O CASO
GALILEU (II)
Por Joaquim Blessmann
E assim a disputa, que
deveria ser de caráter científico, passou para a exegese e a teologia. Os
debates se multiplicaram. O beneditino Castelli defendia a opinião de Galileu.
Este escreveu diversas cartas, dirigidas, entre outros, ao próprio Castelli, a
Clavius e ao Cardeal Roberto Belarmino (canonizado em 1930), defendendo-se. Da
carta a Castelli transcrevemos um trecho, pela posição correta assumida por
Galileu, no que diz respeito à interpretação da Bíblia:
“A Escritura não se
engana, mas sim os seus intérpretes e comentadores, de várias maneiras, entre
as quais uma gravíssima e freqüentíssima, quando querem fixar-se sempre no puro
sentido literal, pois assim aparecerão não só diversas contradições, mas também
graves erros e heresias; seria necessário dar a Deus pés e mãos, e olhos, e
também coisas corpóreas e humanas, como cólera, arrependimento, ódio,
esquecimento do passado e ignorância do futuro. Donde, assim como na Escritura
se encontram muitas proposições falsas quanto ao sentido nu das palavras, mas
assim postas para se acomodarem ao numeroso vulgo, assim ... é necessário que
os sábios comentadores apresentem o verdadeiro sentido”13.
Essa carta foi
difundida por meio de cópias, e o dominicano Niccolò Lorini enviou uma delas à
Sagrada Congregação do Index (Inquisição Romana). A carta foi examinada,
qualificada favoravelmente e o caso encerrado.
Entretanto, Galileu
insistia em debater no terreno exegético-escriturístico, abandonando as razões
científicas do sistema astronômico que defendia. Queria forçar uma decisão
urgente da Sagrada Congregação para que certas passagens da Escritura fossem
interpretadas de modo diferente do usual havia séculos.
Foi advertido para que
deixasse o lado teológico da questão e usasse apenas argumentos das ciências
naturais para justificar o sistema heliocêntrico.
Paolo Antonio
Foscarini, carmelita da Calábria, publica em 1615 a sua Lettera sopra
l'opinione dei Pitagorici e del Copernico (“Carta sobre a opinião dos
pitagóricos e de Copérnico”) em que defende a opinião de Copérnico.
O Cardeal Belarmino
recomenda prudência a Galileu e a Foscarini: que não apresentassem o sistema
heliocêntrico como verdade definitiva (o que não existe na ciência; nesta, nada
é definitivo) e que não forçassem reinterpretações da Sagrada Escritura,
enquanto não houvesse provas demonstrativas do novo sistema. Eis trechos de sua
carta:
“Uma coisa é sustentar
o movimento da Terra e a estabilidade do Sol como hipótese, e isso está muito
bem dito e não tem perigo algum..., e é tudo quanto deveria bastar ao
matemático”.
E mais adiante, na
mesma carta:
“Quando fosse
verdadeiramente demonstrado que o Sol está no centro do mundo e a Terra no
terceiro céu, e que o Sol não circunda a Terra, mas sim a Terra circunda o Sol,
então seria necessário com muitas considerações, pelo contrário, que são coisas
que não podemos entender. Por mim, não acreditarei que seja possível tal
demonstração, até que me seja apresentada”14.
O fato é que Galileu
não dispunha de alguma prova concreta ou convincente. A prova em que insistia,
do fluxo e refluxo das marés, estava errada. As marés são causadas pela força
gravitacional da Lua e do Sol. Ademais, se fossem causadas pela rotação da
Terra, deveria haver só uma maré por dia, e não duas.
Acenou, como prova,
para os ventos alísios, mas não pôde quantificar o fenômeno. E aí estava certo,
pois o desvio para o Oeste dos ventos que sopram para o Equador em ambos os
hemisférios é causado pela rotação da Terra.
Em conclusão: não tinha
provas científicas. Como vimos, tentou provar suas idéias por meio da Bíblia.
Somente muito mais tarde, em 1851, é que o físico e astrônomo francês Jean
Foucault conseguiu provar o movimento de rotação da Terra, com um pêndulo
dependurado do teto do Panthéon de Paris, que oscila em um plano fixo enquanto
a Terra gira.
