Os ensinamentos de São Josemaría para os sacerdotes:
Uma resposta aos desafios de um mundo secularizado
Sumário
1. «Todos os sacerdotes somos Cristo». Eucaristia
e identificação com Cristo.
2. «Eu empresto ao Senhor a minha voz».
Familiaridade com a Palavra e disponibilidade para as almas.
3. «Eu empresto ao Senhor as minhas mãos». Amor à
liturgia e obediência à Igreja.
4. «Eu empresto ao Senhor o meu corpo e a minha
alma: dou-lhe tudo». Sacerdote a cem por cento.
O grande desafio dos cristãos num mundo secularizado
é tornar Deus presente em todas as actividades humanas, e essa é a tarefa que
São Josemaría recordou a milhares de pessoas —sacerdotes e leigos— durante a
sua vida. A sua mensagem pode resumir-se em poucas palavras: santidade
pessoal no meio do mundo.
Jesus Cristo tornar-se-á presente e activo no
mundo: nas famílias, na fábrica, nos meios de comunicação, no campo..., na
medida em que Cristo viva no pai e na mãe de família, no operário, no
jornalista, no agricultor…; isto é, na medida em que o operário, o jornalista,
o esposo ou a esposa sejam santos. Como afirmou João Paulo II, «são necessários
arautos do Evangelho peritos em humanidade, que conheçam a fundo o coração do
homem de hoje, participem das suas alegrias e esperanças, angústias e tristezas,
e ao mesmo tempo sejam contemplativos, enamorados de Deus. Por isto são
necessários novos santos. Os grandes evangelizadores (...) foram os santos.
Devemos suplicar ao Senhor que aumente o espírito de santidade da Igreja e nos
envie novos santos para evangelizar o mundo de hoje»[1].
Este é o segredo perante a indiferença e o
esquecimento de Deus: o nosso mundo precisa de santos; qualquer outra solução é
insuficiente. O mundo actual, com a sua instabilidade e as suas profundas
transformações, reclama a presença de homens santos, apostólicos, em todas as
actividades seculares: «Um segredo. —Um segredo em voz alta: estas crises
mundiais são crises de santos. —Deus quer um punhado de homens “seus” em cada
actividade humana. —Depois... “Pax Christi in regno Christi” —a paz de Cristo
no reino de Cristo»[2].
A ausência de Deus na sociedade secularizada
traduz-se em falta de paz; e, como consequência, proliferam as divisões: entre
as nações, nas famílias, no lugar de trabalho, na convívio diário... Para
encher de paz e alegria esses ambientes, «temos de ser, cada um de nós, alter
Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo. Só assim poderemos
realizar esse empreendimento grande, imenso, interminável: santificar a partir
de dentro todas as estruturas temporais, levando até elas o fermento da
Redenção»[3].
Todos estamos chamados a colaborar nesta tarefa apaixonante, com uma visão
optimista perante o mundo no qual vivemos: «Para ti, que desejas formar uma
mentalidade católica, universal, transcrevo algumas características: (...) uma
atitude positiva e aberta para com a transformação actual das estruturas
sociais e das formas de vida»[4].
Neste trabalho de transformação do mundo,
percebe-se também o importante papel do sacerdote. Mas, quem é o sacerdote na
sociedade de hoje? Como é que pode converter-se em fermento de santidade? A
esta pergunta pode-se responder considerando umas palavras de São Josemaría que
definem a identidade do sacerdote, também no mundo secularizado: «Todos os
sacerdotes somos Cristo. Eu empresto ao Senhor a minha voz, as minhas mãos, o
meu corpo, a minha alma: dou-lhe tudo»[5].
1. «Todos os sacerdotes somos Cristo». Eucaristia
e identificação com Cristo.
