O presbítero, identidade e missão
Reflexões teológicas à margem da recente
Instrução da Congregação para o Clero
Marcello
Bordoni
Introdução
A
identidade e a missão do Presbítero, que há várias décadas
vem sendo estudada com crescente insistência, revela-se cada vez mais como uma
questão que diz respeito não apenas a um ministério particular entre tantos
outros, mas à identidade da própria
Igreja, em sua essência de “comunhão e de missão”, em sua relação com
Cristo, no mistério trinitário, e em sua relação com a humanidade e o mundo
inteiro.
As concepções atuais,
derivadas das sociedades democráticas,
levam muitas vezes a “transferir automaticamente para a própria Igreja a
mentalidade e a práxis existentes em algumas correntes culturais
sócio-políticas de nosso tempo”, a suprimir “qualquer diferença de papel entre
os membros do Corpo místico de Cristo que é a Igreja, negando na prática sua
doutrina certa acerca da distinção entre o sacerdócio comum e o ministerial”,
como também a formas de participação eclesial que “tendem a confundir as
tarefas dos presbíteros e as dos fiéis leigos”. Hoje, em particular, afirma a
recente Instrução da Congregação para o Clero sobre O presbítero. Pastor e guia da comunidade paroquial, apresentada
pelo cardeal Darío Castrillón Hoyos: “Na sociedade, assinalada hoje pelo
pluralismo cultural, religioso e ético, parcialmente caracterizada pelo
relativismo, pelo indiferentismo, pelo irenismo e pelo sincretismo, parece que
alguns cristãos se tenham quase habituado a uma espécie de ‘cristianismo’
destituído de reais referências a Cristo e à sua Igreja; tende-se, dessa forma,
a reduzir o projeto pastoral a temáticas sociais colhidas numa perspectiva
exclusivamente antropológica, no âmbito de um genérico apelo ao pacifismo, ao
universalismo e a uma referência não bem especificada a ‘valores’”.
Assim, “uma cultura
amplamente secularizada, que tende a homologar o sacerdote nas malhas das suas
categorias de pensamento, despojando-o da sua essencial dimensão
mistério-sacramental, é amplamente responsável pelo fenômeno. Daí nascem
aqueles desalentos, que podem levar ao isolamento, a uma espécie de deprimente
fatalismo ou a um ativismo dispersivo. Isso não quer dizer que a ampla maioria
dos sacerdotes, em toda a Igreja, correspondendo à solicitude dos seus bispos,
não enfrente positivamente os difíceis desafios da presente conjuntura
histórica e não consiga viver em plenitude e com alegria a sua identidade e o
generoso compromisso pastoral”.
Há também, hoje de modo
particular, situações, às quais a Instrução alude abertamente, que impõem
problemas derivados da grande escassez de sacerdotes (nº 23) e que às vezes
levam a imaginar, “como acontece em alguns lugares, que o bispo, tendo tudo
considerado com prudência, confie, nas modalidades permitidas canonicamente,
uma cooperação ad tempus no exercício
do cuidado pastoral da paróquia a uma pessoa ou a uma comunidade de pessoas não
revestidas do caráter sacerdotal”. Ora, nesses casos, devem ser observadas e
preservadas as propriedades originárias de diversidade e complementaridade
entre os dons e as funções dos ministros ordenados e dos fiéis leigos, próprias
da Igreja, que Cristo desejou organicamente estruturada. Ainda que existam
situações objetivamente extraordinárias que justificam essa colaboração, não
podem no entanto ser legitimamente ultrapassadas as fronteiras da
especificidade ministerial sacerdotal e leiga. Justamente por isso, impõe-se,
diz João Paulo II, que as expressões que indicam o sentido de “principalidade”
– como “pastor”, “capelão”, “diretor”, “coordenador” ou equivalentes – sejam
reservadas exclusivamente aos sacerdotes. Nesse campo, hoje muito atual, a
Exortação dicasterial Ecclesiae de
mysterio, aprovada de modo específico pelo Santo Padre em 15 de agosto de
1997, constitui a trilha segura que devemos tomar.