Entrementes, o padre
dominicano Tommaso Caccini fazia vários ataques aos matemáticos e aos adeptos
de Galileu. O primeiro destes ataques aconteceu por ocasião de um sermão sobre
o milagre de Josué (em que o Sol teria parado; cf. Js 10, 7-15). Caccini foi
chamado a Roma para explicar os ataques a Galileu e aproveitou a ocasião para,
junto com outros, pressionar o Santo Ofício, para que Galileu fosse condenado.
Galileu continuou, com
seu estilo polêmico, a discutir. Diz a Enciclopédia Mirador Internacional
(verbete Galileu) que era “de um estilo de grande vivacidade,
freqüentemente irônico e mordaz, pois era um temperamento polêmico”. Eis
exemplos (de outras fontes, citadas neste trabalho) de seu estilo de
argumentar, nada científico: recorria aos vocábulos “idiotas, bufos,
hipócritas, impostores, ignorantes, estúpidos, animais”
Em 24.01.1616, em
sessão do Santo Ofício, os consultores apresentam seu parecer sobre a
controvérsia. Qualificam duas proposições:
1.º) Sol fixo.
É considerada falsa e absurda do ponto de vista filosófico e formalmente
herética, por estar em contradição com várias passagens da Sagrada Escritura,
de acordo com o sentido literal e a interpretação corrente dos Padres da Igreja.
2.º) Rotação da
Terra e translação em torno do Sol. Falsa e absurda, do ponto de vista
filosófico, e errônea na fé.
No dia seguinte, há
uma reunião dos Cardeais, sob a presidência do Papa Paulo V, para avaliar o
parecer dos consultores e pronunciar uma decisão. Foram tomadas duas medidas:
1.º) Cardeal Belarmino
é encarregado de, em audiência particular, convencer Galileu a abandonar a
teoria copernicana. Galileu nega-se a tal. Recebe, então, de Belarmino, diante
de um comissário da Inquisição e de outras pessoas, o preceito formal de não
sustentar, ensinar ou defender. Galileu promete obediência. Não houve processo
formal, nem sentença, abjuração ou penitência.
2.º) Por decreto da
Sagrada Congregação do Index, foram proibidos os livros de Copérnico, de
Foscarini e, de forma geral, dos que defendiam o sistema heliocêntrico. Nenhuma
referência nem à obra nem ao nome de Galileu.
Observe-se que a obra
de Copérnico, já com 80 anos, até então tinha sido deixada pela Igreja Católica
à livre discussão, e havia eclesiásticos que a defendiam. E nela baseou-se a
reforma do calendário, já referida.
O que provocou, depois
de tanto tempo, sua proibição, foi a atitude de Galileu, querendo impor como
certa, verdadeira, uma teoria para a qual não tinha provas objetivas. Pelo
contrário, insistia em uma prova falsa, a das marés. E jamais ele ou outro
contemporâneo conseguiu explicar o paradoxo do vento de 1.440 km/h, na linha do
Equador, que “deveria” existir em virtude da rotação da Terra. Galileu, lançado
mão de razões exegéticas e insistindo em uma reinterpretação da Bíblia, acabou
forçando uma decisão imatura e lamentável da Sagrada Congregação do Index.
É de destacar que, em
11.03.1616, Paulo V recebeu Galileu em audiência particular. Considera-o um
verdadeiro filho da Igreja e reconhece a retidão das intenções de Galileu,
dizendo-lhe que nada temesse de seus caluniadores.
Em novembro de 1618
apareceram três cometas na Europa. Foi o estopim para recomeçarem as
discussões, com Galileu violento no falar como antes.
Entre 1624 e 1630,
Galileu escreve um novo livro, Diálogo sobre os dois Sistemas Máximos de
Mundo, o Ptolomaico e o Copernicano. Galileu comunicara ao Papa Urbano
VIII que pretendia escrever esse livro. O Papa o apoiara, aconselhando-o,
porém, a não entrar em conflito com o Santo Ofício e a tratar o sistema de
Copérnico como hipótese. Uma recomendação perfeitamente correta para os dias
atuais, pois agora é ponto pacífico que em ciência nada é definitivo.
