São Miguel Garicoits
Bayonne (1797 – 1863)
O sonho de sua vida era dar à Igreja um
esquadrão de sacerdotes bem preparados e dispostos a aceitar qualquer missão,
sobretudo as mais difíceis, as que fossem recusadas pelos outros.
Irmã Juliane
Vasconcelos Almeida Campos, EP
Os anos da Revolução Francesa foram de acirrada
perseguição à Igreja. Os padres "refratários" - aqueles que, por
fidelidade ao Papa, se recusaram a aceitar a Constituição Civil do Clero -
viram-se reduzidos à condição de criminosos, obrigados a fugir ou a exercer na
clandestinidade seu ministério sacerdotal. Milhares deram a vida por Cristo,
decapitados na guilhotina, mortos por afogamento ou vítimas da fome e das
doenças, encarcerados em infectas prisões.
Nessa situação, os sacerdotes
fiéis contaram com o auxílio de católicos leigos que não hesitavam em expor a
própria vida para acolher em seus lares os ministros de Deus que permaneceram
na França para desempenhar sua missão de salvar almas, ou guiar pelas trilhas
das montanhas aqueles que fugiam para algum país vizinho.
Os pais de São Miguel Garicoïts - Arnaldo e
Graciana - estavam entre esses anônimos heróis da Fé. Esse jovem casal de
camponeses de Ibarre, vilarejo francês situado a poucos quilômetros da
fronteira espanhola, não temia esconder em sua humilde granja os sacerdotes
perseguidos e dar-lhes todo tipo de ajuda. E Deus recompensou sua generosidade,
dandolhe por filho um grande Santo.
Semente de Santo ou... de bandido
Nascido a 15 de abril de 1797, Miguel só pôde ser
batizado seis meses depois, devido às dificuldades causadas pela perseguição
religiosa. Seu
temperamento fogoso fez-se sentir já nessa ocasião, pois quando o padre lhe
derramou na cabeça a água batismal, agarrou com suas mãozinhas a folha do
ritual e a rasgou!
Alguns pequenos episódios bastam para revelar seu
caráter determinado e impetuoso. Aos quatro anos, atirou uma pedra numa
vizinha, em vingança porque ela ofendera sua mãe. Aos cinco, furtou as
brilhantes agulhas de um mascate. Em certa ocasião, viu seu irmão menor comendo
uma maçã e arrebatou- a de suas mãos; e quando o pequeno lhe perguntou se
gostaria que alguém lhe fizesse o mesmo... encheu-se de remorso e jogou fora a
fruta. Ação bem mais grave: aos onze anos, capitaneou uma revolta para
vingar-se do mestre-escola, que castigava com excessivo rigor seus infantis
alunos; mas, no momento decisivo, os demais revoltosos fugiram, deixando-o
sozinho diante do "inimigo" que o interpelava, e ao qual respondeu
com franqueza:
- Sim, professor, nossa intenção era surrá-lo. Mas...
peço-lhe perdão.
Assim era ele: alegre, ardente, resoluto, franco,
teimoso e disposto a assumir a responsabilidade por seus atos. Tinha estofo
para tornar-se um grande Santo ou... um grande bandido.
Mamãe Garicoïts percebia isso e, não querendo ter um
filho criminoso, corrigia-o com firmeza. Mostravalhe às vezes o intenso fogo da
lareira, perguntando:
- Está vendo este fogo? Fique sabendo que o do
inferno é muito mais terrível... e para lá vão os meninos que cometem pecado
mortal!
Para incutir-lhe o espírito de obediência e
submissão à vontade de Deus, incitava-o a dizer sempre ao Senhor: "Huna
ni!" ("Eis-me aqui", no dialeto basco), a resposta dada pelo
jovem Samuel, ao ser chamado por Deus (I Sm 3, 4). Reconhecerá ele mais tarde,
cheio de gratidão: "Sem minha mãe, acho que teria me tornado um bandido.
Depois de Deus, devo a ela o que sou".1
Vou comungar e
serei sacerdote!
A graça suscitava na grande alma sacerdotal e
eucarística de Miguel o desejo de receber o quanto antes a Sagrada Comunhão.
Nas Missas dominicais, ele observava atentamente os gestos e atitudes do padre,
e depois brincava de celebrar Missa. Certo dia, queimou a mesa de madeira de
sua casa, ao deixar derreter até o fim os tocos de vela de parafina que usava
como círios do seu improvisado altar...
