Perenidade e atualidade na Doutrina do Doutor Angélico

     

Mons. João Scognamiglio Clá Dias E.P.

Arautos do Evangelho

 

 

São Tomás de Aquino marcou os acontecimentos da Igreja. Por um rico sopro do Espírito Santo, soube ele conjugar as verdades filosóficas e teológicas enquanto procedentes da Verdade Criadora e Inteligência Suprema. Ele é o autor da verdade natural, como também da revelada, e daí haver um necessário e perfeito entrelaçamento entre razão e fé. Em sua mente encontramos um alcandorado resumo de toda a ciência da Idade Média, como até mesmo da do mundo antigo, purificada e santificada; ali estavam a Filosofia e a Teologia conduzidas a uma perfeita união. Por isso não devemos considerar suas obras como simples ensaios de Teologia ou de Filosofia, mas sim um verdadeiro monumento-síntese de enorme envergadura e profundidade. Daí tornar-se compreensível ainda hoje o motivo pelo qual se deve buscar em São Tomás uma das mais belas aplicações do método, ou melhor ainda dizendo, a lógica em toda a força de sua clareza e penetração, e nunca com os entraves com que a arrouparam nos séculos posteriores.

     Quer na alma dos santos, quer na voz do Magistério da Igreja, sempre houve um reconhecimento do gênio divino com o qual o Doutor Angélico elaborou sua Suma Teológica, discernindo e desenvolvendo todos os ramos do conhecimento humano, agrupando-os, entrelaçando-os e entregando-os ao serviço da fé. É nessa perspectiva que encontramos Santo Alberto Magno abismado diante da Suma Teológica produzida por seu ex-aluno, quando com muito esforço procurava ele fazer avançar a sua própria, que há certo tempo começara.

 Quando Alberto leu a Suma de seu antigo aluno, exclamou maravilhado: “Isto é perfeito e definitivo!” E se absteve de continuar a sua. O Concílio de Trento confirmou seu parecer: sobre a mesa da sala, colocou ao lado da Bíblia a Suma de São Tomás, como Testamento da Idade Média1.

     O brilho da fulgurante aura de São Tomás não ficou circunscrito à Idade Média; ainda hoje suas luzes nos assistem com seus raios. Na carta Lumen Ecclesiae, do Servo de Deus Paulo VI, dirigida ao Superior Geral dos Dominicanos por ocasião do VII centenário da morte do grande doutor da Igreja, encontramos este importante elogio:

 Também o Concílio Vaticano II recomendou, duas vezes, São Tomás às escolas católicas. Com efeito, ao tratar da formação sacerdotal, afirmou: “Para explicar da forma mais completa possível os mistérios da salvação, aprendam os alunos a aprofundar-se neles e a descobrir sua conexão, por meio da especulação, sob o magistério de São Tomás”. O mesmo Concílio Ecumênico, na Declaração sobre a Educação Cristã, exorta as escolas de nível superior a procurar que, “estudando com esmero as novas investigações do progresso contemporâneo, se perceba mais profundamente como a fé e a razão têm a mesma verdade”; e logo em seguida afirma que para esse fim é necessário seguir os passos dos doutores da Igreja, sobretudo de São Tomás. É a primeira vez que um Concílio Ecumênico recomenda um teólogo, e este é São Tomás. Quanto a nós, basta, entre outras coisas, repetir as palavras que pronunciamos noutra ocasião: “Aqueles que têm a missão de ensinar [...] escutem com reverência a voz dos doutores da Igreja, entre os quais ocupa lugar eminente São Tomás. […] Sua doutrina é um eficacíssimo instrumento, não só para estabelecer bem os fundamentos da fé, mas também para retirar dela, de modo útil e seguro, frutos de um sadio progresso”2.

     No novo Código de Direito Canônico – uma das obras de grande envergadura do pontificado do Servo de Deus João Paulo II –, a doutrina teológica de Tomás de Aquino se torna, por assim dizer, “lei” da Igreja. Ao tratar da formação dos clérigos, o Código recomenda:

 Cân. 252 § 3. - Haja aulas de Teologia dogmática, fundamentada sempre na palavra de Deus escrita, junto com a sagrada Tradição, pelas quais os alunos aprendam a penetrar de maneira mais profunda os mistérios da salvação, tendo por mestre principalmente São Tomás3.

     É particularmente significativo o empenho de João Paulo II em ressaltar a atualidade da doutrina tomista. Matéria na qual esse Papa de feliz e saudosa memória tem uma especial autoridade, não só em decorrência de sua formação no “Angelicum” de Roma, como também por ter vivido intensamente os problemas e as contradições do século XX, exercendo sua atividade docente e ministerial num país em que se confrontavam de forma aguda as ideologias que levaram o racionalismo ao extremo do ateísmo, apesar de ali perpetuar-se uma comunidade eclesial pujante e de sólida fé.

