O caso
Galileu (I)
Por Joaquim Blessmann
Afinal, Galileu foi
condenado pela Inquisição por defender que a Terra gira em torno do Sol?
Copérnico foi discípulo de Galileu? Galileu morreu queimado na Idade Média?
Muitas pessoas acham que conhecem a história do processo de Galileu pela
Inquisição, mas conhecem apenas mitos. É preciso inserir-se no contexto em que
o caso se desenvolveu para formar uma idéia clara do assunto.
1. O MITO
Três
séculos e meio de uma publicidade distorcida e laicista fizeram nascer o mito
de que Galileu foi um “mártir da ciência e da liberdade de pensamento e a
Igreja a costumeira inimiga da liberdade e do progresso humano”, comenta Cintra1.
Também transcrevemos o seguinte trecho, retirado de obra de Massara: “Não se
tratou de um conflito entre ciência e religião, entre razão e fé, como uma
certa literatura laica, claramente interessada, tem feito crer; mas de uma
crise interna do organismo eclesiástico”2. Aliás, essa não é a única
distorção histórica; há muitas. Monumental, é por exemplo, aquela que apresenta
a Idade Média como uma época de obscurantismo e estagnação, o que não
corresponde à realidade. Parece haver uma tendência de cada época a denegrir a
que veio imediatamente antes. Pense-se, por exemplo, na Renascença. Ou,
atualmente, a atitude de muitos católicos, com suas críticas por vezes
contundentes à Igreja de antes do Concílio Vaticano II.
Parece que se baseiam em uma afirmação de
Cristo, convenientemente deturpada: “Eu estarei convosco até a consumação dos
séculos, porém só a partir do Concílio Vaticano II...”
A seguir, reproduziremos afirmações errôneas
sobre o caso Galileu, que conseguimos coletar. Algumas delas serão refutadas
logo após serem enunciadas. As demais, no decorrer deste trabalho.
– “Galileu foi condenado na Idade Média”. A
Idade Média vai até meados do século XV. Ora, Galileu nasceu em 1564, ou seja,
cerca de um século após o seu término.
– “Galileu foi condenado por dizer que a Terra
era redonda”. Ora, já na antiga Grécia isto era admitido por muitos. Por
exemplo, Pitágoras (século VI a.C.) e seus discípulos falavam da esfericidade
da Terra, da Lua e do Sol, bem como da rotação da Terra. Na Europa, a
esfericidade da Terra já tinha defensores quatro séculos antes de Galileu. Uma
prova concreta tinha sido dada pela expedição de circunavegação da Terra,
comandada por Fernão de Magalhães, em 1521.
– “Galileu teve Copérnico como discípulo”.
Copérnico faleceu em 1543 e Galileu nasceu 21 anos depois, em 1564.
– “Galileu foi o autor da teoria heliocêntrica”.
O sistema heliocêntrico deve-se a Aristarco de Samos, no século III a.C., cerca
de 1.900 anos antes de Galileu publicar e defender suas concepções
astronômicas.
– “Galileu foi condenado porque defendia o
sistema heliocêntrico”. Não, ele foi condenado pelo modo como o defendia.
Outras afirmações errôneas, que tentaremos
esclarecer neste trabalho, são as seguintes: Galileu foi torturado, cegado,
aprisionado numa masmorra, queimado vivo, condenado por heresia, etc.
Se quisermos analisar corretamente, e com a
máxima isenção de ânimo possível, fatos ocorridos em outra época, é necessário
que nos ponhamos a pensar com a mentalidade, os costumes e, importante, com os
conhecimentos e o “senso comum” daquela época. Por isto, o capítulo “O Ambiente”.
