O DEMÔNIO
Cardeal D.
Eugenio de Araújo Sales
Arcebispo Emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro - 11/01/2008
O demônio é nosso tema de hoje. Que diz a Igreja sobre a sua
existência? A julgar pela atitude da mídia e de certas correntes filosóficas e
teológicas contemporâneas, “também o diabo está (ou parece) morto”. Contudo,
não é esta a posição do Papa Paulo VI ou João Paulo II, do Catecismo da Igreja
Católica. Se não, vejamos.
O último pedido do Pai Nosso “Mas
livrai-nos do mal”, faz parte da oração sacerdotal de Jesus (Jo 17,15): “Não te
peço que os tires do mundo, mas que os guardes do Malígno”. O Catecismo da
Igreja Católica (nº2850) diz que o “nós” do Pai Nosso lembra a solidariedade
para o bem e a cumplicidade para o mal existentes entre os filhos do mesmo Pai.
O Papa Paulo VI, na audiência pública de
15 de novembro de 1972, esclareceu sobre sinais da presença da ação diabólica.
Embora nem sempre tão evidente, faz-se mister muito cuidado no discernimento.
Acrescentou ele: “Podemos admitir a sua ação sinistra onde a negação de Deus se
torna radical, sutil ou absurda; onde o engano se revela hipócrita, contra a
evidência da verdade; onde o amor é acumulado por um egoísmo frio e cruel; o
nome de Cristo é empregado com ódio consciente e rebelde; onde o espírito do
Evangelho é falsificado e desmentido; onde o desespero se manifesta como a
última palavra etc”.
A afirmação da existência de espíritos
decaídos, demônios e Satanás, só tem sentido em um contexto mais amplo. A
presença de anjos e demônios jamais será aceita à margem da fé cristã. A
oposição a essa crença tradicional da Igreja surge com certo tipo da história
da religião, dentro de um ambiente racionalista e iluminista. A argumentação
daí resultante é alimentada pelas doutrinas propagadas por povos vizinhos aos
judeus. Os relatos do Antigo Testamento, segundo eles, não trazem uma
revelação, mas simplesmente reproduzem mitos das culturas pagãs. Nessa linha de
pensamento, o conhecido exegeta protestante, Rudolf Bultmann em sua obra
“Kerygma e Mythos”, sentencia: “Já não é possível usar luz elétrica e rádio
(...) e ao mesmo tempo acreditar no mundo de espíritos e milagres do Novo
Testamento”. Interessante observar que são exatamente teólogos e pensadores
protestantes de renome, como Karl Barth, que têm outra posição: “por causa da
tradição bíblica e por causa do seu valor na piedade do povo cristão”, o tema
dos anjos não pode ser preterido pela teologia. Contudo, isso não impede que
alguns teólogos católicos continuem numa profunda reticência, temerosos talvez
de serem taxados de “tradicionalistas” caso tratem, dentro da nossa crença, o
tema de anjos e demônios.
Ao falar em Satanás, é importante evitar
dois erros. O de absolutizar o Malígno, como se fosse uma terrível ameaça, em
cada momento, a cada pessoa mesmo reta, verdadeira, humilde e fiel. O demônio
pode influenciar através das faculdades mentais e das tendências da natureza.
Ele, contudo, não tem poder sobre o íntimo da pessoa, sua liberdade, sua
consciência, que pertence diretamente a Deus. Uma pessoa generosa, que procura
guardar a retidão e pureza de seu modo de agir, e mesmo a criança que reza com
amor e confiança, é mais forte do que Satanás. De outro lado, há o erro do
racionalismo, supondo não existir aquilo que não podemos ver e experimentar com
nossos sentidos. Nesse caso está o Demônio.
O Novo Testamento fala freqüentemente no
Diabo ou Satanás e em demônios. E mostra seu lugar na História da Salvação,
tanto no evento central da vida de Jesus Cristo, como na Igreja. O anjo decaído
não pode ver Deus em Jesus; só pode constatar com pavor e horror que este
“profeta”, superior a todos os outros, é o perigo definitivo para as aspirações
do inferno. Jesus é apresentado como Aquele que venceu Satanás. O Malígno derrotado,
consegue ainda atrapalhar e seduzir. O Novo Testamento não manifesta interesse
especulativo algum em descrever dramaticamente o universo dos demônios, como o
faziam certos livros apócrifos. Não existe uma “demonologia”. O Novo Testamento
tem, entretanto, um forte interesse em demonstrar que Satanás e seus espíritos
subalternos se apresentam no mundo como adversários da salvação, de Jesus e de
seus fiéis. Seu nome é “Diabo e Satanás” (Mt 4,1), “inimigo e tentador”,
“Malígno” (Mt 13,19; Ef 6,16), “príncipe do mundo” (Jo 12,31), “acusador” (Ap
12,10), “dragão”, “serpente” (Ap 12), “chefe dos demônios” (Mc 3,22) e assim
por diante.
Jesus não é um exorcista, - embora faça
claros e eficazes exorcismos - mas o iniciador do Reino do Pai e do seu poder.
Ele é a imagem de Deus. A luta contra Satanás e a vitória definitiva sobre ele,
é parte constitutiva deste anúncio. Cristo, ele mesmo, interpreta sua presença
assim: “O príncipe deste mundo está sendo jogado fora” (Jo 12,31). É claro que
nos casos de possessão diabólica existem também elementos de doença.
O Magistério da Igreja procurou sempre
manter um equilíbrio entre tendências de absolutizar o Malígno e, hoje, de
considerá-lo insignificante. O Concílio Vaticano II não tratou o assunto de
modo explícito; somente citou-o de passagem, dizendo que em Cristo “Deus nos
reconciliou consigo e entre nós, arrancando-nos da servidão do diabo e do
pecado” (“Gaudium et Spes” 22.3;2.2); e que o Malígno continua nos tentando
(“Lumen Gentium”, 16; 48,4; “Ad Gentes”, 9).
Importa observar que os demônios não são
apenas um poder anônimo, impessoal. Mas são espíritos criados, dotados de
intelecto e vontade. Por isso, e só por isso, o Concílio pode dizer deles:
“Segundo sua natureza, criados por Deus como bons, mas por si próprios se
tornaram maus”. Na doutrina sobre o demônio, a Igreja sublinha de um lado a
infinita bondade de Deus Criador. E, de outro lado, mostra a grandeza da
liberdade da criatura que, sendo imagem de Deus, é, exatamente por esse motivo,
submetida a provas e tentações. É insistente a palavra de Jesus a todos nós:
“Vigiai, porque não conheceis nem o dia nem a hora” (Mt 25,13; 13,35.37).
Em conclusão, devem se erradicar dois
comportamentos errôneos: o que faz do diabo um mito e aquele outro que o vê em
toda parte. Esta última postura, por vezes, serve para neutralizar ou
justificar a nossa responsabilidade.
Fonte:
http://www.arquidiocese.org.br/