João Guimarães Rosa: “O
transparente contemplador”
Por Francisco Faus
Através da palavra, Guimarães Rosa
interna-se na contemplação de um mundo em que nada é igual. Uma sensação de
riqueza cósmica se experimenta perante cada um dos seus livros. Quer o mundo
quer a vida resistem à apreensão e à classificação. Nada pode cristalizar-se em
moldes que aprisionem porque, para além das aparências, continua a abrir-se um
poço sem fundo.
O POETA DO NOME NOVO
Encabeçando as sete novelas que
constituem Corpo de Baile, de João Guimarães Rosa, vão-se escalonando sete
citações de Plotino e do místico flamengo Ruysbroeck, o Admirável, como degraus
de acesso a essas surpreendentes narrações. “Vede – exclama Ruysbroeck, citando
o Apocalipse –, eis a pedra brilhante dada ao contemplativo; ela traz um nome
novo, que ninguém conhece, a não ser aquele que a recebe”.
Quer-me parecer que é sobretudo essa
última frase a que nos inicia no clima que envolve boa parte da obra narrativa
de Guimarães Rosa. Este escritor, que desde o seu aparecimento nunca deixou de
assombrar a crítica pela força enigmática de um estilo inédito, é sobretudo o
poeta do nome novo, o cantor do irrepetível. Desde um primeiro contato, o
fenômeno de linguagem é o que primeiramente surpreende. Muito se tem comentado,
entre leitores de fala portuguesa, já a partir de Sagarana, a sua primeira
obra, sobre a magia desse estilo que, a cada passo, renova a língua de que se
serve.
Mas, ainda que a linguagem seja a
primeira a impressionar-nos nos escritos de Guimarães Rosa, a sua novidade só
pode ser explicada em função do sentido total da obra. Nela, a fusão do binômio
forma-fundo opera-se no mesmo nível que na poesia. Eu me atreveria a dizer que
essa obra nunca deixa de ser, essencialmente, poesia. A palavra nova não tem
nela outro sentido senão o de uma exigência interna do olhar com que o escritor
se abre à contemplação da perturbadora novidade do mundo.
A linguagem de Guimarães Rosa tem as
qualidades da vara de um vidente, que desperta no escuro e no inadvertido a
surpresa do único, e lhe dá um nome novo. Por isso, uma mesma palavra não pode
cingir-se à estabilidade do já definido, mas deve abrir-se ao que, por se apresentar
sempre com luminosidade intocada, é de algum modo inefável. Isso explica que a
palavra “irrompa”, se torne plástica e maleável, entre em tensão e transborde
para além de si mesma. Assim pode captar de algum modo a pureza irrepetível de
cada instante. “Não há nada igual neste mundo. Não quero palavra, mas coisa,
movimento, vôo” 1.
UM ABISMO SEM FUNDO
Guimarães Rosa interna-se, por meio
da palavra, na contemplação de um mundo em que nada é, em rigor, igual. Em
todos os seus livros há uma sensação de riqueza cósmica em que irrompe o
espiritual. O mundo e a vida resistem a esgotar-se, a serem classificados. Nada
pode cristalizar em moldes que o aprisionem porque, para além das aparências,
continua sempre a abrir-se um abismo sem fundo, um abismo divino.
Instrumento do escritor que
contempla, a palavra torna-se assim cristal sutilíssimo da alma, aberta em
transparência para a própria transparência do mundo. A contemplação é uma
incessante penetração no âmago do que há por trás e para além do mundo aparente.
As coisas – os objetos, as pessoas, as situações –, no seu aparecer mutável,
são como janelas que na noite se entreabrem, para ir assomando o homem à
perspectiva de uma plenitude, da qual elas são símbolo, espelho fragmentado e
mensagem: “Só vemos pedacinhos, fragmentos de uma coisa sempre maior”.