2. O AMBIENTE
2.1. A Filosofia
Eram dois os filósofos que preponderavam no
pensamento da época: (a) Aristóteles e (b) São Tomás de Aquino.
a) Aristóteles partia da observação dos fatos
naturais, e a partir daí raciocinava e chegava a um conjunto de princípios
gerais que permitissem a compreensão do mundo material. Adota a astronomia
geocêntrica, com a Terra, esférica e imóvel, no centro do universo. No mundo
celeste, separado da terra pela esfera lunar, reina a perfeição. Na Terra, a
imperfeição, com a geração, alteração e corrupção dos corpos, formados por
quatro elementos básicos: terra, água, ar e fogo.
Antes de Galileu, na Idade Média, muitos
filósofos e teólogos admitiam as idéias físicoastronômicas de Aristóteles,
porém sem vinculá-las diretamente à Filosofia. Infelizmente, os aristotélicos
da Renascença confundiram Filosofia e ciência.
b) Na Suma Teológica, São Tomás de Aquino
deixa bem claro que a realidade física, o fenômeno observado, é uma coisa; e
outra são as teorias científicas que tentam explicá-lo: “Uma teoria deve salvar
as aparências sensíveis” (isto é, deve estar de acordo com o que aparece aos
sentidos, com a realidade física). “Isto, entretanto, não constitui uma prova
suficiente e decisiva, porque talvez pudéssemos salvar as aparências sensíveis
com uma teoria diferente e mais simples”.
Em outras palavras, uma teoria científica não
pretende corresponder à realidade, mas apenas explicá-la. Exemplifiquemos:
– A teoria do contínuo, na engenharia.
Admite-se, na engenharia, que a matéria é contínua, sem falhas, fissuras,
vazios, poros, espaços entres cristais ou moléculas. É mais do que evidente que
isto não corresponde à realidade. Mas as teorias baseadas neste postulado
explicam satisfatoriamente o comportamento dos materiais e facilitam
enormemente os cálculos, quer se trate de uma ponte, torre, barragem ou outra
estrutura qualquer, quer se trate do movimento e de forças existentes nos
líquidos e gases, tais como: sustentação de um avião, bolas com “efeito”
(futebol, tênis, etc.) e mesmo no movimento do sangue nas veias e artérias,
etc.
– Isaac Newton: “Tudo se passa como se a
matéria atraísse a matéria na razão direta das massas e na razão inversa dos
quadrados das distâncias” (gravitação universal). Note-se a modéstia do
verdadeiro cientista. Não afirma, categórico: “a matéria atrai a matéria ...”,
mas, modestamente, sugere que “tudo se passa como se ...”
– Owen Gingerich, astrônomo de Harvard: “Os
átomos, como os imaginamos, não podem ser comprovados de um modo absoluto. O
máximo que podemos dizer, é que o universo age como se fosse feito de átomos”3.
Novamente, um modesto “como se”, indicando que se pretende explicar a
realidade, sem a pretensão de afirmar que é assim e não pode ser diferente.
- O mesmo vale para o
mundo psíquico: uma teoria pode explicar o comportamento humano, mas nada
assegura que ela dê a razão real deste comportamento. E aqui penso nas teorias
de Freud e de outros, conflitantes entre elas; cada autor rejeita explicações
diferentes da sua, a qual, no seu entender, exprime a própria realidade.
2.2. A Astronomia
a) Sistema geocêntrico
É o sistema mais
antigo, cuja origem é incerta. Na Antigüidade apresentaram-no, entre outros,
Hiparco (190 a 120 a.C.). No século II de nossa era, o grego Cláudio Ptolomeu
fez melhoramentos na hipótese de Hiparco, mostrando, por suas observações, que
as órbitas dos planetas não podem ser circulares, como queriam Hiparco e
Aristóteles, entre outros (o círculo era símbolo da perfeição). A Terra, imóvel,
ocupa o centro do universo. Em torno dela giram, na seguinte ordem: Lua,
Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Esta concepção perdurou não só
na Antigüidade, mas também por toda a Idade Média, em parte pela adesão de
Aristóteles ao geocentrismo, em parte pelas objeções postas ao heliocentrismo,
como veremos mais adiante.
b) Sistema heliocêntrico
Aristarco
de Samos (século III a.C.) foi o primeiro a adotar e ensinar o sistema
heliocêntrico. De acordo com Aristarco, o Sol está imóvel no centro do
universo, e à sua volta os planetas descrevem órbitas circulares; as estrelas
fixas encontram-se numa esfera cristalina. Avaliou que as distâncias entre as
estrelas eram extraordinariamente superiores à distância entre Sol e Terra.