Certamente os leigos são aqueles que, de modo
capilar, tornam Cristo presente nos caminhos do mundo. Ao mesmo tempo, a vida
de Cristo que se inicia no Baptismo precisa do ministério sacerdotal para se
desenvolver. A grandeza do sacerdote consiste em que se lhe deu o poder de
vivificar, de cristificar. O sacerdote é «instrumento imediato e diário
dessa graça salvadora que Cristo ganhou para nós». O sacerdote traz Cristo «à
nossa terra, ao nosso corpo e à nossa alma, todos os dias: Cristo vem para nos
alimentar, para nos vivificar»[6].
Como pastor de almas e como dispensador dos
mistérios de Deus (cfr. 1 Cor 4, 1), o sacerdote, especialmente num
mundo indiferente à fé, deve alentar a todos para que progridam em direcção à
santidade, sem diminuir —por covardia ou por falta de fé— o horizonte do
mandato divino: «sede, pois, perfeitos, como vosso Pai celestial é perfeito» (Mt
5, 48). O sacerdote orientará outras pessoas nesse caminho em direcção à
santidade se ele mesmo reconhece este imperativo, e se é consciente de que Deus
pôs nas suas mãos os meios para o alcançar. O grande desafio para o sacerdote
consiste em identificar-se com Cristo no exercício do seu ministério
sacerdotal, para que muitos outros procurem também esta configuração com o
Senhor, no desempenho das ocupações habituais.
A identificação com Cristo sacerdote fundamenta-se
no dom do sacramento da Ordem, e cresce na medida em que o sacerdote põe tudo o
que é seu nas mãos de Cristo. Isto acontece de modo paradigmático e excelente
durante a celebração da Eucaristia. Na Missa, o sacerdote empresta o seu ser a
Cristo para trazer a Cristo. São Josemaría exprimia esta verdade com uma força
singular:
«Chego ao altar e a primeira coisa em que penso é:
Josemaría, tu não és Josemaría Escrivá de Balaguer (...): és Cristo (...). É
Ele quem diz: isto é o meu Corpo, isto é o meu Sangue, aquele que
consagra. Senão, eu não o poderia fazer. Ali se renova de modo incruento o
divino Sacrifício do Calvário. De tal forma que estou ali in persona Christi,
fazendo as vezes de Cristo»[7].
Esta identificação com o Senhor é uma
característica essencial da vida espiritual do sacerdote. Como dizia São
Gregório Magno, «os que celebramos os mistérios da paixão do Senhor, temos de
imitar o que fazemos. E então a hóstia ocupará o nosso lugar diante de Deus, se
nos fazemos hóstia nós mesmos»[8].
Toda a existência sacerdotal se orienta a que o
próprio eu diminua, para que cresça Cristo no presbítero: ocultar-se,
sem procurar o protagonismo, para que apareça só a eficácia salvadora do
Senhor; desaparecer, para que Cristo se torne presente através do exercício
abnegado e humilde do ministério. Ocultar-se e desaparecer[9] é
uma fórmula que agradava muito a São Josemaría. Convida, especialmente os
sacerdotes, a preferir o sacrifício escondido e silencioso[10] às
manifestações aparatosas ou chamativas.
Paradoxalmente, para deter a ausência de Deus num
mundo secularizado, São Josemaría propõe aos sacerdotes, não tanto uma forte
actividade pública, com a sua correspondente ressonância mediática, e sim,
simplesmente, ocultar-se e desaparecer. Desta forma, ao desaparecer o eu
do sacerdote, há-de propagar-se a presença de Cristo no mundo, de acordo com a
lógica divina que se nos mostra na celebração da Eucaristia.
«Parece-me que a nós, sacerdotes, se nos pede a humildade
de aprender a não estar na moda, de sermos realmente servos dos servos de
Deus —lembrando-nos daquela exclamação do Baptista: illum oportet crescere, me autem minui (Jn 3, 30); convém
que Cristo cresça e que eu diminua—, para que os cristãos correntes, os leigos,
tornem Cristo presente em todos os ambientes da sociedade (...). Quem pensa
que, para que a voz de Cristo se faça ouvir no mundo de hoje, é necessário que
o clero fale ou se faça sempre presente, ainda não comprendeu bem a dignidade
da vocação divina de todos e de cada um dos fiéis cristãos»[11].