1. O presbítero: ponto
de encontro entre o mistério de Cristo e o da Igreja
A importância da pessoa
e da missão do presbítero vem sendo delineada cada vez mais como “ponto
crucial” da relação entre o mistério de Cristo e o da Igreja, como ponto de
sutura entre esses dois aspectos essenciais. A Instrução a que me estou
referindo fala, a propósito do presbítero, de “uma identidade tridimensional,
pneumatológica, cristológica e eclesiológica” que não podemos perder de vista e
que constitui a “arquitetura teológica primordial do mistério do sacerdote”,
chamado a ser ministro da salvação, o que unicamente permite esclarecer, de
modo adequado, o significado de seu ministério pastoral concreto na paróquia. Está
clara a prioridade da referência
cristológica, afirmada por muitos documentos eclesiais a partir da Optatam totius, na linha do documento
final do Sínodo Episcopal de 1971 e da Exortação Pós-Sinodal Pastores dabo vobis. Graças à “referência
cristológica”, o ministério presbiteral
ganha a relação com o ministério trinitário, de fundamental importância
para o desenvolvimento cristológico.
A
importância prioritária dessa fundamentação aparece tanto na Pastores dabo vobis (1992) quanto no
Diretório (1994) e na Instrução Ecclesiae
de mysterio (1997), como também na última Instrução sobre O presbítero. Pastor e guia da comunidade
paroquial (2002). Esta frisa o “princípio teológico do ministério
ordenado”, que consiste na “configuração a Cristo”, na medida em que o
sacerdote ordenado está habilitado a agir in
persona Christi Capitis, por um “vínculo ontológico específico que une o
sacerdote a Cristo, Sumo Sacerdote e Bom Pastor”. Por esse vínculo o presbítero
constitui, na Igreja e pela Igreja, uma imagem viva e
transparente, uma “representação sacramental de Jesus Cristo Cabeça e Pastor”
(PDV, 15).
Também a recente
Instrução sobre o presbítero trabalha na mesma linha, afirmando o princípio de
que o “sacramento da Ordem, que configura a Cristo sacerdote, de modo a poder
agir na pessoa de Cristo Cabeça com a sagrada potestade para oferecer o Sacrifício e para perdoar os pecados”, confere
sacramentalmente aos batizados que tiverem recebido o dom do sacerdócio
ministerial “uma missão nova e específica: a de personificar no seio do povo de
Deus o tríplice múnus – profético, cultual e régio – do próprio Cristo como
Cabeça e Pastor da Igreja”.
O Diretório, seguindo a Pastor
dabo vobis, afirmava com clareza também a raiz trinitária da consagração presbiteral, na medida em que, “em
virtude da consagração recebida mediante o sacramento da Ordem, o sacerdote é posto
numa relação particular e específica com o Pai, com o Filho e com o Espírito
Santo”. De fato, “a nossa identidade tem a sua fonte última na caridade do Pai.
Ao Filho, por Ele enviado como Sumo Sacerdote e Bom Pastor, estamos unidos
sacramentalmente mediante o sacerdócio ministerial pela ação do Espírito Santo.
A vida e o ministério do sacerdote são uma continuação da vida e da ação do
próprio Cristo. Esta é a nossa identidade, a nossa verdadeira dignidade, a
fonte da nossa alegria, a certeza da nossa vida”. Na mesma linha se insere a
Instrução sobre o presbítero, que extrai da fundamentação cristológica de sua
identidade a base para seu particular e insubstituível ministério na Igreja (nos 7-8).
Os documentos recentes
desenvolvem a perspectiva cristológico-trinitária de Lumen gentium 28, à luz de Presbyterorum
Ordinis 2, do Vaticano II, na linha evangélica do Cristo consagrado e enviado ao mundo pelo Pai (Jo 10,36), quando
afirmam que “toda a Igreja foi tornada participante da unção sacerdotal de
Cristo no Espírito Santo. Pois, na Igreja, todos os fiéis formam um sacerdócio
santo e real” e que, para que todos os fiéis fossem unidos num só corpo, no
qual, porém, nem todos os membros têm a mesma função (Rm 12,4), instituiu o
Senhor alguns como ministros, enviando primeiro os apóstolos como ele mesmo
fora enviado pelo Pai, e que, portanto, “tornou partícipes de sua consagração e
de sua missão seus sucessores, ou seja, os bispos, cuja função ministerial foi
transmitida em grau subordinado aos presbíteros...”
