
cristã impuseram-se estruturas geradoras de injustiça. Estas, que estão em
conexão com o processo de expansão do capitalismo liberal e em algumas partes
se transformam em outras inspiradas pelo coletivismo marxista, nascem das
ideologias de culturas dominantes e são incoerentes com a fé própria de nossa
cultura popular.
A Igreja convida, pois, a uma renovada
conversão no plano dos valores culturais, para que a partir daí se impregnem de
espírito evangélico as estruturas de convivência. Ao convidar a uma revitalização
dos valores evangélicos, ela insiste numa rápida e profunda transformação das
estruturas, uma vez que estas estão destinadas a conter, por sua própria
natureza, o mal que nasce do coração do homem
e se manifesta igualmente em forma social, e em servir como condições
pedagógicas para uma conversão interior, no plano dos valores.
Outros problemas
No
conjunto desta situação geral e de seus desafios globais, se inserem alguns
problemas particulares de importância que a Igreja há de atender em seu novo
impulso evangelizador. Estes são: a organização de uma adequada catequese
partindo de um devido conhecimento das condições culturais de nossos povos e
de uma compenetração com seu estilo de vida, com suficientes agentes pastorais
autóctones e diversificados, que satisfaçam o direito de nossos povos e de
nossos pobres em não ficar esquecidos na ignorância ou em níveis de formação
rudimentares de sua fé.
Um
questionamento crítico e construtivo do sistema educativo na América Latina.
A necessidade de traçar critérios e
caminhos, baseados na experiência e na imaginação, para uma pastoral da
cidade, onde se encontram em gestação os novos modos de cultura bem como o aumento
do esforço evangelizador e promotor dos grupos indígenas e afro-americanos.
A instauração de uma nova presença
evangelizadora da Igreja no mundo operário, nas elites intelectuais e entre
as artísticas.
A contribuição humanista e
evangelizadora da Igreja para a promoção da mulher, conforme sua própria
identidade específica.
3. EVANGELIZAÇÃO E
RELIGIOSIDADE POPULAR
3.1.
Noção e afirmações fundamentais Entendemos
por religião do povo, religiosidade popular ou piedade popular o conjunto de
crenças profundas marcadas por Deus, das atitudes básicas que derivam dessas
convicções e as expressões que as manifestam. Trata-se da forma ou da
existência cultural que a religião adota em um povo determinado. A religião do povo latino-americano, em
sua forma cultural mais característica, é expressão da fé católica. É um
catolicismo popular.
Com
deficiências e apesar do pecado sempre presente, a fé da Igreja marcou a alma
da América Latina, caracterizando-lhe
a identidade histórica essencial e constituindo-se na matriz cultural do
Continente, da qual nasceram os novos povos.
O
Evangelho encarnado em nossos povos congrega-os numa originalidade histórica
cultural que chamamos América Latina. Essa identidade está simbolizada muito
luminosamente no rosto mestiço da Virgem de Guadalupe que surge no início da
evangelização.
Esta
religião do povo é vivida de preferência pelos "pobres e simples" (
EN 48 ), mas abrange todos os setores sociais e, às vezes, é um dos poucos
vínculos que reúne os homens em nossas nações politicamente tão divididas. Por
outro lado, deve sustentar-se que tal unidade contém diversidades múltiplas
segundo os grupos sociais, étnicos e, mesmo, as gerações.
A religiosidade do povo, em seu núcleo,
é um acervo de valores que responde com sabedoria cristã às grandes incógnitas
da existência. A sapiência popular católica tem uma capacidade de síntese
vital; engloba criadoramente o divino e o humano, Cristo e Maria, espírito e
corpo, comunhão e instituição, pessoa e comunidade, fé e pátria, inteligência
e afeto. Esta sabedoria é um humanismo cristão que afirma radicalmente a dignidade
de toda pessoa como Filho de Deus, estabelece uma fraternidade fundamental,
ensina a encontrar a natureza e a compreender o trabalho e proporciona as
razões para a alegria e o humor, mesmo em meio de uma vida muito dura. Essa
sabedoria é também para o povo um princípio de discernimento, um instinto
evangélico pelo qual capta espontaneamente quando se serve na Igreja ao
Evangelho e quando ele é esvaziado e asfixiado com outros interesses! (João
Paulo II, Discurso Inaugural, III,
6-AAS, LXXI, p. 203 ) .
Uma
vez que esta realidade cultural abrange setores sociais muito extensos, a
religião do povo tem a capacidade de congregar multidões. Por isso, no âmbito
da piedade popular, a Igreja cumpre com seu imperativo de universalidade.
Efetivamente, "sabendo que a mensagem não está reservada a um pequeno
grupo de iniciados, de privilegiados ou eleitos, mas se destina a todos"
(EN 57), a Igreja consegue essa amplidão de convocação das multidões nos
santuários e nas festas religiosas. Aí a mensagem evangélica tem oportunidade,
nem sempre aproveitada pastoralmente, de chegar "ao coração das
massas" (ibid.).
A
religiosidade popular não só é objeto de evangelização, mas também, enquanto
contém encarnada a Palavra de Deus, é uma forma ativa com que o povo se
evangeliza continuamente a si próprio. Esta piedade popular católica, na
América Latina, não chegou a impregnar adequadamente ou mesmo não conseguiu
evangelizar certos grupos culturais autóctones ou de origem africana, que por
sua vez possuem riquíssimos valores e guardam "sementes do Verbo" à
espera da Palavra viva.
A
religiosidade popular, embora marque a cultura da América Latina, não se
expressou suficientemente na organização de nossas sociedades e Estados. Por
isso deixa um espaço para o que S. S. João Paulo II tornou a designar como
"estruturas de pecado" (Homilia Zapopán, 3-AAS, LXXI, p. 230).
Destarte a distância entre ricos e pobres, a situação de ameaça que vivem os
mais fracos, as injustiças, as postergações e sujeições indignas que sofrem,
contradizem radicalmente os valores de dignidade pessoal e de irmandade
solidária, que o povo latino-americano traz em seu coração como imperativos
recebidos do Evangelho. Por isso a religiosidade do povo latino-americano se
converte muitas vezes num clamor por uma verdadeira libertação. É uma
exigência ainda não satisfeita. O povo por sua vez, movido por esta
religiosidade, cria ou utiliza dentro de si, em sua convivência mais estreita,
alguns espaços para exercer a fraternidade, por exemplo: o bairro, a aldeia, o
sindicato, o esporte. Entretanto, não desespera, aguarda com confiança e com
astúcia os momentos oportunos para progredir em sua libertação tão almejada.
Por
falta de atenção dos agentes de pastoral e por outros fatores complexos, a
religião do povo mostra em certos casos sinais de desgaste e deformação:
aparecem substitutos aberrantes e sincretismos regressivos. Além disso, pairam
em algumas partes sobre ela sérias e estranhas ameaças que se apresentam
exacerbando a fantasia com tons apocalípticos.
3.2. Descrição da religiosidade
popular
Como
elementos da piedade popular podemos assinalar: a presença trinitária que se
percebe em devoções e em iconografias, o sentido da Providência de Deus Pai;
Cristo celebrado em seu mistério de encarnação (Natal, Menino Jesus), em sua
crucifixão, na eucaristia e na devoção ao Sagrado Coração; amor a Maria: ela e
"seus mistérios pertencem à identidade própria desses povos e caracterizam
sua piedade popular" (João Paulo II, Homilia
Zapopán, 2, - AAS, LXXI, p. 228 ) - venerada como Mãe Imaculada de Deus e dos
homens, como Rainha de nossos diversos países e do Continente inteiro; os
santos, como protetores; os defuntos; a consciência de dignidade pessoal e de
fraternidade solidária; a consciência de pecado e de necessidade de expiação;
a capacidade de expressar a fé numa linguagem total que supera os racionalismos
(canto, imagens, gestos, cor, dança); a fé situada no tempo ( festas ) e em
lugares ( santuários e templos); a sensibilidade para a peregrinação como
símbolo da existência humana e cristã; o respeito filial aos pastores como
representantes de Deus; a capacidade de celebrar a fé em forma expressiva e
comunitária; a integração profunda dos sacramentos e sacramentais na vida
pessoal e social; o afeto particular pela pessoa do Santo Padre; a capacidade
de sofrimento e heroísmo para suportar as provas e confessar a fé; o valor da
oração; a aceitação dos outros.
A religião popular latino-americana, há
tempo, sofre por causa do divórcio entre a elite e o povo. Isso significa que
lhe faltam educação, catequese e dinamismo, devido à carência de uma adequada
pastoral.
Os
aspectos negativos são de origens várias. De tipo ancestral: superstição,
magia, fatalismo, idolatria do poder, fetichismo e ritualismo. Por deformação
da catequese: arcaísmo estático, falta de informação e ignorância,
reinterpretação sincretista, reducionismo da fé a um mero contrato na relação
com Deus. Ameaças: secularismo difundido pelos meios de comunicação social,
consumismo, seitas, religiões orientais e agnósticas, manipulações ideológicas,
econômicas, sociais e políticas, messianismos políticos secularizados, perda
de suas raízes e proletarização urbana, em conseqüência das transformações
culturais. Podemos afirmar que muitos desses fenômenos são verdadeiros
obstáculos para a evangelização.
3.3. Evangelização da
religiosidade popular; processo, atitudes e critérios
Como
toda a Igreja, a religião do povo deve ser evangelizada sempre de novo. Na
América Latina, depois de quase quinhentos anos de pregação do Evangelho e do
batismo generalizado de seus habitantes, esta evangelização há de apelar para a
"memória cristã de nossos povos". Será um esforço de pedagogia
pastoral, em que o catolicismo popular seja assumido, purificado, completado e
dinamizado pelo Evangelho. Isso implica, na prática, reencetar um diálogo
pedagógico, a partir dos últimos elos que os evangelizadores de outrora deixaram
no coração de nosso povo. Para tanto se requer conhecer os símbolos, a
linguagem silenciosa, não verbal, do povo, com o fim de conseguir, num diálogo
vital, comunicar a Boa Nova mediante um processo de reinformação catequética.
Os
agentes de evangelização, com a luz do Espírito Santo e cheios de
"caridade pastoral", saberão desenvolver a "pedagogia da
evangelização" (EN 48 ) . Isso exige, sobretudo, amor e aproximação ao
povo, prudência e firmeza, constância e audácia para educar essa preciosa fé,
algumas vezes tão debilitada.
As
formas concretas e os processos pastorais deverão ser avaliados segundo esses
critérios característicos do Evangelho vivido na Igreja. Tudo se há de fazer
para que os batizados sejam mais filhos no Filho, mais irmãos na Igreja, mas
responsavelmente missionários para estender o Reino. Nessa direção há de
amadurecer a religião do povo. 3.4.
Tarefas e desafios
Estamos
em uma, situação de urgência. A transformação
de uma sociedade agrária em uma sociedade urbano-industrial submete a religião do
povo a uma crise decisiva. Os grandes desafios que a piedade popular levanta
para o fim do milênio na América Latina configuram as seguintes tarefas
pastorais:
a
) A necessidade de evangelizar e
catequisar adequadamente a grande maioria que foi batizada e vive um
catolicismo popular debilitado.
b
) Dinamizar os movimentos apostólicos, as paróquias, as Comunidades Eclesiais
de Base e os militantes da Igreja em geral, para que sejam de maneira mais
generosa "fermento na massa". Será necessário revisar as espiritualidades,
as atitudes e as táticas das elites da Igreja com referência à religiosidade
popular. Como bem salientou Medellin: "Esta religiosidade coloca a Igreja
diante do dilema de continuar sendo Igreja universal ou de converter-se em
seita, ao não incorporar vitalmente a si aqueles homens que se expressam com
essa tipo de religiosidade" ( Pastoral popular, 3 ) . Devemos desenvolver
em nossos militantes uma mística de serviço evangelizador da religião de seu
povo. Essa tarefa é agora mais atual do que então: as elites devem assumir o
espírito de seu povo, purificá-1o, aquilatá-1o e encarná-1o de forma
esclarecida. Devem participar nas convocações e nas manifestações populares
para darem sua contribuição.
c)
Adiantar uma crescente e planificada transformação de nossos santuários para
que possam ser "lugares privilegiados" (João Paulo II Homilia. Zapopán 5 AAS, LXXI, p. 231 ) de evangelização. Isso requer purificá-los de
todo tipo de manipulação e de atividades comerciais. Uma tarefa especial cabe
aos santuários nacionais, símbolos da interação da fé com a história de nossos
povos.
d)
Atender pastoralmente a piedade popular da zona rural e indígena para que,
segundo sua identidade e seu desenvolvimento, cresçam e se renovem com a
doutrina do Concílio Vaticano II. Assim se hão de preparar melhor para a
transformação cultural generalizada.
e)
Favorecer a mútua fecundação entre liturgia e piedade popular que possa
orientar com lucidez e prudência os anseios de oração e vitalidade
carismática que hoje se comprovam em nossos países. Por outro lado, a religião
do povo, com sua grande riqueza simbólica e expressiva, pode proporcionar à
liturgia um dinamismo criador. Este, devidamente discerni
do,
há de servir para encarnar mais e melhor a oração universal da Igreja em nossa
cultura.
f)
Procurar as reformulações e reacentuações necessárias da religiosidade popular
no horizonte de uma civilização urbano-industrial. E já é um processo que se
percebe nas grandes metrópoles do Continente, onde a piedade popular está se
expressando espontaneamente em modos novos e enriquecendo-se com novos valores
amadurecidos em seu próprio seio. Nessa perspectiva, dever-se-á procurar que a
fé desenvolva uma personalização crescente e uma solidariedade libertadora; fé que
alimente uma espiritualidade capaz de assegurar a dimensão contemplativa, de
gratidão para com Deus e de encontro poético, sapiencial, com a criação; fé que
seja fonte de alegria popular e motivo de festa mesmo em situações de sofrimento.
Desse modo podem se plasmar formas culturais que resgatem a industrialização
urbana do tédio opressor e do economicismo frio e asfixiante.
g)
Favorecer as expressões religiosas populares com participação de grandes massas
pela força evangelizadora que possuem.
h)
Assumir as inquietações religiosas que, como angústia histórica, estão
despertando no fim do milênio. Assumi-las no domínio de Cristo e na Providência
do Pai, para que os filhos de Deus obtenham a paz necessária enquanto lutam no
tempo.
Se
a Igreja não reinterpretar a religião do povo latino-americano, se dará um
vazio que será ocupado pelas seitas, pelos messianismos políticos secularizados,
pelo consumismo que produz tédio e a indiferença ou o pansexualismo pagão.
Novamente a Igreja enfrenta o problema: o que não é assumido em Cristo, não é
redimido e se constitui em ídolo novo com malícia antiga.
4. EVANGELIZAÇAO, LIBERTAÇÃO E
PROMOÇAO HUMANA
A
evangelização em sua relação com a promoção humana, a libertação e a doutrina
social da Igreja.
4.1. Palavras de ânimo
Reconhecemos
os esforços realizados por muitos cristãos da América Latina para aprofundar na
fé e iluminar com a Palavra de Deus as situações particularmente conflitantes
de nossos povos. Animamos a todos os cristãos a continuar prestando esse serviço
evangelizador e a discernir seus critérios de reflexão e investigação, tendo
cuidado especial em conservar e promover a comunhão eclesial, tanto em nível
local quanto universal.
Estamos
conscientes de que, a partir de Medellin, os agentes de pastoral conseguiram
progressos muito significativos e esbarraram em não poucas dificuldades. Estas
não devem desanimar-nos; devem levar-nos antes a novas procuras e melhores
realizações.
4.2. Doutrina social da Igreja
A
contribuição da Igreja à libertação e promoção humana vem se concretizando num
conjunto de orientações doutrinais e critérios de ação que costumamos chamar
"doutrina social da Igreja", os quais têm sua fonte na Sagrada
Escritura, na doutrina dos Santos Padres e dos grandes teólogos da Igreja e no
Magistério, especialmente dos últimos papas. Como se evidência desde sua
origem, há neles elementos de validade permanente que se fundamentam numa
antropologia nascida da própria mensagem de Cristo e nos valores perenes da
ética cristã. Mas há também elementos que são alteráveis e respondem às
condições próprias de cada país e de cada época, (GS, Nota 1).
Seguindo
Paulo VI (0A, 4), podemos formular
esta doutrina assim: atenta aos sinais dos tempos, interpretados à luz do
Evangelho e do magistério da Igreja, toda a comunidade cristã é chamada a se
tornar responsável pelas opções concretas e pela sua efetiva atuação para
responder às interpelações que as circunstâncias mutáveis apresentam. Esta
doutrina social tem, pois, um caráter dinâmico e em sua elaboração e aplicação
os leigos hão de ser não passivos executores, mas ativos colaboradores dos
pastores, a quem levam sua experiência cristã, sua competência profissional e
científica (GS 42).
Está
claro, pois, que toda a comunidade cristã, em comunhão com seus legítimos
pastores e guiada por eles, constitui sujeito responsável pela evangelização,
pela libertação e promoção humana.
O
objeto precípuo desta doutrina social é a dignidade pessoal do homem, imagem
de Deus e a tutela de seus direitos inalienáveis (PP 14-21). A Igreja
explicitou seus ensinamentos nos diversos campos da vida: social, econômico,
político, cultural, segundo as necessidades. Portanto, a finalidade dessa
doutrina da Igreja - que traz sua visão própria do homem e da humanidade (PP 13)
- é sempre a promoção de libertação total da pessoa humana, em sua dimensão
terrena e transcendente, contribuindo assim para a construção do Reino último
e definitivo, sem confundir, contudo, progresso terreno e crescimento do Reino
de Cristo.
Para
que nossa doutrina social seja acreditável e aceita por todos, deve responder
de maneira eficaz aos desafios e aos problemas graves que surgem de nossa
realidade latino-americana. Homens diminuídos por carências de toda espécie
reclamam ações urgentes em nosso esforço promocional que tornam sempre
necessárias as obras assistenciais. Não podemos propor eficazmente esta
doutrina sem sermos nós mesmos interpelados por ela em nosso comportamento
pessoal e institucional. Ela exige de nós coerência, criatividade, audácia e
entrega total. Nossa conduta social é parte integrante de nosso seguimento de
Cristo. Nossa reflexão sobre a projeção da Igreja no. mundo como sacramento de
comunhão e salvação é parte de nossa reflexão teológica, porque "a evangelização
não seria completa se não levasse em conta a interpelação recíproca que ao
longo dos tempos se estabelece entre o Evangelho e a vida concreta, pessoal e
social do homem ( EN 29 ) .
A promoçâo humana implica atividades que
ajudam a despertar a consciência do homem em todas as suas dimensões e a lutar
por si mesmo como protagonista de seu próprio desenvolvimento humano e
cristão. Educa para a convivência, dá. impulso à organização, fomenta a
comunicação cristã dos bens, ajuda de modo eficaz a comunhão e a participação.
Para
se conseguir a coerência do testemunho da comunidade cristã no empenho de
libertação e de promoção humana, cada país e cada Igreja particular organizará
sua pastoral social com meios permanentes e adequados que mantenham e estimulem
o compromisso comunitário, garantindo a necessária coordenação de iniciativas,
no diálogo constante com todos os membros da Igreja. A "Cáritas" e
outros organismos que vêm trabalhando com eficácia há muitos anos, podem
oferecer um bom serviço.
A
teologia, a pregação, a catequese, para serem fiéis e completas, exigem ter
diante dos olhos todo o homem e todos os homens e comunicar-lhes em forma
oportuna e adequada "uma mensagem particularmente vigorosa em nossos dias
sobre a libertação" (EN 29) "sempre no desígnio global da
salvação" (EN 38). Parece, pois, necessário que digamos uma palavra
esclarecedora sobre o próprio conceito de libertação no momento atual do
Continente.
4.3. Discernimento da
libertação em Cristo
Em
Medellin se desenvolve um processo dinâmico de libertação integral cujos ecos
positivos se fazem sentir na EN e na Mensagem do Papa João Paulo II a esta
Conferência. É um anúncio que vem urgindo a Igreja e faz parte da própria
essência da evangelização que tende à realização autêntica do homem. Existem,
porem, concepções e aplicações da libertação. Embora entre elas se descubram
traços comuns, existem enfoques difíceis de se levar a uma adequada
convergência. Por isso, o melhor é oferecer critérios que emanam do magistério
e que servem para o necessário discernimento acerca da original concepção da
libertação cristã Surgem dois elementos complementares e inseparáveis: a
libertação de todas as servidões do pecado pessoal e social, de tudo o que
transvia o homem e a sociedade e tem sua fonte no egoísmo, no mistério da
iniqüidade, e a libertação para o crescimento progressivo no ser, pela comunhão
com Deus e com os homens, que culmina na perfeita comunhão do céu, onde Deus é
tudo em todos e não haverá mais lágrimas.
É
uma libertação que se vai realizando na história, a libertação de nossos povos
e a nossa própria pessoal e abrange as diversas dimensões da existência: o
social, o político, o econômico, o cultural e o conjunto de suas relações. Em
tudo isso há de circular a riqueza transformadora do Evangelho, com sua
contribuição própria e específica, que se deve salvaguadar. Do contrário, como
adverte Paulo VI: "A Igreja perderia seu sentido mais profundo; sua
mensagem não teria nenhuma originalidade e facilmente poderia ser monopolizada
e manipulada por sistemas ideológicos e por partidos políticos" (EN 32).
É
necessário esclarecer que esta libertação se fundamenta em três grandes
pilares que o Papa João Paulo II nos lembrou como orientação definida: a
verdade sobre Jesus Cristo, a verdade sobre a Igreja, a verdade sobre o homem.
Assim,
se não chegamos à libertação do pecado com todas as suas seduções e idolatrias;
se não ajudamos a concretizar a libertação que Cristo conquistou na cruz,
mutilamos a libertação de modo irreparável, e a mutilamos igualmente se esquecemos
o eixo da evangelização libertadora, que é a que transforma o homem em sujeito
de seu próprio desenvolvimento individual e comunitário. Também a mutilamos se
esquecemos a dependência e as escravidões que ferem direitos fundamentais que
não são concedidos por governos ou instituições, ainda as mais poderosas, mas
que têm como autor o próprio Criador e Pai.
É
uma libertação que sabe utilizar meios evangélicos, com sua peculiar eficácia
e que não recorre a nenhuma espécie de violência nem à dialética da luta de
classes, mas à vigorosa energia e ação dos cristãos, que, movidos pelo
Espírita, acodem para responder ao clamor de milhões e milhões de irmãos.
Como
pastores da América Latina, temos razões gravíssimas para urgir a evangelização
libertadora, não só porque é necessário recordar o pecado individual e social,
mas também porque de Medellin para cá a situação se agravou na maioria de
nossos países.
Alegra-nos
comprovar exemplos numerosos de esforços por viver a evangelização libertadora
em sua plenitude. Uma das principais tarefas para continuarmos animando a
libertação cristã é a procura criativa de caminhos que se afastem de
ambigüidades e de reducionismos (EN 32) em plena fidelidade à Palavra de Deus
que nos é dada na Igreja e nos move ao alegre anúncio aos pobres, como um dos
sinais messiânicos do Reino de Cristo.
Como
muito bem salientou João Paulo II em seu discurso inaugural: "Há muitos
sinais que ajudam a discernir quando se trata de uma libertação cristã e
quando, ao contrário, se nutre mais de ideologias que lhe tiram a coerência com
uma visão evangélica do homem, das coisas, dos acontecimentos (EN 35). São
sinais que derivam dos conteúdos que anunciam, ou das atitudes concretas que,
assumem os evangelizadores. É preciso observar em nível de conteúdos, qual a
fidelidade à Palavra de Deus, à Tradição viva da Igreja, a seu Magistério.
Quanto às atitudes, é necessário ponderar qual o seu sentido de comunhão com os
bispos, em primeiro lugar, e com os outros setores do Povo de Deus: qual a
contribuição que damos a construção efetiva da comunidade e qual a forma de
dedicarmos com amor nossa solicitude para com os pobres, doentes, despojados,
desamparados, angustiados e como, descobrindo neles a imagem de Jesus pobre e
paciente, nos esforçamos por remediar suas necessidades e procuramos servir
neles a Cristo (LG 8). Não nos enganemos: os fiéis humildes e simples, como
por instinto evangélico, compreendem espontaneamente quando se serve na Igreja
ao Evangelho e quando este é esvaziado e asfixiado com outros interesses.
Quem
tem sobre o homem a visão que o cristianismo dá, assume por sua vez o
compromisso de não poupar sacrifícios para garantir a todos a condição de
autênticos filhos de Deus e irmãos em Jesus Cristo. Assim a evangelização
libertadora tem sua plena realização na comunhão de todos em Cristo segundo a
vontade do Pai de todos os homens.
4.4. Evangelização libertadora
para uma convivência humana digna dos filhos de Deus
Nada,
é divino e adorável fora de Deus. O homem cai na escravidão quando diviniza ou
absolutiza a riqueza, o poder, o Estado, o sexo, o prazer ou qualquer criatura
de Deus, inclusive seu próprio ser ou sua razão humana. O próprio Deus é a
fonte de libertação radical de todas as formas de idolatria, porque a adoração
do não adorável e a absolutização do relativo, levam à violação do que há de
mais íntimo na pessoa humana: sua relação com Deus e sua realização pessoal.
Eis a palavra libertadora por excelência: "Ao Senhor adorarás, e só a Ele
prestarás culto" (Ml 4,10). A queda
dos ídolos restitui ao homem seu campo essencial de liberdade. Deus, livre por
excelência, quer entrar em diálogo com um ser livre, capaz de fazer suas
opções e exercer suas responsabilidades individualmente e em comunidade.
Existe, pois, uma história humana que, embora tenha sua consistência própria e
sua autonomia, está destinada a ser consagrada pelo homem a Deus. A verdadeira
libertação, com efeito, liberta de uma opressão para poder chegar a um bem
superior.
O homem e
os bens da terra
Os
bens e riquezas do mundo, por sua origem e natureza, segundo a vontade do
Criador, são para servir efetivamente à utilidade e ao proveito de todos e cada
um dos homens e dos povos. Por isso a todos e a cada um compete um direito
primário e fundamental, absolutamente inviolável, de usar solidariamente esses
bens, na medida do necessário, para uma realização digna da. pessoa humana.
Todos os outros direitos, também o de propriedade e livre comércio lhe estão
subordinados. Como nos ensina João Paulo II: "Sobre toda propriedade
privada pesa uma hipoteca social". A
propriedade compatível com aquele direito primordial é antes de tudo um
poder de gestão e administração, que, embora não exclua o de domínio, não o
torna absoluto nem ilimitado. Deve ser fonte de liberdade para todos, nunca de
dominação nem de privilégios. É um dever grave e urgente fazê-1o retornar à
sua finalidade primeira.
Libertação do ídolo da riqueza
Os
bens da terra se convertem em ídolo e em sério obstáculo para o Reino de Deus,
quando o homem concentra toda sua atenção em tê-los ou em cobiça-los. Então
eles se tornam absolutos. "Não podeis servir a Deus e ao dinheiro" (
Lc 16,13 ) .
A riqueza absolutizada é obstáculo para
a verdadeira liberdade. Os contrastes cruéis de luxo e extrema pobreza, tão
visíveis em todo o Continente, agravados, ademais, pela corrupção que muitas
vezes invade a vida pública e profissional, manifestam até que ponto nossos
países se encontram sob o domínio do ídolo da riqueza.
Essas
idolatrias se concentram em duas formas opostas que têm uma mesma raiz: o
capitalismo liberal e, como reação, o coletivismo marxista. Ambos são formas
do que se pode chamar "injustiças institucionalizadas".
Finalmente,
como já ficou dito, importa tomar consciência dos efeitos devastadores de uma
industrialização descontrolada e de uma urbanização que vai tomando proporções
alarmantes. Os esgotamentos dos recursos naturais e a contribuição do ambiente
constituirão um problema dramático. Afirmamos uma vez mais a necessidade de
uma profunda revisão da tendência consumiste das nações mais desenvolvidas;
cumpre levar em consideração as necessidades elementares dos povos pobres que
formam a maior parte do mundo.
O
novo humanismo proclamado pela Igreja que rejeita toda idolatria permitirá
"ao homem moderno encontrar-se a si mesmo, assumindo os valores do amor,
da amizade, da oração e da contemplação. Assim poderá realizar em toda a sua
plenitude o verdadeiro desenvolvimento, que é o passo, para cada um e para
todos, de condições de vida menos humanas a condições mais humanas" (PP 20). Desse modo se planejará a
economia a serviço do homem e não o homem a serviço da economia, como acontece
nas duas formas de idolatria, a capitalista e a coletivista. Será a única
maneira de que o "ter" não afogue o "ser".
O homem e o poder
As
diversas formas do poder na sociedade pertencem fundamentalmente à ordem da
criação. Portanto, levam em si a vontade essencial do serviço que devem
prestar à comunidade humana.
A
autoridade, necessária em qualquer sociedade, vem de Deus e consiste na
faculdade de mandar segundo a reta razão. Por conseguinte, sua força
obrigatória procede da ordem moral e dentro dela deve desenvolver-se para que
obrigue em consciência. "A autoridade é sobretudo uma força
moral".
O
pecado corrompe o uso que os homens fazem do poder, levando-o ao abuso dos
direitos dos outros, às vezes em formas mais ou menos absolutas. Isso ocorre
mais notavelmente no exercício do poder político, por se tratar do campo das
decisões que determinam a organização global do bem-estar temporal da
comunidade e por servir mais facilmente não só aos abusos dos que detêm o
poder, mas à absolutização do próprio poder, apoiados na força pública,.
Diviniza-se o poder político quando na prática ele é tido como absoluto. Por
isso, o uso totalitário do poder é uma forma de idolatria e como tal a Igreja o
rejeita inteiramente (GS 75). Reconhecemos pesarosamente a presença de muitos
regimes autoritários e mesmo opressivos em nosso Continente. Eles constituem um
dos mais sérios obstáculos ao desenvolvimento dos direitos da pessoa, dos
grupos e das próprias nações.
Infelizmente,
em muitos casos isso chega ao ponto de que os próprios poderes políticos e
econômicos de nossas nações, para além das normais relações recíprocas, estão
sujeitos a centros mais poderosos que operam em escala internacional. Agrava a
situação o fato de que estes centros de poder se acham estruturados em formas
encobertas, presentes em toda parte, e se subtraem facilmente ao controle dos
governos e dos próprios organismos internacionais.
É
urgente libertar nossos povos do ídolo do poder absoluto para conseguir uma
convivência social em justiça e liberdade. Com efeito, para que os povos
latino-americanos possam cumprir a missão que lhes assinala a história como
povos jovens, ricos em tradições e cultura, necessitam de uma ordem política
que respeite a dignidade do homem, que garanta a concórdia e a paz interior da
comunidade civil e em suas relações com as outras comunidades. Entre os
anseios e exigências de nossos povos para que isso seja uma realidade,
destacam-se:
A igualdade de todos os cidadãos com o
direito e o dever de participar no destino da sociedade, com as mesmas
oportunidades, dando sua contribuição para os ônus eqüitativamente distribuídos
e obedecendo às leis legitimamente estabelecidas.
O
exercício de suas liberdades, amparadas em instituições fundamentais que
garantam o bem comum, no respeito aos direitos das pessoas e associações.
A legitima autodeterminação de nossos
povos que lhes permita organizar-se segundo seu próprio gênio e a marcha de sua
história (GS 74) e cooperar numa nova ordem internacional.
A urgência de restabelecer a justiça não
só teórica e formalmente reconhecida, mas também posta eficazmente em prática,
por instituições adequadas e realmente vigentes.
5. EVANGELIZAÇÃO, IDEOLOGIAS E
POLÍTICA
5.1.
Introdução
Nos
últimos anos se percebe uma deterioração crescente do quadro politico-social de
nossos países.
Neles
se sente o peso de crises institucionais e econômicas e claros sintomas de
corrupção e violência.
Essa
violência é gerada e fomentada, tanto pela injustiça, que se pode chamar
institucionalizada em diversos sistemas sociais, políticos e econômicos, quanto
pelas ideologias que a transformam em meio para a conquista do poder.
Este
último provoca, por sua vez, a proliferações de regimes de força, muitas vezes
inspirados na ideologia da Segurança Nacional.
A Igreja, como Mãe e Mestra, perita em
humanidade, deve discernir e iluminar, a partir do Evangelho e de sua doutrina
social, as situações, os sistemas, as ideologias e a vida política do
Continente. Deve fazer isso, embora saiba que se procura instrumentalizar sua
mensagem.
Por
isso, projeta a luz de sua palavra sobre a política e as ideologias, como mais
um serviço a seus povos e como guia orientadora e segura para todos os que, de
um modo ou de outro, devem assumir responsabilidades sociais.
5.2. Evangelização e política
A
dimensão política, constitutiva do homem, representa um aspecto relevante da
convivência humana. Possui um aspecto englobante, porque tem como fim o bem
comum da sociedade. Mas nem por isso esgota a gama das relações sociais.
G
A fé cristã não despreza a atividade
política; pelo contrário, a valoriza e a tem em alta estima.
A Igreja - falando ainda em geral, sem
distinguir o papel que compete a seus diversos membros sente como seu dever e
direito estar presente neste campo da realidade: porque o cristianismo deve
evangelizar a totalidade da existência humana. inclusive a dimensão política.
Por isso ela critica aqueles que tendem a reduzir o espaço da fé à vida pessoal
ou familiar, excluindo a ordem profissional, econômica, social e política,
como se o pecado, o amor, a oração e o perdão não tivessem importância aí.
Efetivamente
a necessidade da presença da Igreja, no âmbito político, provém do mais íntimo
da fé cristã: do domínio de Cristo que se estende a toda a vida. Cristo marca a
irmandade definitiva da humanidade; cada homem vale tanto quanto 0 outro:
"Todos sois um em Cristo Jesus" (G1 3,28).
Da
mensagem integral de Cristo derivam uma antropologia e teologia originais que
abrangem "a vida concreta, pessoal e social do homem" (EN 29). É uma
mensagem que liberta porque salva da escravidão do pecado, raiz e fonte de toda
opressão, injustiça e a discriminação.
Estas
são algumas das razões da presença da Igreja no campo do político, para
iluminar as consciências e anunciar uma palavra transformadora da sociedade.
A Igreja reconhece a devida autonomia do
temporal (GS 36); isso vale para os governos, partidos, sindicatos e outros
grupos no campo social e político. O fim que o Senhor determinou à sua Igreja
é de ordem religiosa e, portanto, ao intervir neste campo, não a anima nenhuma
intenção de ordem política, econômica ou social. "Mas, na verdade, desta
mesma missão religiosa decorrem benefícios, luzes e forças que podem auxiliar a
organização e o fortalecimento da comunidade humana segundo a lei de
Deus" ( GS 42 ) .
Interessa
especialmente distinguir neste campo da política aquilo que corresponde aos
leigos, o que compete aos religiosos e o que compete aos ministros da unidade
da Igreja, o bispo com seu presbitério.
5.3. Conceitos de política e
de compromisso político
Devemos
distinguir dois conceitos de política e de compromisso político: primeiro, a
política em seu sentido mais amplo que visa o bem comum, no âmbito nacional e
no âmbito internacional. Corresponde-lhe precisar os valores fundamentais de
toda a comunidade - a concórdia interna e a segurança externa - conciliando a
igualdade com a liberdade, a autoridade pública com a legítima autonomia e
participação das pessoas e grupos, a soberania nacional com a convivência e
solidariedade internacional. Define também os meios e a ética das relações
sociais. Neste sentido amplo, a política interessa à Igreja e, portanto, a
seus pastores, ministros da unidade. É uma forma de dar culto ao único Deus,
dessacralizando e ao mesmo tempo consagrando o mundo a Ele ( LG 34 ) .
A Igreja contribui assím para promover
os valores que devem inspirar a política, interpretando em cada nação as
aspirações de seus povos especialmente os anseios daqueles que uma sociedade
tenda a marginalizar. E o faz mediante seu testemunho, sua doutrina e sua
multiforme ação pastoral. Segundo: a realização concreta dessa tarefa política
fundamental se faz normalmente através de grupos de cidadãos que se propõem
conseguir e exercer o poder político para resolver as questões econômicas,
políticas e sociais segundo seus próprios critérios ou ideologias. Neste
sentido se pode falar de "política de partido". As ideologias elaboradas
por esses grupos, embora se inspirem na doutrina cristã, podem chegar a
diferentes conclusões. Por isso, nenhum partido político, por mais inspirado
que esteja na doutrina da Igreja, pode arrogar-se a representação de todos os
fiéis, já que seu programa concreto nunca poderá ter valor absoluto para todos
(João Paulo II, Discurso Inaugural, I,
4-AAS, LXXI, p. 190).