A existência sacerdotal consiste em pôr tudo o que
é próprio à disposição de Deus: emprestar a voz ao Senhor, para que fale Ele;
emprestar-lhe as mãos, para que actue Ele; emprestar-lhe o corpo e a alma, para
que Ele cresça no sacerdote e, através do seu ministério, em cada um dos fiéis
cristãos. Perante os desafios do nosso mundo, São Josemaría ensina aos
sacerdotes humildade e abnegação: pôr inteiramente à disposição do Senhor o
próprio eu.
2. «Eu empresto ao Senhor a minha voz».
Familiaridade com a Palavra e disponibilidade para as almas.
A Eucaristia «reúne em si todos os mistérios do
Cristianismo. Celebramos, portanto, a acção mais sagrada e transcendente que o
homem, por graça de Deus, pode realizar nesta vida»[12].
O sacerdote empresta a sua voz ao Senhor, de modo inefável ao pronunciar as
palavras da consagração, que permitem que a força de Deus Pai, Filho e Espírito
Santo realize o prodígio da transubstanciação. A eficácia dessas palavras não
provém do sacerdote e sim de Deus. O sacerdote, por si próprio, não poderia
dizer eficazmente isto é o meu corpo, "este é o cálice do meu
sangue": não se realizaria a conversão do pão e do vinho no Corpo e no
Sangue de Cristo. Isto, que acontece de um modo extraordinário durante a
celebração eucarística, no momento mais sublime da vida do sacerdote, pode
estender-se analogamente a toda a sua vida e ao seu ministério.
A eficácia da palavra do sacerdote —na pregação,
na celebração dos sacramentos, na direcção espiritual e no trato com as
pessoas— provém do mesmo princípio: emprestar a sua voz ao Senhor.
a) Familiaridade com a voz de Deus
Emprestar ao Senhor a própria voz implica
confiança com Ele; requer ouvir a voz de Deus e incorporá-la à própria vida.
Para adquirir essa familiaridade, São Josemaría indica dois caminhos
imprescindíveis: a vida de oração e o estudo. O sacerdote há-de dedicar tempo a
estudar e meditar a Sagrada Escritura e a aprofundar a sua formação teológica,
para que manifeste fielmente a voz de Cristo, que fala na sua Igreja.
«A pregação da palavra de Deus exige vida
interior: temos de falar aos outros de coisas santas, ex abundantia enim
cordis, os loquitur (Mt 12, 34); da abundância do coração, fala a
boca. E juntamente com a vida interior, estudo: (...) Estudo, doutrina que
incorporamos à própria vida, e que só assim saberemos dar aos outros do modo
mais conveniente, acomodando-nos às suas necessidades e circunstâncias com dom
de línguas»[13].
O povo cristão está sedento da voz de Deus. O
sacerdote não pode defraudar esses santos desejos. Neste mundo de hoje, no qual
a confusão abunda, é necessário que o sacerdote seja porta-voz fiel da Palavra
divina: ter vida interior e estudar a doutrina, garante que a pregação não seja
eco de vozes que não são a de Cristo. Seguir confiadamente o Magistério garante
que Cristo seja ouvido na Igreja e no mundo. São Josemaría animava também os
sacerdotes a pedir luzes ao Espírito Santo, para ser só instrumentos seus, pois
é o Paráclito quem age no interior da alma[14].
Emprestar a voz a Deus também significa que o sacerdote não se anuncia a si
mesmo, e sim a Cristo Jesus, Nosso Senhor (cfr. 2 Cor 4, 5), fazendo eco
ao Evangelho. Deste modo, a eficácia da pregação virá do próprio Senhor:
«Das palavras de Jesus Cristo bem expostas,
claras, doces e fortes, cheias de luz, pode depender a resolução do problema espiritual
de uma alma que vos ouve, desejosa de aprender e determinar-se. A palavra de
Deus é viva, eficaz e mais penetrante que uma espada de dois gumes; chega até a
dividir a alma e o espírito, as junturas e as medulas (Heb 4, 12)»[15].