     Em 13 de setembro de 1980, ao receber os participantes do VIII Congresso Tomista Internacional, por ocasião do centenário da encíclica Aeterni Patris, do seu predecessor Leão XIII, o Papa João Paulo II afirmava:

 Graças às diretrizes da Aeterni Patris, de Leão XIII, que com tal documento – que tinha como subtítulo “De philosophia christiana... ad mentem sancti Thomae... in scholis catholicis instaurandis” – manifestava a consciência de terem chegado uma crise, uma ruptura e um conflito ou, pelo menos, um ofuscamento acerca da relação entre a razão e a fé. No interior da cultura do século XIX poderiam-se, de fato, reconhecer duas atitudes extremas: o racionalismo (a razão sem a fé) e o fideísmo (a fé sem a razão). A cultura cristã movia-se entre esses dois extremos, pendendo para uma parte ou para outra. O Concílio Vaticano I tinha já dito a sua palavra a propósito. Era agora o tempo de imprimir novo curso aos estudos no interior da Igreja. Leão XIII aplicou-se, com clarividência, a essa tarefa, representando – e este é o sentido de instaurare – o pensamento perene da Igreja, na límpida e profunda metodologia do Doutor Angélico4.

     Salientou também o Servo de Deus João Paulo II, nessa ocasião, o papel de grande destaque que ocupa o Doutor Angélico pela “Fidelidade à voz das coisas criadas, para construir o edifício da Filosofia” e pela “fidelidade à voz da Igreja, para construir o edifício da Teologia”. 5 Esta fidelidade à verdade faz do Aquinate “a motivação da preferência dada pela Igreja ao método e à doutrina do Doutor Angélico. Longe de preferência exclusiva, trata-se de referência exemplar”. 6

Justo equilíbrio entre fé e razão

      É, porém, na encíclica Fides et Ratio, que o Papa torna mais candente a atualidade do tomismo, propondo-o como justo equilíbrio entre a fé e a razão, “as duas asas do espírito humano”:

 Embora sublinhando o caráter sobrenatural da fé, o Doutor Angélico não esqueceu o valor da racionabilidade da mesma; antes, conseguiu penetrar profundamente e especificar o sentido de tal racionabilidade. [...] Precisamente por esse motivo é que São Tomás foi sempre proposto pela Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao reto modo de fazer Teologia. […]

O ponto central e como que a essência da solução que ele deu ao problema novamente posto da contraposição entre razão e fé, com a genialidade do seu intuito profético, foi o da conciliação entre a secularidade do mundo e a radicalidade do Evangelho, evitando, por um lado, aquela tendência antinatural que nega o mundo e seus valores, mas, por outro, sem faltar às exigências supremas e inabaláveis da ordem sobrenatural”.7

Bento XVI salienta novamente sua atualidade

     Cabe-nos ainda recordar uma recente alocução de Sua Santidade Bento XVI, felizmente reinante, sobre o Doutor Angélico, salientando sua atualidade como solução para o inconsistente conflito entre fé e razão:

 Com seu carisma de filósofo e teólogo, ele [São Tomás] oferece um válido modelo de harmonia entre razão e fé, dimensões do espírito humano, que se realizam plenamente no encontro e no diálogo recíproco. […] A relação entre fé e razão constitui um desafio sério para a cultura atualmente dominante no mundo ocidental e, precisamente por isso, o amado João Paulo II quis dedicar-lhe uma Encíclica, intitulada Fides et ratio, “Fé e razão”. [...]

Quando é autêntica, a fé cristã não mortifica a liberdade e a razão humana; […] A fé supõe a razão e aperfeiçoa-a, e a razão, iluminada pela fé, encontra a força para se elevar ao conhecimento de Deus e das realidades espirituais.8

Outros elogios de Papas e catedráticos

     Ainda sobre a consagração histórica e universal de São Tomás enquanto filósofo e teólogo, valeria a pena lembrarmos o fato de o Papa João XXII haver afirmado que se aprende mais durante um ano de estudos dedicado às suas obras, em comparação a décadas consagradas ao aprofundamento nos escritos de outros autores.9

     É indispensável, ademais, reconhecer os méritos do Papa Leão XIII em ressaltar os valores científicos das explicitações de São Tomás. Foi por uma ação direta sua – no século XIX, portanto – que surgiram centros de estudos tomistas nas universidades católicas, propiciando, dessa forma, a influência do Doutor Angélico nas descobertas e investigações da ciência. A Biologia, a Química e a própria Psicologia experimental em suas novas conquistas enriqueceram-se, assim, com a seiva doutrinária antiga. Importantes universidades modernas do continente europeu, como também do americano, passaram a se abeberar nos grandes princípios tomistas; por exemplo, Harvard, Oxford, Sorbone e Louvain. Não foi sem razão que Etiènne Gilson, conceituado catedrático da Sorbone, conferiu a São Tomás o título de Pai da Filosofia Moderna.