Não havia provas
convincentes de que a realidade estivesse de acordo com esta teoria, mas ela
justificava plenamente a regularidade do movimento dos planetas. Por outro
lado, havia argumentos de peso contra ela, baseados nos conhecimentos e no “bom
senso” da época, proveniente da observação de fenômenos naturais. O argumento
de maior importância (creio que muitas pessoas, mesmo nos tempos atuais, não
sabem como o refutar) é o seguinte:
Se a Terra
gira em torno do Sol, é necessário que também gire em torno de si, para
produzir o dia e a noite. Se ela gira em torno de si, deve haver um movimento
relativo terra-ar e, portanto, para quem está parado na superfície da Terra, um
vento com a mesma velocidade. Se estou andando a cavalo, pensavam, quanto mais
rápido andar o cavalo, mais veloz o vento que sentirei, devido ao movimento
relativo cavalo-ar. Se estou parado, não sobre o cavalo, mas sim na superfície
da Terra, e ela está “correndo” em sua rotação, deverei sentir um vento
correspondente. E qual a velocidade deste vento? Os gregos já tinham feito o
cálculo. Mais precisamente, Eratóstenes, medindo a diferença de latitude entre
Siena (atualmente, Assuan) e Alexandria, e medindo a distância entre estas duas
cidades, determinou a circunferência da Terra, no Equador. Foi concluído que,
se a Terra girasse sobre si mesma, a velocidade no Equador seria de cerca de
400 m/s (1.440 km/h). E esta seria a velocidade do vento causado pela rotação
da terra, velocidade essa suficiente para destruir florestas, veículos, construções,
etc. (Na realidade, a velocidade é ainda maior: 1.670 km/h.) Este vento não
existe. Logo: a Terra não pode ter o movimento de rotação requerido pelo
sistema heliocêntrico para formar dias e noites.
Outro
argumento contra o sistema heliocêntrico exporemos a seguir: Se uma pedra for
atirada verticalmente para cima, enquanto ela sobe e desce, a Terra se desloca
e a pedra chocar-se-á com o terreno em um ponto afastado do ponto de
lançamento. Se, após seu lançamento, a pedra levar dez segundos para chocar-se
com o terreno, no Equador ela estaria a quatro quilômetros a oeste de seu ponto
de lançamento! Repito o comentário feito acima: hoje em dia, quantos saberão
explicar por que isto não acontece?
Ilustração representando
o sistema heliocêntrico
(extraída de Harmonia
Macrocosmica, de Andreas Cellarius, 1660-1).
Por estas e outras
dificuldades, a teoria heliocêntrica foi abandonada, voltando a ser apresentada
muitos séculos depois por Nicolau Copérnico, nascido em Torun, Polônia, em
14.02.1473, e falecido em Frauenburg, Polônia, em 24.05.1543.
Copérnico estudou
astronomia e matemática na Universidade de Cracóvia e, por três anos, Direito
Canônico em Bolonha, Itália. Também freqüentou as Universidades de Roma, Pádua
e Ferrara. Em 1501 aceitou o posto de cônego da Catedral de Frauenburg, cidade
onde fez suas observações astronômicas.
Reintroduziu o sistema
heliocêntrico de Aristarco, com modificações, em dois trabalhos:
– em 1530:
“Comentários sobre as Hipóteses da Constituição do Movimento Celeste”;
– em 1543:
“Sobre a Revolução dos Corpos Celestes”.