De algum modo, o sacerdote deve aspirar à mesma
intimidade com a Palavra de Deus que teve Santa Maria. Bento XVI, a propósito
do Magnificat, «inteiramente tecido com fios da Sagrada Escritura»,
descreve essa familiaridade de Nossa Senhora nos seguintes termos: «Fala e
pensa com a Palavra de Deus; esta torna-se palavra d’Ela, e a sua palavra nasce
da Palavra de Deus. Além disso, fica assim patente que os seus pensamentos
estão em sintonia com os de Deus, que o d’Ela é um querer juntamente com Deus»[16].
O Santo Padre vai mais além, ao indicar que a
Virgem Maria, «vivendo intimamente permeada pela Palavra de Deus, Ela pôde
tornar-se mãe da Palavra encarnada»[17].
Algo análogo acontece com o sacerdote. São Josemaría dizia, referindo-se à
Eucaristia, que, tal como a Nossa Mãe trouxe Jesus uma vez ao mundo, «os
sacerdotes trazem-no à nossa terra, ao nosso corpo e à nossa alma, todos os
dias»[18].
Emprestar ao Senhor a voz requer humildade: calar
opiniões pessoais em questões de fé, moral e disciplina eclesiástica quando são
dissonantes; não apegar-se às próprias ideias; procurar a união com desejos de
servir. É necessário que o sacerdote fale aos homens de Cristo, lhes comunique
a doutrina de Cristo como fruto da própria vida interior e do estudo: com
santidade pessoal e conhecimento profundo da vida dos homens e mulheres do seu
tempo.
b) Disponibilidade para emprestar a voz ao Senhor
Emprestar ao Senhor a voz requer também
disponibilidade. São Josemaría não se cansou de pedir aos sacerdotes que
dedicassem tempo à administração do perdão divino. Para que a voz
misericordiosa de Deus chegue às almas através do sacramento da Reconciliação é
necessária uma condição, quase óbvia mas fundamental: estar disponível para
acolher aqueles que se aproximem. Seria um erro pensar que, no nosso mundo,
fosse uma perda de tempo. Seria equivalente a fechar a boca de Deus, que
deseja perdoar por meio dos seus ministros. São Josemaría tinha bem
experimentado que, quando o sacerdote, com constância, dia a dia, dedica um
tempo a esta tarefa, estando fisicamente no confessionário, esse lugar de
misericórdia acaba por encher-se de penitentes, ainda que no início não vá
ninguém. Em 1972 descrevia a um grupo de sacerdotes diocesanos, em Portugal, o
resultado da perseverança nessa tarefa, com estas palavras:
«Não vos deixarão viver, nem podereis rezar nada
no confessionário, porque as vossas mãos ungidas estarão, como as de Cristo
—confundidas com elas, porque sois Cristo— dizendo: eu te absolvo. Amai
o confessionário. Amai-o, amai-o!»[19].
São Josemaría tinha uma fé muito viva na verdade
real de que o sacerdote é Cristo quando diz: eu te absolvo. Com grande sentido
sobrenatural e com sentido comum, dava conselhos muito práticos, para que a
dignidade do sacramento não fosse diminuída, para que fosse canal limpo da voz
de Jesus Cristo. Por isso amava o confessionário. Percebia que, utilizando este
instrumento tradicional, se fomentam as disposições adequadas —tanto do
penitente como do confessor— para facilitar a sinceridade e o tom sobrenatural
próprio de uma realidade sagrada.
«Deus Nosso Senhor conhece bem a minha debilidade
e a vossa: todos nós somos homens correntes, mas Jesus Cristo quis
converter-nos num canal que faça chegar as águas da sua misericórdia e do seu
Amor a muitas almas»[20].