A
política partidarista é o campo próprio dos leigos (GS 43). Corresponde à sua
condição leiga constituir e organizar partidos políticos, com ideologia e
estratégia adequada. para alcançar seus legítimos fins.
O
leigo encontra na doutrina social da Igreja os critérios adequados, à luz da
visão cristã do homem. Por seu lado, a hierarquia lhe garantirá sua
solidariedade, favorecendo sua formação e sua vida espiritual e estimulando-o
em sua criatividade para que procure opções cada vez mais conformes com o bem
comum e as necessidades dos mais fracos. Os pastores, pelo contrario, uma vez
que devem preocupar-se com a unidade, se despojarão de toda ideologia
político-partidária que possa condicionar seus critérios e atitudes. Terão,
assim, liberdade para evangelizar o político como Cristo, a partir de um
Evangelho sem partidarismos nem ideologizações. O Evangelho de Cristo não
teria tido tanto impacto na história, se ele não o houvesse proclamado como
uma mensagem religiosa. "Os evangelhos mostram claramente como para Jesus
era mais tentação o que alterasse sua missão de Servo de Javé. Não aceita a
posição daqueles que misturavam as coisas de Deus com as atitudes meramente
políticas (João Paulo II, Discurso
Inaugural, I, 4-AAS, LXXI, p. 190).
Os
sacerdotes, também ministros da unidade e os diáconos, deverão submeter-se a
idêntica renúncia pessoal. Se militassem em política partidarista, correriam o
risco de absolutizá-1a e radicalizá-1a, dada sua vocação a ser "os homens
do absoluto". "Mas na ordem econômica e social e principalmente na
ordem política, em que se apresentam diversas opções concretas, ao sacerdote
como tal não lhe cabe diretamente a decisão, nem a liderança, nem tampouco a
estruturação de soluções" (Med., Sac. 19 ) . "Ao assumir uma função
diretiva ( lea. dership ), "militar" ativamente em um partido
político, é algo que deve excluir qualquer presbítero, a não ser que, em
circunstâncias concretas e excepcionais, o exija realmente o bem comum,
obtendo o consentimento do bispo, consultado o conselho presbiteral e - se o
caso o requer - também a Conferência Episcopal" (Sínodo 1971, Parte II,
2b). Certamente, a tendência atual da Igreja não está neste sentido.
Os
religiosos, por sua forma de seguir a Cristo, segundo a função peculiar que
lhes compete dentro da missão da Igreja, de acordo com seu carisma específico,
também cooperam na evangelização do político. Numa sociedade pouco fraterna,
dada ao consumismo e que se propõe como fim último desenvolvimento de suas
forças produtivas mate riais, os religiosos têm que ser testemunhas de uma real
austeridade de vida, de comunhão com os homens e de intensa relação com Deus.
Deverão, pois, resistir, igualmente, à, tentação de comprometer-se em política
partidarista, para não provocar a confusão dos valores evangélicos com uma
ideologia determinada.
Uma
atenta reflexão dos bispos, sacerdotes e religiosos sobre as palavras do Santo
Padre, será preciosa orientação para seu serviço neste campo: "A alma que vive em contacto habitual Corr. Deus e se move dentro do
ardente raio de seu amor, sabe defender-se com facilidade da tentação de
particularismos e antíteses, que criam o risco de dolorosas divisões; sabe
interpretar, à justa luz do Evangelho, as opções pelos mais pobres e por cada
uma das vítimas do egoísmo humano, sem ceder a radicalismos sócio-políticos, que
com o tempo se revelam inoportunos, contraproducentes e geradores eles
próprios de novas violações. Sabe aproximar-se das pessoas e inserir-se no meio
do povo, sem questionar a própria identidade religiosa, nem obscurecer a
"originalidade específica" da própria vocação que deriva do peculiar
"seguimento de
Cristo",
pobre, casto e obediente. Um momento de verdadeira adoração tem mais valor e
fruto espiritual do que a mais intensa atividade, ainda que se tratasse da
própria atividade apostólica. Essa é a "contestação" mais urgente que
os religiosos devem opor a uma sociedade onde a eficácia veio a ser um ídolo,
sobre cujo altar não poucas vezes se sacrifica até a própria dignidade
humana" (João Paulo II aos Superiores Maiores Religiosos, 24-11-1978 ) .
Os
leigos dirigentes da ação pastoral não devem empregar sua autoridade em função
de partidos ou ideologias.
5.4. Reflexão sobre a violência
política
Diante
da deplorável realidade de violência na América Latina, queremos
pronunciar-nos com clareza. A tortura
física e psicológica, os seqüestras, a perseguição de dissidentes políticos ou
de suspeitos e a exclusão da vida pública, por causa das idéias são sempre
condenáveis. Se tais crimes são realizados pela autoridade encarregada de
tutelar o bem comum, tornam vis aos que os praticam, independentemente das
razões aduzidas.
Com
igual decisão a Igreja repele a violência terrorista e guerrilheira, cruel e
incontrolável quando se desencadeia. De nenhum modo se justifica o crime como
caminho de libertação. A violência
gera inexoravelmente novas formas de opressão e escravidão, geralmente mais
graves do que aquelas das quais se pretende libertar e homem. Mas, sobretudo,
é um atentado contra a vida que só depende do Criador. Devemos salientar
igualmente que quando uma ideologia apela para a violência, reconhece com isso
sua própria insuficiência e debilidade.
Nossa
responsabilidade de cristãos é promover de todos os modos os meios não
violentos para restabelecer a justiça nas relações sócio-politicas e econômicas,
segundo a doutrina do Concílio, que vale tanto para a vida nacional como para a
vida internacional: "Só podemos calorosamente aplaudir aqueles que, para
reivindicar os seus direitos, renunciam ao emprego da violência e recorrem aos
meios de defesa, que aliás estão ao alcance também dos mais fracos, contanto que isso seja viável sem lesar direitos e
obrigações de outros ou da comunidade" (GS 78).
"Devemos
dizer e reafirmar que a violência não é nem cristã nem evangélica e que as
transformações bruscas e violentas das estruturas serão enganosas, ineficazes
em si mesmas e certamente não conformes com a dignidade do povo" (Paulo
VI, discurso em Bogotá, 23-8-1968). Com efeito, "a Igreja está consciente
de que as melhores estruturas e os sistemas mais idealizados logo se tornam
desumanos se as inclinações do homem não forem sanadas, se não houver a
conversão do coração e da mente por parte daqueles que vivem nessas estruturas
ou as dirigem" ( EN 36 ) .
5.5. Evangelização e ideologias
Discernimento
sobre as ideologias na América Latina e os sistemas que nelas se inspiram.
Entre
as múltiplas definições que se podem propor, chamamos aqui ideologia toda
concepção que ofereça uma visão dos diversos aspectos da vida, desde o ponto de
vista de um grupo determinado da sociedade. A ideologia manifesta as aspirações desse grupo, convida para certa
solidariedade e combatividade e fundamenta sua legitimação em valores
específicos. Toda ideologia é parcial, já que nenhum grupo particular pode
pretender identificar suas aspirações com as da sociedade global. Uma
ideologia será, pois, legítima se os interesses que defende o forem e se
respeitar os direitos fundamentais dos demais grupos da nação. Neste sentido
positivo, as ideologias surgem como algo necessário para a esfera social,
enquanto são mediações para a ação.
As ideologias
trazem em si mesmas a tendência a absolutizar os interesses que defendem, a
visão que propõem e a estratégia que promovem. Neste caso, se transformam em
verdadeiras "religiões leigas". Apresentam-se como "uma
explicação última e suficiente de tudo e se constrói assim um novo ídolo, do
qual se aceita às vezes, sem se dar conta, o caráter totalitário e
obrigatório" (0A 28). Nesta perspectiva não é de estranhar que as
ideologias tentem instrumentalizar pessoas e instituições a serviço da eficaz
consecução de seus fins. Eis o lado ambíguo e negativo das ideologias.
Não
devemos analisar as ideologias somente do ponto de vista de seus conteúdos
conceituais. Elas constituem, transcendendo a eles, fenômenos vitais de
dinamismo envolvente, contagioso. São correntes de aspirações com tendência
para a absolutização, dotadas também de poderosa força de conquista e fervor
redentor. Isso lhes confere uma "mística" especial e a capacidade de
penetrar os diversos ambientes de modo muitas vezes irresistível. Seus
slogans, suas expressões típicas, seus critérios, chegam a marcar
profundamente e com facilidade mesmo aqueles que estão longe de aderir
voluntariamente a seus princípios doutrinais. Desse modo, muitos vivem e
militam praticamente dentro dos limites de determinadas ideologias sem haverem
tomado consciência disso. Este é outro aspecto que exige constante revisão e
vigilância. Tudo isso se aplica tanto às ideologias que legitimam a situação
atual, como àquelas que pretendem mudá-1a.
Para
o necessário discernimento e julgamento crítico sobre as ideologias, devem os
cristãos apoiar-se no "rico e complexo patrimônio que a Evangelii
Nuntiandi denomina Doutrina Social ou Ensinamento Social da Igreja" (João
Paulo II, Discurso Inaugural, III, 7
- AAS, LXXI, p. 203 ) .
Esta
Doutrina ou Ensinamento Social da Igreja expressa "o que ela possui como
próprio: uma visão global do homem e da humanidade" ( PP 13 ) . Deixa-se
interpelar e enriquecer pelas ideologias no que elas têm de positivo e, por sua
vez, as interpela, relativiza e critica.
Nem
o Evangelho nem a Doutrina ou Ensinamento Social que dele provém são
ideologias. Pelo contrário, representam para estas uma poderosa fonte de
questionamentos de seus limites e ambigüidades. A originalidade sempre nova da mensagem evangélica deve ser
permanentemente esclarecida e defendida diante das tentativas de ideologização.
A exaltação desmedida e os abusos do Estado não podem, contudo, fazer esquecer
a necessidade das funções do Estado moderno, respeitoso dos direitos e das
liberdades fundamentais. Estado que se apoie sobre uma ampla base de
participação popular, exercida através de diversos grupos intermédios.
Propulsor de um desenvolvimento autônomo, acelerado e eqüitativo, capaz de
afirmar o ser nacional diante de pressões ou interferências indevidas, tanto
em nível interno como internacional. Capaz de adotar uma posição de ativa
cooperação com os esforços de integração continental e no âmbito da comunidade
internacional. Estado, enfim, que evite o abuso do poder monolítico, concentrado
nas mãos de poucos.
Na
América Latina há diversas ideologias que exigem uma análise.
a)
O liberalismo capitalista, idolatria da riqueza em sua forma individual. Reconhecemos
a força que infunde a capacidade criadora da liberdade humana e que foi o
propulsar do progresso. Contudo, "considera o lucro como o motor essencial
do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, a
propriedade privada dos meios de produção como direito absoluto, sem limites
nem obrigações sociais correspondentes" ( PP 26 ) . Os privilégios
ilegítimos, derivados do direito absoluto de propriedade, causam contrastes escandalosos
e uma situação de dependência e opressão, tanto no âmbito nacional quanto no
internacional. Embora seja evidente que em alguns países se atenuou sua
expressão histórica original, devido à influência de uma necessária
legislação social e de precisas intervenções do Estado, em outros lugares
ainda manifesta persistência ou, mesmo, retrocesso a formas primitivas e de
menor sensibilidade social.
b
) O coletivismo marxista conduz igualmente por seus pressupostos materialistas
- a uma idolatria da riqueza, mas em sua forma coletiva. Embora nascido de uma
crítica positiva ao fetichismo do comércio e ao desconhecimento do valor
humano do trabalho, não conseguiu ir à raiz dessa idolatria que consiste na
recusa do Deus de amor e justiça, único Deus adorável.
O
motor de sua dialética é a luta de classes. Seu objetivo, a sociedade sem
classes, que se alcança através de uma ditadura proletária que, enfim,
estabelece a ditadura do partido. Todas as suas experiências históricas
concretas, como sistema de governo, se realizaram dentro do quadro de regimes
totalitários fechados a toda. possibilidade de crítica e retificação. Alguns
crêem possível separar diversos aspectos do marxismo, em particular sua
doutrina e sua análise. Recordamos com o Magistério pontifício que "seria
ilusório e perigoso chegar a esquecer o nexo íntimo que os une radicalmente;
aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a
ideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação
marxista, deixando de perceber o tipo de sociedade totalitária e violenta a que
conduz tal processo" (0A 34).
Cumpre
salientar aqui o risco de ideologização a que se expõe a reflexão teológica,
quando se realiza partindo de uma práxis que recorre à análise marxista. Suas
conseqüências são a total politizarão da existência cristã, a dissolução da
linguagem da fé no das ciências sociais e o esvaziamento da dimensão
transcendental da salvação cristã. Ambas as ideologias assinaladas -
liberalismo capitalista e marxismo - se inspiram em humanismos fechados a
qualquer perspectiva transcendente. Uma, devido a seu ateísmo prático; a
outra, por causa da profissão sistemática de um ateísmo militante.
c
) Nos últimos anos vem se impondo em nosso Continente a chamada "Doutrina
da Segurança Nacional", que na realidade é mais uma ideologia do que uma
doutrina. Está vinculada a um determinado modelo econômico-político, de
características elitistas e verticalistas, que suprime a participação ampla do
povo nas decisões políticas. Pretende mesmo justificar-se em certos países da
América. Latina como doutrina defensora da civilização ocidental cristã.
Desenvolve um sistema repressivo, em conformidade com seu conceito de
"guerra permanente". Em alguns casos expressa uma clara
intencionalidade de protagonismo geopolítico.
Uma
convivência fraterna, entendemos perfeitamente, necessita de um sistema de
segurança para impor o respeito de uma ordem social justa, que permita a todos
cumprir sua missão com relação ao bem comum. Este, portanto, exige que as medidas
de segurança estejam sob o controle de um poder independente, capaz de julgar
sobre as violações da lei e de garantir medidas que as corrijam. A Doutrina da Segurança Nacional,
entendida como ideologia absoluta, não se harmonizaria com uma visão cristã do
homem enquanto responsável pela, realização de um projeto temporal nem do
Estado, enquanto administrador do bem comum. Impõe, com efeito, a tutela do
povo por elites de poder, militares e políticas, e conduz a uma acentuada desigualdade
de participação nos resultados do desenvolvimento.
Em
plena conformidade com Medellin, insistimos que "o sistema liberal
capitalista e a tentação do sistema marxista parecem ter esgotado em nosso
Continente as possibilidades de transformar as estruturas econômicas. Ambos os
sistemas atentam contra a dignidade da pessoa humana; pois um tem como
pressuposto a primazia do capital, seu poder e sua discriminatória utilização
em função do lucro; o outro, embora ideologicamente sustente um humanismo, visa
antes ao homem coletivo e, na prática, se traduz numa concentração totalitária
do poder do Estado. Devemos denunciar que a América Latina se encontra fechada
entre essas duas opções e permanece dependente de um ou outro dos centros de
poder que canalizam sua economia" (Med; Justiça 10).
Diante
desta realidade, "a Igreja quer manter-se livre com relação aos sistemas
opostos, para optar só pelo homem. Quaisquer que sejam as misérias ou
sofrimentos que aflijam ao homem, não será através da violência, dos jogos de
poder, dos sistemas políticos, mas mediante a verdade sobre o homem, que a
humanidade encontrará, seu caminho para um futuro melhor" (João Paulo II,
Discurso Inaugural, III, 3 - AAS, LXXI, p. 199). Sobre a base deste
humanismo os cristãos obterão força para superar a porfiada alternativa e
contribuir para a construção de uma nova civilização, justa, fraterna e aberta
para o transcendente. Será, além disso, testemunho de que as esperanças
escatológicas animam e dão sentido às esperanças humanas. Para essa ação
corajosa e criativa, o cristão fortalecerá sua identidade nos valores
originais da antropologia cristã. A Igreja,
"não precisa, portanto, recorrer a sistemas e ideologias para amar, defender
e colaborar na libertação do homem: no centro da mensagem da qual é
depositária e pregoeira, ela encontra inspiração para atuar em favor da
fraternidade, da justiça, da paz, contra todas as dominações, escravidões,
discriminações, atentados à liberdade religiosa, opressões contra o homem e
tudo o que atenta contra a vida" (João Paulo II, Discurso Inaugural, III, 2 - AAS, LXXI, p. 199).
Inspirando-se
nesses conteúdos da antropologia cristã, é indispensável o compromisso dos
cristãos na elaboração de projetos históricos conformes às necessidades de cada
momento e de cada cultura. Cabe ao cristão ter atenção e discernimento especiais
em seu eventual compromisso em movimentos históricos nascidos de diversas
ideologias que, por outro lado, são diferentes delas. De acordo com a doutrina
de Pacem m Terris ( 55 e 152 )
retomada em Octogesima Adveniens, não
se pode identificar as teorias filosóficas falsas com os movimentos históricos
originados nelas, na medida em que estes movimentos históricos podem ser
influenciados em sua evolução. O compromisso dos cristãos nesses movimentos,
em todo caso, coloca para eles certas exigências de fidelidade perseverante que
facilitarão seu papel evangelizador:
a)
Discernimento eclesial, em comunhão com os pastores, segundo OA 4.
b
) Fortalecimento de sua identidade, nutrindo-a nas verdades da fé e sua
explicitação na Doutrina ou Ensinamento Social da Igreja e o apoio de uma rica
vida sacramental e de oração.
c) Consciência crítica das dificuldades, limitações,
possibilidades e valores destas convergências.
5.6. Riscos de
instrumentalização da Igreja e de atuação de seus ministros
As
ideologias e os partidos, ao proporem uma visão absolutizada do homem à qual
tudo submetem, inclusive o próprio pensamento humano, tratam de utilizar a
Igreja ou de tirar-lhe sua legítima independência. Esta instrumentalização,
que é sempre um risco na vida política, pode provir dos próprios cristãos e
mesmo de sacerdotes e religiosos, quando anunciam um Evangelho sem conexões
econômicas, sociais, culturais e políticas. Na prática, esta mutilação
equivale a certo conluio - em hora
inconsciente - com a ordem estabelecida.
A tentação de outros grupos, pelo
contrário, é considerar uma política determinada como a primeira urgência,
como uma condição prévia para que a Igreja possa cumprir sua missão. É
identificar a mensagem cristã com uma ideologia e submetê-1a a ela, convidando
a uma "releitura" do Evangelho a partir de uma opção política. Pois
bem, é preciso ler o político a partir do Evangelho e não 0 contrário.
O
integrismo tradicional espera o Reino, acima de tudo, do retrocesso da história
para a reconstrução de uma cristandade no sentido medieval: aliança estreita
entre o poder civil e o poder eclesiástico. A radicalização de grupos opostos cai na mesma cilada, esperando o
Reino de uma aliança estratégica da Igreja com o marxismo, excluindo qualquer
outra alternativa. Não se trata para eles somente de ser marxista, mas de ser
marxista em nome da Fé.
5.7. Conclusão
A
missão da Igreja em meio dos conflitos que ameaçam o gênero humano e o
Continente latino-americano, em face das violações da justiça e da liberdade,
em face da injustiça institucionalizada de regimes que se inspiram em
ideologias opostas e em face da violência terrorista é imensa e mais do que
nunca necessária. Para cumprir essa missão, requer-se a ação da Igreja toda -
pastores, ministros consagrados, religiosos, leigos, cada qual em sua missão
própria. Uns e outros, unidos a Cristo na oração e na abnegação, se
comprometerão, sem ódios nem violências, até as últimas conseqüências, na
conquista de uma sociedade mais justa, livre e pacífica, anseio dos povos da
América Latina e fruto indispensável de uma evangelização libertadora.
TERCEIRA PARTE
A
EVANGELIZAÇÃO NA IGREJA DA AMÉR,ICA LATINA
Comunhão
e Participação
Na
América Latina, Deus nos chama para uma vida em Cristo Jesus. Urge anunciá-1a a
todos os irmãos. Esta missão incumbe à Igreja evangelizadora: pregar a
conversão, libertar o homem e impulsioná-1o rumo ao mistério de comunhão com a
Trindade e comunhão com todos os irmãos, transformando-os em agentes e cooperadores
do desígnio de Deus. Como deve a Igreja viver a sua missão?
Cada
batizado sente-se atraído pelo Espírito de Amor, que o impele a sair de si
mesmo, a abrir-se para os irmãos e a viver em comunidade. Na união entre nós
torna-se presente o Senhor Jesus Ressuscitado, que celebra sua Páscoa na
América Latina.
Vejamos
como se realiza de modo excelente o dom maravilhoso da vida nova em cada Igreja
particular e também, numa escala crescente, na família, em pequenas
comunidades e nas paróquias. A partir
desses centros de evangelização, o Povo de Deus na História vai crescendo em
graça e santidade, pelo dinamismo do Espírito e participação dos cristãos. Em
seu seio surgem carismas e serviços. Como se diversificam entre si e se
integram na vida eclesial os ministros hierárquicos, as mulheres e homens
consagrados ao Senhor e, por fim, todos os membros do Povo de Deus, em sua
missão evangelizadora?
Por
que meios atuam os batizados? A ação do Espírito se faz sentir na oração e ao
escutar a Palavra de Deus; aprofunda-se na catequese, celebra-se na liturgia,
testemunha-se na vida, comunica-se na educação e compartilha-se no diálogo, que
busca oferecer a todos os irmãos a vida nova que, sem merecimento da nossa
parte, recebemos na Igreja como operários da primeira hora.
CONTEÚDO
Capítulo
I: Centros de comunhão e participação
Capítulo
II: Agentes de comunhão e participação
Capítulo
III: Meios de comunicação e participação Capítulo IV: O diálogo para a comunhão
e participação.
CAPÍTULO I
CENTROS
DE COMUNHAO E PARTICIPAÇAO
O
mistério da Igreja, como comunidade fraterna de caridade teologal, fruto do
encontro da Palavra de Deus e da celebração do Mistério Pascal de Cristo
Salvador na eucaristia e nos demais sacramentos, confiada ao colégio
apostólico presidido por Pedro para evangelizar o mundo, chega a enraizar-se e
tende a desenvolver o seu dinamismo transformador da vida humana, tanto pessoal
como social, em diversos níveis e circunstâncias, que constituem centros ou
lugares preferenciais de evangelização, cujo intuito é edificar a Igreja e
promover sua irradiação missionária.
Conteúdo
1.
A família
2.
As comunidades eclesiais de base (CEB), a paróquia e a Igreja particular.
A FAMÍLIA
Para
chegar a ser realmente centro de comunhão e participação, a família
latino-america.na deve encontrar caminhos de renovação interna e de comunhão
com a Igreja e o mundo.
Apraz-nos
abordar tema da família como sujeito e objeto de evangelização. Conscientes de
sua complexidade, mas dóceis à voz do Senhor tornada presente na palavra do
Santo Padre em sua homilia sobre a família (Puebla, 28 de janeiro de 1979),
desejamos, unindo-nos à sua preocupação, ajudá-1a a ser fiel à sua missão
evangelizadora na hora atual.
1. FAMÍLIA
A
família, sujeito e objeto de evangelização, centro evangelizador de comunhão e
participação.
1.1. Introdução
Os
Padres da Conferência de Medellin perceberam um traço primordial da cultura
latino-americana no grande senso de família que anima os nossos povos.
"Passados dez anos, a Igreja da América Latina sente-se feliz por tudo o
que logrou realizar em favor da família. Reconhece porém com humildade quanto
lhe falta por fazer, quando percebe que a pastoral familiar, longe de ter
perdido o seu caráter prioritário, revela-se hoje ainda mais urgente, como
elemento sobremaneira importante da evangelização".
1.2. Situação da família na
América. Latina
A
família é uma das instituições em que mais influiu o processo de mudança dos
últimos tempos.
A Igreja tem consciência - nos recordou
o Papa - de que na família "repercutem os frutos mais negativos do
subdesenvolvimento: índices verdadeiramente deprimentes de insalubridade,
pobreza e até miséria, ignorância e analfabetismo, condições desumanas de
moradia, subalimentação crônica e tantas outras realidades não menos confrangedoras"
(João Paulo II, Homilia Puebla., 3-AAS,
LXXI, p. 184 ) .
Além
disso, é preciso reconhecer que a realidade da família já não é uniforme, pois
em cada família influem de maneira diversa - independentemente da classe social
- fatores sujeitos a mudanças, como sejam: fatores sociológicos (injustiça
social, principalmente) , culturais
(qualidade de vida ) , políticos (dominação e manipulação) , econômicos
(salários, desemprego, pluriemprego), religiosos (influência secularista) entre
tantos outros.
A
família apresenta-se outrossim como vítima dos que convertem em ídolos o poder,
a riqueza e o sexo. Para isto contribuem as estruturas injustas, sobretudo os
meios de comunicação, não só com suas mensagens de sexo, lucro, violência,
poder, ostentação, mas também pondo em destaque elementos que contribuem para
propagar o divórcio, a infidelidade conjugal e o aborto ou a aceitação do amor
livre e das relações pré-matrimoniais. Não poucas vezes, a desorientação das
consciências se deve à falta de unidade de critério entre sacerdotes, na
aceitação e aplicação da doutrina pontifícia acerca de importantes aspectos da
moral familiar e social.
A
família rural e suburbana sofrem particularmente os efeitos dos compromissos
internacionais dos governos, no que respeita o planejamento familiar,
traduzidos em imposição antinatalista e experiências que não levam em
consideração a dignidade da pessoa nem o autêntico desenvolvimento dos povos.
Nesses
setores populares, a situação de desemprego crônica e generalizada afeta a
estabilidade familiar, já que a necessidade de trabalho força à emigração, ao
absenteísmo dos pais, à dispersão dos filhos.
Em
todos os níveis sociais, a família também sofre o impacto deletério da
pornografia, do alcoolismo, das drogas, da prostituição e tráfico de brancas,
assim como o problema das mães solteiras e das crianças abandonadas. Diante do
fracasso dos anticoncepcionais químicos e mecânicos, passou-se à esterilização
humana e ao aborto provocado, em cuja propaganda se lança mão de campanhas
insidiosas.
Urge
um acendrado esforço pastoral para evitar os males provenientes da falta de
educação no amor, da falta de preparação para o matrimônio, do descuido na
evangelização da família e na formação dos esposos para a paternidade responsável.
Além disso, não podemos ignorar que grande número de famílias do nosso
continente não recebeu o sacramento do matrimônio. Não obstante, muitas
famílias dessas vivem em certa unidade, fidelidade e responsabilidade. Tal
situação desperta interrogações teológicas e exige um adequado acompanhamento
pastoral.
Pelo
contrário, é satisfatório verificar que são cada dia mais numerosos os cristãos
que procuram viver sua fé dentro do ambiente familiar e a partir dele, dando
um valioso testemunho evangélico e educando outrossim com dignidade uma família
razoavelmente numerosa. Não poucos são também os noivos que se preparam com
seriedade para o matrimônio e tratam de dar à celebração deste um sentido
verdadeiramente cristão. Nota-se também o empenho em revigorar a pastoral familiar
e adaptá-1a aos desafios e circunstâncias da vida moderna.
Em
todos os países têm surgido iniciativas dignas de nota, orientadas a fortalecer
os valores e a espiritualidade da família como Igreja doméstica, numa participação
e compromisso com a Igreja particular. Nisso tudo revela-se o fruto da ação
silenciosa e constante dos movimentos cristãos em prol da família.
Em
toda a América, é dado visitar "casas onde não faltam o pão e o bem estar,
mas talvez faltem a concórdia e a alegria; casas onde as famílias vivem antes
modestamente e na insegurança do futuro, ajudando-se mutuamente a levar uma
existência difícil, porém digna; habitações pobres das periferias de nossas
cidades, onde há muito sofrimento escondido, embora exista dentro delas a
singela alegria dos pobres; humildes choças de camponeses, de indígenas, de
emigrantes, etc." (João Paulo II, Homilia Puebla, 4-AAS, LXXI, p. 186).
Concluiremos frisando que os mesmos fatos que acusam a desintegração da
família "acabam pondo em destaque, de diversas maneiras, a índole
autêntica dessa instituição" (GS 47) "que não foi abolida nem pela
sanção do pecado original, nem pelo castigo do dilúvio" ( Liturgia do
Matrimônio), mas continua sofrendo os efeitos da dureza do coração humano.
1.3. Reflexão teológica sobre a
família
A
família é imagem de Deus, que "no mais íntimo do seu mistério não é uma
solidão, mas uma família" (João Paulo II, Homilia Puebla, 2-AAS. LXXI, p. 184 ) . É uma aliança de pessoas, à
qual se chega por vocação amorosa do Pai, que convida os esposos a uma
"íntima comunidade de vida e de amor" (GS 48), cujo modelo é o amor de
Cristo
por sua Igreja. A lei do amor
conjugal é comunhão e participação, não dominação. É uma exclusiva, irrevogável
e fecunda entrega à pessoa amada, sem perder a própria identidade. Um amor
assim compreendido em sua rica realidade sacramental, é mais do que um
contrato; possui as características da aliança.
O
casal santificado pelo sacramento do matrimônio é um testemunho da presença
pascal dó Senhor. A família cristã
cultiva o espírito de amor e serviço. Quatro relações fundamentais da pessoa
encontram seu pleno desenvolvimento na vida da família: paternidade, filiação,
irmandade, nupcialidade. Essas mesmas relações compõem a vida da Igreja:
experiência de Deus como Pai, experiência de Cristo como irmão, experiência de
filhos em, com e pelo Filho, experiência de Cristo como esposo da Igreja. A
vida em família reproduz essas quatro experiências fundamentais e as compartilha
em miniatura: são quatro facetas do amor humano.
Cristo,
ao nascer, assumiu a condição das crianças: nasceu pobre e sujeito a seus
pais. Toda criança - imagem de Jesus que nasce - deve ser acolhida com carinho
e bondade. Ao transmitir a vida a um filho, o amor conjugal produz uma pessoa
nova, singular, única e irrepetível. Neste momento começa para os pais o
ministério da evangelização. Nisso devem eles fundar sua paternidade
responsável: nas circunstâncias sociais, econômicas, culturais, demográficas em
que vivemos, estariam os esposos capacitados para educar e evangelizar em nome
de Cristo mais um filho? A resposta dos pais sensatos será fruto do reto discernimento
e não da opinião estranha de pessoas, da moda, ou dos impulsos. Desta sorte, o
instinto e o capricho cederão lugar à disciplina consciente e livre da
sexualidade, por amor a Cristo, cujo rosto transparece no rosto da criança que
se deseja e se traz livremente à vida.
A lenta e prazeirosa educação da família
sempre importa em sacrifício, recordação da cruz redentora. Mas a íntima
felicidade que dá aos pais, recorda-lhes também a ressurreição. Neste espírito
de páscoa, evangelizam os pais a seus filhos e são por eles evangelizados. O
reconhecimento das faltas e a sincera manifestação do perdão são elementos de
conversão permanente e de permanente ressurreição. O ambiente de páscoa
floresce em toda a vida cristã e se converte em profetismo, em contato com a
divina Palavra. Mas evangelizar não é só ler a Bíblia, mas, a partir dela,
trocar palavras de admiração, consolo, correção, luz, segurança.. A estabilidade nas relações entre pais e
filhos é contagiante. Quando as demais famílias vêem como eles se amam, nasce o
desejo e a prática dum amor que une as famílias entre si, como sinal da unidade
do gênero humano. Cresce ali a Igreja mediante a integração das famílias pelo
batismo que a todos torna irmãos. Onde a catequese robustece a fé, todos se
enriquecem pelo testemunho das virtudes cristãs. Um sadio ambiente de união de
famílias é lugar ímpar de se nutrirem e fortalecerem física e mentalmente os
filhos em seus primeiros anos. Ali, os pais são mestres, catequistas e os
primeiros ministros da oração e do culto a Deus. Renova-se a imagem de Nazaré:
"Jesus crescia em sabedoria, tamanho e graça diante de Deus e dos
homens" (Lc 2,52) .
A
sociedade, para que funcione, requer as mesmas exigências do lar: formar
pessoas conscientes, unidas em comunidade de fraternidade para fomentar o
desenvolvimento comum. A oração, o
trabalho e a atividade educadora da família, como célula social, devem pois
orientar-se a trocar as estruturas injustas pela comunhão e participação entre
os homens e pela celebração da fé na vida cotidiano. "Na interpelação
recíproca que se estabelece no decorrer dos tempos entre o Evangelho e a vida
concreta pessoal e social" (EN 29), a família sabe ler e viver a mensagem
explícita sobre os direitos e deveres da vida familiar. Por isso, denuncia e
anuncia, compromete-se na transformação do mundo em sentido cristão e
contribui para o progresso, a vida comunitária, o exercício da justiça
distributiva, a paz.
Na
eucaristia, a família encontra sua plenitude de comunhão e participação.
Prepara-se para ela pelo desejo e busca do Reino, purificando a alma de tudo o
que aparta de Deus. Em atitude de ofertório, exerce o sacerdócio comum e
participa da eucaristia, para prolongá-1a na vida pelo diálogo em que partilha
a palavra, as preocupações, os planos, aprofundando-se com isto a comunhão familiar.
Viver a eucaristia é reconhecer e compartilhar os dons que, por Cristo,
recebemos do Espírito Santo. É aceitar a acolhida que os outras nos oferecem e
deixa-los que entrem em nós mesmos. Com isso, ressurge o espírito da aliança:
deixar que Deus entre em nossa vida e dela se sirva segundo sua vontade. Surge,
então, no centro da vida familiar, a imagem forte e suave de Cristo, morto e
ressuscitado.
Surge
daí a missão da família. Esta Igreja doméstica, convertida pela força
libertadora do Evangelho em "escola do mais rico humanismo" (GS 52)
sabendo-se peregrina com Cristo e comprometida com Ele no serviço da Igreja
particular, lança-se rumo ao futuro, disposta a superar as falácias do
racionalismo e da sabedoria mundana que desorientam o homem moderno.
Percebendo a realidade e atuando sobre ela, como Deus a vê e governa, busca
maior fidelidade ao Senhor, para não adorar ídolos, e sim ao Deus vivo do amor.
1.4. Opções pastorais
Opção
básica: Tendo em consideração os ensinamentos de Medellin, de Paulo VI e o
recente magistério de João Paulo II acerca da família: "Envidai todos os
esforços para que haja uma pastoral da família. Dai assistência a um campo tão
prioritário, na certeza de que, no futuro, a evangelização depende em grande
parte da Igreja doméstica (Discurso
Inaugural, IV a) - AAS, LXXI, p. 204), ratificamos a prioridade da pastoral
familiar dentro da pastoral orgânica na América Latina.
Propomos
um esquema elementar da pastoral familiar:
a)
A pastoral familiar insere-se admiravelmente na pastoral de toda a Igreja: é
evangelizadora, profética e libertadora.
*
Anuncia o Evangelho do amor conjugal e familiar, como experiência pascal
vivida na Eucaristia.
*
Denuncia as falácias e corruptelas que embargam ou ensombram o Evangelho do
amor conjugal e familiar.
*
Procura caminhos para que os casais e as famílias possam progredir na sua
vocação ao amor e em sua missão de formar pessoas, educar na fé, contribuir
para o desenvolvimento. Nos casos tão freqüentes de famílias incompletas,
devem-se buscar caminhos pastorais para sua devida assistência.
*
Acolhe os casais e famílias, seja qual for a situação concreta de cada uma, e
as acompanha com passos de bom Pastor que lhes compreende a fraqueza, ao ritmo
de sua pobreza humana e de sua ignorância.
b
) Agentes desta pastoral são aqueles que se comprometem a viver o Evangelho da
família e promovem comunidades eclesiais familiares, reduzidas ou amplas.
c)
Oportunidades para desenvolver a pastoral familiar:
*
nas ocasiões ricas de graça salvífica, que sobrevêm aos casais e nas famílias:
noivado, casamento, paternidade e educação dos filhos, aniversários,
batizados, primeiras comunhões, festas e celebrações familiares, sem excluir as
crises da convivência familiar, horas. dolorosas como a enfermidade e a morte.
