O ANO PAULINO


Cardeal D. Eugenio de Araújo Sales
Arcebispo Emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro

 

A 28 de junho último, foi solenemente aberto o Ano Paulino, comemorando os 2.000 anos do nascimento de São Paulo Apóstolo, que juntamente com Pedro e João, exerceu a maior influência na Igreja, corpo místico de Cristo. Nasceu em Tarso da Cilícia, na atual Turquia. Cidadão romano, por nascimento, e judeu, conforme suas próprias palavras: “mas fui educado nesta cidade (Jerusalém), instruído aos pés de Gamaliel, em todo o rigor da Lei de nossos pais e cheio de zelo pelas coisas de Deus” (Atos dos Apóstolos 22,3) e no fim da vida declara: “Ele (Cristo Jesus) não só destruiu a morte, mas também fez brilhar a vida e a imortalidade pelo evangelho, para o qual eu fui constituído pregador, apóstolo e doutor” (2 Tim 1,10-11).

Qual o objetivo do Ano Paulino? Em sua homilia por ocasião das primeiras vésperas da solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo, o Papa Bento XVI declara: “Estamos, portanto, reunidos não para refletir sobre uma história do passado. Paulo quer falar conosco hoje. Por isso, quis proclamar este especial ‘Ano Paulino’: para ouvir e para aprender agora dele, como nosso mestre, ‘a fé e a verdade’, nas quais estão radicadas as razões da unidade entre os discípulos de Cristo”. O Santo Padre afirma: “É para mim motivo de profunda alegria que a abertura do ‘Ano Paulino’ assuma um particular caráter ecumênico pela presença de numerosos delegados e representantes de outras Igrejas e Comunidades eclesiais, que recebo de braços abertos. Saúdo em primeiro lugar Sua Santidade o Patriarca Bartolomeu I e os membros da Delegação que o acompanha, assim como o numeroso grupo de leigos que de diversas partes do mundo vieram a Roma para viver, com ele e com todos nós, estes momentos de oração e de reflexão”. A seguir, recordo uma experiência por mim vivida no ano de 1985 e que ajuda na celebração deste Ano Jubilar.

Era noite, quando cheguei ao aeroporto de Damasco. Iniciava uma peregrinação, seguindo os passos de São Paulo. Em vez de ir diretamente à Nunciatura, dirigi-me à parte antiga da cidade. E, a pé, caminhei pela Rua Direita, importante marco na história da difusão do cristianismo. Ainda hoje conserva o nome. Fui à porta da muralha por onde, cego, entrara Saulo, levado por seus companheiros. Segundo a tradição, fora naqueles arredores que, “caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: ‘Saulo, Saulo! Por que me persegues?’” (At 9,4).

Certamente por ali passara o grande Apóstolo. O fascínio de sua extraordinária personalidade perdura inalterado até hoje e assim será sempre, pois Deus o constituiu, com Pedro, pilar da Igreja.

Há séculos os israelitas estão estabelecidos neste trecho da Rua Direita, conforme me explicou o Núncio. “Levanta-te, vai à Rua Direita e procura, na casa de Judas, um homem chamado Saulo, de Tarso” (At 9,11). Da casa de Judas nada se sabe, mas a tradição indica a de Ananias. Entrei e rezei. Podia não ser exatamente aquele lugar, mas era certo que, nessa área, ocorreu um fato que repercute perenemente. Nas imediações, começou a vocação do grande pregador do Evangelho e teriam início os seus sofrimentos.

Em certa altura das muralhas, há um marco indicando o local da fuga, quando São Paulo desceu em uma cesta com auxílio de antigos perseguidos e, agora, irmãos na Fé: “Em Damasco, o etnarca do rei Aretas guardava a cidade dos damascenos, no intuito de me prender mas, por uma janela, fizeram-me descer em um cesto, ao longo da muralha, e escapei às suas mãos” (2Cor 11,32-33). Todo o cenário dá novo sabor e eficácia à leitura dos Atos dos Apóstolos e Epístolas paulinas.

A transformação operada em sua vida mostra o poder de Deus. Em meio às dificuldades, a nova conduta desse homem é de uma riqueza extraordinária e de uma atualidade excepcional. Tinha entranhas de misericórdia, como vemos no seu hino à caridade, no capítulo 13 da Primeira Epístola aos Coríntios, e revela ternura na sua Epístola aos Filipenses: “Foi grande a minha alegria no Senhor, porque, finalmente, vi florescer o vosso interesse por mim” (Fl 4,10). E, ao mesmo tempo, possui a firmeza do defensor da Fé. Ao excomungar o incestuoso de Corinto: “Já julguei, como se estivesse presente, aquele que assim procedeu. É preciso que, em nome do Senhor Jesus (...) entreguemos tal homem a satanás” (1Cor 5,3-5).