Em maio de 1630,
Galileu vai a Roma para obter o necessário “Imprimatur”. O encarregado de
examinar seu livro, Pe. Riccardi, era amigo pessoal de Galileu. Conclui que
eram necessárias algumas correções:
1.º) Mudar o título,
que era Diálogo sobre as marés, porque destacava muito o único
argumento (e errado) de Galileu para provar o sistema copernicano.
2.º) Alterar algumas
passagens.
3.º) Alterar o
prefácio, de modo a não apresentar o sistema heliocêntrico como verdade segura,
mas sim como hipótese.
Diante
disso, Galileu resolveu imprimir o livro em Florença. Riccardi concordou, desde
que Galileu lhe trouxesse o primeiro exemplar da obra, com as devidas
correções, para receber o “Imprimatur”. Galileu argumenta que a epidemia de
Peste dificultava a comunicação entre as duas cidades. Mais uma vez, cede Riccardi,
concordando com o exame da obra em Florença, bastando enviar a Roma o título e
o Prefácio.
Em Florença, Galileu
consegue que o revisor seja outro amigo seu, Giacinto Stefani, que foi induzido
a pensar que a obra já tinha sido aprovada em Roma. Stefani concedeu a
autorização. O título e o prefácio foram enviados para aprovação e o livro foi
publicado em 1632.
Quando Riccardi
recebeu um exemplar da obra completa, viu com surpresa que, antes da aprovação
florentina, figurava a sua. E sem nenhuma correção no corpo do livro: o sistema
copernicano era apresentado em toda a obra, exceto no Prefácio, como verdade
incontroversa.
Urbano VIII,
pressionado pelos inimigos de Galileu, e considerando a desobediência formal à
proibição de 1616, passou o assunto à Inquisição.
A comissão encarregada
de examinar a obra agrupou a censura em oito pontos, esclarecendo nas
conclusões que todos eles podiam ser corrigidos (as marés como falsa prova,
apresentar o sistema copernicano apenas como hipótese, etc.). Mas, acrescentava,
a desobediência era um agravante bastante sério (o grifo é nosso, pois
as conclusões da comissão mostram que o problema era, basicamente,
disciplinar).
Galileu,
chamado a Roma para julgamento, depois de vários adiamentos (doença, velhice,
Peste, inundações, foram os motivos alegados), lá chega em 12.02.1633.
Hospedou-se inicialmente no palácio do Embaixador de Florença; depois passou a
residir no edifício da Inquisição, em aposentos do Fiscal da Inquisição,
“cômodos e abertos” (nada de aprisionamento em masmorras, “a pão e água”, como
diz uma das lendas).
Foi submetido a quatro
interrogatórios:
– No primeiro negou
que houvesse defendido o sistema heliocêntrico em seu livro.
– No segundo, declarou
que, relendo o livro, reparara que em alguns trechos o leitor podia realmente
pensar que ele defendia tal sistema.
– No terceiro,
desculpou-se por desobedecer à proibição de 1616, afirmando que a advertência
tinha sido verbal e que não se recordava de uma ordem para ele em particular.
– No quarto e último
interrogatório (em 21.06.1633), quando lhe perguntaram solenemente se defendia
o sistema copernicano, respondeu negativamente.
No dia seguinte, em
Decreto do Santo Ofício, é publicada a sentença, na qual consta: “... é
absolvido da suspeição de heresia, desde que abjure, maldiga e deteste ditos
erros e heresias...”. Galileu ouviu de pé e com a cabeça descoberta a leitura
de sua condenação (três anos de prisão; recitação semanal dos sete salmos
penitenciais, por três anos). Depois, de joelhos e com uma mão sobre os
Evangelhos, assinou um ato de abjuração, no qual declarava que era “justamente
suspeito de heresia”.
Nesta
ocasião, Galileu teria exclamado, batendo com o pé no chão: “e pur si muove” (e
todavia se move). Lenda inverossímil, dadas as circunstâncias (estava de
joelhos). É uma fantasia que apareceu pela primeira vez em 1757 (mais de um
século depois), em obra do jornalista italiano Giuseppe Baretti (1719-1789).