*
Intimamente relacionado com a pastoral social está:
*
o trabalho em prol da criação de estruturas e ambientes que tornem possível a
vida em família;
*
o lazer, providenciando ambientes seguros e construtivos para os filhos e para
todos os jovens;
*
a cultura, comunicando valores recebidos da história familiar e da história
local;
*
o apostolado, unindo-se em comunidades intimamente relacionadas com a
hierarquia e comprometidas com a Igreja particular.
d)
Baseando-se na Palavra, oferece princípios e modelos para a ação: preferência
do "ser mais" sobre a tendência a possuir, poder, saber
"mais", sem servir mais. Dar mais do que receber.
e)
A pastoral familiar desenvolve-se:
*
em atmosfera de confiança na verdade;
*
na, integração dos valores naturais da família com a fé;
*
com um discernimento cristão das circunstâncias, em vista da tomada de
decisões.
Linhas de ação
a)
Enriquecer e sistematizar a teologia da família, para lhe facilitar o
conhecimento e o aprofundamento como "Igreja doméstica", com 0
objetivo de iluminar as novas situações das famílias latino-americanas.
b)
Afirmamos que, em toda pastoral familiar, deverá considerar-se a família como
sujeito e agente insubstituível de evangelização e como base da comunhão na
sociedade.
c)
Promover no seio das famílias um profundo espírito de comunhão entre seus
membros, com expressões de abertura e generoso serviço mútuo, procurando assim
a realização da Boa Nova.
d)
Repisar na necessidade duma educação de todos os membros da família na justiça
e no amor, de tal sorte que passam ser agentes responsáveis, solidários e
eficientes para promover soluções cristãs da complexa problemática social
latino-americana.
e)
Considerar a catequese pré-sacramental e sua celebração litúrgica como ocasiões
privilegiadas para o anúncio do Evangelho do amor conjugal e familiar e
resposta ao mesmo.
f
) Promover, como parte importante da educação progressiva no amor, a educação
sexual, que deve ser oportuna e integral, e que faro descobrir a beleza do amor e o valor humano do sexo.
g)
Acompanhar os esposos, para ajuda-los crescer na fé e aprofundar-se no mistério
d0 matrimônio cristão. Assim, serão ajudados a ser felizes, ensinando-se-lhes a
cultivar o amor, a entrar em diálogo, a trocar
delicadezas e atenções, a centrar no lar todos os interesses da vida.
h)
Atenda-se, numa atitude pastoral profundamente evangélica e com profundo senso
de compreensiva prudência, ao doloroso problema das uniões matrimoniais de fato
e das famílias incompletas.
i)
Eduquem-se de preferência os esposos par. uma paternidade responsável que os
capacite não só para uma honesta regulação da fecundidade e para incrementar o
gozo de sua complementariedade, mas também para fazer dela bons formadores de
seus filhos.
j
) Frente às campanhas antinatalistas, de origem governamental ou promovidas por
outr05 países, proporcionem-se às famílias conhecimentos suficientes sobre os
múltiplos efeitos negativos das técnicas imperantes nas filosofias
neomaltusianas e proceda-se à aplicação integral das normas éticas clara e
repetidas mente enunciadas pelo magistério.
Para
conseguir uma honesta regulação da fecundidade, requer-se promover a existência
de centros onde se ensinem cientificamente os métodos naturais, por meio de
pessoal qualificado. Esta alternativa humanista evita os convenientes éticos e
sociais da anticoncepção e da esterilização, que foram, historicamente passos
prévios à legalização do aborto.
k)
A pastoral do respeito ao direito
básico à vida não deve ser circunscrita ao crime abominável do aborto, mas
estender-se à defesa da integridade e saúde nos demais períodos e circunstâncias
da existência humana.
1
) Siga-se fielmente esta recomendação: "Em defesa da família... a Igreja
se compromete a prestar sua ajuda e convida os governos a que estabeleçam como
ponto-chave de sua ação uma política sócio-familiar inteligente, audaz,
perseverante, reconhecendo que nisto se cifra indubitavelmente o porvir - a
esperança - do Continente" (Joâo Paulo II, Homilia Puebla., 3-AAS, LXXI, p. 185 ) .
m)
Tanto nos seminários como nos institutos religiosos e outros centros,
ministrar uma suficiente formação em pastoral familiar e, posteriormente, na
formação permanente dos sacerdotes e demais agentes da evangelização.
n)
Promovam-se e consolidem-se os movimentos e outras formas do apostolado familiar,
respeitando seus próprios carismas dentro da pastoral de conjunto.
o
) Para assegurar o bom êxito dessas linhas de ação, criem-se ou dinamizem-se
centros de coordenação diocesana, nacional e latino-americana, para a pastoral
familiar, com participação dos pais de família.
COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE,
PARÓQUIA, IGREJA PARTICULAR
Além
da família cristã, que é o primeiro centro de evangelização, o homem vive sua
vocação fraterna no seio da Igreja particular, em comunidades que tornam
presente e operante o desígnio salvífico do Senhor, vivido na comunhão e na
participação.
Assim,
dentro da Igreja particular, devem-se considerar as paróquias, as comunidades
eclesiais de base e outros grupos eclesiais.
2. COMUNIDADES ECLESIAIS DE
BASE, PARÓQUIA, IGREJA PARTICULAR
A
Igreja é o Povo de Deus, que manifesta sua vida de comunhão e serviço
evangelizador em diversos níveis e sob diversas formas históricas.
2.1.
Situação
Em
geral: em nossa Igreja da América Latina, há grande anseio de relações mais
profundas e estáveis na fé, amparadas e animadas pela Palavra de Deus.
Intensificaram-se a oração em comum e o esforço do povo por participar mais
consciente e frutuosamente na liturgia.
Verificamos
um crescimento na corresponsabilidade dos fiéis, tanto na organização como na
ação natural.
Há
uma consciência e um exercício mais amplos dos direitos e deveres que competem
aos leigos como membros da comunidade.
Percebe-se
um grande anseio de justiça e um sincero sentimento de solidariedade, num
ambiente social caracterizado pelo avanço do secularismo e pelos demais
fenômenos próprios duma sociedade em transformação.
Pouco
a pouco, a Igreja foi-se desligando daqueles que detêm o poder econômico ou
político, libertando-se de dependências e prescindindo de privilégios.
A
Igreja na América Latina quer continuar dando um testemunho de serviço desinteressado e abnegado, em face de um
mundo dominado pelo afã do lucro, pela ânsia do poder e pela exploração. Numa
linha de maior participação, surgem ministérios ordenados, como o diaconato
permanente não ordenado e outros serviços, como os de proclamadores da
Palavra, animadores de comunidades. Nota-se também uma melhoria na colaboração
entre sacerdotes, religiosos e leigos.
Manifesta-se
mais claramente em nossas comunidades, como fruto do Espírito Santo, um novo
estilo de relacionamento entre bispos e presbíteros e destes com seu povo,
caracterizado por maior simplicidade, compreensão e amizade no Senhor. Tudo
isso é um processo no qual ainda há amplos setores que manifestam alguma
resistência e requerem compreensão e estímulo, assim como grande docilidade ao
Espírito Santo. São precisas ainda maior abertura do clero para com a ação dos
leigos, superação do individualismo pastoral e da auto-suficiência. Por outro
lado, a influência do ambiente secularizado tem produzido, por vezes,
tendências centrífugas com respeito à comunidade e perda do autêntico senso
eclesial.
Nem
sempre se encontraram os meios eficazes para superar a escassez de educação do
nosso povo na fé, permanecendo este indefeso ante a difusão de doutrinas
teológicas inseguras, em face do proselitismo sectário e dos movimentos
pseudo-espirituais.
Em particular
Está
comprovado que as pequenas comunidades, sobretudo as comunidades eclesiais de
base criam maior inter-relacionamento pessoal, aceitação da Palavra de Deus,
revisão de vida e reflexo sobre a realidade, à luz do Evangelho; nelas
acentua-se o compromisso com a família, com o trabalho, o bairro e a comunidade
local. Destacamos com alegria, como fato eclesial relevante e caracteristicamente
nosso e como "esperança da Igreja" (EN 58), a multiplicação das
pequenas comunidades. Esta expressão eclesial nota-se mais na periferia das
grandes cidades e no campo. Constituem elas ambiente propício para o surgimento
de novos serviços leigos. Nelas se tem difundido muito a catequese familiar e a
educação dos adultos na fé, de forma mais adequada ao povo simples. Todavia,
não se deu suficiente atenção à formação de líderes educadores da fé e de
cristãos responsáveis nos organismos intermediários do bairro, do mundo
operário e agrário. Quem sabe, por isso mesmo não hajam faltado membros de
comunidades ou comunidades inteiras que, atraídos por instituições puramente
leigas ou ideologicamente radicalizadas, vão perdendo o autêntico senso
eclesial.
A
paróquia está conseguindo diversas formas de renovação, adequadas às mudanças
desses últimos anos. Há mudança de mentalidade entre os pastores; os leigos
são chamados para os conselhos de pastoral e demais serviços; constante
atualização da catequese, maior presença, do presbítero no meio do povo,
principalmente graças a uma rede de grupos e comunidades.
Na
linha da evangelização, a paróquia apresenta uma dupla relação de comunicação e
comunhão pastoral: em nível diocesano, as paróquias se integram em regiões,
vicariatos, decanatos; no interior de si mesmas, a pastoral se diversifica
segundo os diferentes setores e se abre à criação de comunidades menores.
Contudo,
ainda subsistem atitudes que obstam a este dinamismo de renovação: primazia do
administrativo sobre o pastoral, rotina, falta de preparação para os
sacramentos, autoritarismo de certos sacerdotes e fechamento da paróquia sobre
si mesma, sem considerar as graves urgências apostólicas do conjunto.
Na
Igreja particular, observa-se um notável esforço para adaptar o território em
função de maior atendimento ao povo de Deus, com a criação de novas dioceses.
Há empenho por dotar as Igrejas de organismos que promovam a co-responsabilidade,
mediante canais. adequados para o diálogo, tais como conselhos presbiterais,
conselhos de pastoral, comissões diocesanas, que promovem uma pastoral mais
orgânica e adaptada à realidade peculiar de cada diocese.
Também
há, por parte das comunidades religiosas e dos movimentos leigos, maior
consciência da necessidade de inserir-se, com espírito eclesial, na missão da
Igreja particular.
Em nível nacional, é
notável o esforço em favor dum melhor exercício da colegialidade no seio das
conferências episcopais, cada dia mais bem organizadas e dotadas de organismos
subsidiários. Menção especial merece o desenvolvimento e a eficácia do serviço
que o CELAM oferece à comunhão eclesial em todo o âmbito da América
Latina.
Em nível universal, destacam-se
as relações de intercâmbio fraterno por meio do envio de pessoal apostólico e
da ajuda econômica, mantidas com os episcopados da Europa e da América do
Norte, com o apoio da CAL, cuja confirmação e aprofundamento ensejam mais
amplas oportunidades de participação intereclesial, sinal eminente de comunhão
universal.
2.2.
Reflexão doutrinal
O
cristão vive em comunidade sob a ação do Espírito Santo, princípio invisível
de unidade e comunhão, como também da unidade e variedade de estados de vida,
ministérios e carismas.
O
batizado, na Igreja doméstica que é sua família, é chamado à primeira
experiência de comunhão na fé, no amor e no serviço ao próximo.
Nas
pequenas comunidades, mormente nas mais bem constituídas, cresce a experiência
de novas relações interpessoais na fé, o aprofundamento da palavra de Deus, a
participação na eucaristia, a comunhão com os pastores da Igreja particular e
um maior compromisso com a justiça na realidade social dos ambientes em que se
vive. Pergunta-se quando é que uma pequena comunidade pode ser considerada verdadeira
comunidade eclesial de base na América Latina?
A comunidade eclesial de base, enquanto
comunidade, integra famílias, adultos e jovens, numa íntima relação
interpessoal na fé. Enquanto eclesial, é comunidade de fé, esperança e
caridade; celebra a palavra de Deus e se nutre da eucaristia, ponto culminante
de todos os sacramentos; realiza a palavra de Deus na vida, através da solidariedade
e compromisso com o mandamento novo do Senhor e torna presente e atuante a
missão eclesial e a comunhão visível com os legítimos pastores, por intermédio
do ministério de coordenadores aprovados. É de base por ser constituída de
poucos membros, em forma permanente e à guisa de célula da grande comunidade.
"Quando merecem o seu título de eclesialidade, elas podem reger, em
solidariedade fraterna, sua própria existência espiritual e humana" ( EN
58 ) .
Os
cristãos unidos em comunidade eclesial de base, fomentando sua adesão a Cristo,
procuram uma vida mais evangélica no seio do povo, colaboram para questionar as
raízes egoístas e de consumismo da sociedade e explicitam a vocação para a
comunhão com Deus e com os irmãos, oferecendo um valioso ponto de partida para
a construção duma nova sociedade, "a civilização do amor".
As
comunidades eclesiais de base são expressão de amor preferencial da Igreja pelo
povo simples; nelas se expressa, valoriza s purifica sua religiosidade e se
lhe oferece possibilidade concreta de participação na tarefa eclesial e no
compromisso de transformar o mundo.
A
paróquia realiza uma função de
Igreja em certo sentido integral, já que acompanha as pessoas e famílias no
decorrer de toda a sua existência, na educação e crescimento na, fé. É centro
de coordenação e animação de comunidades, grupos e movimentos. Aqui, amplia-se
mais o horizonte de comunhão e participação. A celebração da eucaristia e demais sacramentos torna presente de
maneira mais clara a totalidade da Igreja. O seu vínculo com a comunidade
diocesana é garantido pela união com o bispo, que confia a seu representante (
normalmente o pároco ) o cuidado pastoral da comunidade. A paróquia vem a ser para o cristão o lugar de encontro, de fraterna
comunicação de pessoas e de bens, superando as limitações próprias às
pequenas comunidades. Na paróquia se assume, de fato, uma, série de serviços
que não estão ao alcance das comunidades menores, sobretudo em nível
missionário e na promoção da dignidade da pessoa humana, atingindo-se, assim,
os migrantes mais ou menos estáveis, os marginalizados, os separados, os
não-crentes e, em geral, os mais necessitados.
Na Igreja particular, constituída
à imagem da Igreja universal, encontra-se e opera verdadeiramente a Igreja de
Cristo que é una, santa, católica e apostólica. Ela .é uma parte do povo de
Deus, definida por um contexto sócio-cultural mais amplo, onde se encarna. Sua
primazia no conjunto das comunidades eclesiais deve-se ao fato de ser presidida
pelo bispo, dotado de forma plena e sacramental do tríplice ministério de
Cristo, cabeça do corpo místico, profeta, sacerdote e pastor. O bispo é, em
cada Igreja particular, princípio e fundamento de unidade da mesma.
Por
serem sucessores dos apóstolos, os bispos tornam presente a apostolicidade de
toda a Igreja através de sua comunhão com o colégio episcopal e, de maneira
especial, com o Romano Pontífice; garantem a fidelidade ao Evangelho; realizam
a comunhão com a Igreja universal e promovem a colaboração do seu presbitério e
o crescimento do povo de Deus, confiado a seus cuidados. Responsabilidade do
bispo será discernir os carismas e incentivar os ministérios indispensáveis
para que a diocese cresça até a maturidade, como comunidade evangelizada e
evangelizadora, de tal sorte que seja luz e fermento da sociedade, sacramento
da unidade e de libertação integral, apta para o intercâmbio com as demais
Igrejas particulares, animada de espírito missionário, que a faça irradiar a
riqueza evangélica amealhada em seu interior.
2.3. Linhas pastorais
Como
pastores, queremos resolutamente promover, orientar e acompanhar as
comunidades eclesiais de base, de acordo com o espírito de Medellin e os
critérios da Evangelii Nuntiandi, 58;
favorecer o descobrimento e a formação gradual de animadores para elas. Em especial, é preciso procurar como
possam as peque: ias comunidades, que se multiplicam sobretudo na periferia e
nas zonas rurais, adaptar-se também à pastoral das grandes cidades do nosso
Continente.
Nas
paróquias, é preciso prosseguir no esforço de renovação, superando os aspectos
meramente administrativos; buscando maior participação dos leigos, mormente no
conselho pastoral; dando prioridade aos apostolados organizados e formando os
seculares para que assumam, como cristãos, suas responsabilidades na.
comunidade e no ambiente social.
Deve-se
insistir numa opção mais decidida em favor da pastoral de conjunto,
especialmente com a colaboração das comunidades religiosas, promovendo grupos,
comunidades e movimentos; animando-as a um esforço constante de comunhão,
fazendo da paróquia o centro de promoção e dos serviços que as comunidades menores
não podem assegurar.
Devem-se
incentivar as experiências para desenvolver a ação pastoral de todos os
agentes nas paróquias e animar a pastoral vocacional dos ministérios
consagrados, dos serviços leigos e da vida religiosa.
Digno
de especial reconhecimento e duma palavra de animação são os presbíteros e
outros agentes de pastoral, a quem a comunidade diocesana deve dar apoio,
estímulo e solidariedade, também no que se refere ao necessário sustento e
segurança social, dentro do espírito de pobreza.
Dentre
os presbíteros, queremos ressaltar a figura do pároco, como pastor à
semelhança de Cristo, promotor de comunhão com Deus e entre os irmãos, a cujo
serviço se dedica junto com seus coirmãos presbíteros em torno do bispo: atento
a discernir os sinais dos tempos com o seu povo; animador de comunidades.
No
âmbito da Igreja particular, procure-se garantir a constante formação e
renovação dos agentes de pastoral, promovendo a espiritualidade e os cursos de
capacitação, mediante centros de retiro e dias de oração. Urge que as cúrias
diocesanas cheguem a ser centros mais eficazes de promoção pastoral em seus
três níveis, de catequese, liturgia e serviços de justiça e caridade,
reconhecendo o valor pastoral do serviço administrativo. Deve-se intentar com
especial empenho a integração dos conselhos diocesanos de pastoral e outros organismos
diocesanos que, embora apresentem algumas dificuldades, são instrumentos
indispensáveis de planejamento, implementação e constante acompanhamento da
ação pastoral na vida da diocese.
A Igreja particular dará maior relevo a
seu caráter missionário e à comunhão eclesial, partilhando valores e
experiências, bem como favorecendo 0 intercâmbio de pessoas e bens.
Através
de seus pastores, pela colegialidade episcopal e união com o Vigário de
Cristo, a comunidade diocesana deve intensificar sua estreita comunhão com o
centro de unidade da Igreja e sua aceitação leal do serviço que ele oferece,
por seu magistério, na fidelidade ao Evangelho e na vivência da caridade.
Nisto vai incluída a colaboração na ação - em nível continental - por meio do
CELAM e de seus programas.
Nós
nos empenhamos para que esta colegialidade, da, qual Puebla, com as duas
Conferências Gerais que a precederam, constitui um momento privilegiado, seja
o sinal mais eficaz de credibilidade do anúncio e serviço do evangelho, em
favor da comunhão fraterna em toda a América Latina.
CAPÍTULO II
AGENTES
DE COMUNHAO E PARTICIPAÇÃO
Nós nos dirigimos agora aos principais
agentes da evangelização.
Queremos
refletir com eles e cobrar novo ânimo e novas opções para levar a bom termo
nossa tarefa pastoral.
Somos
responsáveis por essa difícil, mas honrosa missão de evangelizar todas as
pessoas e todos os ambientes.
Estamos
nos referindo aos presbíteros, diáconos, religiosos, religiosas e leigos
comprometidos e começamos por nós mesmos, os bispos.
CONTEÚDO
1.
Ministério hierárquico
2.
Vida consagrada
3.
Leigos
4.
Pastoral vocacional
1. MINISTERIO HIERÁRQUICO
O
Ministério hierárquico, sinal sacramental de Cristo, Pastor e Cabeça da Igreja,
é o principal responsável pela edificação da Igreja, na comunhão e dinamização
de sua ação evangelizadora.
1.1. Introdução
Muito
ativa tem sido por todos esses anos a reflexão teológica sobre a identidade
sacerdotal, urgida pelas crises e desajustes que a golpearam com certa rijeza.
Sente-se a falta, entretanto - e para isto convidamos os teólogos e
pastoralistas - de um aprofundamento em campo tão importante, de acordo com as
diretivas do magistério, em particular do Concílio Vaticano II, de Medellin,
do Sínodo dos Bispos de 1971 e do Diretório para o Ministério Pastoral dos
Bispos. Crescerá em interesse uma visão de síntese, na qual se perceba a
convergência de elementos por vezes apresentados como antitéticos.
O
sacerdócio, em virtude de sua participação sacramental com Cristo, Cabeça da
Igreja, é, pela Palavra e pela eucaristia, serviço da unidade da comunidade. O
ministério da comunidade implica participação no poder ou autoridade que
Cristo comunica mediante a ordenação e que constitui o sacerdote na tríplice
dimensão do ministério de Cristo, profeta, liturgo e rei, como alguém que age
em seu nome a serviço da comunidade. O ser e agir do sacerdote referem-se, na
identidade do seu serviço, à eucaristia, raiz e eixo de toda comunidade,
centro da vida sacramental, à qual a Palavra conduz. Por isso, pode-se afirmar
que onde há eucaristia há Igreja. Como esta é administrada pelo bispo, em
união com o presbitério, igualmente certo é dizer que "onde estiver o
bispo, aí está a Igreja".
Em
virtude da fraternidade sacramental, a plena unidade entre os ministros da
comunidade já é, de per si, um fato evangelizador, cuja exigência é lembrada
pelo Papa em seu discurso inaugural. Desta unidade deriva a própria unidade
pastoral.
1.2. Situação
Em
conseqüência das necessidades dos tempos, observa-se uma mudança na mentalidade e atitudes dos
ministros hierárquicos e, portanto, em sua imagem.
Vai-se
adquirindo uma consciência mais profunda do caráter evangelizador e missionário
do múnus pastoral.
O
estilo de vida de muitos pastores tem crescido em simplicidade e pobreza, no
mútuo afeto e compreensão, na aproximação ao povo, na abertura para o diálogo
e na corresponsabilidade.
Tem-se
consolidado a comunhão eclesial, tanto dos bispos com o Santo Padre, como dos
bispos entre si; da mesma forma a dos presbíteras e religiosos com o bispo e
entre as diversas famílias eclesiais. Especial menção merecem as Igrejas
particulares de diversos países que não só incrementam nosso trabalho de
evangelização com o envio de presbíteros, religiosos e outros agentes de
evangelização, como também contribuem generosamente com sua comunicação cristã
de bens.
Admirável
e animador é comprovar o espírito de sacrifício e abnegação com que muitos
pastores exercem o seu ministério a serviço do Evangelho, quer na pregação,
quer na celebração dos sacramentos ou na defesa da dignidade humana, afrontando
a solidão, o isolamento, a incompreensão e, por vezes, a perseguição e a morte
°'
Nota-se
em quase todos os ministros um crescente interesse pela atualização, não só
intelectual, mas também espiritual e pastoral e um desejo de aproveitamento de
todos os meios que a favorecem. Verifica-se um aumento de clareza com respeito
à identidade sacerdotal, que resultou em renovada afirmação da vida espiritual
do ministério hierárquico e num serviço preferencial aos pobres. Os pastores
contribuíram sensivelmente para apurar uma tomada de consciência na ação dos
leigos, tanto em sua vocação específica secular, como uma participação mais
responsável na vida da Igreja, inclusive mediante os diversos ministérios.
Fenômeno
animador é o dos diáconos permanentes, com seu ministério diversificado,
especialmente em paróquias rurais e agrárias, sem esquecer as comunidades de
base e outros grupos de fiéis. Faz-se contudo necessário um aprofundamento
teológico acerca da figura do diácono, para conseguir-se maior aceitação do
seu ministério. Dentro deste panorama alentador, também aparecem aspectos
negativos. Apresentamos alguns: a) Falta unidade nos critérios básicos de pastoral,
com as conseqüentes "tensões" na obediência e sérias repercussões na
"pastoral de conjunto".
b
) Não obstante o recente aumento de vocações, causa preocupação a escassez de
ministros, devida - entre outras causas - a uma, deficiente consciência
missionária.
c)
A distribuição do clero, em nível
continental, é inadequada e vê-se agravada em alguns casos por cumprirem os
sacerdotes tarefas supletivas.
d)
Falta uma suficiente atualização pastoral, espiritual, e doutrinal; isto causa
insegurança diante dos progressos teológicos e diante de doutrinas errôneas;
provoca um sentimento de frustração pastoral e até certas crises de identidade.
e)
Por vezes, a insuficiência de meios de sustentação e a falta duma modesta previdência
social para os presbíteros provoca o recurso a trabalhos remunerados, em
detrimento do seu ministério.
f
) Em algumas ocasiões, falta a oportuna intervenção magisterial e profética
dos bispos, bem como maior coerência colegial.
1.3. Iluminação
teológico-pastoral
O
grande ministério ou serviço que a Igreja presta ao mundo e aos homens que nele
habitam é a evangelização (apresentada com fatos e palavras), a Boa Nova de
que o Reino de Deus, reino de justiça. e de paz, chega aos homens em Jesus Cristo.
Desde o princípio, houve na Igreja diversidade de ministérios, cuja finalidade
é a evangelização. Os escritos do Novo Testamento revelam a vitalidade da
Igreja, que se manifestou em múltiplos serviços. Assim, São Paulo menciona,
entre outros, os seguintes: a profecia, a diaconia, o ensino, a exortação, o
dar esmolas, o presidir, o exercício da misericórdia; e, em outros contextos, fala de ministérios como as palavras da
sabedoria, do discernimento de espíritos e alguns outros. Em outros escritas da Novo Testamento,
descrevem-se igualmente vários ministérios.
"O
ministério eclesiástico, de instituição divina, é exercido em diversas ordens
por aqueles que, já desde as primeiras eras, se vêm chamando bispos,
presbíteros e diáconos" (LG 28). Estas formam o ministério hierárquico e
se recebem mediante a "imposição das mães", no sacramento da ordem.
Como ensina o Vaticano II, pelo sacramento da ordem - episcopal e presbiterial
- confere-se um sacerdócio ministerial, essencialmente diferente do sacerdócio
comum de que participam todos os fiéis pelo sacramento do batismo; os que
recebem o ministério hierárquico ficam constituídos, de acordo com suas
funções, "pastores" da Igreja. Assim como o Bom Pastor, vão à frente
das ovelhas; dão a vida por elas, para que tenham vida e a tenham em
abundância; conhecem-nas e são por elas conhecidos.
"Ir
à frente das ovelhas" significa, ficar atentos aos caminhos por onde
transitam os fiéis, a fim de que, unidos pelo Espírita, dêem testemunho da
vida, padecimentos, morte e ressurreição de Jesus Crista que, pobre entre os
pobres, proclamou que todos somos filhos de um mesmo Pai e, por conseguinte,
irmãos.
"Dar
a vida" indica a medida da "ministério hierárquico" e é a prova
do maior amor; assim o vive Paulo, que morre todos os dias" no cumprimento
do seu ministério.
"Conhecer
as ovelhas e ser por elas conhecidos" não se limita a saber das
necessidades dos fiéis. Conhecer é envolver-se com todo o ser, amar como quem
veio não para ser servido, mas para servir.
Renovamos
a nossa adesão a todos os ensinamentos que, sobre os pastores, nos foram
ministrados pelo Concílio Vaticano II, Sínodo Episcopal de 1971, Medellin e o
Diretório dos Bispos. Agora, porque as julgamos especialmente úteis para a
evangelização da América Latina no presente, e no futuro, propomos algumas
"reflexões" sobre o ministério dos bispos, das presbíteros e dos
diáconos: O bispo, como membro do colégio episcopal presidido pelo Papa, é
sucessor dos apóstolos e por sua plena participação no sacerdócio de Cristo -
é sinal visível e eficaz do mesmo Cristo, de quem faz as vezes como mestre,
pastor e pontífice. Esta função tríplice e inseparável acha-se posta a serviço
da unidade de sua Igreja particular e cria exigências de caráter espiritual e
pastoral que, hoje, merecem ser acentuadas.
O bispo é
mestre da verdade. Numa Igreja totalmente consagrada ao serviço da Palavra,
ele é primeiro evangelizador, o primeiro catequista; nenhuma outra tarefa o
pode eximir desta missão sagrada.. Medita religiosamente a Palavra, atualiza-se
doutrinalmente, prega ao povo pessoalmente; vela para que a sua comunidade
progrida de contínuo no conhecimento e prática da palavra de Deus, animando e
orientando a todos os que ensinam na Igreja (a fim de evitar "magistérios
paralelos" de pessoas ou grupos), e suscitando a colaboração dos
teólogos, que exercem o seu carisma específico dentro da Igreja a partir dos
métodos próprios da teologia; para isto, busca uma atualização teológica, a
fim de poder discernir a verdade, e mantém com eles uma atitude de diálogo.
Isso tudo em comunhão com o Papa e com seus irmãos bispos, especialmente os de
sua conferência episcopal.
O
bispo é sinal e construtor da unidade. Faz de sua autoridade, evangelicamente
exercida, um serviço da unidade; promove a missão de toda a comunidade
diocesana; fomenta a participação e corresponsabilidade nos diversos níveis;
infunde confiança em seus colaboradores (mormente os presbíteros, para os quais
deve ser pai, irmão e amigo ); cria na diocese um tal clima de comunhão
eclesial orgânica e espiritual, que permita a todos os religiosos e religiosas
viverem sua pertença peculiar à família diocesana; discerne e valoriza a
multiplicidade e variedade dos carismas infundidos nos membros de sua Igreja,
de sorte que, eficazmente integrados, concorram para o crescimento e vitalidade
da mesma; faz-se presente nas principais ocorrências da vida de sua Igreja
particular.
O
bispo é pontífice e santificador. Exerce pessoalmente sua função de presidente
e promotor da liturgia; firma-o em seu próprio testemunho, promove a santidade
de todos os fiéis com meio primordial de evangelização; haure na graça própria
do sacramento da ordem o fundamento para um constante cultivo da vida
espiritual que, no amor pessoal a Cristo, impulsione o seu amor à Igreja e sua
entrega ao generoso pastoreio de suas ovelhas; ocupa-se da vida espiritual dos
seus presbíteros e religiosos; faz de sua vida alegre, austera, simples e o
mais chegada possível ao povo, um testemunho de Cristo Pastor e um meio de
dialogar com todos os homens.
Os
presbíteros são constituídos, pelo sacramento da ordem, colaboradores
principais dos bispos em seu tríplice ministério; tornam presente a Cristo-Cabeça
no meio da comunidade c2'4; formam, junto com seu bispo e unidos em íntima
fraternidade sacramental, um só presbitério dedicado a tarefas variadas para o
serviço da Igreja e do mundo. Essas realidades fazem deles "peças centrais
da tarefa eclesial" (João Paulo II,
Alocução Sacerdotes, 1-AAS, LXXI, p. 179 ) .
Já
que os presbíteros são inseparáveis dos bispos, os traços de espiritualidade
pastoral acima descritos também a eles se aplicam. Na atual situação da Igreja
na América Latina, considera-se prioritário o seguinte:
O
presbítero anuncia o Reino de Deus, que se inicia neste mundo e chegará à
plenitude quando Cristo vier no fim dos tempos. Para servir a este Reino,
abandona tudo em seguimento do seu Senhor. Sinal desta entrega radical é o
celibato ministerial, dom do próprio Cristo e penhor duma generosa e livre dedicação
ao serviço dos homens.
O
presbítero é um homem de Deus. Só lhe é dado ser profeta na medida em que tenha
feito a experiência do Deus vivo. Só esta experiência o fará portador duma
palavra poderosa para transformar a vida pessoal e social dos homens, de
conformidade com o desígnio do Pai.
A oração sob todas as suas formas - e de
modo especial a Liturgia das Horas a ele confiada pela Igreja - o ajudará a
sustentar esta experiência de Deus, que ele deverá partilhar com seus irmãos.
Assim como o bispo e em comunhão com ele, o presbítero evangeliza, celebra o
santo sacrifício e serve à unidade.
Como
pastor, empenhado na libertação integral dos pobres e oprimidos, ele age sempre
com critérios evangélicos. Acredita na força do Espírito para não cair na tentação
de se transformar em líder político, dirigente social ou funcionário de um
poder temporal; isto o impediria de "ser sinal e fator de unidade e
fraternidade" (João Paulo II, Alocução Sacerdotes, 8-AAS, LXXI, p. 182).
O
diácono, colaborador do bispo e do presbítero, recebe uma graça sacramental
própria. O carisma do diácono, sinal sacramental de "Cristo Servo"
tem grande eficácia para a realização duma Igreja servidora e pobre, que exerce
sua. função missionária com vistas à libertação integral do homem. A missão e função do diácono não se
devem avaliar com critérios meramente pragmáticos. por estas ou aquelas ações
que poderiam ser exercidas por ministros não ordenados ou por qualquer
batizado; nem tampouco como solução para a escassez numérica de presbíteros
que afeta a América Latina. A conveniência
do diácono se depreende da sua contribuição eficaz para melhor cumprimento da
missão salvífica da Igreja, graças a uma atenção mais adequada à tarefa
evangelizadora.
A implantação do diaconato permanente,
já pedida à Santa Sé pela maioria de nossas conferências episcopais, deverá
efetuar-se dentro duma procura "do novo e do velho". Não se trata
simplesmente de restaurar o diaconato primitivo, mas de pesquisar a tradição
da Igreja universal e as realidades peculiares do nosso continente, haurindo
desta dupla atenção, fidelidade ao patrimônio eclesial e sadia criatividade
pastoral com projeção evangelizadora.
A espiritualidade ministerial comum a
todos os membros da hierarquia deve centrar-se na eucaristia e caracterizar-se
por uma autêntica devoção à Santíssima Virgem Maria, tão arraigada. no povo que
evangelizamos e garantia duma permanente fidelidade, característica-chave de
todo evangelizador.
1.4. Orientações pastorais
Os
bispos: Comprometemo-nos a:
Sempre
cumprir com alegria, intrepidez e humildade o ministério evangelizador, como
tarefa prioritária do múnus episcopal, na senda aberta e iluminada pelos
insignes pastores e missionários do Continente.
Assumir
a colegialidade episcopal em todas as suas dimensões e conseqüências, a nível
regional e universal.
Promover
a todo o custo a unidade da Igreja particular, com discernimento do Espírito
para não extinguir nem uniformizar a riqueza de carismas, e dar especial
importância à promoção da pastoral orgânica e à animação das comunidades. Dar
aos conselhos presbiteriais e pastorais e outros organismos pastorais a
consistência e funcionalidade requeridas pelo Concílio e promover com
solicitude o crescimento espiritual e pastoral dos presbíteros.
Procurar
formas de agrupamento dos presbíteros situados em regiões afastadas, a fim de
evitar seu isolamento e favorecer maior eficiência pastoral. Recomenda-se
especial consideração para com os "capelães militares", no intuito de
que, nos lugares onde prestam seu ministério sacerdotal, se integrem
pastoralmente no presbitério
diocesano. Empenhar-nos, por exigência evangélica e de acordo com a nossa
missão, em promover a justiça e defender a dignidade e os direitos da pessoa
humana.
Num
espírito de fidelidade total ao Evangelho e sem perder de vista o nosso carisma
de sinal de unidade e pastor, dar a entender por nossa vida e atitudes a nossa
preferência pela evangelização e serviço aos pobres.
Dar
atenção preferencial ao seminário, dada a sua importância na formação dos
presbíteros dos quais depende, em grande parte, "a desejada renovação de
toda a Igreja" (0T, proêmio), destinar-lhes os melhores sacerdotes
adequadamente capacitados; buscar por todos os meios um melhor conhecimento dos
formadores e dos alunos e um maior contato com eles.
Buscar
efícazmente a solução para a difícil situação econômica dos presbíteros,
mediante uma remuneração e previdência social adequadas; acudindo, caso
necessário, a iniciativas de caráter supradiocesano, nacional ou internacional,
no espírito da comunicação cristã de bens.
Estudar
com objetividade o fenômeno do abandono do ministério presbiterial, com suas
causas e incidências na vida da Igreja, tendo presente o critério traçado pelo
Sínodo de 1971, que pede sejam tratados, do ponto de vista pastoral,
"eqüitativa e fraternalmente" e possam colaborar no serviço da
Igreja, embora "não sejam admitidos ao exercício de atividades
sacerdotais" (O Sacerdócio
Ministerial, II, 4, d).
Presbíteros
No seu ministério, dêem os presbíteros prioridade ao anúncio do Evangelho a
todos, mas muito especialmente aos mais necessitados (operários, camponeses,
indígenas, marginalizados, grupos afro-americanos), incluindo a promoçâo e
defesa de sua dignidade humana.
