« Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32, 39):
o drama da eutanásia
Encíclica
Evangelium vitae
Ioannes Paulus PP. II
O valor incomparável da
pessoa humana
2. O homem é chamado a uma plenitude de vida que se
estende muito para além das dimensões da sua existência terrena, porque
consiste na participação da própria vida de Deus.
A
sublimidade desta vocação sobrenatural revela a grandeza e o valor precioso da
vida humana, inclusive já na sua fase temporal. Com efeito, a vida temporal é
condição basilar, momento inicial e parte integrante do processo global e
unitário da existência humana: um processo que, para além de toda a expectativa
e merecimento, fica iluminado pela promessa e renovado pelo dom da vida divina,
que alcançará a sua plena realização na eternidade (cf. 1 Jo 3, 1-2). Ao mesmo tempo, porém, o próprio chamamento
sobrenatural sublinha a relatividade
da vida terrena do homem e da mulher. Na verdade, esta vida não é realidade «
última », mas « penúltima »; trata-se, em todo o caso, de uma realidade sagrada que nos é confiada
para a guardarmos com sentido de responsabilidade e levarmos à perfeição no
amor pelo dom de nós mesmos a Deus e aos irmãos.
A
Igreja sabe que este Evangelho da vida, recebido
do seu Senhor, encontra um eco profundo e persuasivo no coração de cada pessoa,
crente e até não crente, porque se ele supera infinitamente as suas aspirações,
também lhes corresponde de maneira admirável. Mesmo por entre dificuldades e
incertezas, todo o homem sinceramente aberto à verdade e ao bem pode, pela luz
da razão e com o secreto influxo da graça, chegar a reconhecer, na lei natural
inscrita no coração (cf. Rm 2,
14-15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início até ao seu termo, e
afirmar o direito que todo o ser humano tem de ver plenamente respeitado este
seu bem primário. Sobre o reconhecimento de tal direito é que se funda a
convivência humana e a própria comunidade política.
De
modo particular, devem defender e promover este direito os crentes em Cristo,
conscientes daquela verdade maravilhosa, recordada pelo Concílio Vaticano II: «
Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem
». De facto, neste acontecimento da salvação, revela-se à humanidade não só o
amor infinito de Deus que « amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho
único » (Jo 3, 16), mas também o valor incomparável de cada pessoa humana.
A
Igreja, perscrutando assiduamente o mistério da Redenção, descobre com assombro
incessante este valor, e sente-se chamada a anunciar aos homens de todos os
tempos este « evangelho », fonte de esperança invencível e de alegria
verdadeira para cada época da história. O
Evangelho do amor de Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa e o
Evangelho da vida são um único e indivisível Evangelho.
É
por este motivo que o homem, o homem vivo, constitui o primeiro e fundamental
caminho da Igreja.
CAPÍTULO III
NÃO MATARÁS A LEI SANTA DE DEUS
« Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32, 39): o drama da
eutanásia
64. No outro topo da existência, o homem encontra-se
diante do mistério da morte. Hoje, na sequência dos progressos da medicina e
num contexto cultural frequentemente fechado à transcendência, a experiência do
morrer apresenta-se com algumas características novas. Com efeito, quando prevalece
a tendência para apreciar a vida só na medida em que proporciona prazer e
bem-estar, o sofrimento aparece como um contratempo insuportável, de que é
preciso libertar-se a todo o custo. A morte, considerada como « absurda »
quando interrompe inesperadamente uma vida ainda aberta para um futuro rico de
possíveis experiências interessantes, torna-se, pelo contrário, uma «
libertação reivindicada », quando a existência é tida como já privada de
sentido porque mergulhada na dor e inexoravelmente votada a um sofrimento
sempre mais intenso.
Além
disso, recusando ou esquecendo o seu relacionamento fundamental com Deus, o
homem pensa que é critério e norma de si mesmo e julga que tem inclusive o
direito de pedir à sociedade que lhe garanta possibilidades e modos de decidir
da própria vida com plena e total autonomia. Em particular, o homem que vive
nos países desenvolvidos é que assim se comporta: a tal se sente impelido,
entre outras coisas, pelos contínuos progressos da medicina e das suas técnicas
cada vez mais avançadas. Por meio de sistemas e aparelhagens extremamente
sofisticadas, hoje a ciência e a prática médica são capazes de resolver casos
anteriormente insolúveis e de aliviar ou eliminar a dor, como também de
sustentar e prolongar a vida até em situações de debilidade extrema, de
reanimar artificialmente pessoas cujas funções biológicas elementares sofreram
danos imprevistos, de intervir para tornar disponíveis órgãos para transplante.
