Paulo conduz-nos na descoberta
do mistério da Igreja
Dom José
Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa,
na Solenidade da Dedicação da
Sé Patriarcal,
25 de Outubro de 2008
1. A Dedicação da Catedral é um convite a
mergulhar no mistério da Igreja que somos chamados a viver na experiência de
uma Igreja particular, a nossa Diocese. Enquanto Igreja Mãe, a Catedral
simboliza dimensões fundamentais da Igreja que queremos ser. Antes de mais, a
sua fonte donde jorra continuamente a água viva que fecunda a Igreja: Cristo
ressuscitado, cuja fecundidade é actuada através do ministério apostólico,
exercido pelo Bispo, sucessor dos Apóstolos, que lhe foi dado como pastor, em
nome e nas vezes de Cristo Bom Pastor. Chama-se Catedral, porque aí está a
cátedra do Bispo como mestre da fé, a partir da qual alimenta e orienta o Povo
do Senhor com a Palavra de Deus. A Catedral lembra-nos que a Igreja é um Povo
alimentado pela Palavra, que suscita e fortalece a fé. Deixar de escutar a
Palavra é separar-se da fonte, correr o risco de estiolar na secura das vozes
do mundo. Circunstâncias especiais, como a celebração de um Sínodo sobre a
Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja, e o Ano Paulino, desafiam a
nossa Igreja de Lisboa a fortalecer a sua fé, escutando a Palavra de Deus, sua
fonte e contínuo alimento.
Mas a Catedral evoca também a unidade, sempre a construir,
na imensa variedade de expressões que constituem a riqueza da Igreja. Esta
unidade só se consegue pela união de todos ao mistério de Cristo, realizada
através dos sacramentos, sobretudo a Eucaristia. Na Catedral está o altar
maior, o altar da Diocese, onde o Bispo celebra a Páscoa e realiza
continuamente esta unidade de toda a Igreja diocesana em Cristo. A Liturgia da
Catedral, presidida pelo Bispo, na sua qualidade e na sua intensidade, deve ser
o modelo inspirador de todas as Eucaristias desta vasta Diocese, sempre
celebradas em comunhão com o Bispo. Se percebermos isto, os cristãos
descobrirão a necessidade e a alegria de participarem, de vez em quando, na
Liturgia do Bispo, na Igreja Catedral.
Esta evoca ainda o sentido de missão e de partilha fraterna
dos dons. A Igreja é missionária por exigência do seu mistério, o mesmo de
Jesus Cristo, e é sempre o Bispo que, em nome da Igreja, envia os que partem em
missão, expressão principal da partilha de dons.
Esta celebração litúrgica lembra-nos a centralidade da
Igreja Particular como o espaço concreto da nossa vivência do mistério da
Igreja. Quase cinquenta anos depois do encerramento do Concílio Vaticano II, há
sintomas de relativização desta centralidade da Igreja Particular, numa tensão
injustificável com a pertença e o serviço à Igreja Universal, como se esta
tivesse prioridade sobre aquela ou a Diocese fosse apenas uma parte de um todo
global, não percebendo que a Igreja particular não é toda a Igreja, mas é o
todo da Igreja, a totalidade do seu mistério vivido por uma comunidade
concreta, num lugar concreto. Desta totalidade do mistério faz parte a comunhão
universal entre as Igrejas, a que preside o Santo Padre, Pastor Universal,
Cabeça do Colégio Apostólico, a quem o Senhor confiou cada Igreja e toda a
Igreja. Os que partem, são enviados pela sua Igreja e vão viver a sua vida e
missão numa outra Igreja particular, ainda que essa missão seja marcada pelo
dinamismo da comunhão universal.
2. Porque, neste ano, estamos a caminhar com São
Paulo, deixemos que ele nos conduza à compreensão do mistério da Igreja.
Na Estrada de Damasco, Paulo não se converteu à Igreja, mas
a Jesus Cristo. Estava convencido que Jesus estava morto e que apresentá-lo
como ressuscitado e como Messias era um abuso intolerável e perigoso para a fé
judaica. Paulo está consciente de que foi o Senhor ressuscitado que lhe
apareceu. Aliás situa essa visão na linha das aparições de Jesus ressuscitado
aos Apóstolos e aos Discípulos: “por fim apareceu-me também a mim” (1Co. 15,8).
Afinal, era verdade, Jesus estava vivo, tinha ressuscitado, como afirmavam os
cristãos. Cristo envolve-o na Sua glória de ressuscitado, revela-Se-lhe como
Senhor, designação preferida por Paulo até ao fim da vida. Mas se Ele era o
Senhor, era também o Messias, o único que merecia o título de Senhor. E se era
o Senhor e Messias, a Lei de Moisés já não era o caminho da salvação, mas sim
esse Cristo Senhor, em Quem era preciso acreditar para chegar à salvação.
Para Paulo, acreditar em Jesus é mais do que um acto da
razão, é um abandono total a esse ressuscitado, é nascer de novo nesse
encontro, é mergulhar n’Ele e ser um com Ele, é iniciar uma vida nova, centrada
nessa relação com Jesus Cristo. Ele explica a sua vida e a sua missão com esse
facto: “fui eu próprio apanhado por Jesus Cristo” (Fil. 3,12). Essa é a sua
credencial: “Não sou eu livre? Não sou eu Apóstolo? Não vi eu Jesus, nosso
Senhor? Não sois vós obra minha no Senhor?” (1Co. 9,1). Cristo é a sua força:
“Tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fil. 4,13). Cristo é a sua vida: “Para
mim viver é Cristo” (Fil. 1,21).