Aqui, o olhar é a porta da alma. E a
alma tem uma ilimitada capacidade de avançar, atravessando a opacidade do
mundo. “Nenhuns olhos têm fundo, a vida, também, não” 2. Saber contemplar é,
então, abrir-se por entre sombras para uma espécie de fulguração, na qual o
mundo reverbera como um diamante de mil faces, de mil espelhos expostos, em
ângulos imprevisíveis, à inesgotável irradiação do Ser.
Ao lermos essas obras
personalíssimas não podemos deixar de perceber, com peculiares tonalidades,
aquela atitude contemplativa que caracteriza a mística de inspiração
neoplatônica. Em Guimarães Rosa há um olhar insaciável dirigido a algo de
ulterior às coisas, algo de mais sutil e profundo, um pressentimento espiritual
do que elas nos comunicam através dos seus véus, numa verdadeira mística de
transparência. “Eu sempre fui místico”, afirma esse autor que quer extrair da
noite do universo os segredos da Luz.
Tendo por base essa atitude, é
natural que a palavra se faça nova cada vez que é pronunciada. Palavra nascente
para o fulgor nascente das coisas. Guimarães Rosa pensava que era terrível que
um livro tivesse que parar. Cada livro deveria ser uma realidade em devir,
reflexo da novidade cativante do que se contempla. E, uma vez que isso não é
possível, o estilo procura uma mobilidade ondulante – fluxo e refluxo em que o
tempo é abolido –, uma espécie de irradiação, e a palavra ganha aquela tensão
propriamente poética, que é capaz de sugerir para além dos seus limites.
A narração vai adquirindo, então,
uma insinuação mágica. Avança como uma crepitação, como uma ondulação marinha
através da qual – como estamos reiterando uma e outra vez – tenta-se refletir a
cintilação do irrepetível. Vem à mente a expressão bíblica da “centelha que
corre no meio do canavial” (Sab 3:7).
Ainda que o espaço de quase todas as
histórias seja uma paisagem semivirgem, rica de cores, sons, seres, nunca
encontramos uma verdadeira descrição nem, portanto, um quadro estático da
paisagem com simples função ambiental. Todas as coisas emergem num fervilhar
luminoso, assim como os homens – os personagens – só se revelam na medida de
cada um de seus atos, sem uma prévia definição de caracteres. Tudo com um sabor
de novidade, que é caçada no seu vôo, com golpe rápido de palavra. Muito
significativamente lemos em Sagarana que as palavras “têm canto e plumagem” 3,
com a aérea mobilidade dos pássaros. “E, ao descobrir, no meio da mata, um
angelim que atira para cima cinqüenta metros de tronco e fronde, quem não terá
o ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo... na direção da altura?” 4.
OLHOS NOVOS, PARA CONTEMPLAR
Contemplar é desvendar, fazer surgir
da escuridão o nome novo que cada coisa guarda dentro de si: “O Menino
repetia-se em íntimo o nome de cada coisa (...). Todas as coisas, surgidas do
opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida,
em novos aumentos de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos
já armados. Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro
estranho e desconhecido” 5.
Uma análise dos personagens das
histórias de Guimarães Rosa mostra-nos que o autor escolhe aqueles que se
encontram em melhores condições para penetrar na vida com uma visão elementar,
de nascentes descobertas.
Os olhos de maior plasticidade para
fazer a estréia do mundo são os da infância. E, de fato, há um longo desfilar
de crianças em todas essas histórias, olhares que podem captar as coisas com
contornos isentos de preconceitos e rotina. Da pequenina Maria Euzinha,
protagonista da estória “Tresaventura” do livro Tutaméia 6, diz-nos o autor que
“ficava no intato mundo das ideiazinhas ainda”. E a silenciosa e efêmera
Nhinhinha de “A menina de lá”, com a sua exclamação predileta: “Tudo nascendo!”
7, é todo um símbolo.