Além das penas pessoais, também proibiu-se o
livro de Galileu.
No dia seguinte, a sentença é comutada pelo
Papa. Galileu vai viver no palácio do Embaixador de Florença e depois passa
para a casa do Arcebispo Piccolomini, seu discípulo e admirador, em uma espécie
de prisão domiciliar. Foi-lhe permitido voltar a Florença em 10.12.1633, cinco
meses e oito dias depois da condenação.
Como se vê, nada de condenação por heresia,
torturas, fogueira, etc. É verdade que durante o processo, em virtude de suas
evasivas, foi ameaçado de tortura, de acordo com os trâmites processuais. Por
outra, a tortura nunca era infligida a pessoas idosas ou enfermas. Galileu
estaria isento por ambas as condições.
“Embora
reconheçamos que o segundo processo teve, como gravame, a vaidade e a
insinceridade de Galileu, devemos todavia lamentar profundamente a primeira condenação
de 1616 como inquietante erro judicial, e como abuso de poder diretamente
catastrófico em suas conseqüências” [proibição das obras de Copérnico]15.
Em 1637, Galileu fica
cego. Em 1638, publica o livro Diálogo das duas novas ciências, que
são a Resistência dos Materiais e a Mecânica Racional, básicas para vários
ramos da engenharia.
Morre em 08.01.1642,
assistido por um sacerdote, como bom católico.
4. COMENTÁRIOS
a) Muitos dos
comentários a seguir são retirados da obra de Jorge Cintra.
– O episódio de
Galileu é lamentável, mas compreensível, se levarmos em consideração o
ambiente, costumes e mentalidades vigentes naquela época.
– A imagem Galileu
versus Igreja, ou ciência versus Igreja, foi criada por pensadores
anticatólicos dos séculos XVIII e XIX, para apresentar a Igreja como inimiga da
ciência, do progresso e da razão. Muitos eclesiásticos estudavam
sistematicamente astronomia e vários deles vinham defendendo o sistema
heliocêntrico mesmo antes de Galileu, como o próprio Copérnico, que era cônego.
– A Igreja não queria
proibir que se discutisse o sistema de Copérnico, mas apenas solicitava que não
fosse apresentado como incontestável, enquanto não houvesse provas decisivas. O
argumento das marés, que Galileu apresentou como prova máxima, era falso.
– Aliás, como já
tínhamos comentado, pela atual filosofia da ciência, nada é definitivo em
ciência; mesmo as teorias mais “badaladas” podem cair. Um exemplo é a famosa
teoria do evolucionismo, de Darwin. Pelos conhecimentos atuais, não há “elos
perdidos”. O que aconteceu foram mutações fortes, mudanças bruscas que geraram
novas espécies, cuja estabilidade está cada vez mais comprovada. Uma espécie
aparece “subitamente” e se mantém praticamente inalterada, até desaparecer.
Sobre evolucionismo recomendamos a obra de Evolucionismo: mito e realidade,
de Jorge Cintra, uma excelente e resumida apresentação do tema16.
Outros exemplos temos
na própria astronomia, com as diversas teorias sobre a formação dos planetas,
sobre o universo em expansão, em contração, pulsante, etc.
– Parte do acontecido
deve-se ao caráter de Galileu, polêmico, ríspido, agressivo, e ao fato de ter
difundido prematuramente suas conclusões científicas, sem provas suficientes.
– Houve também um erro
grave por parte de representantes da Igreja, que se intrometeram em matéria
exclusivamente científica e condenaram um sistema astronômico, no processo de
1616.
b) Do filósofo
cético-agnóstico Paul Feyerabend citamos: “No tempo de Galileu, a Igreja se
manteve mais fiel à razão do que o próprio Galileu e levou em consideração
também as conseqüências éticas e sociais da doutrina de Galileu. O processo
contra Galileu era justo e racional”17.