Renove-se
a vitalidade missionária dos sacerdotes e sejam eles formados numa atitude de
generosa disponibilidade, para que se possa dar uma resposta eficaz à desigual
distribuição do clero atualmente existente.
Dêem
prioridade ao trabalho evangelizador da família e da juventude e à promoção
das vocações sacerdotais e religiosas.
Assumam
o compromisso de incorporar o laicato e as religiosas na ação pastoral, numa
participação cada, vez mais ativa, ministrando-lhes o devido acompanhamento
espiritual e doutrinal.
Diáconos permanentes
O
diácono insira-se plenamente na comunidade a que serve e promova de contínuo a
comunhão da mesma com o presbítero e o bispo. Além disso, respeite e fomente os
ministérios exercidos por leigos.
A
comunidade deve ter um papel importante na cuidadosa seleção dos candidatos ao
diaconato. Haja formação adequada e contínua do diácono e uma devida preparação
de sua própria família, da comunidade que o acolhe, do presbitério e dos
leigos.
Preveja-se
uma justa remuneração dos diáconos permanentes consagrados por inteiro ao
ministério pastoral.
Promovam-se
estudos para aprofundar os aspectos teológicos`. canônicos e pastorais do
diaconato permanente e procure-se a divulgação adequada de tais estudos.
Formação permanente
A
graça recebida na ordenação, que se deve continuamente reavivar «), e a missão
evangelizadora exigem dos ministros hierárquicos uma séria e contínua formação,
que não se pode reduzir ao campo intelectual, mas deve estender-se a todos os
aspectos de sua vida.
Objetivo
desta formação, que levará em conta a idade e as condições das pessoas, deve
ser: capacitar os ministros hierárquicos para que, de conformidade com as
exigências de sua vocação e missão e com a realidade latino-americana, vivam
pessoal e comunitariamente um processo continuado que os torne pastosamente
competentes para o exercício do ministério.
2. VIDA CONSAGRADA
A
vida consagrada é, por si mesma, evangelizadora, no sentido da comunhão e
participação na América Latina.
2.1. Tendências da vida
consagrada na América Latina
Motivo
de grande alegria é para nós, bispos, verificar a presença e o dinamismo de
tantas pessoas consagradas que, na América Latina, dedicam sua vida à missão
evangelizadora, como já fizeram no passado. Podemos afirmar com Paulo VI:
"Não raras vezes, elas são encontradas na vanguarda da missão, a afrontar
os maiores riscos para sua saúde e a própria vida. Sim, na verdade, a Igreja
lhes deve muitíssimo" (EN 69). Isto nos incita a promover e acompanhar a
vida consagrada de acordo com suas notas características, De toda a experiência
de vida religiosa na América Latina queremos reunir tão somente as tendências
mais significativas e renovadoras que o Espírito suscita na Igreja, assim como
apontar algumas dificuldades manifestadas pela crise dos últimos anos.
Embora
nos refiramos diretamente à vida religiosa, queremos dizer aos institutos
seculares e a outras formas de vida consagrada que, aqui, depararão com muitas
idéias e experiências que também lhes concerne. A Igreja da América Latina
estima seu estilo de consagração a Deus e seu modo de vida "secular"
como meio especialmente valioso para levar a presença e mensagem de Cristo a
todo tipo de ambientes humanos.
A vida religiosa em seu conjunto
constitui a maneira específica de evangelizar, própria do religioso. Por isso,
ao assinalarmos esses aspectos, destacamos a contribuição dos religiosos para
a evangelização. Em especial, descobrimos as tendências seguintes:
a)
Experiência de Deus
Há
certos indícios que exprimem um desejo de interiorização e aprofundamento na
vivência da fé ao comprovar que, sem o contato com o Senhor, não se consegue
uma evangelização convincente e perseverante.
Há
empenho por que a oração chegue a converter-se em atitude vital, de tal sorte
que oração e vida se enriqueçam mutuamente: oração que conduza a comprometer-se
na vida real, e vivência da realidade que exija momentos fortes de oração.
Além de recorrer à oração íntima, tende-se de forma especial à oração
comunitária, com partilha da experiência de fé, com discernimento sobre a
realidade, orando junto com o povo.
Oração
que deve ser visível e estimulante. Está se redescobrindo o sentido da grande
tradição da Igreja de orar com salmos e textos litúrgicos, sobretudo na
eucaristia participada. O mesmo se dá com outras devoções tradicionais como o
rosário. Deve-se reconhecer que alguns religiosos não conseguiram a integração
entre vida e oração, mormente quando se acham absorvidos pela atividade,
quando na inserção faltam espaços de intimidade ou vivem uma espiritualidade
falsa.
b ) Comunidade fraterna
Busca-se
dar ênfase às relações fraternas interpessoais nas quais se valoriza a
amizade, a sinceridade, a maturidade, como base humana indispensável para a
convivência; numa dimensão de fé, pois quem chama é o Senhor; num estilo de
vida mais simples e acolhedor; com diálogo e participação. Há diversos estilos
de vida comunitária. Para certas obras e de acordo com os diversos carismas
das instituições, existem comunidades numerosas. Também surgem "pequenas
comunidades" que nascem geralmente do desejo de inserir-se em bairros
modestos ou no campo, ou em alguma missão evangelizadora particular. A experiência mostra que, para terem
êxito, essas pequenas comunidades devem preencher certas condições: motivação
evangélica, comunicação pessoal, oração comunitária, avaliações, integração no
instituto e na diocese mediante a indispensável assistência da autoridade.
Hoje,
experimentam-se especiais dificuldades devidas à proximidade das pessoas e
diversidade de mentalidades, quando diminui o sentido da fé ou não se respeita
o devido pluralismo.
c
) Opção preferencial pelos pobres
A
abertura pastoral das obras e a opção preferencial pelos pobres é a tendência
mais notável da vida religiosa latino-americana. De fato, os religiosos
acham-se cada vez mais em zonas marginais e difíceis, nas missões entre
indígenas, num trabalho humilde e silencioso. Esta opção não supõe exclusão de
ninguém, mas pelo contrário, uma preferência e aproximação do pobre.
Isso
tem levado à revisão das obras tradicionais, para melhor responder às
exigências da evangelização. Igualmente projetou uma luz mais clara sobre a
relação dos religiosos com a pobreza dos marginalizados, que já não supõe
somente o desprendimento interior e a austeridade comunitária, mas também
solidariedade, partilha e, em certos casos, convivência com o padre.
Contudo,
esta opção produz efeitos negativos, quando falta a preparação adequada, o
apoio comunitário, a maturidade pessoal ou a motivação evangélica. Em não
poucas ocasiões, tal opção implicou no risco de ser mal interpretada.
d) Inserção na vida da Igreja
particular
Verifica-se
uma redescoberta e vivência do mistério da Igreja particular; um desejo
crescente de participação, contribuindo com a riqueza do próprio carisma
vocacional. Isto leva a maior integração na pastoral de conjunto e a maior
participação nos organismos e obras diocesanas ou supradiocesanas.
Não
obstante, ocorrem tensões. Umas vezes no seio das comunidades; outras, entre estas e os bispos. Acontece perde-se de
vista a missão pastoral do bispo ou o carisma próprio do instituto; ou então
faltar o diálogo e o discernimento em conjunto, ao tratar-se do revisar obras
ou de mudar pessoal a serviço da diocese. Preocupa-nos o abandono sem consulta
de obras que tradicionalmente estiveram em mãos de comunidades religiosas,
como colégios, hospitais etc.
As
comunidades contemplativas são como o coração da vida religiosa. A todos
animam e estimulam para que intensifiquem o significado transcendente da vida
cristã. Elas mesmas também são evangelizadoras, pois "o ser contemplativa
não supõe cortar radicalmente com o mundo, com o apostolado. A contemplativa
deve encontrar o seu modo específico de dilatar o Reino de Deus" (João
Paulo II, Alocução às Religiosas de Guadalajara, 2 - AAS, LXXI, p. 226).
2.2. Critérios
a
) O desígnio de Deus
A
vida consagrada, arraigada desde os primórdios nos povos da América Latina, é
um dom que o Espírito concede sem cessar à sua Igreja como "meio
privilegiado de evangelização eficaz" ( EN 69 ) .
O
Pai, ao propor-se libertar nossa história do pecado, germe de indignidade e
morte, elege, em seu Filho, mediante o Espírito, mulheres e homens batizados,
para um seguimento radical de Jesus Cristo dentro da Igreja.
E
como a Igreja universal' se realiza nas Igrejas particulares «6, nestas se
concretiza, para a vida consagrada, a relação de comunidade vital e compromisso
eclesial evangelizador. Com elas, os consagrados partilham as fadigas, os
sofrimentos, as alegrias e esperanças da construção do Reino e nelas empenham
as riquezas de seus carismas particulares, como dom do Espírito evangelizador.
Nas Igrejas particulares encontram seus irmãos presididos pelo bispo, a quem
"compete o ministério de discernir e harmonizar" ( MR 6 ) .
b ) Chamados ao seguimento radical de Cristo Chamados
pelo Senhor, comprometem-se a segui-1o radicalmente, identificando-se com ele
"a partir das bem-aventuranças", como salientou o Papa: "Não
esqueçais nunca que, para manter clara, a noção do valor de vossa vida
consagrada, precisareis duma profunda visão de fé, que se alimenta e conserva
com a oração. A mesma oração vos
fará superar qualquer incerteza acerca da vossa própria identidade, e vos
manterá fiéis a essa dimensão vertical que é essencial para vos identificar
com Cristo, segundo as bem-aventuranças e para serdes testemunhas autênticas do
Reino de Deus perante os homens do mundo atual" (João Paulo II Alocução Religiosas, 4 - AAS, LXXI, p. 178).
Em
virtude de sua consagração, aceitam alegremente, fundados na. comunhão com o
Pai, o mistério da aniquilação e exaltação pascal «. Por isso, negando-se
radicalmente a si mesmos, aceitam como própria a cruz do Senhor '°' que sobre
eles pesa e acompanham os que sofrem por causa da injustiça, por causa da falta
do senso profundo da existência humana e por causa da fome de paz, verdade e
vida. Assim, compartilhando sua morte, ressuscitam alegremente com eles para a
novidade da vida e, fazendo-se tudo para todos, consideram privilegiados os
pobres, prediletos do Senhor.
Especialmente
chamados são eles para viver em intensa comunhão com o Pai, que os cumula do
seu Espírito, urgindo-os a construir a comunhão sempre renovada entre os
homens. Desta sorte, a vida consagrada é uma afirmação profética do valor supremo
da comunhão com Deus e entre os homens (cf . ET 53) e um "exímio
testemunho de que o mundo não pode ser transfigurado nem oferecido a Deus sem o
espírito das bem-aventuranças" (LG 31).
Tendo
Maria por modelo de consagração e por intercessora, os consagrados encarnarão
a Palavra em sua vida e, como ela e com ela, oferecê-1a-ão aos homens numa
contínua evangelização.
A
sua radical consagração a Deus amado sobre todas as coisas e. por conseguinte,
ao serviço dos homens, exprime-se e se realiza por meio dos conselhos evangélicos,
assumidos mediante votos ou outros vínculos sagrados que os "unem
particularmente com a Igreja e seu mistério" ( LG 44 ) .
Assim,
vivendo pobremente como o Senhor e sabendo que Deus é o único absoluto,
compartilham seus bens; anunciam a gratuidade de Deus e de seus dons;
inauguram, desta forma, a nova justiça e proclamam "de maneira toda
especial a elevação do Reino de Deus sobre tudo o que é terreno, e suas
exigências supremas" ( LG 44 ); por seu testemunho, são uma denúncia
evangélica daqueles que servem ao dinheiro e ao poder, reservando para si
egoisticamente os bens que Deus outorga ao homem para benefício de toda a
comunidade.
Sua
obediência consagrada, vivida com abnegação e fortaleza "como sacrifício
de si mesmos" (PC 14) será expressão de comunhão com a vontade salvífica
de Deus e denúncia a todo projeto histórico que, apartando-se do plano divino,
não faça crescer o homem em sua dignidade de filho de Deus. Neste mundo onde o
amor está sendo esvaziado de sua plenitude, onde a desunião amplia distâncias
por toda a parte e o prazer é erigido como ídolo, os que pertencem a Deus em
Cristo pela castidade consagrada serão um testemunho da aliança libertadora de
Deus com o homem e, no seio da própria Igreja particular, uma presença do amor
com que "Cristo amou a Igreja e se entregou por ela" (Et 5,25 ) .
Finalmente, serão para todos um sinal luminoso da libertação escatológica,
vivida na entrega a Deus e numa solidariedade nova e universal com os homens.
Desta
sorte, "esse testemunho silencioso de pobreza e desprendimento, de pureza
e transparência, de abandono na obediência, pode ser, ao mesmo tempo que uma
interpelação ao mundo e à própria Igreja, uma pregação eloqüente, capaz de
tocar até mesmo os não cristãos de boa vontade, sensíveis a certos
valores" (EN 69).
Numa
vida de contínua oração, são chamados a mostrar a seus irmãos o valor supremo e
a eficácia apostólica da união com o Pai (cf. João Paulo II, Discurso aos Superiores Maiores,
24-11-78).
A
comunhão fraterna vivida em todas as suas exigências, a que são convocados os
consagrados, é o sinal do amor transformador que o Espírito infunde em seus
corações, mais forte que os laços da carne e do sangue.
Pessoas
diversas, por vezes de diferentes nacionalidades, participam da mesma vida, e
missão, em íntima fraternidade.
Com
isto, esforçam-se por dar eloqüente testemunho da vida de Deus Trino em sua
Igreja, da mesma comunhão eclesial e atuam como fermento de comunhão entre os
homens e de co-participação nos bens de Deus.
Se
todos os batizados foram chamados a participar na missão de Cristo, a abrir-se
para seus irmãos e a trabalhar em prol da unidade, dentro e fora da comunidade
eclesial, muito mais ainda os que Deus para si consagrou. Estes são convidados
a viver o mandamento novo, numa doação gratuita a todos os homens "com um
amor que não é partidário, que a ninguém exclui, embora se dirija com,
preferência ao mais pobre" (João Paulo II Alocução Sacerdotes, AAS, LXXI, p. 181).
Desta
forma nascem os serviços suscitados pelo Espírito como expressão salvífica de
Jesus Cristo que, embora realizados individualmente, são assumidos por toda. a
comunidade. Urgidos pelo amor de Cristo são fermento da consciência missionária
dentro da comunidade eclesial, ao mostrar-se disponíveis para serem enviados a
lugares e situações onde a Igreja necessita uma ajuda maior e mais generosa.
A riqueza do Espírito se manifesta nos
carismas dos fundadores, que brotam em sua Igreja no decorrer de todos os
tempos, como expressão da força do seu amor que responde solícito às necessidades
dos homens (cf. LG 46) .
A fidelidade ao próprio carisma é,
portanto, uma forma concreta de obediência à graça salvífica de Cristo e de
santificação com ele para remir seus irmãos, quer na perspectiva da área
educacional, do serviço da saúde ou social, do ministério paroquial, quer na
perspectiva da cultura, da arte, etc. Deste modo faz-se presente o Espírito
Santo, que evangeliza os homens com sua riqueza multiforme.
2.3. Opções gera uma vida
consagrada mais evangelizadora
Orientados
pelos ensinamentos das Exortações Apostólicas Evangelii Nuntiandi, Evangelica Testificatio e pelo documento Mutuae Relationes, comprometemo-nos a
colaborar com os superiores maiores para realizar as seguintes opções:
a) Consagração mais profunda,
Intensificar
pelos meios mais convenientes a vivência da consagração total e radical a
Deus, que comporta dois aspectos inseparáveis e complementares: entrega e
reserva para Deus, generosa e total, e serviço à Igreja e a todos os homens.
Favorecer o clima de oração e contemplação que nasce da palavra do Senhor,
escutada e vivida nas circunstâncias concretas da nossa história. Valorizar o
testemunho evangelizador da vida consagrada como expressão vital dos valores
evangélicos anunciados nas bem-aventuranças.
Revitalizar
a vida consagrada mediante a fidelidade ao próprio carisma e ao espírito dos
fundadores, em resposta às novas necessidades do povo de Deus.
Incentivar
uma seleção vocacional que permita a decisão plena e consciente e capacite para
um serviço evangelizador adequado no presente e futuro da América Latina. Para
isto, favorecer uma séria formação inicial e permanente, adaptada às circunstâncias
peculiares da nossa realidade em perpétua mudança.
b ) Consagração como expressão de comunhão Fomentar
nas comunidades a fraternidade, favorecendo em seu interior as relações
interpessoais que ensejem a integração e conduzam a maior comunhão e melhor
colaboração na missão. Estimular a abertura a relações intercongregacionais nas
quais, respeitados o pluralismo de carismas particulares e as disposições da
Santa Sé, se promova a união.
Criar
nas dioceses um tal clima de comunhão eclesial orgânica e espiritual em torno
do bispo, que permita às comunidades religiosas viver sua pertença peculiar à
família diocesana e, em especial, leve os religiosos presbíteros à descoberta
de que são cooperadores da ordem episcopal e, de certa forma, pertencem ao
clero da diocese. Para isso, estudar em conjunto os documentos eclesiásticos,
particularmente o das Relações entre os
Bispos e os Religiosos na Igreja.
Promover
a plena adesão ao magistério da Igreja, evitando qualquer atitude doutrinal ou
pastoral que se aparte de suas orientações ( cf. João Paulo II, Discurso Inaugural I, 7 - AAS, LXXI, p. 193 ) .
Fomentar
entre os religiosos o conhecimento da teologia da Igreja particular e o da
teologia da vida religiosa entre o clero diocesano, com vistas ao
fortalecimento duma autêntica pastoral orgânica, em nível de diocese e de
conferência episcopal «. Estabelecer relações institucionalizadas entre as
conferências episcopais e outros organismos eclesiásticos com as conferências
nacionais de superiores religiosos e outros organismos de religiosos, de
acordo com os critérios da Santa Sé para as relações entre os bispos e
religiosos na Igreja.
c ) Missão mais comprometida
Incentivar
os religiosos para que assumam um compromisso
preferencial pelos pobres, levando em consideração o que disse João Paulo II:
"Sois sacerdotes e religiosos; não sois dirigentes sociais, líderes
políticos ou funcionários dum poder temporal. Por isso vos repito: não
tenhamos a ilusão de servir o Evangelho se permitimos que o nosso carisma se
"dilua" através dum exagerado interesse pelo vasto campo dos
problemas temporais" (João Paulo II, Alocução
Sacerdotes, 8 - AAS, LXXI, p.
182 ) .
Estimular
os religiosos e religiosas a atingirem, com a sua ação evangelizadora, os
ambientes da cultura, da arte, da comunicação social e da promoção humana, a
fim de darem a sua contribuição evangélica específica, de acordo com sua
vocação e situação peculiar na Igreja.
Despertar
a disponibilidade dos consagrados para assumirem, dentro da Igreja Particular,
os postos de vanguarda evangelizadora em fiel comunhão com seus pastores e com
sua comunidade e na fidelidade ao carisma de sua fundação.
Estimular
a fidelidade ao carisma original e sua atualização e adaptação às necessidades
do povo de Deus, para que as obras alcancem maior força evangelizadora.
Renovar
a vitalidade missionária dos religiosos e a atitude de generosa disponibilidade
que os leve a dar respostas eficazes e concretas ao problema da hodierna
desigualdade de distribuição das forças evangelizadoras.
2.4. Institutos seculares
No
que tange especificamente aos institutos seculares, importa recordar que o seu
carisma próprio intenta responder de maneira direta ao grande desafio que as
atuais mudanças culturais estão lançando à Igreja: dar um passo na direção das formas de vida. secularizada que o mundo
urbano-industrial exige, evitando porém que a secularidade se converta em
secularismo.
O
Espírito suscitou em nossos dias este novo modo de vida consagrada,
representado pelos institutos seculares, para ajudar de certa forma, por meio
deles, a resolver a tensão entre a abertura real aos valores do mundo moderno
(autêntica secularização cristã) e a plena e profunda entrega de coração a
Deus (espírito da consagração ) . Ao situarem-se em pleno foco do conflito,
tais institutos podem significar uma valiosa contribuição pastoral para o
futuro e ajudar a abrir novos caminhos de validade geral para o povo de Deus.
Por
outro lado, a mesma problemática, que eles tentam resolver e sua falta de
enraizamento numa tradição já provada os expõe, mais que as outras formas de
vida consagrada, às crises do nosso tempo e ao contágio do secularismo. Esta
esperança e os riscos implicados em seu modo de vida deverão mover o
episcopado latino-americano a promover e apoiar com especial solicitude o seu
desenvolvimento.
3. LEIGOS
Participação
do leigo na vida da, Igreja e na missão desta no mundo.
3.1. Situação
Reconhecendo
no seio da Igreja latino-americana uma crescente tomada de consciência da
necessidade da presença dos leigos na missão evangelizadora, queremos
incentivar a tantos leigos que, mediante o seu testemunho de dedicação cristã,
contribuem para o cumprimento da tarefa evangelizadora e para apresentar a
fisionomia duma Igreja comprometida com a promoção da justiça em nossos povos.
Na
situação atual do Continente, os leigos sentem-se particularmente interpelados
pelo aspecto que vão tomando os sistemas e estruturas que, devido ao desigual
processo de industrialização, urbanização e transformação cultural, aprofundam
as diferenças sócio-econômicas, afetando principalmente as massas populares,
com crescentes fenômenos de opressão e marginalização.
Após
o Concílio e Medellin, no afã de aceitar os desafios, a Igreja da América
Latina fez, em seu conjunto, experiências positivas e progressos, conforme
dissemos no nº 10 e seguintes e sofreu dificuldades e crises (vejas-se nº
16-27 ) .
Houve
crises que afetaram, naturalmente, o laicato latino-americano e, em especial, o
laicato organizado que sofreu não só os embates da agressividade da própria
sociedade - repressão dos grupos de poder - mas também aqueles gerados por uma
forte ideologização, por desconfianças mútuas e nas instituições, que levaram
inclusive a dolorosas rupturas dos movimentos leigos entre si e com seus
pastores.
Hoje,
entretanto, vemos outro aspecto da crise, em suas conseqüências positivas: a
progressiva conquista da serenidade, maturidade e realismo, que se manifesta
em aspirações declaradas de promover na Igreja estruturas de diálogo, de
participação e ação pastoral de conjunto, expressões de maior consciência de
pertença à Igreja.
Este
otimismo crescente dos movimentos leigos não desconhece, por outro lado, a
persistência de tensões, tanto em nível de compreensão do sentido do
compromisso do leigo, hoje, na América Latina, como duma adequada inserção a
ação eclesial.
Enquanto
essas tensões afetam principalmente aqueles que participam em movimentos
leigos, grandes setores do laicato latino-americano não tomaram consciência
plena de sua pertença à Igreja e são afetados pela incoerência entre a fé que
dizem professar e praticar e o compromisso real que assumem na sociedade.
Divórcio entre fé e vida exacerbado pelo secularismo e por um sistema que
antepõe o ter mais ao ser mais.
Outrossim,
a promoção efetiva do laicato é muitas vezes obstada pela persistência de certa
mentalidade clerical em numerosos agentes pastorais, clérigos e até mesmo
leigos.
Este
contexto social e eclesial, assim descrito, tem dificultado a participação
ativa e responsável dos leigos em campos tão importantes como o político, o
social e o cultural, particularmente nos setores operário e agrário.
3 . Reflexão doutrinal
O Leigo na Igreja e no Mundo
A
raiz e o significado da missão do leigo encontra-se em seu ser mais profundo,
que o Concílio Vaticano II se preocupou em sublinhar em alguns de seus
documentos:
*
O batismo e a confirmação o incorporam a Cristo e o tornam membro da Igreja;
*
participa, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo e
exerce-a na condição que lhe é própria;
*
a fidelidade e coerência com as riquezas e exigências do seu ser lhe conferem
a identidade de homem de Igreja no coração do mundo e do homem do mundo no
coração da Igreja.
De fato, o
leigo se situa por vocação na Igreja e no mundo. Membro da Igreja, fiel a
Cristo, acha-se comprometido na construção do Reino em sua dimensão temporal.
Em
íntima comunicação com seus irmãos leigos e com os pastores, nos quais vê seus
mestres na fé, o leigo contribui para construir a Igreja como comunidade de
fé, de oração, de caridade fraterna e faz isto por meio da catequese, da vida
sacramental, da ajuda a seus irmãos.
Daí
segue-se a multiplicidade de formas de apostolado, cada uma das quais enfatiza
algum dos aspectos acima mensionados.
Mas
é no mundo que o leigo encontra seu campo específico
de ação. Pelo testemunho de sua vida, por sua palavra oportuna e sua ação
concreta, o leigo tem a responsabilidade de ordenar as realidades temporais
para pô-las a serviço da instauração do Reino de Deus.
No
vasto e complexo mundo das realidades temporais, algumas exigem especial
atenção dos leigos: a família, a educação, as comunicações sociais.
Entre
essas realidades temporais, não se pode deixar de salientar com ênfase especial
a atividade política. Esta abarca um vasto campo, desde a ação de votar,
passando pela militância e liderança em algum partido político, até o exercício
de cargos públicos em diversos níveis.
Em
todos os casos, o leigo deverá buscar e promover o bem comum, na defesa da
dignidade do homem e do seus inalienáveis direitos, na proteção dos mais
fracos e necessitados, na construção da paz, da liberdade, da justiça; na
criação de estruturas mais justas e fraternas.
Isto
posto, em nosso Continente latino-americano marcado por agudos problemas de
injustiça que se foram agravando, os leigos não se podem eximir dum sério
compromisso com a promoção da justiça e do bem comum, sempre iluminados pela
fé e guiados pelo Evangelho e pela doutrina social da Igreja, mas orientados ao
mesmo tempo pela inteligência e aptidão para uma ação eficaz. "Para o
cristão, não basta a denúncia das injustiças, pede-se-lhe que seja
verdadeiramente testemunha e agente da justiça" (João Paulo II, Alocução Operários Guadalajara, 2 - AAS, LXXI (p. 223).
À
medida que cresce a participação dos leigos na vida da Igreja e na missão desta
no mundo, torna-se também mais urgente a necessidade de sua sólida formação
humana e geral, formação doutrinal, social, apostólica. Os leigos têm o direito
de recebê-1a primordialmente em seus próprios movimentos e associações, mas
também em institutos adequados e no contato com seus pastores.
Por
outro lado, o leigo deve trazer ao conjunto da Igreja a sua experiência de
participação nos problemas, desafios e urgências do seu "mundo secular"
- de pessoas, famílias, grupos sociais e povos - para que a evangelização eclesial
se enraíze com vigor. Neste sentido, será preciosa contribuição do leigo,
pela sua experiência de vida, competência profissional, científica e
trabalhista, de sua inteligência cristã, tudo quanto possa contribuir para o
desenvolvimento, estudo e investigação do ensinamento social da Igreja.
Aspecto
importante desta formação é o que concerne ao aprofundamento numa
espiritualidade mais apropriada à sua condição de leigo. Dimensões essenciais
desta espiritualidade são, entre outras, as seguintes:
*
que o leigo não fuja às realidades temporais para buscar a Deus, e sim
persevere, presente e ativo, no meio delas e ali encontre o Senhor;
*
infunda nesta presença e atividade uma inspiração de fé e um sentido de
caridade cristã;
*
à luz da fé, descubra nesta realidade a presença do Senhor;
em
meio à sua missão, não raro geradora de conflitos e cheia de tensões para sua
fé, busque renovar sua identidade cristã no contato com a palavra de Deus, na
intimidade com o Senhor pela eucaristia, nos sacramentos e na oração.
Tal
espiritualidade deverá ser capaz de dar à Igreja e ao mundo "cristãos com
vocação para a santidade, sólidos na fé, seguros na doutrina proposta pelo
magistério autêntico, firmes e ativos na Igreja, fundados numa densa vida
espiritual. . . perseverantes no testemunho e ação evangélicos, coerentes e
denodados em seus compromissos temporais, constantes promotores de paz e de
justiça contra toda violência ou opressão, penetrantes no discernimento
crítico das situações e ideologias à luz dos ensinamentos sociais da Igreja,
confiados na esperança no Senhor" (João Paulo II, Alocução Leigos, 6 - AAS, LXXI,
p. 216 ) .
O laicato organizado
Manifestamos
nossa confiança e decidido estímulo às formas organizadas de apostolado dos
leigos, porque:
*
A organização é sinal de comunhão e
participação na vida da Igreja; enseja a transmissão e crescimento das
experiências e a permanente formação e capacitação de seus membros;
*
o apostolado exige muitas vezes uma ação comum, tanto nas comunidades da Igreja
como nos diversos ambientes;
numa
sociedade que se estrutura e planifica sempre mais, a eficácia da atividade
apostólica depende também da organização.
Ministérios diversificados
A
Igreja, para o cumprimento de sua missão, conta com diversidade de ministérios.
Ao lado dos ministérios
hierárquicos, a Igreja reconhece o lugar dos ministérios desprovidos de ordem
sagrada. Portanto, também os leigos podem sentir-se chamados ou ser chamados a
colaborar com seus pastores no serviço à comunidade eclesial, para o crescimento
e vida da mesma, exercendo ministérios diversos, conforme a graça e os carismas
que ao Senhor aprouver conceder-lhes.
Os
ministérios que se podem conferir a leigos são serviços realmente importantes
na vida eclesial (p. ex., no plano da Palavra, da liturgia ou da direção da
comunidade), exercidos por leigos com estabilidade e que foram reconhecidos
publicamente e a eles confiados por quem tem a responsabilidade na Igreja.
3.3. Critérios pastorais
Critérios
que orientam o laicato organizado na pastoral de conjunto
Uma
pastoral renovada do laicato organizado exige: a) vitalidade missionária para
descobrir com iniciativa e audácia novos campos para ação evangelizadora da
Igreja;
b)
abertura para a coordenação com organizações e movimentos, levando em conta
que nenhum deles possui exclusividade de ação na Igreja;
c)
canais permanentes e sistemáticos de formação doutrinal e espiritual com
atualização de conteúdos e pedagogia adequada.
A
diversidade de formas organizadas do apostolado secular exige sua presença e
participação na pastoral de conjunto, tanto pela própria natureza da Igreja,
mistério de comunhão de diversos membros e ministérios, como em vista da
eficácia da ação pastoral, pela participação coordenada de todos. A
participação do laicato requer-se, não só na fase de execução da pastoral de
conjunto, mas também na planificação e nos próprios organismos de decisão.
Sua
inserção na pastoral de conjunto garantirá a necessária referência das formas
organizadas de apostolado à pastoral dirigida às grandes massas do povo de
Deus.
As
formas organizadas de apostolado leigo devem prestar a seus membros ajuda,
incentivo e iluminação em seu compromisso político. Contudo, não se ignoram as
dificuldades existentes a nível de dirigentes, quando pertencem a movimentos
apostólicos e simultaneamente militam em partidos políticos; dificuldades que
se deverão resolver com prudência pastoral, levando em conta o critério de
evitar comprometer seu movimento apostólico com um determinado partido político.
Critérios pastorais acerca dos
ministérios
São
as seguintes as características dos ministérios que os leigos podem receber:
*
não clericalizam aqueles que os recebem: estes continuam sendo leigos com uma
missão fundamental de presença no mundo;
*
requer-se uma vocação ou aptidão ratificada pelos pastores;
*
orientam-se para a vida e crescimento da comunidade eclesial, sem perder de
vista o serviço que esta deve prestar no mundo;
*
são variados e diversos, de acordo com os carismas dos chamados e as
necessidades da comunidade; esta diversidade, porém, deve coordenar-se de
acordo com sua relação com o ministério hierárquico.
No
exercício dos ministérios, convém evitar os seguintes perigos:
a
tendência à clericalização dos leigos ou a de reduzir o compromisso leigo
àqueles que recebem ministérios, deixando de lado a missão fundamental do
leigo que é a sua inserção nas realidades temporais e em suas responsabilidades
familiares;
b
) não se devem promover tais ministérios como estímulo puramente individual,
fora dum contexto comunitário;
c
) o exercício de ministérios por parte de alguns leigos não pode diminuir a
participação ativa dos demais.
3.4. Avaliação
Para
analisar e avaliar a situação atual e as perspectivas do laicato, torna-se
necessário, por um lado, detectar a realidade da sua presença ativa nos
diversos lugares que configuram a dinâmica social e, por outro, por de
manifesto a "qualidade" desta presença.
Neste
intuito, usa-se um padrão de referência que tem duas dimensões:
A primeira, que nos permite quantificar
a presença do laicato, é o crescimento das esferas funcionais (mundo da
cultura, do trabalho, etc.) em face dos âmbitos territoriais ( o bairro, a
paróquia, etc. ) como conseqüência do processo de industrialização e urbanização.
A segunda nos permite qualificar esta
presença. O critério neste caso é a maneira de se compreender a realidade
social, o ser e a missão da Igreja. Quanto à primeira dimensão, observa-se:
*
no âmbito da "vizinhança" (paróquia, bairro), a existência de numerosos
leigos e movimentos de leigos;
*
no âmbito do "apoio pastoral" ( entendendo-se como tal o que reúne os
serviços de formação doutrinal do laicato, convite ao compromisso,
espiritualidade, etc.) há uma presença apreciável, mas com deficiências nos serviços
de formação;
*
no âmbito de "construção da. sociedade" (operários, camponeses,
empresários, técnicos, politicos, etc. ) a presença é muito fraca; quase total
ausência no domínio da, criação e difusão cultural ( intelectuais, artistas,
educadores, estudantes e comunicadores sociais).
Quanto
à segunda dimensão, observa-se:
*
A persistência de leigos e
movimentos leigos que não assumiram suficientemente a dimensão social do seu
compromisso, tanto por se aferrarem a seus interesses econômicos e de poder,
como por uma compreensão e aceitação deficientes do ensino social da Igreja.
Percebem-se também outros leigos e movimentos de leigos que, por exagerada
politização do seu compromisso, esvaziaram o próprio apostolado de dimensões
evangelizadoras essenciais;
*
a existência de movimentos leigos que se distorcem por excessiva dependência
das iniciativas da hierarquia e também dos que atribuem tal valor à sua
autonomia, que se desprendem da comunidade eclesial.
Finalmente,
assume particular gravidade o fato duma insuficiência de esforço no
discernimento das causas e condicionamentos da realidade social e, em especial,
a respeito dos instrumentos e meios aptos para uma transformação da sociedade.
Isto se faz necessário como iluminação da ação dos cristãos para evitar, tanto
a assimilação acrítica de ideologias, como um espiritualismo de fuga. Além
disso, assim será possível descobrir caminhos para a ação, superando-se a mera
denúncia.
3.5. Conclusões
Fazemos
um apelo urgente aos leigos para que se comprometam na missão evangelizadora
da, Igreja, missão evangelizadora da Igreja, missão da qual a promoçâo da
justiça é parte integrante e indispensável e que mais diretamente diz respeito
à tarefa leiga, sempre em comunhão com os pastores. Exortamos a uma presença
organizada do laicato nos diversos setores pastorais, o que supõe a integração
e coordenação dos diversos movimentos e serviços dentro de um plano de pastoral
orgânica do setor leigo.
Convidamos
os pastores a terem especial consideração pelo laicato organizado, com vistas
à ação eclesial, prestando-lhe a adequada assistência. pastoral e o devido
apreço de seu papel na pastoral global da Igreja.
Em
particular, adquire relevante importância a constituição ou dinamização dos
departamentos diocesanos e nacionais de leigos ou de outros órgãos de animação
e coordenação. Urge outrossim o fortalecimento dos organismos latino-americanos
dos movimentos leigos, merecendo apoio o trabalho que, neste sentido, vem
realizando o Departamento de Leigos do CELAM.
Queremos
igualmente ressaltar o lugar importante que os leigos podem ocupar quando,
individualmente convocados a prestar serviços em instituições da Igreja,
particularmente nas educativas, nos organismos de promoção humana e social e
nas atividades em regiões de missão.
Pedimos
que se fomentem centros ou serviços de formação integral de leigos, que dêem
adequada ênfase a uma pedagogia ativa, complementada por uma formação
sistemática nos fundamentos da fé e do ensino social da Igreja. Consideramos outrossim
os movimentos organizados como instrumentos de formação, graças a seus
projetos, experiências, planos de trabalho e avaliações.
