A Alma Separada do Corpo
Guy Gabriel de
Ridder
Arautos do
Evangelho
Introdução
Conforme
a doutrina hilemórfica de Aristóteles, o corpo é feito para a alma, pois “não é
a forma que está ordenada à matéria; antes, o contrário”.1 E sendo a
alma “a forma específica de um corpo natural que tem a vida em potência” (De
Anima, livro II, cap. 1. Tradução nossa), devemos compreender a partir
da alma a razão de ser do corpo2.
Entretanto,
estando a alma do homem colocada “no ínfimo grau das substâncias espirituais”3,
pois à diferença dos anjos não possui o conhecimento inato da verdade,
deparamos ante a necessidade do corpo para a operação própria da alma
intelectiva, que é conhecer: é da variedade de seres percebidos pelos sentidos
que o homem extrai a verdade4.
O
papel dos sentidos internos, por exemplo, é fundamental. São Tomás nos diz a
este respeito: “para que o intelecto conheça em ato [...] exige o ato da
imaginação e das outras potências”5. E cita um exemplo: “quando por
uma lesão orgânica se encontra impedido o ato da imaginação, no caso dos
dementes, e igualmente impedido o ato da memória, no caso dos letárgicos, o
homem fica impedido de conhecer até mesmo as coisas das quais já tivera
notícia”6. Desse modo, a alma humana fica impossibilitada de
conhecer quanto os sentidos se tornam impedidos. Pela morte, os sentidos tanto
externos quanto internos cessam. Mas segundo São Tomás7, a alma é
incorruptível e mesmo separada do corpo, ela não cessa de conhecer.
É
sabido que após a morte, a inteligência subsiste e passa a ter um modo de se
exercer bastante diferente do modo daqui da Terra, pois que ela é chamada a
contemplar em sua essência as realidades imateriais em Deus. Convém-lhe assim
conhecer vendo o que de si é inteligível, da mesma maneira que as substâncias
separadas. Deus infunde espécies na alma da mesma maneira que o faz com os
anjos. A alma tem parte nelas, embora de modo menos elevado. Por meio destas
espécies a alma conhece o que lhe convém de maneira direta e intuitiva. Esse
conhecimento ultrapassa em qualidade e em segurança tudo que existe na Terra,
tanto por causa da superioridade da luz divina, quanto por causa da ausência de
possibilidade de erro oriunda dos fantasmas8 da imaginação.
À
guisa de ilustração, imaginemos alguém que, em virtude de acidente, perde os
olhos. Deixará imediatamente de enxergar. No entanto, a capacidade virtual de
poder ver, nele subsiste. E subsiste na alma, não no corpo, obviamente. Se por
algum prodígio da medicina, puder ser-lhe restaurada a vista, passará novamente
a enxergar, pois a potência virtual da vista reencontrará o elemento corporal
que lhe permite exercer-se, que são os olhos.
Uma
dificuldade surge, entretanto, a esse respeito.
Segundo
São Tomás9, é próprio da inteligência humana conhecer as realidades
espirituais a partir de suas imagens sensíveis. Não é essa inteligência,
entretanto, da mesma natureza que a inteligência dos anjos, os quais, não
estando unidos naturalmente a um corpo, conhecem diretamente a essência das coisas
por meio das formas inteligíveis infusas no momento em que são criados. Ora,
Deus move cada natureza segundo seu próprio modo de ser. Assim sendo, parece
que a inteligência humana conhecerá sempre com base em imagens.
Contudo,
quando se fala da visão do Criador — ao menos no que concerne esta visão direta
e face a face que chamamos de visão beatífica —, é preciso render-se à
evidência de que nenhuma imagem sensível pode permitir ao homem conhecer sua
inteligibilidade. Deus se torna inteligível, sem o concurso de qualquer ser
intermediário criado. Trata-se de um modo novo de conhecer onde parece que o
intelecto não tem lugar.
Contudo,
o presente artigo não tratará do problema epistemológico da alma separada.
Nossa problemática é outra: o da condição da alma separada. Trata-se de uma
aproximação acerca daquilo que São Tomás expôs em sua Suma Teológica. Em
outras palavras, quais as funções que a alma no estado de separação do corpo
pode exercer e que influências pode sofrer?