Falava da administração do sacramento da
Penitência como um exercício gostoso e uma paixão dominante do sacerdote. Sem
dúvida, as horas diárias dedicadas a confessar, «com caridade, com muita
caridade, para ouvir, para advertir, para perdoar»[21] são
parte desse ocultar-se e desaparecer, tão eficaz para tornar Cristo
presente nas pessoas e nos ambientes onde vivem.
Ao confessar, o sacerdote —no seu papel de juiz,
mestre, médico, pai e pastor— experimenta a necessidade de dar doutrina clara,
perante as dificuldades que se apresentam na vida dos penitentes. Consciente
disto, São Josemaría fomentou entre os presbíteros um vivo afã de conservar e
melhorar a ciência eclesiástica, «especialmente a que necessitais para
administrar o sacramento da Penitência»[22].
«Procurai —escrevia numa ocasião a sacerdotes— dedicar um tempo cada dia —mesmo
que sejam só uns minutos— ao estudo da ciência eclesiástica»[23].
Com este fim, também estimulou encontros, convívios, reuniões para os
presbíteros, etc.
O renascer da prática da confissão sacramental é
um dos grandes desafios do mundo actual, que precisa de voltar a descobrir o
sentido do pecado e experimentar o gozo da misericórdia de Deus. O sacerdote,
estando disponível para celebrar o sacramento da Reconciliação, e procurando
—através da oração e do estudo— que as suas ideias estejam em sintonia com a
doutrina da Igreja, torna-se absolutamente insubstituível.
Também os fiéis leigos hão-de sentir a
responsabilidade de levar os seus colegas, parentes e amigos ao sacerdote, para
que possam ouvir a voz de Deus e receber o seu perdão. A colaboração entre
leigos e sacerdotes, neste campo, é especialmente importante na sociedade de
hoje.
São Josemaría entendia que o sacerdote, também na
tarefa de direcção espiritual, é um instrumento para fazer chegar a voz de Deus
às almas; nesta actividade não deve sentir-se nem proprietário, nem modelo: «O
modelo é Jesus Cristo; o modelador, o Espírito Santo, por meio da graça. O
sacerdote é o instrumento, e nada mais»[24].
A direcção espiritual, outra das paixões dominantes de São Josemaría,
não consiste em mandar, e sim em abrir horizontes, assinalar os obstáculos,
sugerindo os meios para vencê-los, e animar ao apostolado. Em última análise,
animar cada pessoa a descobrir e a querer cumprir o desígnio de santidade que
Deus tem para ele.
Isto é possível se o próprio sacerdote está
convencido de que mover à procura da santidade é levar as pessoas à felicidade.
Essa persuasão surge da luta do presbítero pela própria santificação, é fruto
do amor à vontade de Deus e é necessária para refrear o pensamento laicista,
que tende a varrer Deus do horizonte da felicidade humana.
3. «Eu empresto ao Senhor as minhas mãos». Amor à
liturgia e obediência à Igreja.
Na Santa Missa, é Cristo quem, através do
sacerdote, se oferece ao Pai pelo Espírito Santo. As mãos do presbítero,
ungidas durante a cerimónia da ordenação, foram sempre veneradas pelos
cristãos, porque trazem Cristo, porque distribuem os tesouros da redenção.
São Josemaría tinha viva consciência de que a
liturgia é acção divina, sagrada, e não acção humana. Se um mundo
descristianizado se caracteriza, em grande medida, pela ausência do sagrado, o
sacerdote hoje tem o grande desafio de esmerar-se no cuidado da liturgia,
emprestando a Deus as suas mãos e todo o seu ser.
Isto significa evitar protagonismos que podem
turvar a acção divina. Também no serviço litúrgico vale a fórmula de São
Josemaría: «Ocultar-se e desaparecer é o que me corresponde a mim, que só Jesus
transpareça»[25]. Este
princípio responde a uma lógica de fé e de visão sobrenatural. Só a partir da
fé se entende em profundidade a eficácia sobrenatural que se encontra no
princípio de emprestar ao Senhor as minhas mãos; e se aceitam com gosto as
consequências práticas a que conduz: fidelidade à fé e à doutrina católica, e
obediência delicada às normas litúrgicas:
«Que vos empenheis sempre dum modo particular em
seguir com toda a docilidade o Magistério da Igreja Santa; e, como
consequência, que cumprais, também com delicada obediência, todas as indicações
da Santa Sé em matéria litúrgica, adaptando-vos com generosidade às possíveis
modificações —que sempre serão acidentais— que o Romano Pontífice possa
introduzir na lex orandi»[26].