c) Palavras do físico
Nicola Cabibbo, presidente do Instituto Nacional de Física Nuclear da Itália:
“Se examinarmos o processo, vemos que Galileu não foi condenado pelas suas
teses científicas, mas porque tentava fazer teologia. O próprio Galileu
afirmava, errando: visto que a Terra gira em torno do Sol, devemos mudar a
Sagrada Escritura. Nesse caso, quando Newton descobriu a gravitação universal e
Einstein a relatividade, deveríamos ter mudado de novo os textos sagrados”18.
d) Filósofo laico
Emanuele Severino, falando sobre a reabilitação de Galileu pela Igreja:
“recitando o «mea culpa» sobre Galileu, a Igreja atribui à ciência um valor
absoluto justamente hoje, quando a ciência reconhece que não tem verdades
absolutas e indiscutíveis. É estranho que não levem em conta as considerações
do Cardeal Belarmino, que aconselhou Galileu a expor as suas teorias em forma
de hipótese e não de verdades absolutas. A postura de Belarmino era muito mais
moderna, com uma consciência crítica do saber científico superior à de Galileu”19.
e) Em 03.07.1981, o
Papa João Paulo II nomeou uma comissão de teólogos, cientistas e historiadores,
a fim de aprofundarem o exame do caso Galileu. Os resultados foram apresentados
após onze anos, em 31.10.1992. Neste mesmo dia, 350.º aniversário da morte de
Galileu, realizou-se sessão solene da Pontifícia Academia de Ciências. Do
discurso que então proferiu João Paulo II extraímos os seguintes trechos:
“Galileu rejeitou a
sugestão de apresentar o sistema de Copérnico como uma hipótese, até ser
confirmado por provas irrefutáveis. Tratava-se de uma exigência do método
experimental, do qual ele foi o iniciador genial”. (Isto é, Galileu errou em
seu próprio terreno).
“O problema que os
teólogos da época se puseram era o da compatibilidade do heliocentrismo e da
Escritura. A ciência nova, com os seus métodos e a liberdade de investigação
que eles supõem, obrigava os teólogos a interrogarem-se sobre os seus próprios
critérios de interpretação da Escritura. A maioria não o soube fazer.
Paradoxalmente, Galileu, fiel sincero, mostrou-se sobre este ponto mais
perspicaz do que os seus adversários teólogos. Se a Escritura não pode errar,
escreve ele a Benedetto Castelli (em 1613), alguns dos seus intérpretes e
comentaristas o podem e de muitas maneiras. Também é conhecida a sua carta a
Cristina de Lorena (em 1615), que é como que um pequeno tratado de hermenêutica
bíblica”.
“A maioria dos
teólogos não percebia a distinção formal entre a Escritura Sagrada e a sua
interpretação, o que os levou a transpor indevidamente para o campo da doutrina
da fé uma questão, de fato relevante, da investigação científica.”
“Recordemos
a frase célebre atribuída a Baronio: O Espírito Santo quer nos dizer como se
vai para o céu; não como vai o céu”. “Belarmino, que tinha percebido o que
estava realmente em jogo no debate, considerava que, diante de eventuais provas
científicas do movimento orbital da Terra ao redor do Sol, devíamos
interpretar, com uma grande circunspeção, toda a passagem da Bíblia que parece
afirmar que a Terra é imóvel, e «dizer que não o compreendemos, antes de
afirmar que é falso o que se demonstra» (Carta ao Pe. Foscarini, 12.04.1615)”.
f) João Paulo II recordou um fato histórico
pouco conhecido: Galileu já tinha sido reabilitado por Bento XIV em 1741, com a
concessão do “Imprimatur” à primeira edição das obras completas de Galileu. Em
1757, as obras científicas favoráveis à teoria heliocêntrica foram retiradas do
Index de livros proibidos. Em 1822, Pio VII determinou que o “Imprimatur” podia
ser dado também aos estudos que apresentavam a teoria copernicana como tese.
g) Destacando alguns pontos do que foi
apresentado neste trabalho, diremos que a condenação de Galileu foi devida ao
modo como ele defendeu o sistema heliocêntrico. Quis prová-lo com argumentos
bíblicos (incidindo no erro que condenava em seus oponentes, ele, o criador da
experiência científica), errou no argumento das marés e insistiu na necessidade
de uma pronta reinterpretação de certos trechos da Bíblia. A condenação de 1633
deveu-se à desobediência de Galileu ao compromisso assumido em 1616. Neste
processo, sim, os representantes da Igreja cometeram um grave erro, opinando em
matéria de interesse exclusivo da ciência, ao declararem um sistema astronômico
contrário à fé.