As
operações da alma separada
A
alma continua viva. A Igreja já condenou a hipótese da inconsciência da alma
após a morte10. Na outra vida, antes da ressurreição, a vida da alma
é parecida com a do anjo, embora com diferenças características. O anjo, por
exemplo, se move “instantaneamente”; o homem, não. O homem não pode seguir o
vôo de seu pensamento, nem de sua vontade, como o faz o espírito angélico. Algo
disso, no entanto, pode fazer. Por concessão de Deus também.
Atividades
que requeiram as potências sensitivas externas (corpo), não as pode ter a alma
separada do corpo. Com a morte, a alma só conserva em raiz, virtualmente,11
as potências sensitivas, pois que operam a partir de seu corpo
(sentidos). Por exemplo, não poderá mais conhecer uma árvore concreta já vista
em sua peregrinação terrena ou ainda, a conhecer depois. Só pode ter noção da
idéia universal de árvore (aplicável, portanto, a todas as árvores do mundo).
Outro
aspecto, entretanto, é no tocante à atividade espiritual,
ou funcionamento psicológico, que veremos a seguir.
A
alma separada do corpo conserva todos os conhecimentos
intelectuais adquiridos anteriormente durante sua vida neste mundo12.
Vê-se e conhece-se a si mesma de modo perfeito13. Conhecimento que
se dá com alegria superabundante para as almas justas. Conhece perfeitamente as
demais almas separadas, o que lhe era vedado enquanto unida a seu corpo. Tudo
por conhecimento natural14. Conhece também os anjos, no
entanto, não por conhecê-los por alguma espécie inteligível abstrata, pois que
eles são superiores (mais “simples”). O conhecimento que a alma tem dos anjos
lhe advém, sim, do conhecimento de semelhanças impressas na alma por
Deus, acessíveis às almas separadas15. Em virtude das espécies
inteligíveis infundidas naturalmente por Deus, têm as almas separadas um
conhecimento natural, embora imperfeito e geral, de todas as coisas naturais.
Isto traz um aumento enorme do que se poderia chamar das ciências naturais da
alma separada16.
Em
virtude destas mesmas espécies naturais infundidas por Deus, pode a alma
separada conhecer um enorme número de coisas. Não todas, mas aquelas com as
quais tiver determinado relacionamento, seja por ter delas conhecimento
anterior (ciência), por afeto (amigo, parente), seja por inclinação natural
(semelhança de vocação) etc. Tudo, por determinação divina17.
O
conjunto todo destes conhecimentos proporciona à alma separada, além das idéias
infundidas por Deus, uma elevadíssima idéia de Deus enquanto Autor da ordem
natural, pois grande número de perfeições divinas reflete-se na própria
substância das almas separadas, além das demais coisas que conhece naturalmente
por infusão divina.
Todos
esses conhecimentos dizem respeito tanto às almas dos justos, quanto à dos
precitos. Nenhum deles transcende a ordem puramente natural (naquele
estado), sendo algo que pede e exige psicologicamente o estado próprio da
separação. Para as almas boas será motivo de regozijo; para as outras, ocasiões
suplementares de tormentos e decepções.
Baseando-se
em São Jerônimo: “Aprendamos na terra aquilo cujo conhecimento persevere em nós
até o céu”18, São Tomás declara que a ciência, na medida em que está
no intelecto (e ele demonstra que está principalmente nele), permanece na alma
separada.
Nesse
ponto, há uma dificuldade levantada por São Tomás:
Alguns homens menos bons neste mundo possuem a
ciência, enquanto outros mais virtuosos são dela privados. Se o habitus da
ciência permanecesse na alma mesmo depois da morte, resultaria que alguns menos
bons seriam na vida futura superiores a outros mais virtuosos, o que parece
inadmissível19.
E
responde: “Pode ser, assim como poderá haver maus de estatura maior que bons;
mas, continua ele, isso quase não tem importância, em comparação com as outras
prerrogativas que os mais virtuosos terão...”20
Podem
as almas separadas do corpo conhecer o que se passa na
Terra?