Acima,
um retrato de Copérnico pintado na sua cidade natal, Torun, no início do
século XVI. Ao lado, ilustração do sistema heliocêntrico feita pelo
astrônomo polonês no seu livro De revolutionibus orbium coelestium (“Sobre
as revoluções das esferas celestes”), publicado em 1543.
Este último trabalho
foi dedicado ao Papa Paulo III, que aceitou a dedicatória, sem problemas. E,
mais ainda, o sistema proposto por Copérnico foi usado pela Igreja para
reformar o calendário litúrgico, permitindo prever a data da Páscoa e, a partir
dela, as demais datas do ano litúrgico. O sistema geocêntrico de Ptolomeu havia
levado a erros cumulativos importantes. Os cálculos para definir as datas
litúrgicas foram enormemente simplificados com o sistema heliocêntrico. Estes
cálculos foram feitos pelo jesuíta e matemático Cristóvão Clavius.
Segundo
Copérnico, o Sol ocupa o centro do sistema planetário. Em torno dele os
planetas giram em órbitas circulares, na seguinte ordem: Mercúrio, Vênus,
Terra, Marte, Júpiter e Saturno.
c) Sistema misto
Proposto
por Tycho Brahe (1571-1630), astrônomo dinamarquês. Tornou-se conhecido e
admirado pelas medidas precisas que realizou, com instrumentos adequados,
construídos por ele mesmo com muita perfeição. O seu sistema é considerado por
alguns autores como um sistema “conciliatório”. No centro do universo, a Terra,
imóvel. À sua volta giram a Lua e o Sol. Os demais planetas giram em torno do
Sol, acompanhando-o em seu movimento em torno da Terra. À distância, a esfera
das estrelas.
2.3. Os Eclesiásticos e a Astronomia
Embora a maioria dos eclesiásticos estivesse
de acordo com a teoria geocêntrica, havia Cardeais e outros eclesiásticos
adeptos do sistema de Copérnico ou defensores de Galileu. Citamos uns poucos4:
– O beneditino Benedetto Castelli diz,
referindo-se ao sistema geocêntrico, defendido por Aristóteles: “Aristóteles
errou nessa, como em muitas outras coisas”.
– O Cardeal Maffeo
Barberini (mais tarde Urbano VIII) opôs-se a que Galileu fosse declarado
herético, bem como o Cardeal Luigi Caetani.
– O mesmo Barberini, já eleito papa, declarou ao Cardeal Zoller que a
Igreja não tinha condenado, nem estava por condenar, a teoria heliocêntrica como
herética, mas apenas como temerária.
–
Niccolò Riccardi, Mestre do Sacro Palácio*, estava convencido de que o
heliocentrismo não era matéria de fé e de que, de forma alguma, convinha
comprometer nele as Escrituras.
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(*) Atualmente, diz-se Teólogo da Casa Pontifícia. É o teólogo pessoal
do Papa: revisa os documentos pontifícios e é consultor de diversas comissões
do Vaticano. São Domingos foi o primeiro a assumir o posto, em 1218; desde
então, o cargo é sempre ocupado por um dominicano.
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– Em 1632, na iminência do segundo
processo, Castelli professou sua fé copernicana a Vincenzo Maculano, Comissário
do Santo Ofício. – Relembramos que o sistema heliocêntrico foi usado para a
reforma do calendário litúrgico.
2.4. A Interpretação da Bíblia
Desde os Santos Padres dos primeiros séculos
do Cristianismo, já eram conhecidos outros sentidos, além do estritamente
literal, ao ser interpretada a Bíblia. Henri de Lubac5 destaca que na
exegese medieval se procedia à leitura da Sagrada Escritura segundo os quatro
sentidos: literal, histórico, alegórico e moral.