As mãos do sacerdote hão-de ser mãos de pessoa
apaixonada, que sabe tratar com delicadeza as coisas do Senhor e, especialmente,
tudo o que se relaciona com o culto divino. O descuido de igrejas, altares e
objectos de culto transmite inevitavelmente uma certa sensação de ausência de
Deus ou de indiferença. Para responder ao mundo materialista é preciso cuidar
atentamente de tudo o que está relacionado com a presença sacramental do Senhor
na Eucaristia. Numa celebração litúrgica cheia de espírito de adoração está
contida uma sóbria beleza, que eleva o espírito a Deus e comunica a presença do
sagrado. São Josemaría viveu sempre com a preocupação de que a dignidade do
culto nunca é excessiva:
«Tratai-me bem os objectos de culto: é uma
manifestação de fé, de piedade e dessa nossa bendita pobreza que, se nos leva a
destinar ao culto o melhor de que podemos dispor, nos obriga por isso mesmo a
trata-lo com a mais extremosa delicadeza: sancta sancte tractanda! São
jóias de Deus. Os cálices sagrados e os santos paramentos e tudo o resto que
pertence à Paixão do Senhor... pelo seu consórcio com o Corpo e o Sangue do
Senhor hão-de ser venerados com a mesma reverência que o seu Corpo e o seu
Sangue (S. Jerónimo, Epist. 114, 2)»[27].
4. «Eu empresto ao Senhor o meu corpo e a minha
alma: dou-lhe tudo». Sacerdote a cem por cento.
Depois de ter considerado como o sacerdote
empresta ao Senhor a sua voz e as suas mãos, chegamos, como num in crescendo
de identificação com Cristo, a uma formulação omnicompreensiva da identidade
sacerdotal: «empresto ao Senhor o meu corpo e a minha alma: dou-lhe tudo». Esta
fórmula, referida à celebração eucarística, na qual o sacerdote actua in
persona Christi Capitis, pode estender-se de modo análogo a toda a vida do
sacerdote, constituindo a sua mais íntima aspiração: ser, sempre e em tudo, ipse
Christus, o mesmo Cristo.
São Josemaría descrevia com força esse sentido de
totalidade próprio do sacerdócio. Referindo-se a um grupo de sacerdotes recém
ordenados, exprimia-o desta forma: «Receberam o sacramento da Ordem para serem,
nem mais nem menos, sacerdotes-sacerdotes, sacerdotes cem por cento»[28].
Ao mesmo tempo, é evidente que sempre é
indispensável a colaboração entre sacerdotes e leigos, cada um de acordo com a
missão que lhe é própria. Como escrevia São Josemaría, «esta colaboração
apostólica hoje é importantíssima, vital, urgente»[29].
Por um lado, porque os presbíteros, enquanto tais, não têm acesso a muitos
ambientes profissionais ou sociais. Por outro, porque os leigos, para ser
verdadeiramente outros Cristos, necessitam da vida sacramental e, portanto, de
recorrer ao ministério sacerdotal. Sem vida interior, o leigo acabaria por mundanizar-se,
em vez de cristianizar o mundo: é necessária uma intensa vida sobrenatural para
influir duma forma cristã em ambientes onde parece ter desaparecido a marca de
Deus.
«No exercício do apostolado os leigos têm absoluta
necessidade do sacerdote, mal chegam ao que eu costumo chamar o muro
sacramental; e os sacerdotes também têm necessidade dos leigos, para o
apostolado —especialmente no meio da indiferença religiosa, quando não se trata
também de um ataque brutal à Religião, na sociedade destes tempos—»[30].