São
Tomás começa, a priori, negando essa hipótese. Cita São Gregório: “Os
mortos não sabem como está organizada a vida daqueles que, depois deles, vivem
na carne; a vida do espírito é bem diferente da vida da carne. Assim como as
coisas corpóreas e as incorpóreas diferem em gênero, também se distinguem pelo
conhecimento21”.
No
tocante aos bem-aventurados, no entanto, São Gregório realça22 que
“não se deve pensar a mesma coisa a respeito da alma dos santos. Para aquelas,
com efeito, que vêem por dentro a claridade de Deus todo-poderoso, não se deve
absolutamente acreditar que reste fora alguma coisa que ignorem”.
Opinião
também contestada por Santo Agostinho [“Minha mãe, que tanto fez por mim na
terra, depois não me apareceu nunca mais”], reproduzida por São Tomás23.
São
Tomás, no entanto, acaba concluindo que “parece mais provável que as almas dos
santos, que vêem Deus, conheçam tudo o que aqui acontece”. E enuncia três
observações que enriquecem o tema24:
1ª
– Os mortos podem preocupar-se das coisas do mundo, ainda
que as ignorem concretamente. Da mesma maneira que quando rezamos pela alma de
um falecido, sem saber se está efetivamente no purgatório ou não.
2ª
– Podem tomar conhecimento das coisas deste mundo por
informações que lhes cheguem, seja pelos anjos, seja pelos demônios ou ainda
por divina revelação, sobretudo por algum fato que lhes diga mais especialmente
respeito (conhecidos, familiares).
3ª
– Por especial permissão divina, podem auferir
conhecimento por outras almas, diretamente ou por meio de anjos.
Royo
Marín (1965, p. 183) esclarece25 ser necessário — para melhor
abarcar a questão do conhecimento das almas separadas de seus corpos —
distinguir as almas que saíram deste mundo em estado de graça e as que saíram
em estado de pecado mortal, e ainda as que ficaram tão-só com o pecado
original.
Para
os bem-aventurados, diz, não há a menor sombra de dúvida
que são esclarecidas pelo que há de mais central e importante na vida
sobrenatural: a vida íntima de Deus.
Para
as almas do purgatório, não consta que recebam, depois de
separadas do corpo, novas iluminações sobrenaturais, pois estas seriam um
prêmio para elas, o que não lhes é mais dado naquele estado.
Quanto
aos condenados ao inferno, não conservam nenhum
conhecimento sobrenatural, pois este é uma virtude sobrenatural e ao morrer
perdem todo e qualquer resquício de fé. Conservam tão-somente os conhecimentos
da antiga fé, mas como conhecimentos estritamente materiais (memória).
3.
Tipos de relacionamento das almas separadas
Com
Deus dá-se o relacionamento mais íntimo e perfeito através
da visão beatífica.
As
almas do purgatório possuem uma contemplação infusa, pela influência dos dons
do Espírito Santo. Nada impede que recebam iluminações preternaturais (isto é,
acima de sua natureza própria), embora não se possa afirmá-lo com certeza.
Os
condenados, por sua vez, só têm um conhecimento natural de Deus e enquanto
restos de conhecimento tidos na vida terrestre. Odeiam-no irredutivelmente26.
A
comunicação com os anjos se dá por locução
intelectual à maneira própria deles, por uma espécie de irradiação ou
transmissão direta do pensamento, por intuição27. O anjo, sendo de
uma natureza intelectual superior à da alma separada, concebe pensamentos de
uma inteligibilidade superior à alma separada, que esta não pode apanhar em
vista de sua fraqueza. Assim, aparentemente se poderia pensar que não pode
haver comunicação entre os anjos e as almas separadas. Entretanto, acontece que
a linguagem exterior, que comunicamos por meio da voz, somente nos é necessária
em vista de nosso corpo. É a razão pela qual não convém nem aos anjos, nem às
almas separadas, que só conhecem a linguagem interior. Ora, essa linguagem não
consiste somente em falar consigo mesmo através da formação de conceitos, mas
também em ordenar – por meio da vontade para os anjos e da sensibilidade para
os homens – este conceito em vista de poder transmiti-lo a outros. Ou seja, é
tão-somente por metáfora que se usa o termo de linguagem dos puros espíritos
para significar o poder que têm de manifestar seu pensamento.