Na
América Latina, sobretudo nas regiões onde os ministérios hierárquicos não
estão suficientemente providos, fomente-se também, sob a responsabilidade da
hierarquia, uma especial criatividade na instauração de ministérios ou serviços
que podem ser exercidos por leigos, de acordo com as necessidades da
evangelização. Especial cuidado deve ter-se na formação dos candidatos.
3.5. A mulher
Embora
se fale da mulher em várias partes do documento, como religiosa, no lar, etc.,
considereno-1a aqui sob o aspecto de sua contribuição concreta para a
evangelização no presente e no futuro ia, América Latina.
Situação
À
sabida marginalização da mulher, como conseqüência de atavismos culturais
(prepotência do homem, salários desiguais, educação deficiente, etc.) que se
manifesta em sua ausência quase total da vida política, econômica e cultural,
acrescentam-se novas formas de marginalização numa sociedade consumiste e
hedonista. Assim é que se chega ao, extremo de transformá-1a em objeto de
consumo disfarçando a sua exploração sob o pretexto de evolução das tempos (por
meio da publicidade, do erotismo, da pornografia, etc).
Em
muitos dos nossos países, quer pela situação econômica angustiosa, quer por
causa da acentua da crise moral, a prostituição feminina tem aumentado.
No
setor operário, comprova-se a falta de cumprimento ou elisão das leis de
proteção à mulher. Diante desta situação, as mulheres nem sempre estão
organizadas para exigir o respeito a seus direitos.
Nas
famílias, a mulher se vê sobrecarregada, além das tarefas domésticas, pelo
trabalho profissional e, em não poucos casos, deve assumir todas as responsabilidades
devido ao abandono do lar por parte do marido.
Deve-se
também levar em conta a situação lamentável das empregadas domésticas, devida
aos maus tratos e exploração que não raro sofrem por parte dos patrões.
Na
própria Igreja, tem havido por vezes uma valorização insuficiente da mulher e
uma escassa participação da mesma em nível de iniciativas pastorais. Não
obstante, devem salientar-se, como sinais positivos, a lenta, mas crescente
inclusão da mulher em tarefas da construção da sociedade, o ressurgimento de
organizações femininas que trabalham por conseguir a promoção e incorporação da
mulher em todos os âmbitos.
Reflexão Igualdade e dignidade
da mulher
A
mulher, bem como o homem, é imagem de Deus. "Deus criou pois o ser humano
à sua imagem, criou-os à imagem de Deus homem e mulher os criou" (Gn
1,27). A tarefa de dominar o mundo, de prosseguir na obra da criação, de serem
com Deus co-criadores, cabe pois tanto à mulher como ao homem.
Missão da mulher na Igreja
Já
no Antigo Testamento se nos deparam mulheres que exerceram papéis relevantes
no povo de Deus, como Maria a irmã de Moisés, Ana, as profetizas Débora e
Hulda, Ruth, Judite e outras. Na Igreja, a mulher participa nos dons de Cristo
e difunde seu testemunho pela vida de fé e caridade, como a samaritana, como
as mulheres que acompanharam o Senhor e o assistiram com seus bens; como as
mulheres presentes no Calvário; como as mulheres que, enviarias pelo próprio
Senhor, anunciam aos apóstolos que ele ressuscitara; como as mulheres das primeiras comunidades cristãs.
Acima
de tudo, porém, como Maria, na Anunciação, ao aceitar incondicionalmente a
Palavra de Deus na Visitação, ao ofertar e anunciar a presença do Senhor; no
Magníficat, ao cantar profeticamente a liberdade dos filhos de Deus e o cumprimento
da promessa; na, Natividade, ao dar à luz o Verbo de Deus e ao oferecê-1o à
adoração de todos aqueles que o buscam, sejam eles singelos pastores ou
sábios vindos de terras longínquas; na fuga para o Egito, ao aceitar as conseqüências
da desconfiança e da perseguição de que é objeto o Filho de Deus; perante o comportamento
misterioso e adorável do Senhor, ao conservar tudo em seu coração; com sua presença
solícita às necessidades dos homens, ao provocar o "sinal
messiânico" que garantia o bom êxito da festa (u5); na cruz, forte, fiel e
aberta a uma acolhida materna universal; na espera ardente, com toda a Igreja,
da plenitude do Espírito; na Assunção, celebrada na liturgia como a Mulher do
Apocalipse, símbolo da Igreja.
A mulher, com suas aptidões
características, deve contribuir eficazmente para a missão da Igreja,
participando em organismos de planejamento e coordenação pastoral, catequese
etc. A possibilidade de confiar às
mulheres ministérios não ordenados lhes abrirá novos caminhos de participação
na vida e missão da Igreja.
Sublinhamos
o papel fundamental da mulher como mãe, defensora da vida e educadora do lar.
A missão da mulher no mundo ( comunhão e
participação, tarefa comum).
*
As aspirações de libertação vigentes em nossos povos incluem a promoção humana
da mulher como autêntico "sinal dos tempos", que se corrobora na
concepção bíblica, do senhorio do homem, criado "varão e mulher".
*
A mulher deve estar presente nas
readidades temporais, contribuindo com o seu ser próprio de mulher, para
participar com o homem na, transformação da sociedade; o valor do trabalho da
mulher não deve cifrar-se unicamente na satisfação de necessidades econômicas,
mas também no ser instrumento de personalização e construção da nova sociedade.
Conclusão
A Igreja é chamada a contribuir para a
promoção humana e cristã da mulher, ajudando-a assim a sair de situações de
marginalizarão em que se possa encontrar e capacitando-a para sua missão na
comunidade eclesial e no mundo.
4. PASTORAL VOCACIONAL
A
Pastoral Vocacional, dever de toda a Igreja. Validade dos Seminários.
4.1. Situação
Alguns dados positivos:
*
Há uma consciência mais aguda do problema vocacional
e maior clareza teológica sobre a unidade e diversidade da vocação cristã.
* Multiplicam-se com êxito
cursos, encontros, jornadas e congressos.
*
Tudo isso se realizou, na maioria dos casos, mediante a colaboração entre o
clero diocesano, os religiosos, as religiosas e os leigos, em conexão com a
pastoral juvenil, os seminários e as casas de formação.
*
Ambientes efetivos de pastoral vocacional têm sido, em muitos países, os grupos
juvenis apostólicos e as comunidades eclesiais de base.
* Em muitos países existe, com fruto
visível, o plano nacional e o diocesano de pastoral vocacional, de acordo com a
iniciativa da Sagrada Congregação para a Educação Católica.
* Houve
nos últimos anos um sensível aumento de vocações ao sacerdócio e para a vida
consagrada, embora ainda insuficientes para satisfazer às necessidades
próprias e o compromisso missionário com outras Igrejas mais necessitadas.
* Nota-se
também entre os leigos, nos últimos anos, maior tomada de consciência de sua
vocação específica.
Alguns dados negativos:
*
Insuficiência de acompanhamento dado aos leigos para o descobrimento e
amadurecimento da própria vocação cristã.
*
Influxo negativo do "meio" progressivamente secularista, consumiste e
erotizado.
*
Múltiplas deficiências da família.
*
Grande marginalização das massas.
*
Carência de testemunho por parte de alguns sacerdotes e religiosos.
* Desinteresse
e indiferença de alguns sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos pela
pastoral vocacional.
* Desvios
doutrinais.
*
Falta de inserção profunda da pastoral vocacional na pastoral familiar e
educativa, e na pastoral de conjunto.
4.2. Reflexão e critérios
Vocação
humana, cristã, e cristã,-específica
Deus
chama todos os homens e cada homem à fé e, pela fé, a incorporar-se no povo de
Deus mediante o batismo. Este chamamento pelo Batismo, Confirmação e
Eucaristia para sermos povo seu, chama-se COMUNHÃO E PARTICIPAÇÃO na missão e
vida da Igreja e, portanto, na evangelização do mundo.
Nem
todos, entretanto, somos enviados a servir e evangelizar em virtude da mesma
função. Uns o fazem como ministros hierárquicos, outros como leigos e outros pela
vida consagrada. Todos, complementariamente, construímos o Reino de Deus na
terra.
Todos
nós cristãos devemos, conforme o desígnio divino, realizar-nos como homens -
VOCAÇÃO HUMANA - e como cristãos,
vivendo o nosso batismo nos seus traços de chamamento à santidade ( comunhão e
cooperação com Deus ), a sermos membros ativos da comunidade e a dar testemunho
do Reino ( comunhão e cooperação com os demais cristãos ) - VOCAÇÃO CRISTÃ - e
devemos descobrir a vocação concreta (leiga, vida consagrada ou ministerial
hierárquica,) que nos permita trazer a nossa contribuição específica à
construção do Reino - VOCAÇÃO CRISTÃ ESPECÍFICA. Desta forma, cumpriremos
plena. e organicamente a nassa missão evangelizadora.
Diversidade na unidade
O
ministério hierárquico (bispos, presbíteros e diáconos ) confere unidade e
autenticidade a todo o serviço eclesial na grande tarefa evangelizadora. A vida consagrada, em todas as suas
modalidades, com mansão explícita da contemplativa, é, por si mesma, pelo
radicalismo do seu testemunho, "um meio privilegiado de evangelização
eficaz" (EN 69). O leigo, com sua função especial no mundo e na saciedade,
tem diante de si uma ingente tarefa evangelizadora no presente e no futuro do
nosso continente.
Por
outro lado, o Espírito Santo está suscitando hoje na Igreja uma diversidade de
ministérios, também exercidos por leigos, capazes de rejuvenescer e reforçar o
dinamismo evangelizador da Igreja.
No
que tange em concreto às vocações ao sacerdócio e à vida consagrada, fazemos
nossas as palavras de João Paulo II: "Na maioria dos vossos países, não
obstante um esperançoso despertar de vocações, é um problema grave e crônico (
. . . ) As vocações leigas tão indispensáveis não podem ser uma compensação
suficiente. Mais ainda, uma das provas do compromisso do leigo é a fecundidade
de vocações à vida consagrada (Discurso inaugural IV, b - AAS, LXXI, p. 204). A pastoral vocacional em cada Igreja local, deve enfrentar este
problema com otimismo e confiança em Deus.
Deus, comunidade e indivíduo
Optar
por uma vocação ministerial e evangelizadora
na Igreja não é coisa que dependa exclusivamente da iniciativa pessoal.
Primordialmente, é chamamento gratuito de Deus, vacação divina, que se deve
perceber graças a um discernimento, escutando o Espírito Santo e colocando-se
diante do Pai, por Cristo, e frente à comunidade concreta e histórica à qual
se há de servir. Outrossim é fruto e expressão da vitalidade e madureza de toda
a comunidade eclesial.
Por
conseguinte, uma pastoral vocacional autêntica que entenda ajudar o homem em
tal processo, deverá centrar-se no chamamento inicial, em seu subseqüente
amadurecimento e na perseverança, comprometendo neste serviço toda a
comunidade. A oração na pastoral
vocacional
No
complexo problema vocacional é necessário, sempre e em todos os níveis, o
recurso ininterrupto à oração pessoal e comunitária. Quem chama é Deus: quem
dá eficácia à evangelização é Deus. O próprio Cristo nos disse: "A messe é grande e poucos os operários. Rogai ao Senhor da messe
que envie operários para sua messe" (Lc 10,2). Pastoral vocacional encarnada e diversificada
A
pastoral vocacional, por ser uma ação evangelizadora e orientada para a
evangelização, missão de Igreja, deve ser encarnada e diversificada. Ou seja,
deve responder, a partir da fé, aos problemas concretos de cada nação e região
e refletir a unidade e variedade de funções e serviços deste corpo diversificado,
cuja cabeça é Cristo.
A América Latina, hoje empenhada em
superar a sua, situação de subdesenvolvimento e injustiça, tentada por
ideologias anticristãs e cobiçada por lideres extremistas e focos de poder,
precisa de pessoas conscientes de sua dignidade e responsabilidade histórica e
cristãos ciosos de sua identidade
que,
de acordo com seu compromisso, sejam construtores de um "mundo mais
justo, humano e habitável, que não se fecha em si mesmo, mas se abre para
Deus" (João Paulo II, Homilia, S.
Domingos, 3, - AAS, LXXI, p.
157). Cada, qual deve fazer isto no posto e função que ocupa e todos em
comunhão e participação. É o grande desafio e serviço de evangelização presente
e futura do nosso Continente e a grande responsabilidade de nossa pastoral
vocacional. Desde já louvamos e apoiamos sem restrição a todos os que
trabalham nesta linha com fé, esperança e amor.
Localização da pastoral
vocacional e lugares privilegiados
Período
privilegiado, embora não seja o único, para a opção vocacional é a fase
juvenil. Por isso, toda pastoral juvenil deve ser ao mesmo tempo pastoral
vocacional. "É mister reativar uma intensa ação pastoral que, partindo da
vocação cristã em geral, duma pastoral juvenil entusiasta, dê à Igreja os
servidores de que precisa" (João Paulo II, Discurso Inaugural, IV, b - AAS, LXXI, p. 204).
A
pastoral vocacional também é uma dimensão essencial da pastoral familiar e da
pastoral educativa e deve ter lugar privilegiado na pastoral de conjunto.
Lugares
privilegiados da pastoral vocacional são a Igreja particular, a paróquia, as
comunidades de base, a família, os movimentos apostólicos, os grupos e movimentos
de juventude, os centros educacionais, a catequese e as obras das vocações.
Devem também merecer-nos especial atenção aqueles que, na idade adulta,
percebem o chamamento do Senhor para uma vocação cristã específica.
4.3. Seminários
Na
maior parte de nossas Igrejas percebe-se a necessidade de garantir uma sólida
formação humano-cristã e uma especial formação religiosa (OT 3) prévia ao
Seminário Maior.
O
Seminário Menor, profundamente renovado, deve procurar responder a esta
necessidade e, com efeito, já tem sido em alguns lugares uma resposta positiva
a esta problemática; em outras, incumbiram-se dessa tarefa os centros de
capacitação para o Seminário Maior ou iniciativas afins.
Em todos eles deve ter-se em
vista uma constante: que os jovens não percam o contato com a realidade,
nem se desarraiguem do próprio contexto social. Convém notar que todas essas
fórmulas são parte integrante da pastoral vocacional juvenil, e por isso devem
estar ligadas estreitamente com a família e levar o jovem a um compromisso pastoral
adequado à sua idade.
Finalmente,
tudo isso deve produzir como fruto que o jovem adquira uma espiritualidade
sólida e faça uma opção livre e madura.
O
processo de amadurecimento e formação da vocação presbiteral encontra o seu
ambiente mais propício no "Seminário Maior" ou "Casa de formação",
declarado pelo Concílio Vaticano II necessário para a formação sacerdotal.
Com
relação aos Seminários, depreende-se na América Latina um forte espírito de
renovação, que representa uma esperança e uma resposta à problemática da
formação. Entretanto requerem-se outras fórmulas com que se obtenha a formação
dos seminaristas, não como formas paralelas, mas como experiências realizadas
com a aprovação da Conferência Episcopal, para situações especiais e de acordo
com a Santa Sé.
O
Seminário Maior, inserido na vida da Igreja e do mundo, de acordo com as normas
e orientações precisas da Santa Sé, tem como objetivo acompanhar o pleno
desenvolvimento da personalidade humana, espiritual e pastoral, ou seja
integral dos futuros pastores. Estes, tendo adquirido uma forte experiência de
Deus e uma clara visão da realidade em que se encontra a América Latina, em
íntima comunhão com seu bispo, mestre da verdade, e com os outros presbíteros,
são os que evangelizarão, animarão e coordenarão os diferentes carismas do povo
de Deus, para a construção do Reino. A formação
de pastores deve ser uma preocupação constante que oriente os estudos e a vida
espiritual. As atividades pastorais devem ser revisadas à_ luz da fé e com o
devido assessoramento de seus formadores.
O
seminarista, guiado por uma boa direção espiritual, adquirirá a experiência de
Deus vivendo em constante comunhão com ele na oração e na Eucaristia e numa
sólida e filial devoção à Virgem Maria.
Nos
estudos, é necessário atender a uma profunda formação doutrinal, de acordo com
o magistério da Igreja, e uma visão adequada da realidade. Nos seminários, será
preciso insistir na austeridade, disciplina, responsabilidade e espírito de pobreza,
num clima de autêntica vida comunitária. Os futuros sacerdotes sejam formados
responsavelmente para o celibato. Tudo isso é exigido pela renúncia e entrega
que se pede do presbítero. Queremos acentuar o valor dos centros de formação
em comum para o clero diocesano e religioso, de acordo com as normas da Santa
Sé «5, pelo sentido comunitário que eles representam e como recurso para a
integração na pastoral de conjunto. Enquanto lamentamos a falta de formadores,
é nosso dever manifestar gratidão e exprimir o nosso incentivo a todos os que
trabalham na formação dos futuros sacerdotes.
4.4. Opções e linhas de ação
Devem-se
impulsionar, coordenar e ajudar a promoçâo e amadurecimento de todas as
vocações, mormente as sacerdotais e de vida consagrada, dando a essa tarefa
prioridade efetiva.
Devem-se
fomentar as campanhas de oração, a fim de que o povo tome consciência das
necessidades existentes. A vocação é
a resposta de Deus providente à comunidade orante.
É
mister acompanhar no processo de discernimento todos os que sentem o
chamamento do Senhor e ajudá-los a cultivar as disposições básicas para o
amadurecimento da vocação.
Toda
pastoral vocacional deve encarnar-se no atual momento histórico da América
Latina e deve ser diversificada, isto é, refletir e promover a diversidade de
vocações na unidade da missão e do serviço evangelizador.
Deve-se
atribuir à pastoral vocacional oposto prioritário que tem na pastoral de
conjunto e, mais concretamente, na pastoral juvenil e familiar. Deve-se
promover com particular empenho as vocações no meio agrário, no mundo operário
e nos grupos étnicos marginalizados e planificar sua posterior formação, para
que seja adequada.
Ao
mesmo tempo, é preciso promover mais intensamente as vocações presbiterais e de
vida consagrada nas cidades, nos meios profissionais, universitários, etc.
É
necessário pôr em prática com fidelidade as normas e orientações da Santa Sé e
das Conferências Episcopais que dizem respeito aos seminários. Estas, com as
devidas adaptações, deverão ser observadas também pelas comunidades religiosas
na formação de seus presbíteros.
Deve-se
capacitar pessoal para destiná-1o, em tempo integral, à pastoral vocacional e
notificar-lhe que sua missão precípua é de animar toda a pastoral neste
sentido.
Deve-se
criar institutos de aperfeiçoamento para formadores de sacerdotes, em nível
local e continental, e aproveitar os institutos internacionais da Europa,
especialmente os de Roma.
Deve-se
despertar, promover e orientar vocações missionárias, pensando desde já em
centros ou seminários especializados com este objetivo.
CAPITULO III
MEIOS
PARA A COMUNHAO E PARTICIPAÇÃO
Responsáveis
que somos pelo ministério da evangelização, preocupa-nos como fazer chegar ao
homem latino-americano a Palavra de Deus, de tal modo que seja por ele
escutada, assumida, encarnada, celebrada e transmitida a seus irmãos. Sabemos
que Deus é quem a faz crescer; todavia, o Senhor da messe espera a colaboração
de seus servos. Por isso, queremos refletir sobre os principais meios de
evangelização, com os quais a
Igreja cria comunhão e convida
os homens ao serviço de seus irmãos.
A
comunidade que, na liturgia, celebra alegremente a Páscoa do Senhor, tem o
compromisso de dar testemunho, de catequizar, educar e comunicar a Boa Nova por
todos os meios a seu alcance. Sente outrossim a necessidade de entrar em
comunhão e diálogo com os homens do nosso Continente que buscam a verdade.
CONTEÚDO 1
. Liturgia, oração particular, piedade popular 2. Testemunho
3.
Catequese 4. Educação
5.
Comunicação social
1. LITURGIA, ORAÇAO
PARTICULAR., PIEDADE POPULAR
A
oração particular e a piedade popular, presentes na alma do nosso povo,
constituem valores de evangelização; a liturgia é o momento privilegiado de
comunhão e participação para uma evangelização que conduz à libertação cristã
integral, autêntica.
1.l. Situação a) Liturgia
Em
geral, a renovação litúrgica na América Latina está dando resultados positivos,
pelo fato de se estar novamente encontrando a posição real da liturgia na
missão evangelizadora da Igreja, pela maior compreensão e participação dos
fiéis, favorecidos pelos novos livros litúrgicos e pela difusão da Catequese
pré-sacramental.
Isto
foi favorecido pelos documentos da Sé Apostólica e das Conferências
Episcopais, bem como por encontros em diversos níveis: latino-americano,
regional, nacional, etc.
Facilitaram
esta renovação o idioma comum, a riqueza cultural e a piedade popular.
Sente-se
a necessidade de adaptar a liturgia às diversas culturas e à situação de nosso
povo jovem, pobre e humilde.
A falta de ministros, a dispersão
populacional e a situação geográfica do Continente fizeram crescer a
consciência da utilidade das celebrações da Palavra e da importância de
servir-se dos meios de comunicação social ( rádio e televisão ) para alcançar
a todos.
Verificamos
entretanto que não se tem atribuído ainda à pastoral litúrgica a prioridade que
lhe cabe dentro da pastoral de conjunto, continuando muito prejudicial a
oposição existente em alguns setores entre evangelização e sacramentalização.
Falta um aprofundamento da formação litúrgica do clero; nota-se marcada
ausência de catequese litúrgica destinada aos fiéis.
A participação na liturgia não repercute
de forma adequada no compromisso social dos cristãos. A instrumentalização que,
por vezes, se faz da mesma, lhe desfigura o valor evangelizador. Prejudicial
também tem sido a falta de observância das normas litúrgicas e do seu espírito
pastoral, por abusos que causam desorientação e divisão entre os fiéis.
b ) Oração particular
A
religiosidade popular do homem latino-americano possui uma rica herança de
oração, arraigada em culturas autóctones e, depois, evangelizadas pelas formas
de piedade cristã de missionários e imigrantes.
Consideramos
um tesouro o costume existente desde outrora de reunir se para orar em
festividades e ocasiões especiais. Mais recentemente, a oração foi enriquecida
pelo movimento bélico, por novos métodos de oração contemplativa e pelo movimento
de grupos de oração.
Muitas
comunidades cristãs carentes de ministro ordenando acompanham e celebram seus
acontecimentos e festas com reuniões de oração e canto que, a um tempo,
evangelizam a comunidade e lhe proporcionam força evangelizadora.
Em
vastas áreas, a oração familiar tem sido o único culto existente: de fato, ela
manteve a unidade e a fé da família e do povo.
A invasão da TV e do rádio nos lares põe
em risco as práticas piedosas no seio da família.
Embora
a oração brote muitas vezes por força de necessidades meramente pessoais e se
expresse em fórmulas tradicionais não assimiladas, não se pode ignorar que a
vocação do cristão deve levá-1o ao compromisso moral, social e evangelizador.
c)
Piedade popular
No
conjunto do povo católico latino-americano manifesta-se, em todos os níveis e
sob formas bastante diversificadas, uma piedade popular que nós, bispos, não
podemos deixar passar despercebida, e que precisa ser estudada com critérios
teológicos e pastorais, para se descobrir seu potencial evangelizador.
A América Latina está insuficientemente
evangelizada. A maioria do povo
exprime sua fé prevalentemente na, piedade popular.
As
manifestações de piedade popular são muito variadas, de caráter comunitário e
individual; entre elas deparamos: o culto a Cristo sofredor e morto, a devoção
ao Sagrado Coração, diversas devoções à Santíssima Virgem Maria, o culto dos
santos e defuntos, as procissões, novenas, festas de padroeiros, peregrinações
e santuários, os sacramentais, as promessas, etc.
A piedade popular apresenta aspectos
positivos como: senso do sagrado e do transcendente; disponibilidade para
ouvir a Palavra de Deus; marcada piedade mariana; capacidade para rezar;
sentido de amizade, caridade e união familiar; capacidade de sofrer e reparar;
resignação cristã em situações irreparáveis; desprendimento das coisas materiais.
Mas apresenta também aspectos negativos: falta de senso de pertença à Igreja;
desvinculação entre fé e vida; o fato de não conduzir à recepção dos
sacramentos; exagerada valorização do culto dos santos com detrimento do
conhecimento de Jesus Cristo e de seu mistério; idéia deformada a respeito de
Deus; conceito utilitário de certas formas de piedade; propensão, em alguns
lugares, para o sincretismo religioso; infiltração do espiritismo e, em certos
casos, de práticas religiosas do Oriente. Freqüentemente se suprimem formas de
piedade popular sem razões válidas e sem substituí-las por algo melhor.
1.2. Critérios doutrinais e
pastorais
a) Liturgia
É
necessário que toda esta renovação seja orientada por uma autêntica teologia
litúrgica. Nesta, sobressai a teologia dos sacramentos. Isto contribuirá para
a superação duma mentalidade
neo-ritualista.
O
Pai, por Cristo e no Espírito, santifica a Igreja e, por ela, o mundo; mundo e
Igreja por sua vez, por Cristo e no Espírito, dão glória ao Pai.
A
liturgia, como ação de Cristo e da Igreja, é o exercício do sacerdócio de Jesus
Cristo; é o ápice e a fonte da vida eclesial. É um encontro com Deus e os
irmãos; banquete e sacrifício realizado na Eucaristia; festa de comunhão
eclesial, na qual o Senhor Jesus; por seu mistério pascal, assume e liberta o
Povo de Deus e, por ele, toda a humanidade, cuja história é convertida em
história salvífica, para reconciliar os homens entre si e com Deus. A liturgia é também força em nosso peregrinar,
para que se leve a bom termo, mediante o compromisso transformador da vida, a
realização plena do Reino, segundo o plano de Deus.
Na
Igreja particular, "o bispo deve ser tido como o sumo sacerdote de sua
grei; dele deriva e depende, de certo modo, a vida em Cristo dos seus fiéis"
(SC 41).
O
homem é um ser sacramental; no nível religioso, exprime suas relações com Deus
num conjunto de sinais e símbolos; Deus, igualmente, os utiliza quando se
comunica com os homens. Toda a criação é, de certa forma, sacramento de Deus,
porque no-lo revela.
Cristo
"é imagem de Deus invisível" (Cl 1,15). Como tal, é o sacramento
primordial e radical do Pai: "aquele que me viu, viu o Pai" (Jo
14,9).
A Igreja é, por sua vez, sacramento de
Cristo para comunicar aos homens a vida nova. Os sete sacramentos da Igreja
concretizam e atualizam esta realidade sacramental para as diversas situações
da vida.
Por
isso, não basta recebê-los de forma passiva, mas sim inserindo-nos vitalmente
na comunhão eclesial. Pelos sacramentos Cristo continua, mediante a ação da
Igreja, a encontrar-se com os homens e salvá-los.
A celebração eucarística, centro da
sacramentalidade da Igreja e presença mais plena de Cristo no meio da
humanidade, é o centro e ponto culminante de toda a vida sacramental.
A renovação litúrgica deve ser orientada
por critérios pastorais fundados na própria natureza da liturgia e de sua
função evangelizadora.
A reforma e renovação litúrgicas
fomentam a participação, que conduz à comunhão. A participação plena, consciente e ativa na liturgia é fonte primária
e necessária do espírito verdadeiramente cristão. Por isso, as considerações pastorais, salva sempre a observância das
normas litúrgicas, devem superar o mero rubricismo.
Os
sinais, importantes em qualquer ação litúrgica, devem ser empregados de maneira
viva e digna, com o pressuposto duma catequese adequada. As adaptações
previstas na Constituição Sacrosanctum
Concilium e nas normas pastorais posteriores são indispensáveis para se
conseguir um rito acomodado às nossas necessidades, especialmente às do povo
simples, tendo-se em conta suas legítimas expressões culturais.
Nenhuma
atividade pastoral pode-se realizar sem referência à liturgia. As celebrações litúrgicas supõem uma
iniciação à fé, mediante o anúncio evangelizador, a catequese e a pregação
bíblica; esta é a razão de ser dos cursos e encontros pré-sacramentais.
Qualquer
celebração deve ter, por sua vez, uma projeção evangelizadora e catequética
adaptada às diversas assembléias de fiéis, pequenos grupos, crianças, grupos
populares, etc.
As celebrações
da Palavra, com uma abundante, variada e bem escolhida leitura da Sagrada
Escritura, são de muito proveito para a comunidade, principalmente onde não há
presbíteros e, sobretudo, para a realização do culto dominical.
A homilia, como parte da liturgia, é
ocasião privilegiada para se expor o mistério de Cristo no aqui e agora da
comunidade, partindo dos textos sagrados, relacionando-os com o sacramento e
aplicando-os à vida concreta. Sua preparação deve ser esmerada e sua duração,
proporcionada às outras partes da celebração.
Quem
preside à celebração é o animador da comunidade que, por sua atuação, favorece
a participação dos fiéis; donde a importância duma forma digna e adequada de
celebrar.
b ) A oração particular
O
exemplo de Cristo orante: o Senhor Jesus, que 932 passou pela terra fazendo o bem e anunciando a Palavra,
dedicou, sob o impulso do Espírito, muitas horas à oração, falando com seu Pai
com filial confiança e incomparável intimidade e dando 0 exemplo a seus
discípulos, aos quais ensinou expressamente a orar. O cristão, movido pelo Espírito
Santo, há de fazer da oração motivo de sua vida diária e de seu trabalho; a
oração cria nele um clima de louvor e agradecimento ao Senhor, aumenta-lhe a
fé, conforta-o na esperança operosa, leva-o a entregar-se aos irmãos e a ser
fiel na faina apostólica, torna-o capaz de formar comunidade. A Igreja que ora em seus membros une-se
à oração de Cristo.
A
oração em família: a família cristã, evangelizada e evangelizadora, deve
seguir o exemplo de Cristo orante. Assim, a sua oração manifesta e sustenta a
vida, da Igreja doméstica, na qual se acolhe o germe do Evangelho que cresce
para tornar todos os seus membros capazes de serem apóstolos e fazerem da
família um núcleo de evangelização.
A
liturgia não esgota toda a atividade da Igreja. Recomendam-se os exercícios
piedosos do povo cristão, contanto que sejam conformes às normas e leis da
Igreja, derivem, de certa maneira, da liturgia e a ela conduzam. O mistério de
Cristo é uno e, em sua riqueza, inclui manifestações e modos diversos de chegar
aos homens. Graças à sua rica herança religiosa e em virtude da urgência das
circunstâncias de tempo e lugar, as comunidades cristãs tornam-se
evangelizadoras ao viverem a oração.
c
) Piedade popular
A
piedade popular conduz ao amor de Deus e dos homens e ajuda as pessoas e os
povos a tomarem consciência de sua responsabilidade na realização do próprio
destino. A autêntica piedade popular,
baseada na palavra de Deus, encerra valores evangelizadores que ajudam a
aprofundar a fé do povo.
A expressão da piedade popular deve
respeitar os elementos culturais nativos.
Para
constituir um elementos eficaz de evangelização, a piedade popular precisa
duma constante purificação e clarificação, e levar, não só à pertença à
Igreja, mas também à vivência cristã e ao compromisso com os irmãos.
1.3. Conclusões
a) Liturgia
Dar
à liturgia sua verdadeira dimensão de ponto culminante e manancial da atividade
da Igreja (SC 10).
Celebrar
a fé, na liturgia, como encontro com Deus e com os irmãos, como festa de
comunhão eclesial, como fortalecimento em nosso peregrinar e como compromisso
de nossa vida cristã. Dar especial importância à liturgia dominical.
Revalorizar a força dos "sinais" e sua teologia. Na liturgia, celebrar
a fé com expressões culturais, obedecendo a uma sadia criatividade. Promover
adaptações adequadas particularmente aos grupos étnicos e ao podo simples
(grupos populares); atentando, porém, a que a liturgia não seja instrumentalizada
para fins alheios à sua natureza, respeitem-se fielmente as normas da Santa Sé
e, nas celebrações litúrgicas, evitem-se arbitrariedades. Estudar a função
catequética e evangelizadora da liturgia.
Promover
a formação dos agentes de pastoral litúrgica, por meio duma autêntica teologia
que os leve a um compromisso vital.
Procurar
oferecer aos presidentes das celebrações litúrgicas condições aptas para
aprimorarem sua função e conseguirem uma comunicação viva com a assembléia; pôr
um especial esmero na preparação da homilia, cujo valor evangelizador é grande.
Fomentar as celebrações da palavra dirigidas por diáconos ou leigos ( homens ou
mulheres ) .
Preparar
e realizar com esmero a liturgia dos sacramentos, a das grandes festividades e
a que se realiza nos santuários.
Aproveitar
como ocasiões propícias de evangelização a celebração da palavra nos funerais
e nos atos de piedade popular.
Promover
a música sacra, como serviço eminente que corresponde à índole de nossos povos.
Respeitar o patrimônio artístico religioso e fomentar a criatividade artística
adaptada às novas formas litúrgicas.
Incrementar
as celebrações transmitidas pelo rádio e televisão, levando em conta a
natureza da liturgia e a índole dos respectivos meios de comunicação
utilizados.
Fomentar
os encontros preparatórios para a celebração dos sacramentos.
Aproveitar
as possibilidades oferecidas pelos novos rituais dos sacramentos. Os
sacerdotes dediquem-se de maneira especial a administrar o sacramento da
reconciliação.
b
) Oração particular
A
diocese, na sua pastoral de conjunto, a paróquia e as comunidades menores (
comunidades eclesiais de base e família) integrem em seus programas
evangelizadores a oração pessoal e comunitária. Procurar que todas as
atividades na Igreja (como sejam reuniões, uso de meios de comunicação social,
obras sociais, etc.) sejam ocasião e escola de oração.
Utilizar
os seminários, mosteiros, escalas e outros centros de formação como lugares
privilegiados para orar, irradiar vida de oração e formar mestres da mesma.
Os
sacerdotes, religiosos e leigos comprometidos, salientem-se por seu exemplo de
oração e pelo ensino da mesma ao Povo de Deus.
Promover
as obras que fomentem a santificação do trabalho e a oração dos enfermos e
inválidos. Fomentar as formas de piedade popular que contribuam para
fortalecer a oração pessoal, familiar, de grupo e comunitária.
Incluir
os grupos de oração na pastoral orgânica, para que orientem seus membros para a
liturgia, a evangelização e o compromisso social.
c)
Piedade popular
Esmerem-se
os agentes de pastoral por recuperar os valores evangelizadores da piedade
popular em suas diversas manifestações, quer pessoais, quer coletivas.
Tome-se
a piedade popular como ponto de partida para conseguir que a fé do povo ganhe
madureza e profundidade; para isso, esta piedade popular basear-se-á na palavra
de Deus e no sentido de pertença à Igreja.
Não
se prive o povo de suas expressões de piedade popular. Caso algo tenha que
mudar, proceda-se gradualmente e recorra-se a uma prévia catequese para
conseguir algo melhor.
Orientar
os sacramentos ao reconhecimento dos benefícios de Deus e à tomada de
consciência do compromisso que o cristão tem no mundo. Apresentar a devoção a
Maria e aos santos como realização neles da Páscoa de Cristo e recordar que
elas devem conduzir à vivência da Palavra e ao testemunho de vida.
2.
TESTEMUNHO
2.1. Situação
A
Igreja deu de diversas maneiras, através de sua história na América Latina,
testemunho daquilo em que crê: sua fidelidade ao Vigário de Cristo, a mútua
ajuda entre as Igrejas particulares; a existência e as realizações do Conselho
Episcopal Latino-Americano são sinais da comunhão em que ela vive.
A Igreja, através de inumeráveis
sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos, tem estado presente entre os mais
pobres e necessitados, pregando a mensagem e pondo em obra a caridade que o Espírito
nela difunde para a promoção integral do homem, e dando testemunho de que o
Evangelho tem força para elevá-1o e dignificá-1o.
Contudo,
nem todos os membros da Igreja têm guardado o devido respeito para com o homem
e sua cultura; muitos deram mostras duma fé pouco vigorosa para vencer seus
egoísmos, seu individualismo e apego às riquezas, agindo injustamente e
lesando a unidade da sociedade e da própria Igreja.
2.2. Critérios doutrinais
Cristo,
primeiro evangelizador e testemunha fiel, evangeliza dando testemunho
verdadeiro do que viu junto do Pai e faz as obras que vê o Pai fazer; suas ações dão testemunho de que veio do
Pai.