A par das crianças, encontramos a
presença dominante do homem primitivo, que se expande num vasto mundo nascente:
a figura do vaqueiro do sertão quase intocado dos Campos Gerais, homens de
impulsos primários, de instintos elementares, de ingênua receptividade, no meio
de uma envolvente natureza. Almas que se dilatam em forças originais e nítidas:
a sua capacidade de ternura, os seus amores, invejas, ódios e nostalgias, a sua
ardente procura, a balouçar entre o delicado amor e a brutalidade. Nesse
aspecto, a figura de Riobaldo, o protagonista de Grande Sertão: Veredas adquire
relevância singular. Neste romance de vastas proporções e entrecruzadas
perspectivas, a alma de Riobaldo vai-se mostrando quase que à flor da pele,
ansiosa por transmitir aos borbotões – numa longa narração monológica – a sua
inexprimível experiência: “mas principal quero contar é o que eu não sei se
sei” 8.
Na aventura da procura do nome novo,
Guimarães Rosa compraz-se em desentranhar o paradoxo da beleza, da pureza e do
mistério que o mundo esconde sob as aparências da vulgaridade, o crime ou a
loucura. Adeja em toda a obra o sentido de uma realidade “outra”,
“sobre-natural”. Poderíamos recordar aqui uma sensacional galeria de
personagens, como o fantástico louco da novela Buriti 9, o chefe Zequiel, que
capta na noite as vozes secretíssimas da terra, inaudíveis para os que, em sua
cordura, tem com que ensurdescer a alma. Ou o Moço muito branco 10, de
alienígena mudez, surgido misteriosamente de engenhos voadores nos desconcertos
de um terremoto, como o mago que conjura brancas pazes entre a inveja e o ódio.
Ou a comovente história da Benfazeja 11, a mendiga marcada por um crime de
morte que, dentro de uma sórdida e dolorida violência, abriga uma incontida
vontade benfazeja.
Vale a pena transcrever fragmentos
do diálogo com que os vaqueiros de outro obscuro personagem – o árido e
inabordável Cara-de-Bronze – comentam o que acabam de descobrir acerca dos
inexplicáveis interrogantes que queimam o coração do velho fazendeiro, o
estranho patrão que enviara, para pesquisá-los, o jovem vaqueiro Grivo, em
viagem sem destino compreensível:
“Não requeria relatos de
campeação... as querências das vacas parideiras, o crescer das roças, as
profecias do tempo... Nem não eram outras coisas proveitosas, como saber de
estórias de dinheiro enterrado em alguma parte... Agora ele indaga engraçadas
bobéias... Aquilo não tinha rotinas... Por exemplo: – A rosação das roseiras. O
ensol do sol nas pedras e folhas. O coqueiro coqueirando. As sombras do
vermelho no branqueado de azul... A brotação das coisas... Ele queria uma idéia
como o vento... que relembra os formatos do orvalho... E bonitas desordens, que
dão alegria sem razão e tristezas sem necessidade. Não-entender, não-entender,
até se virar menino. Jogar nos ares um montão de palavras, moedal... Era só uma
claridade diversa diferente... Queria era que se achasse para ele o quem das
coisas!” 12.
Guimarães Rosa acende-se em terna
poesia quando nos pode mostrar, oculto no homem, onde menos se esperava, um
poder de criança. Surge, então, a vida com frescor de nascença, como uma
floração de incessantes aberturas. Numa época em que a humanidade parece
encolher-se nas pregas de um mundo gasto, as suas palavras têm o eco orvalhado
dos primeiros dias da criação.
BELEZA DO MUNDO, TRANSPARÊNCIA DO
ETERNO
Essa luminosidade que nos abre aos
absconsos do mundo não desemboca, como talvez poderia pensar-se, no êxtase da
fusão do homem com o cosmo, ou num panteísmo monístico. Seu caminho vai além.
O que nutre a alma do contemplador
não é tanto a riqueza do mundo como a sua transparência. A luz que vislumbra
não é a que as coisas têm em si, mas a que elas revelam, sempre reflexo parcial
da verdadeira “realidade”, da realidade divina. É preciso passar por elas – sem
deixar que nos amarrem – como o olhar passa através do cristal.