Esta colaboração é eficaz na medida em que se
respeita a natureza própria da vocação de cada um: o leigo deve ser Cristo no
meio da rua, nas normais circunstâncias que lhe corresponde viver: no convívio
com os seus iguais, com os quais compartilha projectos e afãs. Ao mesmo tempo,
o sacerdote há-de ser sempre e inteiramente sacerdote, vivendo para sustentar e
alentar o afã de santidade de homens e mulheres, com uma abnegada entrega ao
seu ministério. É muito difícil que haja leigos que perseverem no empenho de
procurar a santidade na vida ordinária sem presbíteros «dedicados integralmente
ao seu serviço, que se esqueçam habitualmente de si próprios, para preocupar-se
só das almas»[31].
São Josemaría repetia com frequência que tinha só uma
caçarola para todos, cujo conteúdo é, em síntese, a procura da
santidade no meio das ocupações ordinárias. Dessa caçarola podem
alimentar-se o pai e a mãe de família, o engenheiro, a advogada, o médico, o
operário, e também o sacerdote. E o sacerdote desempenha um papel
insubstituível para ajudar os fiéis a ser santos: há-de servir a todos, é
sacerdote para os outros. Pela missão que recebeu de Deus, tem uma especial
obrigação de procurar a santidade. «Muitas coisas grandes dependem do
sacerdote: temos Deus, trazemos Deus, damos Deus»[32].
Por isso o fundador do Opus Dei falava de ser sacerdote
cem por cento, que é a consequência de fazer vida própria o que acontece na
Santa Missa: emprestar ao Senhor o corpo e a alma; dar-lhe tudo. Significa
também que o sacerdócio não é um ofício, nem uma tarefa que ocupa parcialmente
o dia, juntamente com outras ocupações. Para São Josemaría não há âmbitos da
existência pessoal que não sejam sacerdotais: até nas situações aparentemente
mais intranscendentes, ou nas ocupações profanas, o sacerdote é sempre
sacerdote, tomado de entre os homens, constituído a favor dos homens (cfr. Heb
5, 1).
Plenamente congruente com esse emprestar ao Senhor
o meu corpo é o dom do celibato sacerdotal. No meio do mundo, que facilmente
tende a banalizar a dignidade do corpo, adquire um significado especial
entregar totalmente o corpo a Nosso Senhor Jesus Cristo na celebração
eucarística. O celibato de Jesus Cristo ilumina com toda a sua força e
resplendor o celibato do sacerdote. Cristo, nos seus anos de existência terrena
e na vida da sua Igreja, demonstrou até que grau extraordinário de paternidade
e maternidade, de caridade sem limites, se chega por este dom.
Ao longo da sua grande experiência pastoral, São
Josemaría experimentou continuamente a necessidade de uma identidade sacerdotal
forte: não é verdade que os cristãos querem ver no sacerdote um homem como
outro qualquer; o povo cristão, o que quer do sacerdote é que seja sacerdote.
Na sociedade actual, onde não poucos pretendem diluir Deus, os cristãos
precisam de perceber com mais razão ainda a presença de Cristo no sacerdote;
necessitam e esperam, em palavras de São Josemaría, «que se destaque claramente
o carácter sacerdotal: esperam que o sacerdote reze, que não se negue a
administrar os Sacramentos, que esteja disposto a acolher a todos sem se
constituir chefe ou militante de partidarismos humanos, sejam de que tipo
forem; que ponha amor e devoção na celebração da Santa Missa, que se sente no
confessionário, que conforte os doentes e os atormentados, que ensine catequese
às crianças e aos adultos, que pregue a Palavra de Deus e não qualquer tipo de
ciência humana, que —mesmo que a conhecesse perfeitamente— não seria a ciência
que salva e leva à vida eterna; que saiba aconselhar e ter caridade com os
necessitados. Numa palavra: pede-se ao sacerdote que aprenda a não estorvar em
si a presença de Cristo nele»[33].