Entretanto, no tempo de Galileu a
interpretação da Bíblia era feita de modo mais rígido e, em geral, atendo-se
exageradamente ao sentido literal do texto. Como causa principal desse modo de
proceder, estava o protestantismo, que, desde o manifesto de Lutero, em 1517,
vinha promulgando a livre interpretação da Bíblia. Para evitar os males que
estavam sendo causados à fé cristã por este modo de proceder, a Igreja passou a
se fixar mais no sentido literal das palavras, enquanto não houvesse motivos
fortes que desaconselhassem tal proceder.
Lembramos aqui o princípio da consciência
possível, da sociologia: “Todo pensamento é socialmente condicionado e
limitado. Devido aos condicionamentos que limitam a visão da realidade, há um
limite máximo que o conhecimento ou a compreensão de um indivíduo, um grupo,
uma classe social ou toda uma época pode atingir... Outros fatores condicionantes
que integram o conceito de consciência possível são a religião, o pensamento
científico, as ideologias, as solidariedades étnicas e nacionais, o gosto
artístico, etc., que limitam o campo da consciência para toda uma comunidades
humana e até mesmo para uma época. Cada época possui paradigmas que condicionam
sua cosmovisão científica e sua práxis concreta”6.
Naquela época, com o exíguo desenvolvimento
das ciências naturais, as Escrituras eram usadas também para explicações
científicas. Sem o conhecimento dos gêneros literários dos antigos orientais,
do sentido correto de certas palavras, os teólogos interpretavam a Bíblia
literalmente, o que, aliás, é um princípio da hermenêutica: “Não é lícito
abandonar o sentido literal de um texto, sem que haja evidentes indícios de que
é metafórico”7. Por exemplo, no caso de existirem argumentos de peso
a favor de uma hipótese científica.
Além do mais, a interpretação literal de
certos trechos da Bíblia (que apontavam para o geocentrismo) estava de acordo
com o bom senso geral da época, que via o movimento do Sol e da Lua, bem como
com os filósofos aristotélicos e com a quase totalidade dos astrônomos. Antes
de Galileu, Aristarco e Copérnico já haviam lançado a hipótese do
heliocentrismo, mas sem qualquer argumento convincente. E sem que alguém
tivesse refutado o forte argumento contrário à rotação da Terra: “e o vento,
senhores, o vento de 1.440 km/h oriundo da rotação da terra?”
Citamos aqui D. Estêvão Bettencourt:
“Para estabelecer a atual teoria planetária,
milhares de sábios e estudiosos contribuíram; assim as hipóteses de Copérnico,
as medidas científicas de Tycho, as observações de Galileu, as leis formuladas
por Kepler... Ainda durante cerca de cem anos depois de Galileu os argumentos
antigos em favor do geocentrismo continuaram a ter peso mais forte na opinião
pública do que as razões aduzidas por Copérnico e Galileu em favor do
heliocentrismo”.
“A fim de ilustrar quão árduo devia ser a um
cristão imbuído da mentalidade dos séculos XVI/XVII admitir o heliocentrismo,
seja aqui observada a atitude dos autores protestantes diante do novo sistema:
“Lutero (+1546) julgava que as idéias de
Copérnico eram idéias de louco, que tornavam confusa a astronomia.
“Melancton, companheiro de Lutero, declarava
que tal sistema era fantasmagoria e significava a rebordosa das ciências.
“Kepler (1571-1630), astrônomo protestante
contemporâneo de Galileu, teve que deixar sua terra, o Wurttemberg, por causa
de suas idéias copernicanas.
“Em 1659, o Superintendente Geral de
Wittemberg, Calovius, proclamava altamente que a razão se deve calar quando a
Escritura falou; verificava com prazer que os teólogos protestantes, até o
último, rejeitavam a teoria de que a Terra se move.
“Em 1662, a Faculdade de Teologia protestante
da Universidade de Estrasburgo afirmou estar o sistema de Copérnico em
contradição com a Sagrada Escritura.
