São Paulo, 2 mil anos

 

Cardeal Odilo Pedro Scherer

 

 

O apóstolo São Paulo é, sem dúvida, um dos personagens mais marcantes do início do cristianismo. Judeu da diáspora, nasceu em Tarso, na província romana da Silícia, hoje na Turquia; seu nome era Saulo, provavelmente em homenagem a Saul, o primeiro rei dos hebreus. Recebeu sólida educação nas tradições religiosas do seu povo e tornou-se um ardoroso membro do grupo dos fariseus, que se destacava pela observância rigorosa das prescrições mosaicas. Em nome dessas tradições, ainda jovem, passou a perseguir de maneira impiedosa os seguidores de Jesus Cristo. Os Atos dos Apóstolos referem-se a ele no primeiro relato de martírios cristãos: “E Saulo estava lá, consentindo na execução de Estêvão” (Atos 8,1).

A mudança em sua vida aconteceu quando, às portas de Damasco, ele foi fulminado e cegado por uma luz fortíssima e interpelado por uma voz a lhe perguntar: “Saulo, Saulo, por que me persegues?!” Perseguia os cristãos e queria lançá-los na prisão; ele mesmo diz que a voz era de Jesus: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues” (cf Atos 9, 1-22). Aquele encontro tão desconcertante provocou uma nova trajetória na vida de Saulo, que passou a ser chamado Paulo; em várias passagens de seus escritos ele conta o que lhe aconteceu perto de Damasco (cf. Atos 22; 26; Carta aos Gálatas 1).

Daí em diante, Paulo dedicou todas as suas energias à pregação do Evangelho de Cristo. Com Barnabé, Lucas, Silas, Marcos e outros companheiros fez diversas viagens missionárias pela Ásia Menor e a Grécia, fundando comunidades cristãs e instruindo-as, depois, com suas cartas. O privilégio da cidadania romana lhe salvou a vida diante do tribunal de Jerusalém, que ameaçava condená-lo à morte por infidelidade religiosa; por seu apelo ao tribunal de César, foi levado a Roma onde, mesmo prisioneiro, continuou sua atividade missionária. Sofreu o martírio, por decapitação segundo uma tradição antiga, durante a perseguição movida contra os cristãos pelo imperador Nero, pelo ano 64 dC.

Seu túmulo é conservado sob o altar principal da basílica romana de São Paulo Fora dos Muros, uma esplêndida edificação em estilo romano feita construir pelo imperador Constantino no século IV°; depois do incêndio devastador de 1823, foi reconstruída no seu antigo esplendor com a contribuição de organizações e grupos do mundo inteiro. Estudos arqueológicos recentes confirmaram a autenticidade histórica do túmulo do Apóstolo, venerado sob o altar. A basílica é meta de constantes peregrinações de religiosos, estudiosos e turistas e uma referência para encontros ecumênicos de cristãos. Uma comunidade monástica beneditina zela pela igreja e acolhe os visitantes.

Mesmo sem endossar a afirmação de Wrede, um estudioso do início do século XX, segundo o qual é Paulo o verdadeiro fundador do cristianismo, é inegável a importância do grande apóstolo para a Igreja. Mais que os outros apóstolos e discípulos de Jesus Cristo, ele difundiu o Evangelho entre os povos e fez uma primeira aproximação da mensagem cristã com as culturas da época, dando um cunho universalista ao “caminho” vivido pelos cristãos. Isso foi fundamental para que, ao longo dos séculos, os povos que, sem deixarem de lado sua identidade cultural, pudessem conviver na mesma grande comunidade de fé.

Na sua pregação, Paulo já faz um primeiro desenvolvimento da “doutrina cristã”; partindo do Evangelho de Jesus Cristo no Evangelho, ele reflete sobre os vários temas centrais da fé cristã, como as afirmações sobre Deus e a clara configuração trinitária de Deus. Por outro lado, Paulo desenvolveu muito a reflexão sobre Jesus Cristo, abordando aspectos relativos à obra, aos ensinamentos e à pessoa do Mestre. Sua cristologia foi determinante para a definição das verdades da fé cristã nos concílios ecumênicos dos primeiros séculos do cristianismo.

A cosmovisão de Paulo e sua maneira de entender a existência humana neste mundo, a convivência e as relações sociais e os valores morais também foram e são determinantes para o cristianismo. Sua reflexão sobre a Igreja é bem estruturada e parte sempre da experiência do seu próprio encontro com Cristo; mas também tem em conta sua missão nas comunidades que fundou e acompanhou e suas relações com Pedro, outros apóstolos e os demais companheiros de missão. Ele tem clara consciência de não ser o fundador da Igreja mas colaborador numa causa bem maior que seus projetos pessoais. Para ele, a Igreja não é uma estrutura abstrata e meramente funcional, mas uma realidade viva, através da qual Jesus Cristo continua presente e sua missão se prolonga no mundo.

Paulo nasceu, segundo os estudiosos, entre os anos 6 e 9 depois de Cristo. Para comemorar os 2 mil anos do nascimento do grande apóstolo, o papa Bento XVI abriu no dia 28 de junho passado um ano santo especial. Durante este período, a Igreja convida às práticas habituais previstas para os anos jubilares, como peregrinações aos “lugares paulinos”, a busca da reconciliação e do perdão de Deus e as celebrações especiais em igrejas localmente estabelecidas como metas de peregrinação. Para conhecer melhor o apóstolo, é recomendada, de maneira especial, a leitura e o estudo dos escritos de São Paulo, no Novo Testamento.

Fica o registro deste aniversário histórico. Nossa cidade, o Estado e um número considerável de instituições e organizações da sociedade, inclusive nossa arquidiocese e este Jornal, levam o nome de São Paulo. Mesmo sem referência direta à fé religiosa, resta o fato que o Apóstolo é um personagem da história da humanidade. Bem mais do que muitos filósofos, conquistadores e aventureiros, e sem recorrer à violência, ele influenciou a cultura de muitos povos.

 

Fonte: www.cnbb.com.br