Num
tal contexto, torna-se cada vez mais forte a tentação daeutanásia, isto é, de apoderar-se
da morte, provocando-a antes do tempo e, deste modo, pondo fim « docemente
» à vida própria ou alheia. Na realidade, aquilo que poderia parecer lógico e
humano, quando visto em profundidade, apresenta-se absurdo e desumano. Estamos aqui perante um dos sintomas mais
alarmantes da « cultura de morte » que avança sobretudo nas sociedades do
bem-estar, caracterizadas por uma mentalidade eficientista que faz aparecer
demasiadamente gravoso e insuportável o número crescente das pessoas idosas e
debilitadas. Com muita frequência, estas acabam por ser isoladas da família e
da sociedade, organizada quase exclusivamente sobre a base de critérios de
eficiência produtiva, segundo os quais uma vida irremediavelmente incapaz não
tem mais qualquer valor.
65. Para um correcto juízo moral da eutanásia, é preciso,
antes de mais, defini-la claramente. Por eutanásia,
em sentido verdadeiro e próprio, deve-se entender uma acção ou uma omissão
que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de
eliminar o sofrimento. « A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das intenções
e ao nível dos métodos empregues ».
Distinta
da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado « excesso terapêutico », ou seja, a certas intervenções médicas já
inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados
que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a
sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável,
pode-se em consciência « renunciar a tratamentos que dariam somente um
prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados
normais devidos ao doente em casos semelhantes ». Há, sem dúvida, a obrigação
moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há-de medir-se
segundo as situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios
terapêuticos à disposição são objectivamente proporcionados às perspectivas de
melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não
equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição
humana defronte à morte.
Na
medicina actual, têm adquirido particular importância os denominados « cuidados paliativos », destinados a
tornar o sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao
mesmo tempo ao paciente um adequado acompanhamento humano. Neste contexto,
entre outros problemas, levanta-se o da licitude do recurso aos diversos tipos
de analgésicos e sedativos para aliviar o doente da dor, quando isso comporta o
risco de lhe abreviar a vida. Ora, se pode realmente ser considerado digno de
louvor quem voluntariamente aceita sofrer renunciando aos meios lenitivos da
dor, para conservar a plena lucidez e, se crente, participar, de maneira
consciente, na Paixão do Senhor, tal comportamento « heróico » não pode ser
considerado obrigatório para todos. Já Pio XII afirmara que é lícito suprimir a
dor por meio de narcóticos, mesmo com a consequência de limitar a consciência e
abreviar a vida, « se não existem outros meios e se, naquelas circunstâncias,
isso em nada impede o cumprimento de outros deveres religiosos e morais ». É
que, neste caso, a morte não é querida ou procurada, embora por motivos
razoáveis se corra o risco dela: pretende- -se simplesmente aliviar a dor de
maneira eficaz, recorrendo aos analgésicos postos à disposição pela medicina.
Contudo, « não se deve privar o moribundo da consciência de si mesmo, sem
motivo grave »: quando se aproxima a morte, as pessoas devem estar em condições
de poder satisfazer as suas obrigações morais e familiares, e devem sobretudo
poder-se preparar com plena consciência para o encontro definitivo com Deus.
Feitas
estas distinções, em conformidade com o Magistério dos meus Predecessores e em
comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo
que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte
deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está
fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida
pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.
A eutanásia comporta,
segundo as circunstâncias, a malícia própria do suicídio ou do homicídio.
66. Ora, o suicídio é sempre moralmente inaceitável, tal
como o homicídio. A tradição da Igreja sempre o recusou, como opção gravemente
má. Embora certos condicionalismos psicológicos, culturais e sociais possam
levar a realizar um gesto que tão radicalmente contradiz a inclinação natural
de cada um à vida, atenuando ou anulando a responsabilidade subjectiva, o suicídio, sob o perfil objectivo, é um
acto gravemente imoral, porque comporta a recusa do amor por si mesmo e a
renúncia aos deveres de justiça e caridade para com o próximo, com as várias
comunidades de que se faz parte, e com a sociedade no seu conjunto. No seu
núcleo mais profundo, o suicídio constitui uma rejeição da soberania absoluta
de Deus sobre a vida e sobre a morte, deste modo proclamada na oração do antigo
Sábio de Israel: « Vós, Senhor, tendes o poder da vida e da morte, e conduzis
os fortes à porta do Hades e de lá os tirais » (Sab 16, 13; cf. Tob 13,
2).