“Em 1679, a Faculdade de Teologia protestante
de Upsala (Suécia) condenou Nils Celsius por ter defendido o sistema de
Copérnico.
“Ainda no século
XVIII, a oposição luterana contra o sistema de Copérnico era forte: em 1774 o
pastor Kohlreiff, de Ratzeburg, pregava energicamente que «a teoria do
heliocentrismo era abominável invenção do diabo»”8.
2.5. A Inquisição
Só a leitura desta palavra já costuma causar
mal-estar, por ser geralmente associada a terror, tortura, fogueira, morte. Nem
tanto assim, embora não se possa dizer que a Inquisição tratava de amenidades.
Houve excessos, e graves, principalmente nos
países onde o poder civil passou a comandar. Nem tudo é justificável, mesmo sem
a intromissão do poder civil, que transformava a Inquisição em um órgão de
interesse político, principalmente na Espanha e Portugal, a partir do século
XVI. Destacou-se, por sua excessiva severidade, o inquisidor dominicano Tomás
de Torquemada.
Entretanto, procuremos entender os fatos e
pensar com a mentalidade época, de acordo com o princípio da consciência
possível, que comentamos anteriormente. Na época feudal, profano e sagrado eram
muito unidos; por assim dizer, as duas faces de uma mesma moeda. Desvios
doutrinários afetavam a vida social.
“De certa forma a Inquisição foi a reação de
defesa de uma sociedade para a qual a preservação da fé era tão importante como
a saúde ou os direitos humanos para a sociedade atual... Embora tenha havido
episódios deploráveis, a Inquisição representou um claro progresso com relação
aos tribunais e julgamentos da época, como reconhecem muitos juristas atuais: era
o tribunal mais justo e brando do seu tempo [o grifo é nosso]. Ela
introduziu a justiça regular, evitando que a justiça leiga ou mesmo a revolta
popular infligissem os piores castigos aos suspeitos de heresia. Muitas vezes
foi a autoridade eclesiástica quem interveio para subtrair à fúria da multidão
os que esta considerava heréticos, embora nem sempre conseguisse evitar que
condenados à prisão fossem retirados e conduzidos à fogueira pela população
furiosa e amotinada, que se queixava da «fraqueza e excessiva brandura» do
bispo. Todos esses aspectos ajudamnos a não julgar com tanta severidade
instituições de outras épocas e mentalidades, ao mesmo tempo que nos levam a
considerar que o nosso tempo também não está isento de coisas piores: guerras,
campos de concentração, gulags, racismos, colonialismos, explorações, etc”9.
Outras citações, que confirmam as palavras
acima10:
– Revista Crítica Histórica: “Com o passar dos
anos e com a multiplicação das pesquisas de arquivo, foram aparecendo cada vez
mais elogios à racionalidade dos procedimentos e à brandura dos tribunais da
Inquisição, que se revela não mais como uma entidade demoníaca, mas como uma
instituição dotada de regras racionais e capaz de moderar o uso da tortura e
desencorajar a denúncia e a delação”.
– Luigi Firpo, historiador laicista, com
acesso aos tribunais do Santo Ofício: “Compareceram diante daquele tribunal
mais delinqüentes comuns, pessoas culpadas de atos que o direito moderno
considera crimes, do que acusados de crimes de opinião e paladinos da liberdade
de pensamento. As prisões de hoje são verdadeiros infernos se comparadas com as
tão difamadas celas da Inquisição. Naturalmente, a Inquisição não era um
agradável clube para conversas amenas, mas fornecia garantias jurídicas
inexistentes nos tribunais civis daquela época” (O grifo é nosso).