Os
verdadeiros cristãos, unidos a Jesus, dão por seu turno este mesmo testemunho.
Por suas obras, testificam o amor que o Pai tem para com os homens, o poder
salvador com que Jesus Cristo liberta do pecado e o amor neles infundido pelo
Espírito que neles habita e que é capaz de criar a verdadeira comunhão com o
Pai e os irmãos.
As obras
dos cristãos guiados pelo Espírito são: ! amor, comunhão, participação,
solidariedade, domínio de si mesmo, alegria, esperança, justiça realizada na
paz, castidade, entrega desinteressada de si mesmo; numa palavra, tudo aquilo
que constitui a santidade; esta anda acompanhada pela freqüência aos
sacramentos, oração e intensa devoção a Maria.
O verdadeiro
testemunho dos cristãos é, portanto, manifestação das obras que Deus realiza
nos homens. O homem dá testemunho baseado não em suas próprias forças, mas na
confiança que tem no poder de Deus que o transforma e na missão que lhe
confere.
2.3. Critérios pastorais
Sendo
o testemunho elemento primordial da evangelização e condição essencial para a
verdadeira eficácia da pregação, faz-se mister que esteja sempre presente na
vida e ação evangelizadora da Igreja, de tal sorte que, no contexto da vida latino-americana,
atue como "sinal" que provoque o desejo de conhecer a Boa Nova e
ateste a presença do Senhor entre nós.
Na
situação em que vivem os nossos povos, os frutos do Espírito, que formam o
núcleo do nosso testemunho, exigem que tanto a hierarquia como o laicato e os
religiosos vivamos numa contínua autocrítica, à luz do Evangelho, em nível
pessoal, grupai e comunitário, para nos despojarmos de qualquer atitude que não
seja evangélica e desfigure a fisionomia de Cristo.
Esta
é a nossa primeira opção pastoral:. a própria comunidade cristã, seus leigos,
seus pastores, seus ministros e seus religiosos devem converter-se cada vez
mais ao Evangelho, para poderem evangelizar os outros.
Importante
é, sobretudo, que revisemos, em comunidade, nossa comunhão e participação com
os pobres, os humildes, os pequenos. Será portanto necessário escutá-los,
acolher o mais íntimo de suas aspirações, valorizar, discernir, animar, corrigir,
com o desejo de que o Senhor nos guie para tornar efetiva a unidade com eles
num mesmo corpo e num mesmo espírito.
Isto
pede de nós uma oração mais assídua, meditação mais profunda da Escritura,
despojamento íntimo e efetivo, segundo o Evangelho, de nossos privilégios,
modos de pensar, ideologias, relacionamentos preferenciais e bens materiais;
maior simplicidade de vida; comprometer-nos na realização de ações
significativas, como seja o cabal cumprimento da "hipoteca social" da
propriedade; a comunhão cristã de bens materiais e espirituais; a colaboração
em ações comunitárias de promoção humana e uma vasta gama de obras de caridade,
cujo mínimo que se possa exigir é a justiça, associada à maior liberdade diante
de critérios e poderes pervertidos.
Também
importa que a Igreja progrida, em nível continental, na realização de sinais
que dêem testemunho de sua vitalidade interior; entre esses sinais estão a
maior solidariedade entre as Igrejas particulares e a melhor coordenação
pastoral através do CELAM, que deve continuar servindo à colegialidade
episcopal e à comunhão intra-eclesial na, América Latina.
3. CATEQUESE
A
catequese "que consiste na educação ordenada e progressiva da fé" (Mensagem do Sínodo de Catequese, nº 1
) , deve ser atividade prioritária na América Latina, se quisermos conseguir
uma renovação profunda da vida cristã e, com esta., uma nova civilização que
seja participação e comunhão de pessoas na Igreja e na sociedade.
3.1. Situação
Do
ponto de vista histórico, a partir de Medellin, podem-se notar na catequese
aspectos positivos e negativos:
Positivos:
O
florescimento da ação catequética nos diversos países, mediante novas e ricas
experiências, como por exemplo:
-
Um esforço sincero para integrar a vida com a fé, a história humana com a
história da salvação, a situação humana com a doutrina revelada, a fim de que
o homem consiga a sua verdadeira libertação.
-
Uma pedagogia catequética positiva, que parte da pessoa de Cristo para chegar
a seus preceitos e conselhos.
-
Um amor mais acendrado à Sagrada Escritura, como fonte principal da catequese.
-
Uma educação baseada no sentido construtivo da pessoa e da comunidade, numa
visão cristã.
-
Um redescobrimento da dimensão comunitária da catequese, de sorte que a
comunidade eclesial está se tornando responsável pela catequese em todos os
níveis: na família, na paróquia, nas Comunidades Eclesiais de Base, na
comunidade escolar e na organização diocesana e nacional.
-
Uma tomada de consciência cada vez maior de que a catequese é um processo
dinâmico, gradual e permanente de educação na fé.
-
Um aumento de institutos para a formação de catequistas, em muitas partes e em
todos os níveis: diocesanos, nacionais e internacionais.
-
Uma proliferação de textos de catecismo. Isto, às vezes é positivo, outras é
negativo, na, medida em que são parciais ou não renovados.
Negativos:
-
A catequese não consegue atingir todos os cristãos em medida suficiente, nem
todos os setores e situações como, por exemplo: vastos setores da juventude,
das elites intelectuais, dos camponeses e do mundo operário, das forças
armadas, dos anciãos e dos enfermos, etc.
-
Não raro, cai-se em dualismos e falsas oposiçôes, como entre catequese
sacramental e catequese vivencial; catequese da situação e catequese doutrinal.
Por não situar-se numa posição de justo equilibro, alguns têm caído no
formalismo e outros no vivencial sem apresentação de doutrina; há, os que
passaram do memorismo à total ausência de memorização.
-
Há catequistas que descuram a iniciação à oração e à liturgia.
-
Por vezes, não se respeita a diferença entre certos assuntos que são da alçada
dos teólogos e outros que cabem aos catequistas em sintonia com o magistério;
devido a isso, tem sucedido difundirem-se, entre os catequistas, conceitos que
não passam de meras hipóteses teológicas ou de estudo.
-
Verifica-se certa desorientação das atitudes catequéticas no campo ecumênico.
3.2. Critérios teológicos
a) Comunhão e participação
A
obra evangelizadora que se efetua na catequese exige a comunhão de todos: ela
requer ausência de divisões e que as pessoas se encontrem numa fé adulta e num
amor evangélico. Uma das metas da catequese é precisamente a construção da
comunidade.
Impõe-se
a colaboração de todos os membros da comunidade eclesial, cada qual de acordo
com seu ministério e carisma, sem se esquivar de responsabilidades apostólicas
e missionárias, para que, com a catequese, a Igreja edifique a Igreja. A Igreja é constantemente evangelizada e
evangelizadora.
b ) A fidelidade a Deus
A
fidelidade a Deus se expressa na catequese como fidelidade à Palavra outorgada
em Jesus Cristo. O catequista não prega a si mesmo, mas Jesus Cristo, sendo
fiel à sua Palavra e à integridade da sua mensagem.
c ) Fidelidade à Igreja
Todo
aquele que catequiza sabe que a fidelidade a Jesus Cristo anda
indissoluvelmente unida à fidelidade à igreja; que ele, com seu trabalho, está
continuamente a edificar a comunidade e a transmitir a imagem da Igreja; que
deve fazer isto em união com os bispos e com a missão deles recebida.
d) Fidelidade ao homem
latino-americano
A
fidelidade ao homem latino-americano exige da catequese que ela penetre, assuma
e purifique os valores de sua cultura «'. Por conseguinte, que se esmere no uso
e adaptação da. linguagem catequética.
A
catequese deve, por conseqüência, iluminar com a Palavra de Deus as situações
humanas e os acontecimentos da vida, para neles fazer descobrir a presença ou
ausência de Deus.
e) Conversão e crescimento
A
catequese deve levar a um processo de convers9.o e crescimento permanente e
progressivo na fé.
f ) Catequese integradora
"Em
toda a catequese integral, devem-se unir sempre de modo inseparável:
-
o conhecimento da Palavra de Deus;
-
a celebração se fé nos sacramentos;
-
a confissão da fé na vida cotidiana (Sínodo de 1977, 11) .
3.3. Projetos pastorais
Para
cumprir sua missão evangelizadora na América Latina, a catequese deverá ter
pressentes os seguintes itens:
a)
Formar homens pessoalmente comprometidos com Cristo, capazes de participação e
comunhão no seio da Igreja e dedicados ao serviço da salvação do mundo.
b)
Tomar como fonte principal a Sagrada Escritura, lida no contexto da vida, à
luz da Tradição e do Magistério da Igreja, transmitindo, além disso, o símbolo
da fé; portanto, dará importância ao apostolado bíblico, difundindo a Palavra
de Deus, formando grupos bíblicos, etc.
c)
Dar prioridade pastoral à formação adequada dos catequistas, em diversos
institutos, atendendo à sua especialização em função das diversas situações,
idades e áreas em que vivem os catequizandos, p. ex. crianças, jovens,
camponeses, operários, forças armadas, elites, enfermos, deficientes,
presidiários, etc.
d)
Nos institutos de formação dos sacerdotes e dos religiosos e religiosas,
adaptar a Ratio studiorum, como algo
urgente para que se intensifique o sentido da transmissão adequada e
atualizada da mensagem evangélica.
Os
catequistas devem procurar:
-
A integridade do anúncio da Palavra,
para superar dualismos, falsas aposições e a unilateralidade.
-
Iniciar os catequizandos na oração e na liturgia; no testemunho e no
compromisso apostólico.
-
Ministrar uma catequese vocacionalmente orientadora, explicando também a
vocação leiga, suscitando um compromisso adaptado às diferentes idades, desde
a infância até a idade adulta.
-
Como educadores da fé das pessoas e das comunidades, empenhar-se numa
metodologia que inclua, sob forma de processo permanente por etapas sucessivas,
a conversão, a fé em Cristo, a vida em comunidade, a vida sacramental e o
compromisso apostólico.
-
Ministrar uma educação integral da fé, que inclua os aspectos seguintes:
-
A capacitarão do cristão para
"dar razão de sua esperança.
-
A capacidade de dialogar
ecumenicamente com os outros cristãos.
-
Uma boa formação para a vida moral, assumida como seguimento de Cristo,
acentuando-se a vivência das bem-aventuranças.
-
A formação gradual para uma ética sexual crista positiva.
-
A formação para a vida política e a doutrina social da Igreja.
A metodologia
Os
catequistas tenham em consideração a importância da memória, conforme o que
afirma o Papa Paulo VI: "Memorizar as mais importantes sentenças
bíblicas, mormente as do N.T., e os
textos litúrgicos que se usam para a oração em comum e para tornar mais fácil a
confissão da fé; e dêem importância às técnicas audiovisuais: desenho,
fotopalavra, mini-média, dramatização, canto, etc.
A ação catequética
-
Deverá dirigir-se de forma simultânea aos grupos e às multidões. Para estas
últimas, são de muita eficácia as missões populares, convenientemente
renovadas numa linha evangelizadora.
-
Favoreça-se a catequese permanente, desde a infância até a velhice
integrando-se entre si as comunidades ou instituições que catequizam, a saber,
a família, a escola, a paróquia, os movimentos e as diversas comunidades ou
grupos.
4. EDUCAÇÃO
Para
a Igreja, educar o homem é parte integrante de sua missão evangelizadora,
continuando assim a missão de Cristo Mestre.
Quando
a Igreja evangeliza e consegue a conversão do homem, também o educa, pois a
salvação (dom divino e gratuito) longe de desumanizar o homem, o aperfeiçoa e
enobrece; faz com que cresça em humanidade. A evangelização é, neste sentido, educação. Todavia, a educação
enquanto tal não pertence ao conteúdo essencial da evangelização, mas ao seu
conteúdo integral.
4.1. Situação
O
múnus educativo desenvolve-se entre nós numa situação de transformação
sócio-çultural, caracterizada pela secularização da cultura, influenciada
pelos meios de comunicação de massa e marcada pelo desenvolvimento econômico
quantitativo que, embora haja significado algum progresso, não suscitou as
requeridas mudanças para nina sociedade mais justa e equilibrada. A situação
de pobreza de grande parte de nossos povos está significativamente
correlacionada com os processos educativos. Os setores deprimidos são os que
mostram maiores. taxas de analfabetismo e deserção escolar e as menores
possibilidades de conseguir emprego.
Em
algumas nações, constitui situação problemática a presença, de grupos
aborígenes que, não obstante seus valores culturais (formas de organização
social, sistemas simbólicos, costumes e celebrações comunitárias, artes e
habilidades manuais), carecem de formas estruturadas de educação, de escrita
e de certa sagacidade e hábitos mentais, circunstâncias estas que os
marginalizam e mantêm numa situação desvantajosa. Para eles, as instituições
educativas convencionais são, não só estranhas, mas também pouco funcionais,
pois costumam operar como mecanismos de desenraizamento e evasão da
comunidade.
O
crescimento demográfico acelerou a demanda de educação em todos os níveis:
elementar, médio e superior, à qual corresponde um considerável aumento de
oferta, especialmente por parte do setor estatal. Contudo, a distribuição de
recursos fiscais costuma obedecer a critérios políticos, mais do que à
preferência por áreas menos favorecidas. Também a iniciativa privada e as
instituições vinculadas à Igreja têm contribuído, apesar das dificuldades,
para aumentar a oferta educacional.
As
relações entre Igreja e Estado em matéria de educação variam de um país para
outro. Em alguns, existam formas, legais ou de fato, duma real colaboração; em
outros, situações de conflito, mormente onde impera o monopólio educativo do
Estado. Em geral, o diálogo depende ás situação política. Alguns governos
chegaram a considerar subversivos certos aspectos e conteúdos da educação
cristã.
A
crescente demanda educacional de índole variada cria também para a Igreja
novos desafios, não só no campo da educação convencional (colégios e
universidades), mas também em outros: educação de adultos, educação á
distância, não-formal, assistemática, em estreita liga coto o notável desenvolvimento dos meios modernos de
comunicação social, e, finalmente, as amplas possibilidades ensejadas pela educação
permanente.
Entre
os religiosos educadores surgem questionamentos sobre a instituição escolar
católica, porque favoreceria o elitismo e a mentalidade classista; por causa
dos escassos resultados na educação da fé e das mudanças sociais; devido a problemas
financeiros, etc. Esta tem sido uma das causas que levaram muitos religiosas a
abandonar o campo da educação em troca duma ação pastoral considerada mas
direta, valiosa e urgente.
Nota-se,
com satisfação, a presença crescente dos leigos nas instituições educativas
eclesiais e comprova-se a intervenção de cristãos responsáveis em todos os
campa8 da educação.
Verificam-se
influências ideológicas na maneira de conceber a educação, mesmo cristã. Uma,
de feitio utilitário-individualista, a considera simples meio para assegurar um
porvir: um investimento a prazo. Outra procura instrumentalizar a educação,
não com fins individualistas, mas a serviço dum projeto sócio-político
definido, quer de tipo estatal, quer coletivista.
Experimentam-se
dificuldades na coordenação de agentes e agências educativas eclesiais, entre
si e com os bispos, quer porque não se aceita plenamente a liderança destes,
quer por menosprezar-se uma preocupação e compromisso dos pastores no campo da
educação. Em conseqüência disto, nota-se também deficiência na planificação
educacional e, até, certa incapacidade para fixar os objetivos.
Está
adquirindo maior vigência a idéia da "comunidade ou cidade
educativa", na. qua,l se integram, atual ou potencialmente, todos os
fatores educativos da comunidade, a partir da família e realçando-se o papel
da, mesma. Esta concepção está transformando alguns colégios em verdadeiros
agentes de evangelização.
4.2. Princípios e critérios
A
educação é uma atividade humana da ordem da cultura; a cultura tem uma
finalidade essencialmente humanizadora. Desta forma, compreende-se que o
objetivo de toda educação genuína seja humanizar e personalizar o homem, sem
desvirtuá-1o, mas pelo contrário orientando-o eficazmente para seu fim último
que transcende a essencial finitude do homem. A educação será tanto mais humanizadora
quanto mais se abrir para a transcendência, ou seja, para a verdade e o Sumo
Bem.
A educação humaniza e personaliza o
homem quando consegue que este desenvolva plenamente o seu pensamento e sua
liberdade, fazendo-os frutificar em hábitos de compreensão e comunhão com a
totalidade da ordem real; por meio destes, o próprio homem humaniza o seu
mundo, produz cultura, transforma a sociedade e constrói a história.
A educação evangelizadora assume e
completa a noção de educação libertadora, porque deve contribuir para a
conversão do homem total, não só em seu eu profundo e individual, mas também no
eu periférico e social, orientando-o radicalmente para a genuína libertação
cristã, que torna o homem acessível à plena participação no mistério de Cristo
ressuscitado, isto é, à comunhão filial com o Pai e à, comunhão fraterna com
todos os homens, seus irmãos.
Esta
educação evangelizadora deverá englobar, entre outras, as características
seguintes:
a)
Humanizar e personalizar o homem, para nele criar o lugar onde possa revelar-se
e ser escutada a Boa Nova: o desígnio salvífico do Pai em Cristo e na sua
Igreja.
b)
Integrar-se no processo social latino-americano, impregnado por uma cultura
radicalmente cristã, na qual, entretanto, coexistem valores e contravalores,
luzes e sombras e que, por isso, necessita ser constantemente reevangelizada.
c)
Exercer a função crítica própria da verdadeira ' educação, procurando regenerar
permanentemente, do ponto de vista da educação, os princípios culturais e as
normas de interação social que possibilitem a criação duma nova sociedade,
verdadeiramente participante e fraterna, em outras palavras, educação para a
justiça.
d)
Converter o educando em sujeito, não só do seu próprio desenvolvimento, mas
também posto a serviço do desenvolvimento da comunidade: educação para o
serviço.
Considerado
o que precede, enumeram-se os seguintes critérios:
a)
A educação católica pertence à missão evangelizadora da Igreja e deve anunciar
explicitamente Cristo Libertador.
b
) A educação católica não deve perder de vista a situação histórica e concreta
em que o homem se encontra, a saber, sua situação de pecado na ordem
individual e social. Por conseguinte, propõe-se formar personalidades fortes,
capazes de resistir ao relativismo debilitante e viver coerentemente as
exigências do batismo (EC 12).
c)
A educação católica deve produzir os agentes da transformação permanente e
orgânica que a sociedade da América requer (Med 4, II, 8) mediante uma formação
cívica e política inspirada na doutrina social da Igreja (João Paulo II,
Discurso Inaugural I, 9-AAS, LXXI, p. 195).
d)
Por ser uma pessoa, todo homem tem direito inalienável à educação que
corresponda ao seu fim, caráter, sexo; acomodada à cultura e às tradições
pátrias. Aqueles que não recebem esta educação devem ser considerados com os
mais deserdados, portanto, mais necessitados da ação educativa da Igreja.
e)
O educador cristão desempenha uma missão humana e evangelizadora. As
instituições educativas da Igreja recebem um mandato apostólico da hierarquia.
f
) A família é a primeira responsei pela educação. Toda tarefa educadora deve
habílitá-1a a que possa exercer esta
missão.
g)
A Igreja proclama a liberdade de ensino, não para favorecer privilégios ou o
lucro particular, mas como um direito à verdade, que assiste às pessoas e às
comunidades.
Ao
mesmo tempo, a Igreja se declara disposta a colaborar no múnus educativo da
nossa sociedade pluralista.
h)
De acordo com os dois princípios anteriores, o Estado deveria distribuir
eqüitativamente o seu orçamento com as outras organizações educativas não
estatais, a fim de que os pais, que também são contribuintes, possam escolher
livremente a educação para seus filhos.
4.3. Sugestões pastorais
-
Fomentar, em união com os agentes de pastoral familiar, a responsabilidade da
família, especialmente dos pais, em todos os aspectos do processo educativo.
-
Reafirmar eficazmente, sem esquecer outras responsabilidades da Igreja no campo
educacional, a importância da escola católica em todos os níveis, favorecendo
sua democratização e transformando-a, conforme as orientações do Documento da
Sagrada. Congregação para a Educação Católica em:
-
Instância efetiva de assimilação crítica, sistemática e integradora do saber e
da cultura geral.
-
Lugar mais apto para o diálogo entre a fé e a ciência.
-
Ambiente privilegiado que favoreça e estimule o crescimento na fé, coisa que
não depende só dos cursos de religião programados.
-
Alternativa válida para o pluralismo educacional.
-
Ajudar os religiosos e religiosas educadores, especialmente os jovens, a
redescobrirem e aprofundarem o sentido pastoral de seu trabalho na escola, de
acordo com o seu carisma próprio, prestando-lhes apoio em tarefa tão difícil.
-
Promover o educador cristão, especialmente o leigo, para que assuma a sua
pertença e posição na Igreja, como chamado a participar da sua missão
evangelizadora no campo da educação.
-
Dar prioridade, no campo educacional, aos numerosos setores pobres da nossa
população, marginalizados material e culturalmente, orientando para eles, com
preferência, de acordo com o ordinário do lugar, os serviços e recursos
educativos da Igreja.
-
Igualmente prioritária é a educação de líderes e agentes de transformação.
-
Acompanhar a alfabetização dos grupos marginalizados com atividades
educacionais que os ajudem a comunicar-se eficazmente; a se darem conta dos
seus deveres e direitos; a compreenderem a situação em que vivem e a
discernirem suas causas: a se habilitarem para organizar-se no campo civil,
trabalhista e político, e assim poder participar plenamente dos processos
decisórios que lhes dizem respeito.
-
Sem descurar os atuais compromissos educacionais escolares, urge responder com
generosidade e imaginação aos desafios que a Igreja da América Latina hoje enfrenta e no futuro enfrentará. Essas
novas formas de ação educativa não podem ser fruto da veleidade ou
improvisação, mas requerem suficiente capacitação de seus promotores e uma
fundamentação em diagnósticos objetivos das necessidades, bem como o
inventário e avaliação dos próprios recursos. Aconselhável seria recorrer ao
uso de métodos participativos.
-
Promover a educação popular ( educação m- 1 formal) para revitalizar a nossa
cultura popular, incentivando tentativas que, por meio da imagem e do som,
ponham criativamente em destaque os valores e símbolos profundamente cristãos
da cultura latino-americana.
-
Estimular a comunidade civil em todos os seus setores. Para isso, é necessário
instaurar um diálogo franco e receptivo, a fim de que ela assuma suas
responsabilidades educativas e consiga transformar-se, junto com suas instituições
e recursos, numa autêntica "cidade educativa".
-
Promover a coordenação de tarefas, agentes e instituições educativas na ação
pastoral da Igreja particular, por meio de um organismo competente, vinculado
ao bispo, a cujo encargo estarão as funções de planejamento e avaliação.
Faz-se mister uma avaliação objetiva de atividades, obras e situações, que possa
levar à melhor utilização dos recursos, modificando, suprimindo ou criando
instituições ou programas.
-
Elaborar, sobretudo em nível de comissões episcopais, a doutrina ou teoria
educativa cristã, baseada nos ensinamentos da Igreja e na experiência pastoral.
Isto dará ensejo a examinar, à luz da referida doutrina, os princípios
objetivos e métodos dos sistemas educativos vigentes, para ínterpretá-los
adequadamente e avaliar criticamente seus resultados - Partindo desta teoria,
urge a elaboração dum projeto educativo cristão em nível nacional ou
continental, no qual desde logo se inspirarão os ideários concretos das
diversas instituições educacionais.
4.4. Universidades
Observou-se
nos últimos dez anos uma enorme demanda de ensino superior, com o ingresso em
massa dos jovens latino-americanos nas universidades, motivado em grande parte
pelo acelerado desenvolvimento de nossos países. Tal fato fez surgir o grave
problema da incapacidade do sistema educativo e social para poder satisfazer a
todas as demandas: esta incapacidade deixa frustrados a milhares de jovens,
porque muitos não entram na universidade, e porque muitos que delas saem não
encontram emprego.
A secularização da, cultura e os
progressos da tecnologia e dos estudos antropológicos e sociais levantam a
série de interrogações a respeito do homem, de Deus e do mundo. Isto causa
confrontações entre ciência e fé, entre a técnica e o homem, de modo especial
para os crentes.
As
ideologias em voga sabem que as universidades são um campo propício para sua
infiltração e para conseguir o domínio às cultura e da sociedade. A diversidade
deve formar verdadeiros líderes, construtores duma nova sociedade, e isto
implica, por parte da Igreja, dar a conhecer a mensagem do Evangelho neste meio
e fazê-1o com eficácia, respeitando a liberdade acadêmica, inspirando-lhe a
função criativa, tornando-se presente à educação política, e social de seus
membros, iluminando a pesquisa científica.
Segue-se
dai a atenção que todos devemos dar ao ambiente intelectual e universitário.
Pode-se afirmar que se trata duma opção-chave capital e funcional da
evangelização, país do contrário per. der-se-ia uma posição decisiva para
iluminar as mudanças de estruturas.
Como
os resultados não se podem medir a curto prazo, poderia ficar-nos a impressão
de fracasso e ineficiência. Contudo, isto não deve diminuir a esperança e o
empenho dos cristãos que trabalham no campo
universitário, pois apesar dais dificuldades, eles estão colaborando na missão
evangelizadora da Igreja.
Importante
é a evangelização do mundo universitário (professores, pesquisadores e
estudantes) mediante contatos e serviços de animação pastoral oportunos em
instituições não eclesiais de educação superior.
Deve-se
insistir mui especialmente em que a universidade católica, vanguardeira da
mensagem cristã no mundo universitário é chamada a prestar um serviço
relevante à Igreja e à sociedade. Num mundo pluralista, não lhe é fácil manter
a própria identidade. Ela cumprirá sua função, enquanto católica, descobrindo
"o seu significado último e profundo em Cristo, na sua mensagem salvífica
que abarca o homem em sua totalidade" (João Paulo II, Alocução Universitários Z-AAS, LXXI, p. 236 ) . Enquanto
universidade, procurará sobressair pela honestidade científica, pelo compromisso
com a verdade, pela preparação de profissionais competentes para o mundo do
trabalho e pela pesquisa de soluções para os problemas mais angustiantes da
América Latina.
Sua missão educadora primordial será
promover urna cultura integral capaz de formar pessoas que sobressaiam pelos
profundos conhecimentos científicos e humanísticos; pelo "testemunho de
fé perante o mundo" (GE 10); pela prática sincera da moral cristã e pelo
compromisso na criação duma nova América Latina mais justa e fraterna,. Desta
forma, contribuirá ativa e eficazmente para a criação e renovação da nossa
cultura, transformada pela força do Evangelho, na qual o nacional, o humano e
o cristão consigam harmonizar-se da melhor maneira.
Além
do diálogo das diversas disciplinas entre si e especialmente com a teologia, da
pesquisa da verdade Como empresa comum entre professores e estudantes, da
integração e participação de todos na vida e ocupações universitárias, cada
qual segundo a própria competência, deve a mesma universidade católica ser um
exemplo de cristianismo vivo e operante. Em seu âmbito, todos os membros dos
diversos níveis - mesmo aqueles que, embora não sejam católicos, aceitam e
respeitam esses ideais - devem formar uma "família universitária"
(João Paulo II, Alocução Universitários 3-AAS, LXXI, p. 237).
Nesta
missão de serviço, a universidade católica deverá viver em contínua
auto-análise e tornar sua estrutura operacional flexível para responder ao
desafio da própria região ou nação, mediante a oferta de breves cursos
especializados, educação continuada para adultos, extensão universitária com
oferta de oportunidade e serviços para marginalizados e pobres.
5. COMUNICAÇÃO SOCIAL
A
evangelização, anúncio do Reino, é comunicação: portanto, a comunicação social
deve ser levada em conta em todos os aspectos da transmissão da Boa Nova.
A comunicação, como ato social vital,
nasce ' com o próprio homem e tem sido potencializada na época moderna
mediante poderosos recursos tecnológicos. Por conseguinte, a evangelização não
pode prescindir, hoje em dia, dos meios de comunicação.
5.1. Situação
Visão da realidade na América
Latina
A
comunicação social surge como dimensão ampla e profunda do relacionamento
humano, mediante o qual o homem, individual e coletivamente, à medida que se
inter-relaciona no mundo, expõe-se ao influxo da civilização audiovisual e à
contaminação da "poluição sonora".
Devido
à diversidade de meios existentes (rádio, televisão, cinema, imprensa, teatro,
etc.) que atuam de maneira simultânea e maciça,, a comunicação social incide
em toda a vida do homem e sobre ele exerce de maneira consciente ou subliminar,
uma influência decisiva.
A comunicação social está condicionada
pela realidade sócio-cultural de nossos países e constitui, por sua vez, um dos
fatores determinantes que mantêm esta realidade.
Reconhecemos
que os meios de comunicação social são fatores de comunhão e contribuem para a
integração latino-americana, bem como para a expansão e democratização da
cultura; contribuem outrossim para o lazer, especialmente das pessoas que vivem
fora dos centros urbanos; aumentam as capacidades perspectivas pelo estímulo
visual auditivo, de penetração sensorial.
Não
obstante os aspectos positivos assinalados, devemos denunciar o controle desses
meios de comunicação social e a manipulação ideológica que exercem os poderes
políticos e econômicos, que se empenham em manter o statu quo e até em criar
uma ordem nova de dependência-dominação ou, pelo contrário, em subverter esta
ordem para criar outra de sinal contrário. A exploração das paixões, dos
sentimentos, da violência e do sexo, com objetivos consumistes, constituem uma
flagrante violação dos direitos individuais. Igual violação aparece na
indiscriminação das mensagens, repetitivas ou subliminares, com respeito à pessoa
e principalmente à família.
Os
jornalistas nem sempre se mostram objetivos e honestos na transmissão de
notícias, de forma que são eles mesmos os que às vezes manipulam a informação,
calando, alterando ou inventando o conteúdo da mesma, com grande desorientação
da opinião pública.
O
monopólio da informação, tanto por parte do governo como de interesses
privados, permite o uso
arbitrário dos meios de informação e dá lugar à manipulação de mensagens de
acordo com interesses setoriais. Particularmente grave é o manejo da informação
que empresas e interesses transacionais fazem a respeito de nossos países ou
com destino a eles.
A
programação, em grande parte estrangeira, produz transculturação não participativa e mesmo destruidora de
valores autóctones; o sistema publicitário, tal como se apresenta, e o uso
abusivo do esporte, enquanto elemento de evasão, os transformam em fatores de
alienação; seu impacto
massificante e compulsivo pede
levar ao isolamento e até à desintegração da comunidade familiar.
Os
meios de comunicação social têm-se convertido muitas vezes em veículo de
propaganda do materialismo reinante, pragmático e consumiste, e criam em nosso
povo falsas expectativas, necessidades fictícias, graves frustrações e um
doentio afã competitivo.
Visão
da realidade na Igreja da América Latina Existe na Igreja da América Latina
certa percepção da importância da comunicação social, porém, não como realidade
global, que afeta todas as relações humanas e a própria pastoral, bem como da
linguagem específica dos media.
A Igreja tem sido explícita quanto à
doutrina referente aos meios de comunicação social, publicando numerosos
documentos sobre a matéria, embora tenha havido delongas em levar estes
ensinamentos à prática.
Há
insuficiente aproveitamento das ocasiões de
comunicação que se oferecem à Igreja por parte dos meios estranhos e
incompleta utilização dos seus próprios meios ou daqueles que são por ela
influenciados; além disso, os meios próprios não estão integrados entre si, nem
na pastoral de conjunto.
Salvo
raras exceções ainda não existe na Igreja da América Latina uma verdadeira
preocupação por formar o Povo de Deus na comunicação social , capacitá-lo para
assumir uma atitude crítica frente ao bombardeio dos mass media e para opor-se
ao impacto de suas mensagens alienantes, ideológicas, culturais e
publicitárias. Situação que se agrava pelo pouco uso que se faz dos cursos
organizados nesta área, escasso orçamento que se destina aos meios de
comunicação social em função evangelizadora e descuido da atenção devida a
proprietários e técnicos desses meios.
Não
obstante os aspectos positivos assinalados, devemos denunciar o controle desses
meios de comunicação social e a manipulação ideológica que exercem os poderes
políticos e econômicos, que se empenham em manter o statu quo e até em criar uma ordem nova de dependência-dominação
ou, pelo contrário, em subverter esta ordem para criar outra de sinal
contrário. A exploração das paixões, dos sentimentos, da violência e do sexo,
com objetivos consumistes, constituem uma flagrante violação dos direitos
individuais. Igual violação aparece na indiscriminação das mensagens,
repetitivas ou subliminares, com respeito à pessoa e principalmente à família.
Os
jornalistas nem sempre se mostram objetivos e honestos na transmissão de
notícias, de forma que são eles mesmos os que às vezes manipulam a informação,
calando, alterando ou inventando 0 conteúdo da mesma, com grande desorientação
da opinião pública.
O
monopólio da informação, tanto por parte do governo como de interesses
privados, permite o uso arbitrário dos meios de informação e dá lugar à
manipulação de mensagens de acordo com interesses setoriais. Particularmente
grave é o manejo da informação que empresas e interesses transnacionais fazem
a respeito de nossos países ou com destino a eles.
A
programação, em grande parte estrangeira, produz transculturação não
participativa e mesmo destruidora de valores autóctones; o sistema publicitário,
tal como se apresenta, e o uso abusivo do esporte, enquanto elemento de evasão,
os transformam em fatores de alienação; seu impacto massificante e compulsivo
pode levar ao isolamento e até à desintegração da comunidade familiar.
Os
meios de comunicação social têm-se convertido muitas vezes em veículo de
propaganda do materialismo reinante, pragmático e consumiste, e criam em nosso
povo falsas expectativas, necessidades fictícias, graves frustrações e um
doentio afã competitivo.
Visão
da realidade na Igreja da América Latina Existe na Igreja da América Latina certa
percepção da importância da comunicação social, porém, não como realidade
global, que afeta todas as relações humanas e a própria pastoral, bem como da
linguagem específica dos media.
A Igreja tem sido explícita quanto à
doutrina referente aos meios de comunicação social, publicando numerosos
documentos sobre a matéria, embora tenha havido delongas em levar estes
ensinamentos à prática.
Há
insuficiente aproveitamento das ocasiões de comunicação que se oferecem à
Igreja por parte dos meios estranhos e incompleta utilização dos seus próprios
meios ou daqueles que são por ela influenciados; além disso, os meios próprios
não estão integrados entre si, nem na pastoral de conjunto.
Salvo
raras exceções ainda não existe na Igreja da América Latina uma verdadeira
preocupação por formar o Povo de Deus na comunicação social, capacitá-1o para
assumir uma atitude crítica frente ao bombardeio dos mass media e para opor-se
ao impacto de suas mensagens alienantes, ideológicas, culturais e
publicitárias. Situação que se agrava pelo pouco uso que se faz dos cursos
organizados nesta área, escasso orçamento que se destina aos meios de
comunicação social em função evangelizadora e descuido da atenção devida a
proprietários e técnicos desses meios.
Deve-se
mencionar aqui como fenômeno altamente positivo o rápido desenvolvimento dos
meios de comunicação grupai (MCG) e dos pequenos meios, com uma produção sempre
crescente de material para a evangelização e com um emprego cada dia maior
desses meios pelos agentes de pastoral, propiciando-se assim um acertado
crescimento da capacidade de diálogo e de contato.
A
Igreja da América Latina. tem feito nos últimos anos muitos esforços em favor
duma comunicação maior em seu interior. Todavia, em muitos casos, o que se
realizou até agora não corresponde plenamente às exigências do momento. O fluxo
de experiências e opiniões legítimas, como expressão pública de pareceres no
interior da Igreja, reduz-se a manifestações esporádicas e, portanto, insuficientes,
que têm pouca influência na totalidade da comunidade eclesial.
5.2. Opções
Critérios
a
) Integrar a comunicação na pastoral de conjunto.
b
) Dentre as tarefas por realizar neste campo, dar prioridade à formação na
comunicação social, tanto do público em geral, como dos agentes de pastoral em
todos os níveis.
c)
Respeitar e favorecer a liberdade de expressão e a correlativa informação,
pressupostos essenciais da comunicação social e de sua função na sociedade
dentro da ética profissional, conforme a Exortação Communio et Progressio.