Com
as demais almas separadas é que ocorre o modo de
comunicação mais natural das almas nesse estado. É feito à maneira do
relacionamento com os anjos, mas de maneira mais conatural e perfeita: “por
semelhanças impressas por Deus, que não chegam a representar perfeitamente aos
anjos, porque a natureza da alma é inferior à do anjo”28.
Com
os homens, ordinária e normalmente, por seu estado natural
de então, não podem se comunicar as almas separadas. Entretanto, por especial
disposição de Deus, pode dar-se esse relacionamento.
Convém
ressaltar que a alma humana separada de seu corpo não pode
(por si mesma) aparecer aos homens, pelo menos por suas próprias potências
naturais naquele estado. Segundo Dumouch (1992, pp. 244-248, artigos 6-8), a
razão dessa incapacidade está ligada ao fato de que, entre as naturezas
espirituais existentes, ela é a menos perfeita delas. Quanto mais uma natureza
espiritual é perfeita, mais o conhecimento que ela tem das realidades é
universal e simples. E constitui um princípio em toda a criação que a
capacidade de agir é decorrente da universalidade do conhecimento. Assim, Deus,
que é a essência da perfeição, conhece todas as coisas por meio de um só
conceito, que é a sua própria essência. O poder de sua ação é proporcionado à
perfeição de seu espírito: assim, Deus pode fazer tudo aquilo que é factível.
Os
anjos, que são seres intermediários entre Deus e os homens, conhecem por meio
de diversas espécies inteligíveis. Quanto mais estiverem próximos de Deus pela
sua essência, mais seu conhecimento natural é simples e concomitantemente
profundo. Pelo simples poder intelectual, e sem necessidade da faculdade de
conhecimentos sensíveis, são aptos a conhecer todos os singulares materiais.
São assim capazes, por natureza, de mover todos os corpos materiais pelo
simples poder de seu espírito. Assim é que podem aparecer aos homens plasmando
“corpos” modelados por eles. O caso narrado no livro de Tobias é bem
ilustrativo dessa hipótese. Com efeito, disse o anjo que lhe apareceu:
“Parecia-vos que eu comia e bebia convosco, mas o meu alimento é um manjar
invisível, e minha bebida não pode ser vista pelos homens”29.
Da mesma forma podem os anjos influenciar os homens, seja agindo sobre sua
imaginação, seja movendo de fora sua faculdade motora, o que pode ser
comprovado, com os anjos decaídos, por exemplo, nos casos de possessão
demoníaca.
Finalmente,
o homem – o mais fraco dos espíritos – só conhece as realidades de modo
progressivo, por meio das sensações através das quais abstrai o inteligível.
Seu conhecimento parte, pois, daquilo que é singular. Também, pela sua
natureza, só é levado a mover um único corpo, que é o seu. É-lhe impossível,
por sua própria vontade, imprimir auto-movimento a outra coisa senão seu
próprio corpo.
Conclusão
Para
finalizar, não se pode deixar de reconhecer que impossível seria que Deus não
permitisse às almas separadas de seus corpos continuarem a conhecer, pois,
embora a morte seja fruto do pecado original, o destino eterno de cada um não
pode passar por um processo – ainda que provisório – como que de “amnésia” ou
inconsciência, teses condenadas, como já afirmamos, pela Igreja. Deus não seria
a própria Bondade se nos submetesse a igual condição, que mais bem seria um
rebaixamento na ordem ontológica. Mesmo porque, todas as almas na eternidade já
foram julgadas e parte delas favoravelmente, com direito ao pleno conhecimento
da Causa das causas. Não teria sentido privar almas justas – que já deram
provas, portanto, de seu amor para com o Criador – do conhecimento dEle,
enquanto não ressuscitassem seus corpos.
Ficam
assim dadas estas considerações sobre um assunto pouco focalizado hoje em dia
no tocante a nossa vida pós-terrena, pelo menos no período que antecede à
ressurreição. Pretendíamos levá-las ao conhecimento dos estudiosos no assunto –
ou simplesmente cativados pela temática – especialmente para servir de auxílio
a proporcionar uma vida espiritual mais intensa, que reverta numa dedicação
vigorosa e dinâmica à Nova Evangelização e, ipso facto, aos interesses
da Igreja em geral.