Houve acertos de ambos os lados no campo
oposto. Galileu com seus comentários sobre a correta interpretação da Bíblia (“um
pequeno tratado de hermenêutica bíblica”, no dizer de João Paulo II). Belarmino
e outros eclesiásticos apregoando o que hoje é um princípio fundamental da
ciência: nela, nada é definitivo (o heliocentrismo devia ser apresentado como
hipótese, não como verdade incontestável). Eles tiveram uma concepção dos
fundamentos do saber científico superior à de Galileu, cientista renomado e
criador da experiência cientificamente conduzida.
NOTAS:
(1)
Jorge Pimentel Cintra, Galileu, Quadrante, São Paulo, 1987.
(2) Franco Massara, Os grandes julgamentos da história: Galileu Galilei,
Otto Pierre Editores, São Paulo, s.d, pág. 28.
(3) citado por Estêvão Bettencourt, “O caso Galileu Galilei”, Revista Pergunte
e Responderemos, Ano XXIV, n.º 267, março-abril 1983, págs. 90-97.
(4) Citações tiradas de: Mário Viganó, “Algumas considerações sobre o caso
Galileu”. Cultura e Fé, nº. 32, janeiro-março 1986, pág. 11-26.
(5) Exégèse médiévale, Aubier, Paris, 1962
(6) D. João Evangelista Martins Terra, SJ, O Negro e a Igreja, Loyola,
2ª. ed., São Paulo, 1988.
(7) Estêvão Bettencourt, “História do Cristianismo”. Revista Pergunte e
Responderemos, Ano X, n.º 114, junho 1969, págs. 261-272.
(8) Estêvão Bettencourt, “No caso Galileu Galilei: que houve?”. Revista Pergunte
e Responderemos, ANO XXI, n.º 250, outubro 1980, págs. 420-428.
(9) Jorge Pimentel Cintra, op. cit.
(10) Citações tiradas de: Antonio Socci, “Iluminados e caçadores de bruxas”.
Revista 30 dias, Ano V, n.º 6, junho 1990, págs. 68-71.
(11) Estêvão Bettencourt, “O martelo das feiticeiras”. Revista Pergunte e
Responderemos, Ano XXXII, n.º 354, novembro 1991, págs. 495-508.
(12) Boulanger, Manual de Apologética, Livraria Apostolado da
Imprensa, Porto, s.d, págs. 515 e 519.
(13) Citado por Franco Massara, op. cit., pág. 111.
(14) Idem, págs. 163 e 165.
(15) Tüchle & Bouman, Nova história da Igreja. III – Reforma e
Contra-Reforma, 2ª. ed., Vozes, Petrópolis, 1983.
(16) Sobre evolucionismo recomendamos a obra de Evolucionismo: mito e
realidade, de Jorge Cintra (Quadrante, São Paulo, 1988), uma excelente e
resumida apresentação do tema.
(17) citado por: Joseph Ratzinger, “O desafio da homologação religiosa”.
Revista 30 Dias, Ano V nº. 5, maio 1990, pág. 62-67.
(18) citado por: Lucio Brunelli, “Galileu, o teólogo”. Revista 30 Dias,
Ano VI, nº. 10, novembro 1992, pág. 29.
(19) citado por: Antonio Socci, “Academia ou política?”. Revista 30 Dias,
Ano VII, nº. 1, janeiro 1993, págs. 32-35.
(20) L’Osservatore Romano, edição portuguesa, nº. 45 (1.098),
08.11.1992, págs. 554-555.
____________________________
Joaquim Blessmann
Engeheiro Civil, Mestre e Doutor em Ciências pelo Instituto Tecnológico de
Aeronáutica. Professor Emérito da UFRGS. Professor Honorário da Universidade
Austral, Buenos Aires. Membro Correspondente da "Academia Nacional de
Ingeniería" da Argentina.
Fonte:
www.quadrante.com.br