A família Garicoïts era pobre, e Miguel - o mais
velho dos cinco filhos - precisava dar sua colaboração para o sustento da casa.
Inicialmente, pastoreava o pequeno rebanho familiar. Depois seu pai
arranjou-lhe um emprego de pastor na granja de uma família abastada de Oneix,
cidade vizinha de Ibarre. Ali trabalhou dos onze aos quatorze anos e
frequentava com muito proveito as aulas de gramática e de Catecismo, a ponto de
ser cognominado de "Doutorzinho". Apesar disso, o pároco não o admitia
à Primeira Comunhão.
Mas Deus decidiu abrir as portas fechadas pelos
homens. Numa tarde, voltava ele do campo, com seu rebanho, e
um só pensamento lhe ocupava a mente: receber a Hóstia Consagrada. De repente, como São
Paulo no caminho de Damasco, viu-se cercado por uma luz intensa, e recebeu uma
revelação que encheu sua alma de paz e alegria: vou comungar e serei sacerdote!
Essa, ele a denominou de "êxtase de Oneix". Sem demora, vai à procura
do pároco e lhe conta em detalhes a graça que acabara de receber. Este
reconhece no fato uma clara manifestação da vontade de Deus, e diz ao jovem
pastor.
- Miguel, vou inscrever já seu nome para a próxima
Primeira Eucaristia! Prepare-se bem e tome todo cuidado para não ofender o Deus
que você vai receber.
Foi assim que, por fim, aos 14 anos, fez sua
Primeira Comunhão, na festa da Santíssima Trindade.
Rumo ao sacerdócio
O primeiro obstáculo a enfrentar em sua trajetória
rumo ao sacerdócio foi o seu pai, que o queria ocupando- se da pequena granja
familiar e, ademais, não podia custear-lhe os estudos. Porém, sua avó materna,
com determinação basca, soube convencer o genro e levou Miguel para Oneix, onde
pediu ajuda a um padre que se escondera inúmeras vezes na casa dos Garicoïts,
durante a perseguição revolucionária. Este deu-lhe moradia e arranjou-lhe uma
vaga no colégio de Saint Palais.
Começou a escalada dos estudos. O jovem camponês
trabalhava de dia, para compensar a falta de recursos, e estudava à noite. Como
sabia apenas o idioma basco, teve dura luta para aprender francês e latim. Em
três anos, porém, já estava preparado para os estudos superiores. Assim,
transferiu- se para Bayonne em 1814. Prestava serviços no Palácio Episcopal,
onde se hospedava, e em pouco tempo conquistou a simpatia de todos, à força de
mansidão, dignidade e dedicação.
Aluno brilhante, estudou Filosofia no seminário de
Aire-sur-Adour e Teologia no de Dax. O reitor deste logo notou o valor do
jovem, entre centenas de estudantes, e comentou: "Se não me engano, ainda
ouviremos falar muito deste rapaz".2 O testemunho de seus companheiros
deixa claro que já entreviam nele a santidade: "Miguel não é um santo para
ser feito: é um santo feito e acabado"- dizia um. "Para todos nós,
Miguel era nosso São Luís Gonzaga!" - exclamava outro.3
O Bispo de Bayonne, futuro Cardeal d'Astros,
conferiu-lhe a tão ansiada ordenação presbiteral em 20 de dezembro de 1823. São
Miguel Garicoïts iniciava aos 26 anos de idade sua providencial missão.
Um homem
providencial
Um mês após sua ordenação, o Bispo o nomeou vigário
cooperador de Cambo, cidade de certa importância, próxima a Bayonne. Era uma
situação muito delicada, pois o pároco, já idoso e paralítico, perdera o
contato com seus paroquianos, deixando-os entregues às ideias da época.
Como homem providencial, padre Miguel levou adiante
uma pastoral muito parecida com a do Santo Cura d'Ars, seu contemporâneo: leão
no púlpito, manso e compreensivo no confessionário. Instituiu uma Cruzada
Eucarística para contrabalançar a fria influência do jansenismo, deu um caráter
solene aos atos litúrgicos, esmerava-se nas aulas de Catecismo, visitava os
doentes, era incansável apóstolo da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Os resultados não se fizeram esperar: em dezoito
meses a paróquia estava totalmente transformada. O próprio prefeito
da cidade, que se destacava
por suas ideias voltairianas e atitudes anticlericais, converteu-se em bom
cristão. Fruto
mais precioso ainda, os jovens se entusiasmaram e começaram a surgir vocações
sacerdotais e religiosas.