– Gustav Henningsen, historiador dinamarquês:
“Ao contrário de todas as instituições da época, a Inquisição não recorria
normalmente à tortura”. ... “A Inquisição introduziu um princípio de
transparência, de moderação e de direito onde o poder político e o povo queriam
proceder à justiça sumária e exemplar”... “A população católica não temia o
Santo Ofício, como muitos historiadores quiseram demonstrar. Os inquisidores
não era monstros nem torturadores, mas teólogos e juristas respeitados e
estimados”.
“Nas igrejas protestantes predominava um zelo
intransigente, reforçado pelo fundamentalismo bíblico que as caracterizava”...
“Os protestantes criticavam a moderação do Santo Ofício.” Aliás, diga-se de
passagem, a Igreja foi responsabilizada por grande parte dos crimes e fogueiras
perpetuados pelos protestantes.
– Estêvão Bettencourt: “Mais de uma vez a
Santa Sé interveio para moderar o zelo e punir os excessos dos inquisidores.
Todo inquisidor que abusasse comprovadamente do seu ministério era deposto do
cargo”11.
– Boulanger: “Foi sobretudo na Espanha que a
Inquisição deixou as mais profundas e tristes recordações. Instituída no século
XIII, segundo as formas canônicas, foi modificada no fim do século XV por
Fernando V e Isabel. Sob seu influxo a Inquisição converteu-se, por assim
dizer, numa instituição do Estado, onde entrava mais política que religião
[...].
“O código penal da Idade Média era em geral
muito mais rigoroso que o da Inquisição. As atrocidades (torturas e morte pelo
fogo) da legislação criminal da época tinham por finalidade impedir a repetição
dos crimes, incutindo o terror com exemplos espantosos àqueles povos difíceis
de governar e de costumes violentos”12.
Lembremos, outrossim, que modos de agir de
épocas passadas parecem, no presente, atrocidades ou vinganças, mas foram,
dentro do ambiente então vigente, melhoramentos para a sociedade, abrandamentos
de costumes bárbaros. Por exemplo, a conhecida “lei do talião”, que transportou
para o domínio da punição uma exigência de justiça, graduando a pena de acordo
com o dano produzido (“olho por olho, dente por dente”). Antes dela, a vingança
dependia da ira do vingador: a um dente arrancado poderia corresponder uma
cabeça arrancada...
2.6. O Index
O Index Librorum
Prohibitorum era uma lista de publicações que continham doutrinas errôneas,
contrárias à fé e à moral cristãs. Por essa razão, as publicações contidas no
Index não podiam ser lidas pelos católicos. Houve exageros e excessos de rigor,
mas o princípio é perfeitamente válido, e aplicado ainda hoje em dia em muitos
países civilizados, nos quais há censura de programas de TV, peças de teatro,
publicações, filmes, etc., tendo em vista a salvaguarda de princípios éticos e
de respeito a convicções religiosas. Não são, por exemplo, os filmes
classificados por idade, para evitar deformações no desenvolvimento psíquico e
moral das pessoas?
Porventura deixaria uma mãe veneno ao alcance
de seus filhos? Poderia então a Igreja, como mãe que é dos católicos, deixar ao
alcance de seus filhos publicações que fossem nocivas à sua saúde espiritual?
Está a maioria da população brasileira,
atualmente, satisfeita com a deseducação promovida pela televisão? Não está
desprezando e agredindo as mais caras tradições da família brasileira, os bons
costumes, a moralidade, os princípios éticos? Não está minando o caráter de
nossa juventude? Não se pedem medidas que proíbam programas que levam à
dissolução dos valores morais, éticos e religiosos?
Acrescente-se ainda que pessoas de sólida
formação espiritual tinham permissão para ler publicações no Index.
Atualmente
não temos o Index, mas temos publicações sérias, como Pergunte e Responderemos,
que analisam e recomendam ou desaconselham a leitura de certas publicações, as
quais nada de útil apresentam e podem causar confusão e desvios de fé e Moral
em pessoas com deficiências em sua formação espiritual.