* * *
Esta última frase talvez possa resumir o desafio
que o mundo actual lança aos ministros sagrados. O sacerdote há-de tornar Deus
presente aos homens de todos os tempos; e para isto, há-de aprender a emprestar
a Cristo a sua voz, as suas mãos, a sua alma e o seu corpo: tudo o que é seu.
Assim acontece, principalmente, quando administra os sacramentos ou na
pregação, mas não só nesses momentos. A dinâmica própria do sacramento da
Ordem, cujo centro e cume é a Eucaristia, leva a dar-se inteiramente a Cristo,
ao longo do dia, em alma e corpo.
A vida terrena de Santa Maria, Mãe de Cristo,
Sacerdote Eterno, e Mãe dos sacerdotes, foi um «faça-se, sincero, entregue, cumprido até às
últimas consequências, que não se manifestou em acções aparatosas, mas no
sacrifício escondido e silencioso de cada dia»[34].
Na Virgem Maria demonstra-se a eficácia desta atitude. Por isso Maria,
permanentemente, continua a tornar presente Deus nas casas, nas ruas. A Mãe de
Deus é, muitas vezes, o último reduto de fé, do qual não poucas vezes brota de
novo a conversão e o descobrimento da alegria da vida cristã no meio do mundo.
+ Javier
Echevarría
Prelado do
Opus Dei
[1] João Paulo II, Discurso aos participantes do VI Simpósio do Conselho das Conferências Episcopais da Europa, 11-X-1985.
[2] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Caminho,
n. 301.
[3] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Cristo
que passa, n. 183.
[4] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Sulco,
n. 428.
[5] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Notas tomadas numa reunião familiar, 10-V-1974, citado em J. Echevarría, Por Cristo, con Él y en Él, Ed. Palabra, Madrid 2007, p. 167.
[6] São Josemaría Escrivá de Balaguer,
Homilia Sacerdote para a eternidade, 13-IV-1973.
[7] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Notas
tomadas..., cit.
[8] São Gregório Magno, Lib. Dialogorum,
4, 59, citado em São Josemaría Escrivá de Balaguer, Carta 8-VIII-1956,
n. 17.
[9] Cfr. São Josemaría Escrivá de Balaguer, Camino,
edição crítico-histórica preparada por P. Rodríguez, 3ª edição, Rialp, Madrid
2004, p. 945.
[10] Cfr. São Josemaría Escrivá de Balaguer, Caminho,
n. 185.
[11] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Temas
actuais do cristianismo, n. 59.
[12] Ibid., n. 113.
[13] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Carta
8-VIII-1956, n. 25.
[14] Cfr. São Tomás, S. Th. II-II, q.
177, a. 1 c.
[15] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Carta
8-VIII-1956, n. 26.
[16] Bento XVI, Carta encíclica Deus
caritas est, n. 41.
[17] Ibid.
[18] São Josemaría Escrivá de Balaguer,
Homilia Sacerdote para a eternidade, 13-IV-1973.
[19] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Notas
tomadas numa reunião com sacerdotes diocesanos em Enxomil (Porto),
10-V-1974.
[20] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Carta
8-VIII-1956, n. 1.
[21] Ibid., n. 30.
[22] Ibid., n. 15.
[23] Ibid.
[24] Ibid., n. 37.
[25] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Carta
com motivo das bodas de ouro sacerdotais, 28-I-1975.
[26] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Carta
8-VIII-1956, n. 22.
[27] Ibid., n. 23.
[28] São Josemaría Escrivá de Balaguer,
Homilia Sacerdote para a eternidade, 13-IV-1973.
[29] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Carta
8-VIII-1956, n. 3.
[30] Ibid.
[31] Ibid.
[32] Ibid., n. 17.
[33] São Josemaría Escrivá de Balaguer,
Homilia Sacerdote para a eternidade, 13-IV-1973.
[34] São Josemaría Escrivá de Balaguer, Cristo
que passa, n. 172.