As coisas, sem dúvida, atraem com
seu brilho. Prometem: a fulguração cativante de cada um de seus instantes
parece prometer uma plenitude eterna. Logo, porém a experiência ensina a sua dolorosa
fugacidade, e nela se aprende que a alegria não consiste em possuí-las. Prender
é perder. Ninguém pode cristalizar para sempre uma faísca. Muito
platonicamente, Guimarães Rosa declara que “o meu amor exige distância”.
Uma das mais belas estórias de Guimarães
Rosa tem o significativo título de “As margens da alegria” 13. O protagonista é
um menino, que de repente depara com o encanto de uma paisagem desconhecida.
Para ele “as coisas vinham docemente de repente”; as árvores, os animais tinham
“qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento”. Mas quando estava
no auge do embevecimento, um dia acorda e, atordoado, vê por terra as coisas
mais amadas e belas. Cortaram a graciosa árvore, o peru admirado é
prosaicamente servido num almoço. “Tudo perdia a eternidade e a certeza; num
lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por
que tão de repente?... Só no grão nulo de um minuto, o Menino recebia em si um
miligrama de morte”. Eis a vida a iniciar o homem nas suas brutais lições:
“descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil
espaço, e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima,
quase nada medeia. Abaixava a cabecinha”. “Mesmo um menino – lemos em outro
lugar – sabe, às vezes, desconfiar do estreito caminhozinho por onde a gente
tem de ir-beirando entre a paz e a angústia” 14. Chega a tristeza. O bosque, as
negras árvores da noite, são para a criança um montão excessivo. Como o mundo.
Mas na borda fosca da amargura, eis que de repente, fugacíssima e frágil,
brilha uma nova luz: o “vaga-lume”, “tão pequenino, no ar, um instante só,
alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria”.
Quando a alegria inicial se
ensombrece, uma nova claridade fura a noite e é como que o prenúncio sutil de
outra Alegria, ulterior às tristezas deste mundo. O vaga-lume – leve impacto
repetido na noite – tem um simbolismo claro. Ainda que o visível se feche,
efemeramente, na fronteira das suas sombras, sempre nos envia através das coisas
uma nova mensagem, que é uma chamada incansável do eterno. Os instantes
passageiros não podem ser apreendidos como uma posse estável, mas revelam, pela
luz que nos enviam, a abertura ilimitada da alma e a grandeza a que ela é
chamada. Dessa experiência emerge o homem com dimensão mais profunda, mais
próximo daquela grandeza para a qual toda a vida se abre e da qual as coisas
são mensageiras. O nome novo que elas balbuciam – esfinges amigas e benévolas –
é o nome verdadeiro do homem.
A chegarmos a este ponto, parece-me
significativo recordar que quase toda a obra de Guimarães Rosa se situa num
mesmo ambiente geográfico e humano regional. É um campo voluntariamente
delimitado, como que para indicar que a identidade profunda, o nome novo, não
se conquista pelo acúmulo e variedade das “muitas coisas”, mas – como acabamos
de ver – pelo abismo que por meio delas se vislumbra. Acentua-se assim o fato
de que, ao avançar no olhar maravilhado da contemplação, o que cresce não é
tanto o “mundo”, aos olhos do homem, como o próprio homem por dentro. Muitos
dos personagens de Guimarães Rosa são seres que avançam, que vão crescendo, em
aumentos de grandeza e claridade. A alma aparece como uma luz vaga, que
desabrocha, se define e torna nítida ao purificar-se. Aqui estamos num ponto
decisivo da “mística” do nosso autor, que vale a pena considerar mais de perto.
CONTEMPLAR: UMA ATIVIDADE QUE
PURIFICA
Na obra de Guimarães Rosa, a
experiência contemplativa aparece, dentro de um clima fortemente platônico,
como um processo de libertação por meio do qual o homem consegue encontrar-se a
si mesmo. A irradiação da beleza do mundo é apenas um ponto de apoio. Ao
contrário do que se poderia supor pelo nível de intensa e constante poesia de
sua obra, para Guimarães Rosa a beleza que se capta – e que é imensa –
interessa sobretudo pela alma que liberta, que “desencadeia”. O mundo sensível
é limitado e fechado sobre si mesmo, mas o homem pode romper sua aparente
muralha material e transcendê-lo. “Eu acho que nós bois – dizem os bois conversadores
de Sagarana – assim como os cachorros, as pedras, as árvores, somos pessoas
soltas, com beiradas, começo e fim. O homem não: o homem pode se ajuntar com as
coisas, se encostar nelas, crescer, mudar de forma e jeito... O homem tem
partes mágicas” 15.