No seminário de
Bétharram
A voz da obediência mudou os rumos da vida do jovem
sacerdote: o Bispo o enviou para o seminário de Bétharram, como professor de
Filosofia. Essa nomeação interrompia uma atividade evangelizadora que estava
produzindo excelentes resultados... A perplexidade não impediu padre Miguel de
responder com seu inalterável espírito de obediência: "Eis-me aqui!".
O próprio Bispo explicou-lhe depois o motivo dessa
transferência inesperada. Ele havia observado, e apreciado, o zelo empreendedor
aliado à delicadeza de alma com a qual o jovem vigário soube agir sem ferir em
nada a autoridade do pároco ancião e inativo. Ora, ele o queria em Bétharram
para uma missão idêntica. O reitor do seminário, sacerdote venerável e
carregado de méritos, estava entretanto em idade muito avançada e não tinha
mais condição alguma de dirigir essa fundamental instituição diocesana.
- Padre Miguel - disse o Prelado -, o senhor
reergueu a paróquia de Cambo sem arranhar o prestígio do respeitável pároco.
Faça o mesmo em Bétharram. O velho Padre Superior continuará no cargo, mas de
fato é ao senhor que confio o seminário, com a incumbência de pôr ordem na casa
e formar santos presbíteros.
Assim, em 1825 o Santo assumiu suas novas funções,
certo de estar cumprindo a vontade de Deus.
Um homem inatacável
Até então, Bétharram era para ele apenas como uma
terra abençoada, onde existia um santuário famoso, no qual a Santíssima Virgem
distribuía suas graças e maternais favores. Nesse local, segundo narra uma
antiga tradição, uma moça caiu no Rio Gave e estava se afogando. Recorreu então
a Nossa Senhora e logo viu ao alcance de sua mão um galho ao qual se agarrou,
salvando a vida. Como testemunho de sua gratidão, ela colocou nas mãos da
imagem de sua Protetora um ramo de ouro, chamando-o de "bétharram" - "belo
ramo", no dialeto local.
Ali, esperava-o um novo desafio. O seminário estava
entregue a todo tipo de desordens e relaxamento. Sua fama era de ser refúgio
para "qualquer batina"... Os seminaristas levavam a vida como
queriam, e até abusavam do vinho que o empregado da casa lhes vendia.
Foi necessário ao padre Miguel muito tato e firmeza
para restaurar a disciplina e implantar um regime de vida adequado à formação
dos futuros sacerdotes. Uma vez mais, sua "pastoral dos Sacramentos"
produziu os frutos esperados: a Confissão e a Eucaristia reconduziram ao bom
caminho quase todos os transviados. Os que não quiseram se emendar, deixaram o
seminário. Mas não sem testemunhar que "o padre Garicoïts não era atacado,
porque era inatacável".4
Faleceu o velho reitor, e o padre Miguel foi
nomeado para o cargo. Mas, algum tempo depois, o Bispo decidiu transferir o
seminário para Bayonne, pois o perigo das perseguições já havia amainado. Nova
perplexidade: uma vez mais, sua ação apostólica era interrompida quando estava
produzindo bons frutos... Segundo ele próprio disse, ficou em Bétharram como
"superior das quatro paredes de um vasto edifício".5 Sua resposta,
porém, foi a mesma de sempre: "Eis que venho, ó Deus, fazer a Vossa
vontade" (Hb 10, 7). Aceitando sem entender, ele dava mais glória a Deus!
Nasce uma nova
Congregação
E Ele tem os seus caminhos. Por essas vias, Ele o
preparava para a sua grande missão. Em sua aparente inutilidade, o fogoso
sacerdote meditou mais profundamente sobre a triste situação daquilo que
sobrara do clero francês, após a onda devastadora da Revolução: reduzido em
número e, pior ainda, desorientado e sem o devido preparo.
Nasceu assim em seu coração o desejo de fundar uma
instituição eclesiástica nova, que congregasse sacerdotes desapegados de tudo,
com "uma dedicação de obediência absoluta, simplicidade perfeita, mansidão
inalterável! Esses sacerdotes seriam uma verdadeira patrulha móvel de soldados
de elite, prontos a correr ao primeiro sinal dos chefes, para onde fossem
chamados, até, e sobretudo, para os ministérios mais difíceis, recusados por
outros".6
E que sempre tivessem presente que é "maldito
aquele que faz com negligência a obra do Senhor!" (Jr 48, 10).