3. OS PROCESSOS
3.1. O primeiro Processo (1616)
Galileu soube de um
aparelho inventado pelo holandês Hans Lippershey que permitia ver objetos
afastados com nitidez (telescópio). A partir dessas informações construiu um
telescópio com melhores características e com ele fez muitas descobertas, tais
como:
– as manchas do Sol (que não é, pois, o corpo
perfeito descrito por Aristóteles);
– as crateras da Lua (que, portanto, não é a
esfera lisa, perfeita, admitida por Aristóteles);
– a Via Láctea é constituída por um grande
número de estrelas;
– Júpiter possui Luas (Galileu descobriu
quatro), o que demonstrava que a Terra não era o centro de tudo;
– Vênus tem fases como
a Lua; pelo que, muito provavelmente, deveria girar em torno do Sol.
Estas descobertas
foram publicadas em 1610 e trouxeram uma grande popularidade a Galileu. Entre
os que o cumprimentaram e admiravam seu trabalho, estavam Kepler e Clavius.
Por outro lado, os
aristotélicos reagiram violentamente, inclusive duvidando da competência de
Galileu como pesquisador: manchas solares e relevo da Lua dever-se-iam a
sujeira nas Lentes do telescópio; outras descobertas não passariam de ilusões
de ótica.
Em 1611,
Galileu esteve em Roma e foi muito homenageado por cientistas e nobres. Foi
recebido como membro da Accademia dei Lincei, a mais antiga academia
científica da Itália. Os jesuítas (muitos dos quais eram professores e
astrônomos) dedicaram-lhe uma festa acadêmica no Colégio Romano, com a presença
de condes, duques, muitos prelados e alguns Cardeais. O próprio Papa Paulo V
concedeu-lhe audiência.
Os problemas começaram
com a publicação do livro Trattato contro il moto della Terra
(“Tratado contra o movimento da Terra”), do físico e teólogo Ludovico delle
Colombe, neste mesmo ano (1611). Ludovico elogiava Galileu, mas citava trechos
da Bíblia e argumentos dos Santos Padres para demonstrar a tese geocêntrica.
Eis algumas das citações: Fundaste a terra em bases sólidas, que são
eternamente inabaláveis (Sal 103,5); Uma geração passa, outra vem; mas
a Terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar ao
seu lugar (Ecl 1, 4-5).
O problema
é que Galileu, em vez de responder com argumentos físicos, usou argumentos
bíblicos, citando outro trecho que parece defender a tese contrária: Diante
dele estremece a terra inteira (Sal 95,9).
Acima, gravura de S.
Roberto Belarmino e ao lado, carta escrita pelo Santo (1542-1621) a pedido
de Galileu em 26 de maio de 1616, como prova de que o cientista não fora
acusado pela Inquisição.
O texto diz:
“Nós, Roberto Cardeal Belarmino, tendo ouvido que é
caluniosamente citado que o Senhor Galileu Galilei em nossas mãos abjurou e
também foi punido com saudável penitência por isto; e averiguações terem sido
feitas no que diz respeito à verdade, dizemos que o dito senhor Galilei não
abjurou qualquer opinião ou doutrina dele em nossas mãos nem naquela de
qualquer outra pessoa em Roma, muito menos em qualquer outro lugar, no nosso
conhecimento; nem ele recebeu penitência de qualquer tipo; mas somente foi dito
a ele a decisão feita por Sua Santidade e publicada pela Sagrada Congregação do
Índice, na qual é declarado que a doutrina atribuida a Copernicus, de que a
Terra se move em torno do Sol e que o Sol está fixo no centro do Universo sem
se mover de leste para oeste, é contrária às Santas Escrituras, e por
conseguinte não pode ser defendida ou sustentada”.
Essa carta foi
utilizada no segundo processo em 1633 (a imagem foi retirada da página do
Observatório Nacional).
Fonte:
www.quadrante.com.br
(Continua)