Sim. Guimarães Rosa vê a experiência
do viver com as tonalidades místicas de uma experiência espiritual de caráter
contemplativo. Para ele, a contemplação não é passiva: nada tem do simples gozo
admirativo do esteta, nem da mera apropriação intelectual. Contemplar é uma
atividade que purifica. O gesto do “transparente contemplador” 16 é o daquele
que, depois de beber a mensagem sempre fluente das coisas, as redime, amando-as
pelo que manifestam, mas deixando-as apagar-se no silêncio quando já cumpriram
a sua missão. “Respeitava no tangimento – diz do tio Manantônio, protagonista
de uma das Primeiras estórias – a movida e muda matéria; mesmo em seu mais
costumeiro gesto – que era o de como se largasse tudo nas mãos, qualquer
objeto. Distraído, porém, acarinhando-as, redimia-as, de outro modo, às coisas
comezinhas?” 17.
É preciso largar as coisas e, para
isso, o mais alto mestre da vida e da alegria é o sofrimento. As coisas nos são
arrancadas com dor, mas o ato de nos desprendermos delas é, afinal, livrar-nos
do véu que tapava e afogava a alma: “Miguilim, Miguilim – diz o pequeno Dito,
pouco antes de morrer, ao irmãozinho, uma criatura aturdida pelos golpes
inexplicáveis que a vida lhe vibra –, vou ensinar o que agorinha eu sei,
demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa
ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre,
mais alegre, por dentro!” 18.
Dentro dessa perspectiva, a aventura
humana torna-se uma extrema aventura espiritual. Cada vida tem que forjar-se a
si mesma, tirando a alma de suas prisões e projetando-a, livre, para um
crescimento ilimitado. Fica claro, com isso, que a sugestiva transparência que
o mundo oferece ao contemplador consiste justamente na superação dos seus muros
sensíveis e na abertura de um vazio luminoso, como espaço livre para a
ascensão. Quando o náufrago, subindo pela sinalização luminosa das águas que o
envolvem, emerge ao ar livre, encontra-se no seu âmbito verdadeiro e
respirável. Somente então se realiza.
“Vejo o ser humano – diz Guimarães
Rosa – como rascunho do que vai ser”. Hora a hora se faz, sem que a vida o
possa deter, ligando-o às coisas passageiras ou fazendo-lhe esgotar as forças
no irreversível engano das experiências que morrem matando. Nada na terra – nem
as coisas, nem o tempo – é capaz de encarcerar o homem na sua pequenez. “A vida
não tem passado. Toda hora o barro se refaz. Deus ensina” 19.
A EXPERIÊNCIA DO ESPELHO
Para exprimir esta aventura-limite
de contemplação e purificação, Guimarães Rosa cria o seu próprio mito, com
sabor de confidência pessoal: o do espelho. Na estória que leva esse título – O
espelho –, relata a experiência do homem que um dia, ao contemplar o seu rosto
no espelho, vê refletida nele uma estranha figura. “Aquilo” não é ele.
Empreende então a árdua tarefa de se ver realmente a si mesmo. Tem que buscar
seu verdadeiro rosto. O processo que segue é o da eliminação, purificando o
modo de se mirar no espelho de tal forma que, na imagem refletida, “não veja”
tudo o que de alguma forma é falso, enganoso ou acrescentado. Tem de “olhar não
vendo”, apagar aquilo que em seu rosto é ainda um simples reliquat bestial, ou
traço recebido por herança, ou impressão deformante das paixões, até que enfim
apareça, puramente, “ele”. Quando afinal é coroada a purificação de sombras
estranhas, “me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às
vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente
tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O
ficto. O sem evidência física. Eu era – o transparente contemplador?”.