Ao proceder assim, não era menos bondoso que em outras circunstâncias onde avulta sua paciência e generosidade. Muito oportuno meditar estas atitudes pastorais; muitos nelas hoje se podem inspirar.

Ele exercia sua autoridade como serviço, sim, mas sem se omitir, fosse quais fossem as conseqüências. Essa coragem na condução dos fiéis, no governo daqueles que gerara em Cristo, merece uma profunda reflexão. Diante do perigo de perder a rota, inquinados por erros doutrinários, ele faz explodir sua indignação aos gálatas: “Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou? (...) Sois tão insensatos que, tendo começado com o espírito, agora acabais na carne?” (Gl 3,1-3).

O dinamismo e a combatividade se unem à rapidez na ação: “Apressa-te, sai de Jerusalém (...) Vai ao longe, aos gentios é que eu quero te enviar (At 22,18.21). Ele imediatamente deixa tudo. É pregador itinerante de uma crença estranha à mentalidade em voga.

Nada o demove: “Somos atribulados por todos os lados, mas não esmagados; postos em extrema dificuldade, mas não vencidos pelos impasses” (2Cor 4,8). Ele mesmo faz impressionante relato dos riscos e dificuldades: “Muitas vezes vi a morte de perto (...) Trabalhos e fadigas, repetidas vigílias, com fome e sede, freqüentes jejuns, frio e nudez!” (2Cor 11,23-27). Por onde passava em nome de Cristo, não lhe faltavam obstáculos, nem esmorecia sua constância: “Apedrejaram Paulo e arrastaram-no para fora da cidade (Listra), tendo-o por morto. Mas, enquanto os discípulos o rodeavam, ele se ergueu e entrou na cidade” (At 14,19-20). Depois faz referência, em 2Tm 3,11-13: “Que perseguições eu sofri! E de todas me livrou o Senhor! Aliás, todos os que quiserem viver com piedade, em Cristo Jesus serão perseguidos”.

Nos dias de hoje, as tribulações do Apóstolo nos lembram a vitória de Cristo após o Calvário. Essa certeza fortalece o ânimo dos cristãos, no esforço de seguir, na fidelidade, os passos do Redentor. Voltarei ao assunto.

 

22/08/2008

    

Com o intuito de despertar maior interesse na celebração do Ano Jubilar, comemorando os 2000 anos do nascimento de São Paulo, retorno hoje ao assunto sobre sua admirável vida.

Quando visitei, em 1985, em peregrinação a cidade de Antioquia da Síria, hoje Turquia, pensava em São Paulo, vivendo na terceira cidade do Império Romano, uma grande metrópole, com seu anfiteatro, o maior de então. //Porém, a fama da imoralidade reinante levou o poeta latino Juvenal a declarar que uma corrente, inclusive de superstição, passou do Orontes (o rio que atravessa a cidade) ao Tibre, na Itália.

Ouvi a reclamação do único padre católico residente: “São raros os peregrinos que aqui vêm!”. Contudo, este lugar, tão importante na antigüidade, foi a segunda sede de Pedro, de onde governou a Igreja, e o palco de um longo trabalho evangelizador do Apóstolo Paulo. Dizem-nos os Atos dos Apóstolos (11,25-26): “Dirigiu-se Barnabé a Tarso, em busca de Saulo; encontrou-o e o levou para Antioquia. Passaram todo o ano nesta igreja e instruíram grande número de pessoas”. Retornando à Antioquia, foi aí que recebeu a confirmação de sua missão (At 13,2).//

A visão mundial de Paulo, sua angústia por divulgar a Mensagem do Senhor não apenas a quem lhe era vizinho, mas de abranger o mundo inteiro, na ânsia de levar Cristo aos homens, certamente foram influenciadas por este ambiente cosmopolita.

//Dirigi-me, de automóvel, a Tarso. Olhei o panorama que a emoldura, inclusive o Monte Taurus, recoberto de neve. Recuei dois milênios. Na capital da província romana da Cilícia, parecia escutar Paulo, com argúcia, pronunciando a própria defesa: “Sou natural de Tarso, uma cidade não sem importância” (At 21,39). Evocando recordações sobre o Rio Cydnus, a presença de Cleópatra e Marco Antônio, os privilégios de que gozava quem ali nasceu: “Paulo perguntou (...) ‘É permitido açoitar um cidadão romano que nem sequer foi julgado?’ (...) eu o sou de nascimento” (At 22,25.28).