Com a certeza de ser essa a vontade de Deus, reuniu
em torno de si de zessete sacerdotes que responderam a seu apelo missionário e
com eles fundou, na pobreza absoluta, a Congregação dos Sacerdotes do Sagrado
Coração de Jesus de Bétharram. Em 1835, todos fizeram em suas mãos os votos de
pobreza e obediência, além de renovar o de castidade, e o escolheram para
Superior do novo Instituto.
São Miguel visava compor uns estatutos que dessem à
sua Congregação - com o selo da aprovação romana - a solidez e estabilidade das
regras canônicas, bem como a liberdade de movimentos indispensável às
atividades apostólicas. Mas estes foram redigidos pelo novo Bispo diocesano e
não eram o que pretendia o santo fundador...
Foi essa a maior prova de obediência de sua vida!
Aceitando esta aparente contradição permitida pela Providência, não enfrentou a
autoridade legítima, não recorreu a Roma e adotou as constituições de seu
Bispo, completamente insuficientes para seu desejo de perfeição. Mas confiante
que "a letra mata e o Espírito vivifica" (II Cor, 3, 6), soube
incutir em seus filhos esse espírito de prontidão, fazendo- os religiosos de
corpo inteiro, dispostos a qualquer desafio apostólico.
Seus ansiados estatutos só foram aprovados depois
de sua morte, numa vitória da obediência.
Até o fim dizendo: "Eis-me aqui, Senhor!"
Durante trinta anos, dirigiu com sabedoria a nova
Congregação. Percorria vilas e aldeias, evangelizando a juventude, os operários
e os trabalhadores agrícolas. Enquanto os Bétharramistas se espalhavam pelas
dioceses francesas, formava-se em torno de seu Fundador um halo de santidade e
de estima. Seu confessionário estava sempre assediado por pessoas vindas de
todas as partes. A todos acolhia com bondade, paciência e firmeza, procurando
incutir-lhes o amor à Cruz e à Santíssima Virgem.
Bispos e outras personalidades importantes acorriam
a Bétharram para consultá-lo. Por expressa solicitação do Bispo de Tarbes, ele
teve dois encontros com Santa Bernadette Soubirous, a fim de verificar a
autenticidade dos fatos ocorridos em Lourdes. Essas duas entrevistas com a
jovem vidente reforçaram sua convicção pessoal de que indubitavelmente a Virgem
Maria aparecera na Gruta de Massabielle.
Nos últimos dez anos de sua existência, dolorosas
enfermidades vieram aumentar os seus sofrimentos. E quando, por fim, sentiu que
Deus o chamava para junto de Si, deu-Lhe a resposta que caracterizou toda a sua
vida: "Eis-me aqui, Senhor".
Na madrugada da festa da Ascensão de 1863, dia 14
de maio, após receber todos os sacramentos, entregou sua alma a Deus,
pronunciando o primeiro versículo do Salmo 50: "Miserere mei, Deus,
secundum magnam misericordiam tuam" - Tende piedade de mim, ó Deus,
segundo Vossa grande misericórdia.
Os padres de Bétharram eram, nessa ocasião, cerca
de cem, atuando nas dioceses francesas. Atualmente, exercem suas atividades
evangelizaras, sobretudo no sul da América Latina: Argentina, Brasil, Paraguai
e Uruguai.
Pio XII canonizou-o em 6 de julho de 1947.
1 BRUNOT, SCJ, Pe.
Amédée. Miguel Garicoïts: o santo do "eis-me aqui".
Bayonne: I.M.E., s/d., p. 9.
2 Idem, p.23.
3 ALCORTA, SCJ, Pe. Julián. San Miguel Garicoïts.
In: ECHEVERRÍA, L.; LLORCA, B. e BETES, J. (Org.). Año Cristiano. Madrid: BAC,
2004, vol. 5, p. 308.
4 BRUNOT, SCJ, Op. cit., p. 31.
5 ALCORTA, SCJ, Op.
cit., p. 309.
6 BRUNOT, SCJ, Op. cit., p. 43.
(Revista Arautos do
Evangelho, Maio/2009, n. 89, p. 30 à 33)
http://www.arautos.org.br/view/show/3900-sao-miguel-garicoits