Aí comenta: “partindo para uma
figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até a total
desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central,
pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado? Então, o que se me fingia de um
suposto eu não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de
herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de
influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os
raios luminosos e a face vazia do espelho – com rigorosa infidelidade. E, seria
assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças – o espírito do viver
não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança
e a memória”.
Anos mais tarde, “ao fim de uma
ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei – não rosto a rosto. O
espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só
depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos
tentando-se em débil cintilação, radiância... Que luzinha, aquela, que de mim
se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa?... São coisas que se não
devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude
distinguir, muito mais tarde – por último – num espelho. Por aí, perdoe-me o
detalhe, eu já amava – já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria.
E... sim, vi, a mim mesmo, de novo, num rosto, um rosto, não este, que o senhor
razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas-mal
emergindo; qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que
rostinho de menino, de menos-que-menino, só... Apalpo o evidente? Tresbusco.
Será este nosso desengonço e mundo o plano – intersecção de planos – onde se
completam de fazer as almas? Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e
séria; sua técnica – ou pelo menos parte – exigindo o consciente alijamento, o
despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e
soterra? Depois, o salto mortale... E o julgamento-problema, podendo sobrevir
com a simples pergunta: Você chegou a existir? Sim? Mas, então, está
irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem
razão nenhuma, num vale de bobagens?” 20.
UM ARDENTE E LUMINOSO PRESSENTIMENTO
Estamos no final da experiência. O
contemplador despojado chega à evidência das raízes. Existir – já o víamos – é
extrema aventura, radicalmente espiritual e voltada para o eterno. No aparente
absurdo e desordem do mundo, dá-se uma tremenda intersecção de planos, o eterno
se entrecruzando com o temporal e rasgando as vias por onde a alma se perfaz.
Salta aí, feita em pedaços, a concepção materialista do homem, e se esfarela a
atitude de resguardo egoísta da vida na sua autodestrutora contingência. A
explicação do homem – diríamos nós – é o mistério da alma “capaz de Deus”, que
sem Ele fica eternamente inconsumada.
A obra de Guimarães Rosa, como a
mística plotiniana, toca os acordes de um sugestivo prelúdio, que só pode
romper em cântico definitivo quando acabar de se internar no nódulo
sobrenatural do mistério que a mística cristã alumia plenamente. Este é o
necessário “salto mortal”.
Entre a angústia e a esperança, o
homem de Guimarães Rosa queima num ardente pressentimento da Trindade. Ainda
estamos longe do encontro da criatura humana com o Amor pessoal – o Deus
transcendente e entranhadamente próximo – mediante o abraço transformador da
Graça do Espírito Santo. A “mística” de Guimarães Rosa é, na realidade, uma
mística pré-cristã que, num vale de luzes e sombras, galga os primeiros degraus
de acesso aos fundões do mundo sobrenatural: “Porque – dizia São João da Cruz
–, depois do exercício do conhecimento próprio, esta consideração das criaturas
é a primeira, pela ordem, neste caminho espiritual para ir conhecendo Deus,
considerando a sua grandeza e excelência por intermédio delas” 21.
Fica, porém, um passo a dar. O que
rompe os últimos enigmas e conduz em silêncio ao coração do mistério:
Adonde te escondiste,
Amado, y me dejaste con gemido?
Como el ciervo huíste
Habiéndome herido;
Salí tras ti clamando, e eras ido [...].
¡Oh, bosques y espesuras,
Plantadas por la mano del Amado!
¡Oh, prado de verduras,
De flores esmaltado,
Decid si por vosotros ha pasado!
Mil gracias derramando,
Pasó por estos sotos con presura,
Y yéndolos mirando,
Con sola su figura
Vestidos los dejó de hermosura.
¡Ay, quién podrá sanarme!
Acaba de, entregarte ya de vero,
No quieras enviarme
de hoy más ya mensajero;
que no saben decirme lo que quiero! [...]