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a intenção suicida de outrem e ajudar a realizá-la mediante o chamado «
suicídio assistido », significa fazer-se colaborador e, por vezes, autor em
primeira pessoa de uma injustiça que nunca pode ser justificada, nem sequer
quando requerida. « Nunca é lícito — escreve com admirável actualidade Santo
Agostinho — matar o outro: ainda que ele o quisesse, mesmo se ele o pedisse,
porque, suspenso entre a vida e a morte, suplica ser ajudado a libertar a alma
que luta contra os laços do corpo e deseja desprender-se; nem é lícito sequer
quando o doente já não estivesse em condições de sobreviver ». Mesmo quando não
é motivada pela recusa egoísta de cuidar da vida de quem sofre, a eutanásia
deve designar-se uma falsa compaixão,
antes uma preocupante « perversão » da mesma: a verdadeira « compaixão », de
facto, torna solidário com a dor alheia, não suprime aquele de quem não se pode
suportar o sofrimento. E mais perverso ainda se manifesta o gesto da eutanásia,
quando é realizado por aqueles que — como os parentes — deveriam assistir com
paciência e amor o seu familiar, ou por quantos — como os médicos —, pela sua
específica profissão, deveriam tratar o doente, inclusive nas condições terminais
mais penosas.
A
decisão da eutanásia torna-se mais grave, quando se configura como um homicídio, que os outros praticam sobre
uma pessoa que não a pediu de modo algum nem deu nunca qualquer consentimento
para a mesma. Atinge-se, enfim, o cúmulo do arbítrio e da injustiça, quando
alguns, médicos ou legisladores, se arrogam o poder de decidir quem deve viver
e quem deve morrer. Aparece assim reproposta a tentação do Éden: tornar-se como
Deus « conhecendo o bem e o mal » (cf. Gn
3, 5). Mas, Deus é o único que tem o poder de fazer morrer e de fazer
viver: « Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32, 39; cf. 2 Re 5, 7;
1 Sam 2, 6). Ele exerce o seu poder
sempre e apenas segundo um desígnio de sabedoria e amor. Quando o homem usurpa
tal poder, subjugado por uma lógica insensata e egoísta, usa-o inevitavelmente
para a injustiça e a morte. Assim, a vida do mais fraco é abandonada às mãos do
mais forte; na sociedade, perde-se o sentido da justiça e fica minada pela raiz
a confiança mútua, fundamento de qualquer relação autêntica entre as pessoas.
67. Bem diverso, ao contrário, é o caminho do amor e da verdadeira compaixão, que nos é imposto pela
nossa comum humanidade e que a fé em Cristo Redentor, morto e ressuscitado,
ilumina com novas razões. A súplica que brota do coração do homem no confronto
supremo com o sofrimento e a morte, especialmente quando é tentado a fechar-se
no desespero e como que a aniquilar-se nele, é sobretudo uma petição de
companhia, solidariedade e apoio na prova. É um pedido de ajuda para continuar
a esperar, quando falham todas as esperanças humanas. Como nos recordou o
Concílio Vaticano II, « é em face da morte que o enigma da condição humana mais
se adensa » para o homem; e, todavia, « a intuição do próprio coração fá-lo
acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o
desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de eternidade que nele
existe, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte ».
Esta
repugnância natural da morte e este germe de esperança na imortalidade são
iluminadas e levadas à plenitude pela fé cristã, que promete e oferece a
participação na vitória de Cristo Ressuscitado: é a vitória d'Aquele que, pela
sua morte redentora, libertou o homem da morte, « salário do pecado » (Rm 6, 23), e lhe deu o Espírito, penhor
de ressurreição e de vida (cf. Rm 8,
11). A certeza da imortalidade futura e a esperança
na ressurreição prometida projectam uma luz nova sobre o mistério do
sofrimento e da morte e infundem no crente uma força extraordinária para se abandonar
ao desígnio de Deus.
O
apóstolo Paulo exprimiu esta novidade em termos de pertença total ao Senhor que
abraça qualquer condição humana: « Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum
de nós morre para si mesmo. Se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos,
para o Senhor morremos. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor » (Rm 14, 7-8). Morrer para o Senhor significa viver a própria morte como acto
supremo de obediência ao Pai (cf. Fil 2,
8), aceitando encontrá-la na « hora » querida e escolhida por Ele (cf. Jo 13, 1), o único que pode dizer quando
está cumprido o caminho terreno. Viver
para o Senhor significa também reconhecer que o sofrimento, embora
permaneça em si mesmo um mal e uma prova, sempre se pode tornar fonte de bem. E
torna-se tal se é vivido por amor e com amor, na participação, por dom gratuito
de Deus e por livre opção pessoal, no próprio sofrimento de Cristo crucificado.
Deste modo, quem vive o seu sofrimento no Senhor fica mais plenamente
configurado com Ele (cf. Fil 3, 10; 1 Ped 2, 21) e intimamente associado à
sua obra redentora a favor da Igreja e da humanidade. É esta experiência do
Apóstolo, que toda a pessoa que sofre é chamada a viver: « Alegro-me nos
sofrimentos suportados por vossa causa e completo na minha carne o que falta
aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja » (Col 1, 24).