Pensei no tráfego marítimo e nas caravanas, no mundo helênico e sua elevada cultura. O próprio Imperador Augusto tivera como professor um filósofo estóico, de Tarso.//

Eis a atmosfera da infância de Paulo. Hoje, fora o nome da cidade, quase nada restou que fale do seu grande filho. Encontrei apenas um poço, com algumas escavações e uma modesta indicação, em inglês.

Neste rincão nasceu um homem que foi instrumento de Deus para levar aos judeus e gentios do universo conhecido de então a mensagem salvífica do Evangelho.

Fui a Éfeso, local onde a presença de Paulo está vinculada à de Nossa Senhora. Ela, após a morte de seu Filho, viveu ali em companhia de João, o Evangelista. E foi aí que ele redigiu, diretamente ou através de discípulos, o quarto Evangelho. As ruínas da imensa basílica bizantina, onde está o túmulo do Discípulo Amado, revelam uma Igreja florescente na Antigüidade. Vi as placas comemorativas da visita de Paulo VI, a 26 de junho de 1967, e a de João Paulo II, na manhã de 30 de novembro de 1979. Essas inscrições falam da continuidade da Igreja de Cristo, a mesma ontem e hoje.

No anoitecer, estive no local onde se realizou o Concílio Ecumênico que declarou dogma de Fé a Maternidade Divina de Maria, no ano 431. Aliás, a Igreja já, há tempos, celebrava essa prerrogativa de Nossa Senhora. //Na redondeza, o único templo cristão em uso é o Santuário edificado nas montanhas que circundam o lugar. Datam do I século os alicerces e se discute se a Virgem, aí ou em Jerusalém, morreu. Os orientais usam outra expressão, plena de delicadeza: “dormitio” (“dormição”).//

Nestas paragens é viva a sombra de Paulo. //Passara por aqui: “Se Deus quiser, voltarei para vós outros. E, embarcando, partiu de Éfeso” (At 18,21). E retornou: “Paulo, depois de ter atravessado a região alta, chegou a Éfeso (...) Como alguns não cressem (...) reuniu à parte os discípulos (...) na escola de um certo Tirano. Assim prosseguiu durante dois anos, até que todos os habitantes da Ásia, judeus e gregos, puderam ouvir a palavra do Senhor” (At 19,1.9-10).// Parecia ainda escutar o grito do Apóstolo (Ef 5,14): “Ó tu que dormes, desperta! E levanta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminará”. Este brado continua. Quem sabe, um dia, voltará a ter sucesso, como ocorreu há dois mil anos.

Ali, ele teve vitórias admiráveis. Entretanto, o ourives Demétrio conseguiu agitar a cidade contra Paulo. Por motivos comerciais, o Evangelho foi impedido (cf. At 19,24-41). Nesse episódio, Paulo demonstra sua coragem, desejando enfrentar a multidão. Aprisionado, termina por deixar Éfeso, aonde nunca mais regressou. A pregação, contudo, continuou sem desfalecimentos.

Neste período da História, tendo-se iniciado um novo milênio, a figura de Paulo, sua dedicação inexcedível a uma causa tão nobre quanto a divulgação da mensagem salvífica e sua incorporação na vida dos povos, adquiriram importância invulgar. Observando os lugares onde viveu, as distâncias percorridas, o ambiente hostil e as reações contra ele, vindas, como afirma, inclusive de “falsos irmãos” (2Cor 11,26) cresce o respeito e a devoção por ele. Maravilhosa a atitude deste homem que defende a pureza da Fé a qualquer preço; não cede a pretexto de evitar a perda de discípulos; e, ao mesmo tempo, no acidental, atende à fraqueza dos irmãos (Gl 2,4-5).

Assume proporções admiráveis o comportamento do Apóstolo que, mesmo recebendo diretamente de Deus uma missão, julga-se no dever de conferir com os outros, colunas da Igreja, - e Pedro, em particular -, sua atuação e seu ensinamento.

Diante desse modelo que Cristo deixou para toda a seqüência dos séculos na vida de seu povo, cabe-nos o dever de comparar nosso procedimento com essa figura ímpar. Aprender as lições e incorporá-las em nossa vida. A celebração do Ano Paulino é uma excelente oportunidade para deixar que nossa vida religiosa se molde pelos exemplos deixados por São Paulo.

 

 

 

Fonte: http://www.arquidiocese.org.br/