Y véante mis ojos,
Pues eres lumbre de ellos,
Y sólo para ti quiero tenellos... 22
Quem adentrar nas obras de Guimarães
Rosa sentirá o denso sabor do presságio que pulsa, muitas vezes, entre as sombras
translúcidas da concepção neoplatônica do mundo ou do misticismo das religiões
orientais. Cada passo que fere o claro-escuro da noite transparente, arrisca o
contemplador a perder-se num abismo. O salto pode ser mortal. Mas, na tensa
aventura, percebe-se incessantemente aquele gemido inefável 23 da criação
sensível, como uma dolorosa – e deliciosa – procura de Deus, do “Amor che move
il sole e l’altre stelle” 24.
No limiar da Luz, este
extraordinário escritor levantou a sua voz para cantar a grandeza da alma. E
tudo – como numa das suas mais belas estórias 25 – é arrastado para onde essa
canção se encaminha.
________________________________________
NOTAS:
([1]) Cfr.
“Não-entrevista de Guimarães Rosa”, de Pedro Bloch, em Manchete, n. 580, 1-VI-1963,
págs. 71-73. É conhecida a relutância de Guimarães Rosa, em conceder
entrevistas à imprensa sobre a sua atividade de escritor. Já chegou a dizer que
os livros deveriam impor-se por si próprios, sem que fosse preciso sequer
ostentarem o nome do autor. Foi desta singular “não-entrevista” que extraímos
aquelas frases de Guimarães Rosa que, no presente artigo, aparecem citadas sem
referência expressa a alguma das suas obras.
(2) Primeiras
Estórias, Livraria José Olympio Editora, 1ª ed., Rio de Janeiro, 1962.
(3) Sagarana,
Livraria José Olympio Editora, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1956, pág. 242.
(4) Sagarana,
Ibidem.
(5) Primeiras
Estórias, edição citada, pág. 5.
(6) Liv. José
Olympio Editora, Rio de Janeiro 1967, pág. 174
(7) Primeiras
Estórias, ed. cit., pág. 21.
(8) Grande Sertão:
Veredas, Livraria José Olympio Editora, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1958, pág. 227.
(9) Corpo de Baile,
Livraria José Olympio Editora, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1960, págs. 389-513.
(10) Primeiras
Estórias, ed. cit., págs. 98-104.
(11) Ibidem, págs.
124-134.
(12) Corpo de
Baile, ed. cit., págs. 366-367.
(13) Primeiras
Estórias, ed. cit., págs. 2-7.
(14) Cf. o conto
“Nenhum, nenhuma” em Primeiras Estórias, ed. cit., pág. 52.
(15) Sagarana, ed.
cit., pág. 314-315.
(16) Primeiras
Estórias, ed. cit., pág. 76.
(17) Ibidem, pág.
85.
(18) Corpo de
Baile, ed. cit. pág. 63.
(19) Ibidem, pág.
513.
(20) Primeiras
estórias, ed. cit., pág. 76-78.
(21) Cántico
espiritual, “Declaración de la Canción IV”. Cf. Vida y Obra de San Juan de la
Cruz, BAC, 3ª ed., Madrid, 1955, pág. 933.
(22) Cántico
espiritual, Ibidem, pág. 937
(23) Cf. São Paulo,
Carta aos Romanos, 8,23
(24) Dante, Divina
Comédia, Paradiso, XXXIII, 145
(25) O conto
“Soroco, sua mãe, sua filha”, em Primeiras Estórias, ed. cit., págs. 14-18.
Francisco Faus
Licenciado em Direito pela
Univerdade de Barcelona e Doutor em Direito Canônico pela Universidade de São
Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside em São Paulo, onde
exerce uma intensa atividade de atenção espiritual entre estudantes
universitários e profissionais. Autor de diversas obras literárias, algumas
delas premiadas, já publicou na coleção Temas Cristãos, entre outros, os
títulos O valor das dificuldades, O homem bom, Lágrimas de Cristo, lágrimas dos
homens, Maria, a mãe de Jesus, a paciência, A voz da consciência e A paz na
família.
Fonte: www.quadrante.com.br