Propostas pastorais
A
luz da problemática latino-americana e levando em conta o fenômeno da
comunicação social e suas implicações na evangelização, cabe formular as
seguintes propostas pastorais:
a)
Urge que a hierarquia e os agentes pastorais ' em geral conheçam, compreendam e
experimentem mais a fundo o fenômeno da comunicação social, a fim de que se
adaptem às respostas pastorais a esta nova realidade e se integre a comunicação
na pastoral de conjunto.
b)
Para que a articulação da pastoral da comunicação com a pastoral orgânica seja
efetiva, é preciso criar, onde não existe, e potencializar, onde existe, um
departamento ou organismo específico (nacional e diocesano) para a comunicação
social e incorporá-1o nas atividades de todas as áreas pastorais.
c
) A tarefa de formação no campo da
comunicação é uma ação prioritária. Portanto, urge formar neste campo todos os
agentes da evangelização:
Para
os aspirantes ao sacerdócio e à vida religiosa, é necessário que esta formação
se integre nos programas de estudos e formação pastoral.
Para
os sacerdotes, religiosos, religiosas, agentes de pastoral e para os próprios
responsáveis pelos organismos nacionais e diocesanos de pastoral de
comunicação social. é mister programar sistemas de formação permanente.
Especial
atenção merecem os profissionais da comunicação e a formação mais adequada dos
que cobrem a área da informação religiosa.
d)
Dentro das normas litúrgicas, cada Igreja particular providencie a forma mais
adequada para introduzir na liturgia, que é em si mesma comunicação, os
recursos de som e imagem, os símbolos e formas de expressão mais aptos para
representar a relação com Deus, de sorte que se faculte uma participação maior
e mais adequada nos atos litúrgicos. Recomenda-se utilização esmerada dos
aparelhos de som nos lugares de culto.
e
) Educar o público receptor para que tenha uma atitude crítica perante o
impacto das mensagens ideológicas, culturais e publicitárias que nos
bombardeiam continuamente, com o fim de neutralizar os efeitos negativos da
manipulação e massificação. Recomenda-se aos organismos eclesiais que operam em
escala continental (UNDA, OCIC, UCLAP ) dediquem uma especial atenção à
formação do público receptor, assim como das pessoas acima mencionadas.
f)
Sem descurar a necessária e urgente presença dos meios de comunicação de massa,
urge intensificar o uso dos meios de comunicação de grupo (MCG) que. além de
serem menos custosos e de mais fácil utilização, oferecem a possibilidade de
diálogo e são mais aptos para uma evangelização de pessoa para pessoa que
suscite adesão e compromissos verdadeiramente pessoais.
g)
Para maior eficácia na transmissão da mensagem, a Igreja deve lançar mão duma
linguagem atualizada, concreta, direta, clara e ao mesmo tempo caprichada.
Esta linguagem deve ficar próxima da realidade que o povo enfrenta, de sua
mentalidade e religiosidade, de tal sorte que possa ser facilmente captada;
para isso, é preciso levar em conta os sistemas e recursos da linguagem
audiovisual própria do homem hodierno.
h)
Com o objetivo de iluminar pelo Evangelho os acontecimentos cotidianos e
acompanhar o homem latino-americano com base no conhecimento de seus afazeres
diários e dos fatos que influem sobre ele, a Igreja deve preocupar-se com
possuir canais próprios de informação e de notícias que assegurem a intercomunicação
e o diálogo com o mundo. Isto é tanto mais urgente quanto a experiência mostra
as contínuas distorções do pensamento e dos fatos de Igreja por parte das
agências. A presença da Igreja no mundo da comunicação social exige importantes
recursos que devem ser providenciados pela comunidade cristã.
i
) Conhecida a situação de pobreza, marginalização e injustiça em que estão
imersas grandes massas latino-americanas e de violação dos direitos humanos, a
Igreja, no uso de seus meios próprios, deve ser cada dia mais a voz dos
desamparados, apesar dos riscos que isto implica.
j
) As limitações que temos encontrado no Continente nos forçam a ratificar o
direito social à informação, com suas obrigações correlativas, dentro dos
limites éticos que impõem o respeito à privacidade das pessoas e à verdade.
Maior validez ainda têm esses princípios no interior da Igreja.
CAPÍTULO IV
O
DIALOGO PARA A COMUNHAO E PARTICIPAÇAO
Incrementar
o diálogo ecumênico entre as religiões e com os não-crentes, com vistas à comunhão,
buscando áreas de participação para o anúncio universal da salvação.
1.1. Introdução
A
evangelização goza duma universalidade sem fronteiras: "Ide por todo o
mundo e pregai o Evangelho a toda criatura" (Mc 16,15). A Igreja,
depositária da Boa Nova e evangelizadora, começa evangelizando-se a si mesma.
Este mandato do Senhor, do qual são depositários todos os cristãos, é motivo
para um esforço comum, impulsionado pelo Espírito Santo, para dar testemunho
de nossa esperança "diante de todos os povos". Face à
responsabilidade da evangelização, a Igreja Católica abre-se para um diálogo de
comunhão, procurando áreas de participação para o anúncio universal da
salvação.
Isto
supõe que evangelização e diálogo estejam intimamente relacionados. As áreas de
intercâmbio que se abrem diante da Igreja são muitas e variadas, mas aqui,
seguindo o Concílio e a Encíclica Ecclesiam
Suam, sintetizamo-las em três: os cristãos não-católicos; os não-cristãos;
os não-crentes.
O
Continente latino-americano foi evangelizado na fé católica desde o seu
descobrimento. Isto constitui um traço fundamental de identidade e unidade do
Continente, e ao mesmo tempo, uma tarefa permanente. Por causas diversas,
presencia-se hoje um crescente pluralismo religioso e ideológico.
1.2. Situação
A
Igreja Católica constitui a mesma maioria na América Latina, e isto é um fato
muito relevante, de caráter não somente sociológico, mas também teológico.
Junto
com ela, encontram-se Igrejas orientais e Igrejas e comunidades eclesiais do
ocidente. Encontram-se também aquilo que hoje costuma chamar-se
"movimentos religiosos livres" (popularmente "seitas"),
alguns dos quais se mantêm nos limites da profissão de fé basicamente; outros,
pelo contrário, não podem ser considerados como tais.
Presente
está o judaísmo, com a variedade de correntes e tendências que lhe é própria.
Deparamos o islamismo e outras religiões não cristãs.
Notamos
igualmente outras formas religiosas ou para-religiosas, com um conjunto de
atitudes bem diferentes entre si, que aceitam uma realidade superior
("espíritos", "forças ocultas", "astros" etc.)
com a qual entendem comunicar-se para obter ajuda e normas da vida.
A "não-crença" é um fenômeno
que designa realidades muito diversas. Manifesta-se pela repulsa explícita do
divino - forma mais extremada porém, mais amiúde, por deformações da idéia de
Deus e da religião, interpretadas como alienantes. Isto se nota bastante nos
ambientes intelectuais e universitários; em meios juvenis e operários. Outros
equiparam as religiões e as reduzem à esfera da vida privada. Finalmente,
cresce o número daqueles que se despreocupam do religioso, ao menos na vida
prática.
Aspectos positivos
e negativos
Sobretudo
a partir do Vaticano II, cresceu entre 1 nós o interesse pelo ecumenismo.
Provas disso temos na promoção conjunta da difusão, conhecimento e apreço da
Sagrada Escritura; nas orações privadas e públicas pela unidade, cada vez mais
freqüentes, cuja expressão mais frisante está na semana dedicada a tal
objetivo; em encontros e grupos de reflexão interconfessionais; em trabalhos
conjuntos para a promoçâo do homem, a defesa dos direitos humanos e a
construção da justiça e da paz. Em alguns lugares, chegou-se a constituir
conselhos bilaterais ou multilaterais de Igrejas, em diversos níveis.
Persistem,
contudo, em muitos cristãos a ignorância ou desconfiança com respeito ao
ecumenismo. Desconfiança que, em nossas comunidades, se origina em grande
parte do proselitismo, sério obstáculo para o verdadeiro ecumenismo. Outro
fato negativo com respeito a este é a existência de tendências alienantes em
alguns movimentos religiosos, que apartam o homem de seu compromisso para com
o próximo. Entretanto dão-se também, a pretexto de ecumenismo, aproveitamentos
ou instrumentalizações políticas que desvirtuam o caráter do diálogo.
Os
"movimentos religiosos livres" manifestam não raro desejo de
comunhão, de participação, de liturgia vivida, que se devem levar em
consideração. Não podemos ignorar, contudo, no tocante a estes grupos,
proselitismos muito acentuados, fundamentalismo bíblico e literalismo escrito
com respeito a suas doutrinas.
Tanto
em nível continental como em algumas nações em particular, tem começado a
estruturar-se o diálogo com o judaísmo. Contudo, verifica-se a persistência de
certa ignorância acerca de seus valores permanentes e algumas atitudes deploradas
pelo próprio Concílio.
O
monoteísmo islâmico, a busca de absoluto e de respostas aos enigmas do coração
humano, características das grandes religiões não-cristãs, constituem pontos
de aproximação para um diálogo que, em forma incipiente, já acontece em alguns
lugares.
Nas
outras formas religiosas ou para-religiosas, nota-se a busca de respostas para
as necessidades concretas do homem, um desejo de contato com o mundo da
transcendência e do espiritual. Observa-se todavia nelas, junto com um
proselitismo muito acentuado, a tentativa de subjugar pragmaticamente a
transcendência espiritual do homem. Para estabelecer um discernimento adequado
do fenômeno da descrença, com vista a um diálogo efetivo, é preciso ter
presente a variedade de causas e motivos que a produzem, tais como as
inter-relações profundas entre as objetivações do pecado no campo econômico,
social, político e ideológico-cultural, assim como as ambivalências de qualquer
procura sincera da verdade e da promoção da liberdade. Talvez a própria Igreja
não se possa considerar isenta de culpa nesta ordem de coisas. Não raras vezes os descrentes sobressaem pelo exercício de
valores humanos que jazem na linha do Evangelho. Entretanto, a nossa época não
é estranha a formas de ateísmo militante e humanismos que obstruem o
desenvolvimento integral da pessoa.
1.3. Critérios doutrinais
evangelho e diálogo.
Em
qualquer evangelização ressoa a palavra de Cristo, que é por sua vez a Palavra
do Pai. Esta palavra procura a resposta da fé. Entretanto, a mesma palavra,
proclamada pela Igreja, pretende outrossim entrar num fecundo intercâmbio com
as manifestações religiosas e culturais que caracterizam o nosso hedierno mundo
pluralista. Isto é o diálogo, que sempre tem um caráter de testemunho, dentro
do máximo respeito à pessoa e à identidade do interlocutor. O diálogo tem suas
exigências de lealdade e integridade da parte de ambos os interlocutores. Não
se opõe à universalidade da proclamação do Evangelho, e sim completa-a por
outra via e salva sempre a obrigação que incumbe à Igreja de partilhar o
Evangelho com todos 3''. Oportuno é recordar aqui que foi precisamente no
âmbito da missão que nasceu, no século passado pela graça do Espírito Santo, a
preocupação ecumênica; não se pode
pregar um Cristo dividido.
Sendo
assim, a Igreja, no Concílio, insiste com os pastores e fiéis para que
"reconhecendo os sinais dos tempos, participem diligentemente no trabalho
ecumênico", a fim de "promover a restauração da unidade entre todos
os cristãos", "um dos principais propósitos do Concílio".
Com
respeito ao judaísmo, o Vaticano II "lembra o vínculo que une
espiritualmente o povo do Novo Testamento à raça de Abraão" e por isso
"deseja fomentar e recomendar o mútuo conhecimento e apreço" (NA 4)
entre os fiéis de ambas as religiões.
A vontade salvífica universal de Deus
atinge todos os homens; a Igreja está persuadida de que, tendo Cristo morrido
por todos e sendo a vocação última do homem uma só, isto é, divina, o Espírito
Santo a todos oferece as possibilidades de serem associados, numa forma
conhecida, só por Deus ao mistério pascal. Sendo a fé pascal um ato livre, é
preciso que a Igreja, ao dialogar, se aproxime dos não-crentes com o maior
respeito de sua liberdade pessoal e procurando compreender suas motivações e
razões. Além disso, a não-crença constitui uma interpelação e um desafio à
fidelidade e autenticidade dos crentes e da Igreja.
1 . 4. Aspectos pastorais
Incentivar
uma atitude mais simples, humilde e autocrítica na Igreja e nos cristãos, como
condição para um diálogo religioso fecundo.
Promover,
nos diversos níveis e setores em que se estabelece o diálogo, um decidido
compromisso. comum de defesa e promoção dos direitos fundamentais de todo
homem e de todos os homens, especialmente dos mais necessitados, colaborando na
edificação duma nova sociedade mais justa e mais livre.
Procurar
uma exposição adequada da doutrina católica, que apresente uma justa
"hierarquia de verdades" (Uft 11) e uma resposta válida aos problemas
que se lhe oferecem da situação concreta latino-americana. Procurar também a
educação, formação e informação necessárias com relação ao ecumenismo e ao
diálogo religioso em geral, especialmente para os agentes de pastoral.
Promover,
numa perspectiva ecumênica, um testemunho comum mediante a oração, semana pela
unidade, ação bíblica conjunta, grupos de estudo e reflexão e, onde for
possível, comissões e conselhos interconfessionais em diversos níveis.
Estudar
diligentemente o fenômeno dos "movimentos religiosos livres" e as
causas que motivam o seu rápido crescimento, para responder em nossas
comunidades eclesiais aos anseios e questionamentos aos quais esses movimentos tentam dar uma resposta, tais como
liturgia viva, fraternidade sentida e participação missionária ativa.
Favorecer
o diálogo religioso com os judeus, tendo presentes os princípios e pontos
contidos nas "orientações e sugestões para a aplicação da Declaração
N'ostra Aetate".
Informar
e orientar nossas comunidades, baseados num lúcido discernimento, a respeito
das formas religiosas ou para-religiosas acima mencionadas e das distorções que
elas contêm para a vivência da fé cristã.
Ativar
uma presença mal decidida nos centros onde nascem as correntes culturais e
donde emergem as novas lideranças. Neste sentido, torna-se necessária uma
pastoral orgânica da cultura, do movimento dos operários e da juventude.
Tomar
consciência da realidade e extensão do fenômeno da descrença, com vistas à
purificação da fé dos crentes; à coerência entre fé e vida e à colaboração
"em verdadeira paz, para a edificação do mundo" (CG 92) .
Finalmente,
considerar a dimensão ecumênica, assim como a abertura para o diálogo com o
mundo não-cristão e da descrença, como uma perspectiva global do múnus
evangelizador, mais do que tarefas setoriais.
QUARTA PARTE
IGREJA MISSIONÁRIA A SERVIÇO DA
EVANGELIZAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
O
Espírito do Senhor impele o Povo de Deus, na história, a discernir os sinais
dos tempos e a descobrir, nos mais profundos anseios e problemas dos seres
humanos, o plano de Deus sobre a vocação do homem na construção da Sociedade,
para torná-la mais humana, justa e fraterna.
Assim,
na América Latina, a pobreza aparece palpável como marca impressa nas imensas
maiorias, as quais estão, ao mesmo tempo, abertas não só às bem-aventuranças e
à predileção do Pai, mas também à possibilidade de serem os verdadeiros
protagonistas de seu próprio desenvolvimento.
A
evangelização dos pobres foi para Jesus um dos sinais messiânicos e será também
para nós sinal de autenticidade evangélica.
Além
disto, a juventude latino-americana deseja construir um mundo melhor e busca,
por vezes sem sabê-1o, os valores evangélicos da verdade, justiça e amor. Sua
evangelização não só satisfará seus generosos anseios de realização pessoal,
mas garantirá a conservação duma fé vigorosa em nosso Continente.
Os
pobres e os jovens constituem, portanto, a riqueza e a esperança da Igreja na
América, Latina, e sua evangelização é, por conseguinte, prioritária. A Igreja
convoca também todos os seus filhos dentro de suas responsabilidades
peculiares - a serem fermento no mundo e a participarem como construtores duma
nova sociedade, em nível nacional e internacional. Mormente em nosso Continente,
por ser na, maioria constituída de cristãos, os homens devem ser germe, luz e
força transformadora.
CONTEÚDO
Capítulo
I Opção preferencial pelos pobres
Capítulo
II Opção preferencial pelos jovens
Capítulo
III Ação da Igreja junto aos construtores da, sociedade pluralista na AL
Capítulo IV Ação em prol da pessoa na sociedade nacional e internacional
CAPÍTULO I
OPÇAO
PREFERENCIAL PELOS POBRES
1.1. De Medellin a Puebla
A
Conferência de Puebla volta a assumir, com renovada esperança na. força
vivificadora do Espírito, a posição da II Conferência Geral que fez uma clara e
profética opção preferencial e solidária pelos pobres, não obstante os desvios
e interpretações com que alguns desvirtuaram o espírito de Medellin, e o
desconhecimento e até mesmo a hostilidade de outros. Afirmamos a necessidade
de conversão de toda a Igreja para uma opção preferencial pelos pobres, no intuito de sua integral libertação.
A
imensa maioria de nossos irmãos continua vivendo em situação de pobreza e até
miséria, que se veio agravando. Queremos tomar consciência do que a Igreja
latino-americana fez ou deixou de fazer pelos pobres depois de Medellin, como
ponto de partida para a busca de pistas opcionais eficazes em nossa ação
evangelizadora, no presente e no futuro da América Latina.
Verificamos
que episcopados nacionais e numerosos setores de leigos, religiosos,
religiosas e sacerdotes tornaram mais profundo e realista o seu compromisso
com os pobres. Esse testemunho incipiente, mas real, levou a Igreja
latino-americana à denúncia das graves injustiças derivadas de mecanismos
opressores.
Os
pobres, também alentadas pela Igreja, começaram a organizar-se para uma
vivência integral de sua fé e, por isso, para reivindicar os seus direitos. A denuncia profética da Igreja e seus
compromissos concretos com o pobre causaram-lhe, em não poucos casos,
perseguições e vexames de vários tipos: os próprios pobres têm sido as
primeiras vítimas de tais vexames.
Isso
tudo foi causa de tensões e conflitos dentro e fora da Igreja. Acusaram-na com
freqüência, seja de estar do lado dos poderes sócio-econômicos e políticos,
seja dum perigoso desvio ideológico marxista.
Na
Igreja da América Latina, nem todos nos temos comprometido bastante com os
pobres; nem sempre nos preocupamos com eles e somos com eles solidários. O
serviço do pobre exige, de fato, uma conversão e purificação constante, em
todos os cristãos, para conseguir-se uma identificação cada dia mais plena com
Cristo pobre e com os pobres.
1.2.
Reflexão doutrinal Jesus evangeliza os
pobres
O
compromisso evangélico da Igreja, como disse o papa, deve ser como o de Cristo:
um compromisso com os mais necessitados (cf. Lc 4,18-21; Discurso Inaugural, III,
3) . Por conseguinte, a Igreja deve ter os olhos em Cristo quando se pergunta
qual há de ser a sua ação evangelizadora. O Filho de Deus demonstrou a grandeza
deste compromisso ao fazer-se homem, pois identificou-se com os homens
tornando-se um deles, solidário com eles e assumindo a situação em que se
encontram, em seu nascimento, em sua vida e, sobretudo, em sua paixão e morte,
na qual chegou à expressão máxima da pobreza.
Só
por este motivo, os pobres merecem uma atenção preferencial, seja qual for a
situação moral ou pessoal em que se encontrem. Criados à imagem e semelhança de
Deus para serem seus filhos, esta imagem faz obscurecida e também escarnecida.
Por isso Deus toma sua defesa e os ama. Assim é que os pobres são os primeiros
destinatários da missão e sua evangelização é o sinal e prova por excelência
da missão de Jesus.
Este
aspecto central da evangelização foi sublinhado por S. S. João Paulo II:
"Desejei vivamente este encontro porque me sinto solidário convosco e porque,
sendo pobres, tendes direito a meu particular desvelo; e o motivo é este: o
papa vos ama porque sois os prediletos de Deus. Ele mesmo, ao fundar sua
família, a Igreja, tinha presente a humanidade pobre e necessitada. Para
remi-1a, enviou precisamente seu Filho, que nasceu pobre e viveu entre os pobres
para nos tornar ricos com sua pobreza (Cf. 2 Cor 8,9) Alocução Bairro Santa Cechia AAS,
LXXI, p. 220).
De
Maria, que em seu canto do Magnificat proclama que a salvação de Deus tem
muito a ver com a justiça para com os pobres, "parte também o compromisso
autêntico com os outros homens, nossos irmãos, especialmente pelos mais pobres
e necessitados e pela necessária transformação da sociedade" (João Paulo
II, Homilia Zapopán 4 - ASS LXXI, p. 230).
A serviço do irmão pobre
Ao
aproximar-nos do pobre para acompanhá-1o e servi-1o, fazemos o que Cristo nos
ensinou, quando se fez irmão nosso, pobre como nós. Por isso o serviço dos
pobres é medida privilegiada, embora não exclusiva, de nosso seguimento de
Cristo. O melhor serviço do irmão é a evangelização que o dispõe a
realizar-se como filho de Deus, o liberta das injustiças e o promove
integralmente.
E
de suma importância que este serviço do irmão siga a linha que o Concílio
Vaticano II nos traça: "Cumprir antes de mais nada as exigências da justiça,
para não ficar dando como ajuda de caridade aquilo que já se deve em razão da
justiça; suprimir as causas e não só os efeitos dos males e organizar os
auxílios de forma tal que os que os recebem se libertem progressivamente da
dependência externa e se bastem a si
mesmos" (AA 8) .
O
compromisso com os pobres e oprimidos e o surgimento das Comunidades de Base
ajudaram a Igreja a descobrir o potencial evangelizador dos pobres, enquanto
estes a interpelam constantemente, chamando-a à conversão e porque muitos deles
realizam em sua vida os valores evangélicos de solidariedade, serviço,
simplicidade e disponibilidade para acolher o dom de Deus.
A pobreza cristã
Para
o cristão, o termo "pobreza" não é somente expressão de privação e
marginalização de que nos precisemos libertar. Designa também um modelo de vida
que já desponta no Antigo Testamento no tipo dos "pobres de Javé" e é
vivido e proclamado por Jesus como bem-aventurança. São Paulo resumiu este
ensinamento dizendo que a atitude do cristão deve ser de usar os bens deste
mundo (cujas estruturas são transitórias) sem absolutizá-los, pois são apenas
meios para se chegar ao Reino. Este modelo de vida pobre é exigido pelo Evangelho
de todos os que crêem em Cristo e, por isso, podemos chamá-1o "pobreza.
evangélica". Os religiosos vivem de maneira radical esta pobreza exigida
de todos os cristãos, ao se comprometerem por seus votos e viver os conselhos
evangélicos. A pobreza evangélica
une a atitude de abertura confiante em Deus com uma vida simples, sóbria e
austera, que aparta a tentação da cobiça e do orgulho.
A pobreza evangélica põe-se em prática
também pela comunicação e participação dos bens materiais e espirituais; não
por imposição, mas por amor, para que a abundância de uns remedeie a necessidade
dos outros.
A Igreja se alegra por ver em muitos
filhos seus, sobretudo da classe média mais modesta, a vivência concreta desta
pobreza cristã.
No
mundo de hoje, esta pobreza é um desafio ao materialismo e abre as portas a
soluções alternativas da sociedade de consumo.
1.3. Linhas pastorais Objetivo
A
opção preferencial pelos pobres tem como objetivo o anúncio de Cristo
Salvador, que os iluminará sobre a sua dignidade, os ajudará em seus esforços
de libertação de todas as suas carências e os levava à comunhão com o Pai e os
irmãos, mediante a vivência da pobreza evangélica. "Jesus Cristo veio
para compartilhar nossa condição humana com seus sofrimentos, suas
dificuldades, sua morte. Antes de transformar a existência cotidiano, ele soube
falar ao coração dos pobres, libertá-los do pecado. abrir seus olhos para um
horizonte de luz e enchê-los de alegria e esperança. Hoje, Jesus Cristo faz o
mesmo. Está presente em vossas Igrejas, em vossas famílias, em vossos corações" (João Paulo II, Alocução Operários Monterrey, 8 - AAS LXXI, p. 244).
Esta
opção, exigida pela escandalosa realidade do desequilíbrios econômicos da
América Latina, deve levar a estabelecer uma convivência humana digna e a
construir uma sociedade justa e livre.
A necessária mudança das estruturas
sociais, políticas e econômicas injustas não será verdadeira e plena se não for
acompanhada pela, mudança de mentalidade pessoal e coletiva com respeito ao
ideal duma vida humana digna e feliz, que por sua vez dispõe à conversão.
A exigência evangélica da pobreza, como
solidariedade com o pobre e como rejeição da situação em que vive a maioria do
Continente, liberta o pobre de ser individualista em sua vida e ser atraído e
seduzido pelos falsos ideais duma sociedade de consumo. Da mesma forma, o
testemunho duma Igreja pobre pode evangelizar os ricos, que têm o coração
apegado às riquezas, convertendo-os e libertando-os desta escravidão e de seu
egoísmo.
Meios
Para
viver e anunciar a exigência da pobreza cristã, a Igreja deve rever suas
estruturas e a vida de seus membros, sobretudo dos agentes de pastoral, com
vistas a uma conversão efetiva.
Esta
conversão traz consigo a exigência de um estilo de vida austero e uma total
confiança no Senhor, já que na sua ação evangelizadora a Igreja contará mais
com o ser e poder de Deus e de sua graça do que com o "ter mais" e o
poder secular. Assim, apresentará uma imagem autenticamente pobre, aberta a
Deus e ao irmão, sempre disponível, onde os pobres têm capacidade real de
participação e são reconhecidos pelo valor que têm.
Ações concretas
Comprometidos
com os pobres, condenamos como antievangélica a pobreza extrema que afeta numerosíssimos
setores em nosso Continente. Envidamos esforços para conhecer e denunciar os
mecanismos geradores dessa pobreza. Reconhecemos a solidariedade de outras
Igrejas, unimos os nossos esforços aos dos homens de boa vontade para
desarraigar a pobreza e criar um mundo mais justo e fraterno.
Apoiamos
as aspirações dos operários e camponeses que querem ser tratados como homens
livres e responsáveis, chamados a participar nas decisões que concernem à sua
vida e futuro e animamos a todos em sua própria superação.
Defendemos
o seu direito fundamental de "criar livremente organizações de defesa e
promoção dos seus interesses e para contribuir responsavelmente para o bem
comum" (João Paulo II, Alocução Operários
Monterrey, 3 AAS, LXXI, p. 242)
.
As
culturas indígenas possuem valores indiscutíveis; são a riqueza dos povos.
Comprometemo-nos a considerá-las com respeito e simpatia e a promovê-las,
sabendo "quando é importante a cultura como veículo de transmissão da fé,
para que os homens progridam no conhecimento de Deus. Neste ponto, não pode
haver distinções de raças e culturas" (João Paulo II. Alocução Oaxaca, 2 - AAS, LXXI, p. 208).
Com
seu amor preferencial, mas não exclusivo, pelos pobres, a Igreja presente em
Medellin foi, como disse o Santo Padre, um chamado à esperança, rumo a metas
mais cristãs e mais humanas. A III
Conferência Episcopal de Puebla quer manter vivo este chamado e abrir novos
horizontes à esperança.
CAPÍTULO II
OPÇAO
PREFERENCIAL PELOS JOVENS
Apresentar
aos jovens o Cristo vivo, como único Salvador, para que, evangelizados, evangelizem
e contribuam, como em resposta de amor a Cristo, para a libertação integral do
homem e da sociedade, levando uma vida de comunhão e participação.
2.1. Situação da juventude
Características
da juventude: a juventude não é só
um grupo de pessoas de idade cronológica. E também uma atitude frente à vida,
numa etapa não definitiva, mas transitória. Possui traços muito característicos:
Um
inconformismo que a tudo questiona.; um espírito de aventura que a leva a
compromissos e situações radicais; uma capacidade criadora com respostas novas
para o mundo em transformação, que aspira a sempre melhorar em sinal de esperança.
Sua aspiração pessoal mais espontânea e forte é a liberdade, emancipada de
qualquer tutela exterior. É sinal de alegria e felicidade. Muito sensível aos
problemas sociais. Exige autenticidade e simplicidade, rejeitando com rebeldia
uma sociedade invadida por hipocrisias e contravalores.
Este
dinamismo a torna capaz de renovar "as culturas" que, doutra forma.,
envelheceriam.
A juventude no corpo social
O
papel normal desempenhado pela juventude na sociedade é dinamizar o corpo
social. Quando os adultos não são autênticos nem abertos para o diálogo com os
jovens, impedem que o dinamismo criador do jovem faça progredir o corpo social.
Ao perceberem que não são tomados a sério, os jovens se lançam por diversos
caminhos: ou são perseguidos por diversas ideologias, especialmente as radicalizadas,
já que, sendo sensíveis às mesmas por seu idealismo natural, nem sempre têm a
suficiente preparação para um claro discernimento, ou mostram-se indiferentes
para com o sistema vigente ou se acomodam a ele com dificuldade e perdem a
capacidade dinamizadora.
O
que mais desorienta o jovem é a ameaça à sua exigência de autenticidade por
parte do meio adulto, em grande parte incoerente e manipulador e por parte do
conflito de gerações, da civilização de consumo, duma certa pedagogia do
instinto, da droga, do sexualismo, da tentação de ateísmo.
Hoje
em dia, a juventude é manipulada especialmente na área política e no emprego do
"tempo livre". Uma parte da juventude tem legítimas inquietações
políticas e consciência de poder social. Sua falta de formação nesses campos e
a ausência de assessoria equilibrada a levam a radicalizações ou frustrações. O
jovem ocupa grande parte do seu "tempo livre" com o esporte e uso dos
meios de comunicação social. Estes são, para alguns, instrumentos de educação
e recreação sadia; para outros, elementos de alienação.
A família é o corpo social primário no
qual se origina e se educa e juventude. Da sua estabilidade, tipo de
relacionamento com a juventude, vivência e abertura aos seus valores depende em
grande parte o fracasso ou êxito da realização desta juventude na sociedade ou
na Igreja.
A juventude feminina está passando por
uma crise de identidade, por causa da confusão reinante acerca da missão da mulher
hoje. Os elementos negativos referentes à libertação feminina e um certo
machismo ainda existente impedem uma sadia promoção feminina, como parte
indispensável da construção da sociedade.
A juventude da América Latina
A
juventude da América Latina não pode ser considerada em abstrato. Há
diversidade de jovens, caracterizados por sua situação social ou pelas experiências
sócio-políticas que vivem seus respectivos países.
Se
observarmos a situação social, verificamos que, ao lado daqueles que, por sua
condição econômica, se desenvolvem normalmente, há muitos jovens indígenas,
camponeses, mineiros, pescadores e operários que, por sua pobreza, se vêem
obrigados a trabalhar como adultos. Ao lado de jovens que vivem folgadamente,
há estudantes, sobretudo de subúrbios, que já vivem na insegurança dum futuro
emprego ou não encontram seu caminho por falta de orientação vocacional.
Por
outro lado, é indubitável haver jovens que se sentiram frustrados pela falta de
autenticidade de alguns líderes seus ou se sentiram enfastiados por uma
civilização de consumo. Outros, pelo contrário, em resposta às múltiplas formas
de egoísmo, desejam construir um mundo de paz, justiça e amor. Finalmente,
comprovamos que não poucos descobriram a alegria da entrega a Cristo, não
obstante as variadas e rudes exigências de sua cruz.
Os jovens e a Igreja
A Igreja vê na juventude uma enorme
força renovadora, símbolo da própria Igreja. E a Igreja faz isto não por
tática mas por vocação, já que é "chamada à constante renovação de si
mesma, isto é, a um incessante rejuvenescimento" (João Paulo II Alocução
Juventude, 2 - AAS, LXXI, p. 218) . O serviço prestado com humildade à
juventude deve fazer com que mude na Igreja qualquer atitude de desconfiança
ou incoerência para com os jovens.
Atualmente,
contudo, os jovens consideram a Igreja de diversas maneiras: uns a amam
espontaneamente como ela é, sacramento de Cristo; outros a questionam para que
seja autêntica; e não faltam os que procuram um Cristo vivo separado do seu
corpo que é a Igreja. Há uma massa indiferente, passivamente acomodada à civilização de consumo ou outros
sucedâneos, desinteressada da exigência evangélica.
Existem
jovens socialmente muito inquietos, mas reprimidos pelos sistemas de governo;
estes buscam a Igreja como espaço de liberdade para poderem expressar-se sem
manipulações e protestar social e politicamente. Alguns, pelo contrário, pretendem
utilizá-1a como instrumento de contestação. Finalmente, uma minoria muito
ativa, influenciada por seu ambiente ou por ideologias materialistas e
atéias, nega e combate o Evangelho.
Os
jovens desejosos de se realizar na Igreja podem ' ficar frustrados por não
encontrarem uma boa planificação e programação pastoral que corresponda à
realidade histórica em que vivem. Igualmente sentem a falta de assessores
preparados, embora em não poucos grupos e movimentos juvenis existam
assessores competentes e abnegados.
2 - 2 . Critérios pastorais
Queremos
dar uma resposta à situação da juventude, graças aos três critérios de verdade
propostos por S. S. Joâo Paulo II: verdade sobre Jesus Cristo, verdade sobre a
missão da Igreja e verdade sobre o homem.
Embora
não se dê conta disso, a juventude vai ao encontro de um Messias, Cristo, o
qual caminha em direção dos jovens. Somente ele torna o jovem verdadeiramente
livre. Este é o Cristo que deve ser apresentado aos jovens como libertador
integral que, pelo espírito doa bem-aventuranças, oferece a todo jovem a
inserção num processo de constante conversão; compreende suas fraquezas e
oferece-lhe um encontro muito pessoal com
Ele
e com a comunidade, nos sacramentos da reconciliação e da Eucaristia. O jovem
deve experimentar Cristo como amigo pessoal que nunca falha, caminho de total
realização. Com ele e pela lei do amor, o jovem caminha em direção do Pai comum
e dos irmãos. Cem isto, sente-se verdadeiramente feliz.
O jovem na Igreja
4
Os jovens devem sentir que são Igreja, experimentando-a como lugar de comunhão
e participação. Por isso, a Igreja aceita suas críticas, por reconhecer-se
limitada em seus membros, e os quer gradualmente responsáveis na sua
construção até que os envie como testemunhas e missionários, especialmente à
grande massa juvenil. Nela, os jovens sentem-se povo novo, o povo das
bem-aventuranças, sem outra segurança que a de Cristo; um povo dotado de
coração de pobre, contemplativo, em atitude de escutar e discernir
evangelicamente, construtor de paz, portador de alegria e de um projeto
libertador integral em favor, sobretudo, de seus irmãos jovens. A Virgem Mãe bondosa, indefectível na
fé, educa o jovem para ser Igreja.
Assumindo
as atitudes de Cristo, o jovem promove e defende a dignidade da pessoa humana.
Em virtude do batismo, é filho do único Pai, irmão de todos os homens e
contribui para a edificação da Igreja. Sente-se cada vez mais "cidadão
universal" instrumento na construção da comunidade latino-americana e
universal.
2.3. Opções pastorais Opção
preferencial
A
Igreja confia nos jovens. Eles são a sua esperança. A Igreja vê na juventude da América Latina um verdadeiro potencial e
o futuro de sua evangelização. Por ser verdadeira dinamizadora do corpo social
e especialmente do corpo eclesial, com vistas à sua missão evangelizadora no
Continente.
Por
isso queremos oferecer uma linha pastoral global: desenvolver, de acordo com a
pastoral diferencial e orgânica, uma pastoral de juventude que leve em conta a
realidade social dos jovens de nosso continente; atenda ao aprofundamento e
crescimento da fé para a comunhão com Deus e os homens; oriente a opção
vocacional dos jovens; lhes ofereça elementos para se converterem em fatores de
transformação e lhes proporcione cais eficazes para a participação ativa na
Igreja e na transformação da sociedade.
Aplicações concretas
Comunhão e compromisso
A
Igreja evangelizadora faz um veemente apelo para que os jovens nela busquem o
lugar de sua comunhão com Deus e os homens a fim de construir “a civilização do
amor” e edificar a paz na justiça. Convida-os a que se comprometam eficazmente
numa ação evangelizadora que não exclua ninguém, de acordo com a situação em
que vivem, e tendo predileção pelos mais pobres.