Mas depois deste encontro com o ressuscitado, Paulo é
enviado à Igreja que estava em Damasco, é acolhido por ela, é-lhe confirmado
que o Senhor que lhe apareceu é o Messias em Quem a Igreja acredita, recebe o
baptismo, é-lhe especificada a missão, que é a missão da Igreja (cf. Act.
9,10-21). Paulo descobre a Igreja porque reconhece nela Cristo ressuscitado.
Aquela luz que o envolveu, e transformou a sua vida, está em acção nos
cristãos, identificando-os com Cristo. A Igreja é Cristo ressuscitado em acção
transformadora e, portanto, salvífica. Isto leva Paulo a encontrar Cristo na
Igreja, a identificá-la com Cristo ressuscitado. Ela é o Corpo de Cristo (cf.
Act. 9,4s). Anunciar Jesus Cristo é a sua missão; celebrar a Sua Páscoa é o seu
dom privilegiado; esperar a união definitiva com Cristo, no seio da Santíssima
Trindade, é a sua esperança. Cristo é, para a Igreja, a fonte da vida, da sua
coesão e do seu crescimento (cf. Col. 2,19). Paulo ama a Cristo, amando a
Igreja e ama a Igreja, porque ama Jesus Cristo.
Esta identificação entre Cristo e a Igreja, não anula a
relação única que Cristo tem com ela, como Seu Senhor e Sua plenitude. Cristo é
a plenitude da Igreja, porque o ressuscitado é a fonte inesgotável da vida. Mas
a Igreja também é, por seu lado, plenitude de Jesus Cristo. Sempre que num
cristão começa uma vida nova, expressão da vida de Cristo, a Igreja alarga as
dimensões do Corpo de Cristo, cujo dinamismo é ser tudo em todos (cf. Efs.
1,19-23).
3. Esta identificação entre Cristo e a Igreja Paulo
descobre-a e vive-a nas diversas Igrejas particulares. Antes de mais na Igreja
de Damasco que o acolhe e onde fica durante três anos, até que uma mudança
política com o poder adquirido por Aretas, Rei dos Nabateus, o faz temer pela
sua vida e o leva a abandonar precipitadamente Damasco. Nessa Igreja, ele
recebeu o baptismo e iniciou a sua actividade evangelizadora como Apóstolo (cf.
Act. 9,19ss).
A segunda Igreja referência para Paulo é Antioquia, onde
entra pela mão de Barnabé. É esta Igreja que os envia para a grande missão
junto dos gentios (cf. Act. 13,1ss) e continuará a ser uma Igreja de referência
mesmo depois de ele próprio ter fundado outras Igrejas.
Paulo cria uma relação mais estreita com as Igrejas por ele
fundadas. Quando lhes escreve, identifica-as sempre como “a Igreja de Deus
estabelecida em Corinto” (cf. 1Co. 1,2; 2Co. 1,1). Mas Paulo relaciona-se
também com outras Igrejas fundadas por outros. A Carta aos Romanos é disso um
exemplo.
É claro para Paulo que a Igreja que se identifica com Jesus
Cristo e brota da Sua Páscoa, é o conjunto destas Igrejas particulares, onde
ele e os cristãos vivem, na sua união a Jesus Cristo, a plenitude do mistério
da Igreja. Há em todas elas a consciência de que pertencem a uma única Igreja
de Jesus Cristo. É a sua identificação com Cristo, morto e ressuscitado, que
constitui a primeira exigência de universalidade.
Esta exprime-se, antes de mais, na união apostólica e no
reconhecimento da primazia de Pedro, o que dá à Igreja de Jerusalém uma
centralidade indiscutível. Exprime-se, igualmente, na urgência da missão. Cada
Igreja deve anunciar a fé, dando origem a outras Igrejas locais. Nesta grande
missão participam todos os cristãos, homens e mulheres. O intercambio frequente
entre as Igrejas, mostra que elas são Igrejas em comunhão, na fé e na caridade,
grande desafio para a universalidade da Igreja e da salvação. Uma expressão
concreta desta comunhão universal é a partilha de dons, as colectas, em que
Paulo se empenha pessoalmente, em favor das Igrejas mais pobres,
particularmente a Igreja de Jerusalém.
Estas expressões da universalidade são, ainda hoje,
expressões da vivência da totalidade do mistério da Igreja vivido em cada
Igreja particular, no nosso caso, da Igreja de Deus que está em Lisboa: a
plenitude do mistério de Jesus Cristo, o primeiro património comum de todas as
Igrejas; a unidade do Colégio Apostólico, a que preside Pedro; o ardor
missionário, que leva os membros de cada Igreja a assumirem a universalidade da
missão; a inter-ajuda entre as Igrejas, mesmo no aspecto material. Todas estas
dimensões estão presentes no dinamismo da Igreja de Lisboa. É preciso redescobrir
que é na Igreja Particular que se vive a totalidade, incluindo a beleza e as
exigências da universalidade.
†
JOSÉ, Cardeal-Patriarca
Fonte: http://patriarcado-lisboa.pt