A
integração na Igreja será canalizada através de movimentos juvenis ou
comunidades que devem estar integradas
na pastoral de conjunto diocesana ou nacional, com projeções para uma
integração latino-americana. Esta integração far-se-á especialmente por meio
da:
* pastoral
familiar;
* pastoral
da Igreja diocesana e paroquial em seus diversos aspectos de catequese,
educação, vocações, etc.;
*
inter-relacionamento dos diversos movimentos de juventude ou comunidades,
considerando-lhes a situação concreta: estudantes secundários,
universitários, operários, camponeses, que tem condicionamentos próprios e
exigências diferentes em face do processo evangelizador e que, por isso, pedem
uma pastoral específica.
Esta
pastoral de movimentos e comunidades deve levar em conta os jovens numa
inter-relação fecunda, já que os grupos devem ser fermento no conjunto e
propiciar uma evangelização total. Providencie-se um acolhimento e atenção aos
jovens que, por diversos motivos, devem emigrar, temporária ou
definitivamente, e que são vítimas da solidão, da falta de ambientação, da
marginalização, etc.
Formação e
participação
A
inserção na Igreja e a tarefa de compromisso efetivo na edificação de nova
civilização do amor e da paz é muito exigente e requer profunda formação e
participação responsável. Por este motivo: A pastoral de juventude na linha da evangelização deve ser um
verdadeiro processo de educação na fé, que leva à própria conversão e a um
compromisso evangelizador.
O
fundamento desta educação deve ser a apresentação ao jovem de Cristo vivo,
Deus e homem, modelo de autenticidade, simplicidade e fraternidade; único que
salva, libertando de todo pecado e de suas conseqüências e que compromete para
a libertação ativa dos irmãos por meios não violentos. A pastoral da juventude empenhar-se-á em que o jovem cresça numa
espiritualidade autêntica e apostólica, fundada no espírito de oração e no conhecimento
da Palavra de Deus e no amor filial a Maria Santíssima que, unindo-o a Cristo,
o torne solidário com seus irmãos.
A pastoral da juventude deve ajudar
também a formar os jovens de maneira gradual para a ação sócio-política e para
as mudanças de estruturas, de menos humanas em mais humanas, segundo a Dou
trina Social da Igreja.
Formar-se-á
no jovem um sentido crítico frente aos meios de comunicação social e aos
contravalores culturais que as diversas ideologias tentam transmitir-lhe,
especialmente a liberal capitalista e a marxista, para que não seja por elas
manipulado.
Usar-se-á
uma linguagem simples e adaptada a uma pedagogia que tenha presente as
diferenças psicológicas do homem e da mulher e se caracterize pela mútua
confiança e respeito recíproco; numa conversão ao meio em que vive e atua,
para centrar assim sua missão dinâmica evangelizadora. Estimule-se a capacidade
criadora dos jovens, para que eles
mesmos imaginem e descubram os meios mais diversos e aptos para tornar
presente, de forma construtiva, a missão que exercem na sociedade e na Igreja.
Para isso, lhes sejam facilitados os meios e áreas onde ponham em prática o seu
compromisso. Recomenda-se a presença missionária dos jovens em lugares
especialmente necessitados. Procure-se dar aos jovens uma boa orientação
espiritual a fim de que possam amadurecer a sua opção vocacional, quer leiga,
quer religiosa ou sacerdotal.
Recomenda-se
dar a maior importância a todos os meios que favoreçam a evangelização e o
crescimento na fé: retiros, jornadas, encontros, cursilhos, convivências,
etc.
Como
tempo forte para o amadurecimento na fé que leva necessariamente a um
compromisso apostólico - deve-se destacar a celebração consciente e ativa do
sacramento da confirmação, precedida duma esmerada catequese e sempre de acordo
com as diretrizes da Santa Sé e das Conferências Episcopais.
Deve-se
procurar formar com prioridade animadores juvenis qualificados (sacerdotes,
religiosos ou leigos) que sejam guias e amigos da juventude, conservando sua
própria identidade e prestando este serviço com madureza humana e cristã.
A juventude não se pode considerar em
abstrato, nem é um grupo isolado no corpo social. Por isso, ela requer uma
pastoral articulada que permita uma comunicação efetiva entre os diversos
períodos da juventude e uma continuidade de formação e compromisso depois, na
idade adulta.
Seja
a pastoral juvenil uma pastoral da alegria e da esperança, que transmita a
mensagem alegre da salvação a um mundo muitas vezes triste, oprimido e
desesperançado, em busca da sua libertação.
CAPÍTULO III
AÇAO
DA IGREJA JUNTO AOS CONSTRUTORES DA SOCIEDADE PLURALISTA NA AMERICA LATINA
A
Igreja colabora por meio do anúncio da Boa Nova e mediante uma radical
conversão à justiça e ao amor, para transformar, a partir do seu íntimo, as
estruturas da sociedade pluralista, para que respeitem e promovam a dignidade
da pessoa humana e lhe ensejem a possibilidade de realizar a sua vocação
suprema de comunhão com Deus e dos homens entre si (Cf. EN 18, 19, 20) .
3.1.
Situação
Limitamo-nos
a enfocar alguns aspectos que mais diretamente desafiam nossa ação pastoral,
fazendo assim uma como síntese de questões tratadas em diversos lugares.
Desde
Medellin, percebem-se sobretudo duas tendências evidentes:
a)
Por um lado, a tendência à modernização, com forte crescimento econômico,
urbanização crescente do Continente, tecnificação das estruturas econômicas,
políticas, militares, etc . . .
b)
Por outro, a tendência à pauperização e crescente exclusão das grandes
maiorias latino-americanas da vida produtiva. Por isso, o povo pobre da
América Latina anseia por uma sociedade de maior igualdade, justiça e
participação em todos os níveis.
Essas
tendências contraditórias favorecem a apropriação, por uma minoria
privilegiada, de grande parte da riqueza, assim como dos benefícios criados
pela ciência e cultura; por outro lado, geram a pobreza duma grande maioria com
a consciência de sua exclusão e do bloqueio de suas crescentes aspirações de
justiça e participação. Não obstante, verificamos que as classes médias estão
aumentando em muitos países da América Latina.
Deste
modo, surge um conflito estrutural
grave: "A crescente riqueza de alguns poucos corre paralela com a crescente
miséria das massas" (João Paulo II, Discurso
Inaugural, III, 4. AAS LXXI, p. 200).
3.2. Critérios Doutrinais
Vivemos
numa sociedade pluralista, na qual se encontram diversas religiões, concepções
filosóficas, ideologias, sistemas de valores que, encarnando-se em diferentes
movimentos históricos, propõem-se construir a sociedade do futuro, rejeitando
a tutela de qualquer instância inquestionável. Sabemos que a Igreja, ao trazer
uma valiosa colaboração para a construção da sociedade, não se atribui
competência para propor modelos alternativos. Por isso, adotamos os critérios
doutrinais seguintes:
a)
Não reivindicamos privilégio algum para a Igreja; respeitamos os direitos de
todos e a sinceridade de todas as convicções, com pleno respeito para a
autonomia das realidades terrestres.
b)
Contudo, exigimos para a Igreja o direito de dar testemunho de sua mensagem e
de usar sua palavra profética de anúncio e denúncia em sentido evangélico, na
correção das falsas imagens da sociedade, incompatíveis com a visão cristã.
c)
Defendemos os direitos dos organismos intermediários, dentro do princípio de
subsidiariedade, inclusive dos criados pela própria Igreja, em colaboração com
tudo o que se refere ao bem comum.
Pastorais
Advogamos:
a)
A superação da distinção entre
pastoral de elites e pastoral popular. A
pastoral é uma só.
Penetra
em "quadros" ou "elites" evangelizadoras; afeta todos os
âmbitos da vida social; dinamiza a vida da sociedade e, ao mesmo tempo, põe-se
a seu serviço.
b)
A responsabilidade específica dos
leigos na construção da sociedade temporal, conforme inculca a Evangelii Nuntiandi.
c)
A preocupação preferencial em
defender e promover os direitos dos pobres, marginalizados e oprimidos.
d)
A preocupação preferencial pelos
jovens, da parte da Igreja, que neles vê uma força transformadora da
sociedade.
e)
A responsabilidade insubstituível da
mulher, cuja colaboração é indispensável para a humanização dos processos
transformadores, como garantia de que o amor é uma dimensão da vida e da
mudança e porque sua perspectiva é insubstituível para a representação cabal
das necessidades e esperanças do povo.
3.2. Opções e linhas de ação
Princípios gerais de ação
pastoral
Sabemos
que o povo, em sua dimensão total e em sua forma particular, mediante suas
organizações próprias, constrói a sociedade pluralista. Diante deste desafio,
temos consciência de que a missão da Igreja não se reduz a exortar os diversos
grupos sociais e categorias profissionais à construção duma sociedade nova,
para o povo e com o povo, nem se trata tão-somente de estimular cada um dos
grupos e categorias a darem, com honestidade e competência, sua contribuição
específica, mas a serem outrossim agentes duma conscientização geral de
responsabilidade comum perante um desafio que exige a participação de todos.
Temos
consciência de que a transformação das estruturas é uma expressão externa da
conversão interior. Sabemos que esta conversão começa por nós mesmos. Sem o
testemunho duma Igreja convertida, vãs seriam nossas palavras de pastores. Na
Igreja, como unidade dinamizadora e em vista duma eficácia permanente de sua
ação, assumimos a necessidade duma pastoral orgânica que compreenda, entre
outras coisas: princípios orientadores, objetivos, opções, estratégias,
iniciativas práticas, etc.
Linhas de ação pastoral
Princípios orientadores
A defesa e promoção da inalienável
dignidade da pessoa humana.
O
destino universal dos bens criados por Deus e produzidos pelos homens, que não
podem esquecer que "uma hipoteca social pesa sobre toda propriedade
privada" (João Paulo II, Discurso Inaugural
III, 4. AAS LXXI, p. 200). ; - O recurso às fontes da força divina: a
oração assídua, a meditação da palavra de Deus, que sempre questiona, e a
participação eucarística dos construtores da sociedade que, com suas
responsabilidades, acham-se rodeados de tentações que os inclinam a
encerrar-se no âmbito das realidades terrenas sem abertura para as exigências
do Evangelho.
A comunidade cristã conduzida pelo bispo
estabelecerá a ponte de contato e diálogo com os construtores da sociedade
temporal, a fim de iluminá-los com a visão cristã, estimulá-los com gestos
significativos e acompanhá-los com atuações eficazes.
Neste
contato e diálogo deve circular, numa atitude de escuta sincera e acolhedora, a
problemática trazida por eles do seu próprio ambiente temporal. Assim
poderemos descobrir os critérios, normas e caminhos por onde aprofundar e
atualizar a doutrina social da Igreja, no sentido da elaboração duma ética
capaz de formular as respostas cristãs aos grandes problemas da cultura
contemporânea. Exortamos a todos a lutarem contra a corrupção econômica em
seus diversos níveis, tanto na administração pública como nos negócios
particulares, pois com ela causa-se grave prejuízo à grande maioria.
-
Este diálogo requer iniciativas que permitam o encontro e relacionamento
estreito com todos os que colaboram na construção da sociedade, de tal sorte
que eles descubram a sua complementariedade e convergência. Pela mesma razão,
nesta ação, deve-se trabalhar prioritariamente com aqueles que detêm poder
decisório. Isto não exclui o reconhecimento do valor construtivo de tensões
sociais que, dentro das exigências da justiça, contribuem para garantir a
liberdade de direitos, especialmente dos mais fracos.
Objetivos, opções e estratégias
-
Formar nos diversos setores pastorais pessoas capazes de exercer nos mesmos
liderança como fermento evangelizador.
-
Elaborar, com pessoas de cada setor, normas de conduta cristã que sejam objeto
de reflexão e aplicação e que se submetam a permanente revisão.
-
Promover encontros, que reúnem pessoas de setores pastorais diversos, para
confrontar suas experiências e em vista da convergência de sua ação.
-
Estimular a elaboração de alternativas viáveis para a ação evangelizadora,
tendentes à renovação crista das estruturas sociais.
-
Promover a formação de sacerdotes e diáconos especializados, e os novos
ministérios confiados aos leigos, que se adaptem às necessidades pastorais de
cada setor.
-
Desenvolver movimentos especializados que reúnem os elementos disponíveis para
a evangelização do próprio ambiente.
-
Saber valorizar os meios pobres, humildes, populares, inclusive artesanais,
para comunicar a mensagem.
-
Preservar os recursos naturais criados por Deus para todos os homens, a fim de
transmiti-tos como herança às gerações vindouras.
Iniciativas práticas
A
Igreja leva sua palavra com simpatia e sem prevenção àqueles que ela sabe que
a esperam e precisam de sua orientação ou estímulo. Aos que elaboram,
difundem e realizam idéias, valores e decisões:
Aos
políticos e homens de governo, lembramos as palavras do Concílio Vaticano II:
"Só Deus é a fonte da vossa autoridade e o fundamento das vossas
leis" (Vaticano II, Mensagem à
Humanidade, nº 2, aos governantes) por mediação do povo. Afirmamos a
nobreza e dignidade do compromisso com uma atividade orientada para a
consolidação da concórdia interna e segurança externa, estimulando a ação
sensível e inteligente do político para melhor conduzir o Estado, para
conseguir o bem comum e para conciliar eficazmente a liberdade, a justiça e a
igualdade, numa genuína sociedade participada. "A comunidade
política e a Igreja são independentes e autônomas, cada qual em seu próprio
terreno. Todavia ambas, embora por títulos diferentes, acham-se a serviço da
vocação pessoal e social do homem. Este serviço, ambas o realizarão com tanto
maior eficácia, para o bem de todos, quanto melhor cultivarem uma sadia
cooperação entre si, levando em conta as circunstâncias de tempo e lugar" (GS 76).
Ao
mundo intelectual e universitário, para que atue com liberdade espiritual, cumpra
com autenticidade sua função criativa, se disponha para a educação política -
diferente da mera politização - e satisfaça a lógica interior da reflexão e o
rigor científico, já que deste mundo se esperam projetos e linhas teóricas
sólidas para a construção da nossa sociedade (Cf. Vet. II, Mensagem à
Humanidade: Aos Homens do pensamento e da ciência).
Aos
cientistas, técnicos e forjadores da sociedade tecnológica, para que incentivem
o espírito científico com amor à verdade, a fim de investigar os enigmas do
universo e dominar a terra; para que evitem os efeitos negativos duma sociedade
hedonista e a tentação tecnocrática e apliquem a força da tecnologia à criação
de bens e à invenção de meios destinados a resgatar o homem do subdesenvolvimento.
Deles se esperam notadamente estudos e investigações tendentes à síntese entre
á ciência e a fé. Exortamos a todos os pensadores conscientes do valor da
sabedoria - cuja fonte primeira e última é o Logos - e preocupados com a
criação do novo humanismo, a que atentem à grande afirmação da Gaudium et Spes: "O destino futuro
do mundo corre perigo, se não se formarem homens mais instruídos nesta
sabedoria" (15,c) . Para isso, é preciso um grande esforço de diálogo
interdisciplinar da teologia, filosofia e ciências, à procura de novas
sínteses.
Aos
responsáveis pelos meios de comunicação, para que elaborem e respeitem um
código de ética da informação e comunicação, para que tomem consciência de que
a neutralidade instrumental das meios os torna disponíveis para a bem ou para o
mal; para que sirvam à verdade, objetividade, educação e conhecimento
suficiente da, realidade.
Aos
criadores em arte, para que se esmerem em intuir os rumos do homem, pressintam
e interpretem suas crises, ampliem a dimensão estética da vida humana e
contribuam para a personalização do homem concreto.
Aos juristas, segundo o seu saber
especial, para que reivindiquem o valor da lei na relação entre governantes e
governados e para a justa disciplina da sociedade. Aos juízes, para que não comprometam
sua independência, julguem com eqüidade e inteligência e sirvam, através de
suas sentenças, para a educação de governantes e governados no cumprimento das
obrigações e conhecimento de seus direitos.
Aos
operários: no mundo que se urbaniza e se industrializa, cresce o papel dos
operários como principais artífices das prodigiosas transformações que o mundo
hoje experimenta" (Vat. II Mensagem
aos Trabalhadores, 6). Para
isto, devem empenhar sua experiência na busca de novas idéias; renovar-se a si
mesmos e contribuir de maneira ainda mais decidida para construir a América
Latina do porvir. Não esqueçam o que o Papa lhes disse no mesmo discurso: é
direito dos operários "criar livremente organizações para defender,
promover seus interesses, para contribuir responsavelmente para o bem
comum" (João Paulo II, Alocução Operários Monterrey 3-AAS LXXI, p. 241).
Aos camponeses: vós sais uma
força dinamizadora na, construção duma sociedade
mais participada. Advogando por vós, o Santo Padre dirigiu estas palavras aos
setores de poder: "Dá vossa parte, responsáveis pelos povos, classes
poderosas que mantendes por vezes improdutivas as terras que escondem o pão que
falta a tantas famílias: a consciência humana, a consciência dos povos, o
clamor do desvalido e, sobretudo, a voz de Deus, a voz da Igreja vos repete
comigo: não é justo, não é humano, não é cristão continuar com certas situações
claramente injustas. Devem-se pôr em prática medidas concretas, eficazes, em
nível local, nacional .e internacional, na vasta linha traçada pela Encíclica
Mater et Magistra... Irmãos e filhos muitos amados: trabalhai por vossa
elevação humana" (João Paulo II, Alocução
Oaxaca. - AAS LXXI, p. 210).
A sociedade econômica, para que os
economistas contribuam com um pensamento criativo a dar respostas rápidas às
exigências fundamentais do homem e da sociedade. Para que os empresários, tendo
presente a função social da empresa, atuem concebendo-a não só como fator de
produção e lucro, mas como comunidade de pessoas e como elemento duma sociedade
pluralista, unicamente viável quando não há concentração excessiva do poder
econômico.
Aos
militares: lembramo-lhes com Medellin que "sua missão é dar garantia às
liberdades políticas dos cidadãos, em vez de pôr-lhes obstáculos" (Pastoral de Elites, 20). Tenham eles
consciência de sua missão: garantir a paz e a segurança de todos. Jamais abusem
da força. Sejam antes defensores da força do direito. Propiciem outrossim uma
convivência livre, participativa e pluralista.
Aos funcionários, para que
assumam sua atividade como um serviço, porque a dignidade da função
e da vida pública reside no fato de que o seu destinatário natural é a
sociedade e, sobretudo, os que menos possuem e mais dependem do bom
funcionamento do serviço público.
A
todos, por fim, que contribuam para o funcionamento normal da sociedade:
profissionais liberais, comerciantes, para que assumam sua missão em espírito
de serviço ao povo, que deles espera a defesa de sua vida, de seus direitos e
a. promoçâo do seu bem-estar.
3.4. Conclusão
Na
conjuntura atual da América Latina, as mudanças poderão ser rápidas e profundas
em benefício de todos, especialmente dos pobres, por serem estes os mais
afetados, e dos jovens que, em breve, assumirão os destinos do Continente. Para
tanto, propomos a mobilização de todos os homens
de boa vontade. Que eles se unam, com novas esperanças, para essa tarefa
imensa. Queremos escutá-los com viva sensibilidade; unir-nos a eles em sua
ação construtiva.
Com
nossos irmãos que professam a mesma fé em Cristo, embora não pertençam à Igreja
Católica, esperamos unir esforços, preparando constantes e progressivas
convergências que apressem a chegada do Reino de Deus.
Aos
filhos da Igreja que se empenham em postos de vanguarda, queremos
transmitir-lhes nossa confiança em sua, ação, fazendo deles nossos mensageiros
de novas esperanças. Sabemos que, no Evangelho, na oração e na Eucaristia,
procurarão encontrar a fonte de constantes revisões de vida e a força de Deus
para sua ação transformadora.
CAPÍTULO IV
AÇAO
DA IGREJA EM FAVOR DA PESSOA NA SOCIEDADE NACIONAL È INTERNACIONAL
4.1. Introdução
João
Paulo II lembrou-nos que a dignidade humana é um valor evangélico e o Sínodo de
1974 nos ensinou que a promoção da justiça é parte integrante da
evangelização. Essa dignidade e esta
promoção da justiça devem verificar-se tanto na ordem nacional como na
internacional.
Ao
ocupar-nos da realidade da ordem nacional e internacional, fazemo-1o numa
atitude de serviço, como pastores, e não de um ponto de vista econômico, político ou meramente sociológico.
Esforçamo-nos para que haja entre os homens maior comunhão e participação nos
bens de toda ordem que Deus nos outorgou.
Por
isso, queremos encarar a situação da dignidade da pessoa humana e da promoção
da justiça em nossa realidade latino-americana, refletindo sobre a mesma à luz
de nossa fé e dos princípios fundados na 'própria natureza humana, para encontrar
critérios e serviços que nortearão nossa ação pastoral, hoje e no futuro
próximo.
4.2. Situação Em nível nacional
Recordamos
alguns pontos que já foram considerados em outras partes deste documento:
O
homem latino-americano sobrevive numa situação social que contradiz sua
condição de habitante dum Continente majoritariamente cristão: são evidentes
as contradições existentes entre estruturas sociais injustas e as exigências do
Evangelho.
Muitas
são as causas desta situação de injustiça, mas à raiz de todas elas encontra-se
o pecado, tanto em seu aspecto pessoal como nas próprias estruturas.
Verificamos
com profundo pesar que se agravou a situação violenta que se pode chamar
institucionalizada (subversiva e repressiva), na qual a dignidade humana é
violada até em seus direitos mais fundamentais.
Precisamos
assinalar de maneira especial que, depois dos anos cinqüenta, e não obstante as
realizações obtidas, têm fracassada as amplas esperanças do desenvolvimento e
aumentado a marginalização de grande parte da sociedade e a exploração dos
pobres.
A
falta de realização da pessoa humana em seus direitos fundamentais tem início
antes mesmo do nascimento do homem, pelo incentivo de evitar a concepção e
também de interrompê-1a por meio do aborto; prossegue com a desnutrição
infantil, o abandono prematuro, a carência de assistência médica., de educação
e moradia, que propiciam uma desordem constante, na qual não se pode estranhar
a proliferação da criminalidade, da prostituição, do alcoolismo e da
toxicomania.
Neste
contexto, impedido o acesso aos bens e serviços sociais e às decisões
políticas, agravam-se os atentados à liberdade de opinião, à liberdade religiosa.
à integridade física. Assassinatos, desaparecimentos, prisões arbitrárias,
atos de terrorismo, seqüestras, torturas disseminadas por todo . o Continente,
demonstram uma total falta de respeito pela dignidade da pessoa humana. Por
vezes até pretende-se justificar alguns desses atentados como exigências da
segurança nacional. Ninguém pode negar a concentração da propriedade
empresarial, rural. e urbana em mãos de poucos, o que torna imperioso
reivindicar verdadeiras reformas agrárias e urbanas; de igual forma, a
concentração do poder pelas tecnocracias civis e militares, que frustram as
exigências de participação e garantias dum Estado democrático.
Em nível internacional
O
homem latino-americano encontra uma sociedade cada vez mais desequilibrada na
sua convivência. Há "mecanismos que, por estarem impregnados, não dum
autêntico humanismo, mas de materialismo, produzem em nível internacional ricos
cada vez mais ricos, à custo de pobres cada vez mais pobres" (João Paulo
II, Discurso Inaugural, III, 4). Tais mecanismos se manifestam numa sociedade
muitas vezes programada à luz do egoísmo, nas manipulações da opinião pública,
em expropriações invisíveis e em novas formas de domínio supranacional, pois crescem
as distâncias entre as nações ricas e pobres. Acrescente-se, além disso, que
em muitos casos e poderio de empresas multinacionais se sobrepõe ao exercício
da. soberania das nações e ao pleno domínio de seus recursos naturais.
Como
conseqüência dos novos manejos e da exploração causada pelo sistema de
organização da economia e da política internacional, o subdesenvolvimento do
hemisfério pode agravar-se e até tornar-se permanente. Devido a isso, vemos o
ideal da integração latino-americana ameaçado, fato lamentável, motivado em
grande parte pelas ambições econômicas nacionalistas, pela paralisação dos
grandes planos de cooperação e por novos conflitos internacionais.
O
desequilíbrio sócio-político, em nível nacional e internacional, está criando
um grande número de desenraizados, tais como os emigrantes, número este que
pode crescer de forma imprevisível em futuro próximo. A esses devem acrescentar-se os desenraizados políticos, como os
asilados, refugiados, desterrados e também toda a gama de pessoas desprovidas
de documentos .Em situação de total abandono encontram-se os anciãos, os
inválidos, os nômades e as grandes massas de camponeses e indígenas "quase
sempre abandonados num nível de vida ignóbil e, por vezes, duramente ludibriados
e explorados" (Paulo VI, Discurso Camponeses, Bogotá 23.8. 1968).
Finalmente,
não se torna estranho neste complexo problema social o aumento dos gastos com
armamentos, como tampouco a criação artificial de necessidades supérfluas,
impostas de fora aos países pobres.
4.3. Critérios
Na sociedade nacional
A realização da pessoa consegue-se
graças ao exercício de seus direitos fundamentais, eficazmente reconhecidos,
tutelados e promovidos. Por isso a Igreja, perita em humanidade, deve ser a voz
daqueles que não têm voz (da pessoa, da comunidade perante a sociedade, das
nações fracas perante as poderosas) cabendo-lhe uma ação de docência, denúncia
e serviço em prol da comunhão e da participação.
Em face da situação de pecado, surge por
parte da Igreja o dever de denúncia, que deve ser objetiva, denodada e
evangélica; que não intenta condenar, mas sim salvar o culpado e a vítima. Tal
denúncia, feita após entendimento prévio entre os pastores, requer a
solidariedade interna da Igreja e o exercício da colegialidade.
A declaração dos direitos fundamentais
da pessoa humana, hoje e no futuro, é e será parte indispensável de sua missão
evangelizadora. A Igreja proclama,
entre outros, a exigência de realização dos seguintes direitos:
Direitos individuais: direito
à vida (a nascer, á procriação responsável), à integridade física e psíquica,
à proteção legal, à liberdade religiosa, à liberdade de opinião, à
participação nos bens e serviços, a construir o próprio destino, ao acesso à
propriedade e "outras formas de domínio privado sobre os bens
exteriores" (GS 71).
Direitos sociais: direito
à educação, à associação, ao trabalho, à moradia, à saúde, ao lazer, ao desenvolvimento,
ao bom governo, à liberdade e justiça social, à participação nas decisões que
concernem ao povo e às nações.
-
convoca a comunidade humana para que se revejam e orientem as instituições
internacionais e se criem formas de proteção que, baseadas na justiça,
garantam a promoçâo autenticamente humana da crescente multidão de
desamparados.
Recomenda-se
a colaboração entre as Conferências Episcopais, para o estudo de problemas
pastorais, especialmente dos que respeitam à justiça e que ultrapassam o nível
nacional.
Em
especial, compete à ação da Igreja com relação aos anônimos sociais, o dever
de acolhê-los e assisti-tos, de restaurar sua dignidade e sua fisionomia
humana, "porque quando um homem é ferido em sua dignidade, toda a Igreja
sofre" (Paulo VI, janeiro de 1977).
A Igreja deve empenhar-se para que este
grupo flutuante da humanidade se reintegre socialmente, sem perder os
próprios valores; deve velar pela restauração plena de seus direitos; colaborar
para que aqueles que não existem legalmente adquiram a necessária documentação,
a fim de que todos tenham acesso ao desenvolvimento integral, que a sua dignidade
de homens e filhos de Deus merece. Com isto ela cooperará para assegurar ao
homem uma existência digna, que o capacite para realizar-se no interior da
família e da sociedade. Também necessária é a ação da Igreja para que os
desenraizados e marginalizados do nosso tempo não se constituam permanentemente
em cidadãos de segunda categoria, já que eles são sujeitos de direitos, com
legítimas aspirações sociais, e têm direito a uma atenção pastoral adequada,
conforme os documentos pontifícios e as orientações propostas nas reuniões
latino-americanas sobre pastoral de migrações.
A
Igreja faz um apelo urgente à consciência dos povos e também às organizações
humanitárias para que:
-
se fortaleça e generalize o direito de asilo, instituição genuinamente latino-americana
(tratado do Rio de Janeiro, 1942), forma atual daquela proteção que a Igreja
anteriormente oferecia;
-
os países ampliem suas quotas de recepção de refugiados e emigrantes e se
agilize a implementação dos acordos e mecanismos de integração competentes
nessas ações;
-
se ataque pela raiz o problema ocupacional, com políticas específicas de posse
da terra, de produção e comercialização, que cubram as urgentes necessidades da
população e fixem o trabalhador em seu meio;
-
se incentive a cooperação fraterna das nações por ocasião de catástrofes;
-
se possibilite a anistia como sinal de reconciliação, para se conseguir a paz,
de acordo com o convite de Paulo VI na proclamação do Ano Santo de 1975;
-
se criem centros de defesa da pessoa humana, que trabalhem com o objetiva de
"que se derrubem as barreiras de exploração criadas, não raro, por
egoísmos intoleráveis, contra os quais se destroçam seus melhores esforços de
promoção" (João Paulo II, Alocução Oaxaca, 5) .
A todas as pessoas aflitas e aos que
sofrem por causa da violação de seus direitos, fazemos chegar nossa palavra de
compreensão e ânimo. Exortamos os responsáveis pelo bem comum e que ponham
todo o seu empenho, com vontade resoluta, para remediar as causas que geram
essas situações, e criem as condições necessárias para uma convivência
autenticamente humana.
QUINTA
PARTE
SOB
O DINAMISMO DO ESPÍRITO: OPÇÕES PASTOR,AIS
O
Espírito de Jesus Ressuscitado habita na sua Igreja. Ele é o Senhor e doador da
vida. É a força, de Deus que impele para a plenitude a sua Igreja; é o Amor,
criador de comunhão e de riquezas. É o Testemunho de Jesus que nos envia, como
missionários com a Igreja, a dar testemunho dele entre os homens.
Desejamos
ser dóceis a essa força e a esse amor. Por isso, impelidos por ele, buscamos a
comunhão, pretendemos ser servidores do homem, enviados ao mundo para
transformá-1o com os dons de Deus.
Refletindo
nos nossos planejamentos pastorais, desejamos possuir a criatividade do
Espírito, o seu dinamismo para transformar o homem latino-americano num homem
novo, a imagem de Cristo Ressuscitado, portador da nova esperança para seus
irmãos.
OPÇÕES PASTORAIS
O
exame dos aspectos anteriores colocou-nos diante dos grandes desafios que o Continente latino-americano apresenta
para a sua evangelização presente e futura.
Que
tipo de resposta nós cristãos somos chamados a dar a essa realidade? Quais são
as linhas e critérios que devem orientar uma verdadeira e autêntica
evangelização da América Latina? Quais as opções pastorais básicas para que o
Evangelho se torne um acontecimento atual com toda a sua vitalidade e força
original?
As
opções pastorais são o processo de escolha que permite selecionar e descobrir a
resposta pastoral aos desafios da evangelização, através da ponderação e
análise das realidades positivas e negativas, vistas à luz do Evangelho.
As comissões, em seus respectivos temas,
deram já uma resposta. Não é necessário repetí-la. Nesta última parte, como
conclusão, desejamos apenas apresentar as grandes linhas ou opções-chaves. É
sobretudo um espírito, uma característica que deve marcar a evangelização em
nosso Continente radicalmente cristão, mas no qual a fé, como vivência total e
norma de vida, não tem a incidência que seria de desejar na conduta pessoal e
social de muitos cristãos. As formas de injustiça que enfraquecem e violentam
nossa convivência social e que se manifestam especialmente na pobreza extrema,
na violação da dignidade da pessoa e dos direitos humanos, deixam claro que a
fé ainda não atingiu entre nós a sua plena maturidade. As próprias culturas
vivas no Continente e a nova civilização que se vai formando sob a influência
do mundo técnico-científico, de tendência marcadamente secularista, exigem dos
cristãos um compromisso mais evangélico e uma atitude de permanente diálogo.
Por
esta razão, hoje e amanhã na América Latina, os cristãos, como Povo de Deus,
enviados para sermos sementes de unidade, de esperança e de salvação,
precisamos formar uma comunidade que viva a comunhão da Trindade e seja sinal
de presença de Cristo morto e ressuscitado, que reconcilia os homens com o Pai
no Espírito, os homens entre si e o mundo com seu Criador. "Tudo é vosso;
vós sois de Cristo e Cristo é de Deus" (lCor 3, 23). "E quando todas
as coisas lhe estiverem submetidas, então também o Filho se submeterá Àquele
que lhe submete todas as coisas, a fim de que Deus seja tudo em todos"
(lCor 15, 28).
Optamos
por:
Uma
Igreja-sacramento de comunhão, que, numa história marcada por conflitos,
oferece energias incomparáveis para promover a reconciliação e a unidade
solidária dos nossos povos.
Uma
Igreja servidora, que prolonga no decorrer dos tempos o Cristo-Servo de Javé
através dos diversos ministérios e carismas.
Uma
Igreja missionária que anuncia alegremente
ao homem de hoje que ele é filho de Deus em Cristo. Igreja que se
compromete com a libertação do homem todo e de todos os homens (o serviço da
paz e da justiça é um ministério essencial da Igreja), e se insere solidária na
atividade apostólica da Igreja universal, em estreita comunhão com o sucessor
de Pedro. Ser missionário e ser apóstolo é condição do cristão.
Essas
atitudes fundamentais do ser pastoral de 1 nossas Igrejas no Continente exigem
que a Igreja esteja em permanente processo .de evangelização, que seja uma
Igreja evangelizadora que escuta, aprofunda e encarna a Palavra. Uma Igreja
evangelizadora que testemunha, proclama e celebra essa Palavra de Deus, o
Evangelho, Jesus Cristo na vida. Uma Igreja que ajuda a construir uma nova
sociedade em total fidelidade a Cristo e ao homem no Espírito Santo. Uma
Igreja que denuncia as situações de pecado, que chama à conversão e compromete
os fiéis na ação transformadora do mundo.
PLANEJAMENTO PASTORAL
Para
realizar concretamente essas opções pastorais básicas da evangelização, o
caminho prático é uma pastoral planejada.
A ação pastoral planejada é a resposta
específica, consciente e intencional às exigências da evangelização. Deverá
realizar-se num processo de participação em todos os níveis das comunidades e pessoas
interessadas, educando-as numa metodologia de análise da realidade, para depois
refletir sobre essa realidade do ponto de vista do Evangelho e optar pelos
objetivos e meios mais aptos e fazer deles um uso mais racional na ação
evangelizadora.
O HOMEM NOVO
É
necessário criar no homem
latino-americano uma sã consciência social, um sentido evangélico crítico face
à realidade, um espírito comunitário e um compromisso social. Tudo isto tornará
possível uma participação livre e responsável, em comunhão fraterna e
dialogante, para a construção da nova sociedade, verdadeiramente humana, penetrada
de valores evangélicos. Ela deve ser modelada em comunhão com o Pai, o Filho e
o Espírito Santo e dar resposta aos sofrimentos e aspirações de nossos povos,
cheios de uma esperança. que não poderá ser iludida.
SINAIS DE ESPERANÇA E DE
ALEGRIA
Graças
a Deus, existe atualmente muita vitalidade evangelizadora em nosso Continente:
-
As comunidades eclesiais de base em comunhão com seus pastores.
-
Os movimentos de apostolado leigo organizados, como os movimentos de casais,
de juventude e outros.
-
A consciência mais esclarecida dos leigos a respeito de sua própria identidade
e missão eclesial.
-
Novos ministérios e serviços.
-
Intensa atividade pastoral comunitária dos sacerdotes, religiosos e religiosas
nas regiões mais pobres.
-
A presença cada vez maior e mais simples dos bispos no meio do povo.
- A colegialidade episcopal mais vivida.
-
A sede de Deus e a sua procura na oração e contemplação, à imitação de Maria,
que guardava em seu coração as palavras e os atos de seu Filho.
-
A consciência cada vez mais clara da dignidade do homem em sua visão cristã.
Todos
estes aspectos são outros tantos sinais de esperança e alegria para quem vive
imerso no mistério pascal de Cristo e sabe que unicamente o Evangelho vivido e
proclamado, como ele o fez, leva à autêntica e total libertação da humanidade:
"E em nenhum outro se encontra a salvação; pois, debaixo do céu não foi
dado aos homens outro nome pelo qual possamos salvar-nos" (At 4, 12).
Ele
é a plenitude de todo o ser. É somente em Cristo que o homem encontra sua
alegria perfeita.