Na busca da
fundamentação neotestamentária do arraigamento cristológico-trinitário do sacramento
da Ordem, em relação à perspectiva eclesiológica, possui particular importância
o “modelo missionário-pastoral” imitado
da figura de Cristo enviado pelo Pai,
consagrado pela ação do Espírito Santo n’Ele, para anunciar a boa nova aos
pobres (Lv 4,18). Por conseguinte, o ponto de partida da teologia do sacerdócio
ordenado está ligado, justamente pela fundação
cristológica, à missionaridade,
na qual se integra o valor da “consagração e santificação”. O fundamento
cristológico evangélico mais aderente ao mistério do ser e à missão do presbítero
nos remete, portanto, à autocompreensão de Jesus como o Enviado do Pai, que por sua vez envia os apóstolos (Jo 13,20;
17,18; 20,21).
Uma “cristologia da missão” que afunda suas
raízes trinitariamente na relação entre Cristo e o Pai e na missão do Espírito
do Pai e do Filho: essa é a perspectiva que permite uma mais imediata conexão
do mistério da identidade do presbítero com o mistério da Igreja. “A missão
constitui a natureza do ministério e o põe em linha vicarial em relação a
Jesus: é sempre Cristo que, presente no ministro, continua nele sua missão. À
luz da missão e da vicariedade de Cristo podem ser lidos a ordenação, o caráter
e a sacramentalidade em termos que superam a alternativa entre ontológico e
funcional”.
Por isso, os documentos
pontifícios recentes dão ressonância particular à figura bíblica de Jesus “Bom
Pastor”, e integram a prioridade da missão
de proclamação do Evangelho com a celebração dos sacramentos, em particular
da Eucaristia, e com a diakonia da caridade. Como em Presbyterorum Ordinis 2, é retomada a
afirmação de que o ministério dos presbíteros “começa com a mensagem evangélica”, mas “tira do Sacrifício de Cristo sua
força e virtude e converge em seu esforço a que toda a cidade redimida,
isto é, a sociedade e a assembleia dos santos, seja oferecida como sacrifício
universal a Deus pelo Sumo Sacerdote, que também se ofereceu a Si Mesmo na
Paixão por nós, para que fôssemos o corpo de uma tão importante Cabeça”.
2. Do mistério
cristológico ao mistério eclesiológico
A fundamentação
“cristológico-trinitária” da identidade do presbítero, a partir da visão do ser
de Cristo como “missionário do Pai”, desenvolve sua missão perante a Igreja,
não como um apêndice, mas como elemento estruturador de seu próprio ser, como
diz a Pastores dabo vobis, “Cabeça, Pastor, Esposo da Igreja”, e
como repete eficazmente a Instrução atual sobre a identidade do presbítero: “O
ser e o agir do sacerdote – a sua pessoa consagrada e o seu ministério – são
realidades teologicamente inseparáveis e têm como finalidade o serviço ao
desenvolvimento da missão da Igreja”, a salvação eterna de todos os homens. No
mistério da Igreja – revelada como Corpo Místico de Cristo e Povo de Deus que
caminha na história, estabelecida como sacramento universal de salvação -,
encontramos e descobrimos a razão profunda do sacerdócio ministerial. Por isso,
de fato, “a comunidade eclesial tem absoluta necessidade do sacerdócio
ministerial para que Cristo, Cabeça e Pastor, esteja presente na mesma”.
Podemos dizer, portanto, que “Sem a presença de Cristo representado pelo
presbítero, guia sacramental da comunidade, a comunidade não seria plenamente
eclesial”.
Em sua dinâmica
missionária, o ser Pastor, Cabeça e Esposo conflui para a dimensão que dá uma marca
singular a cada ministério na Igreja e se exprime na dimensão diaconal, que nasce do estilo próprio, pastoral e
esponsal, de missionaridade e poder do Cristo Servidor (diácono), como vemos em passagens evangélicas bem conhecidas, como
Mc 10,45 e Lc 22,26-27. Quando Paulo afirma que “há diversidade de ministérios,
mas o Senhor é o mesmo” (1Cor 12,5), exprime também, com isso, que a unidade na
diversidade dos ministérios tem uma raiz cristológica, a do Cristo que se fez
Servo (Fl 2,7) e veio “para servir” (Mc 10,45). As principais funções próprias
do ministério presbiteral exercidas no estilo diaconal do Cristo são, assim,
resumidas na proclamação evangelizadora da Palavra, na realização de ações
litúrgicas, especialmente na presidência Eucarística, na direção pastoral da
comunidade e na coordenação dos carismas de cada batizado, para que sejam
exercidos na caridade.
3. O presbítero na
Igreja e diante da Igreja
No contexto da
perspectiva cristológico-trinitária, a Exortação Pós-Sinodal Pastores dabo vobis (1992), seguida pelo
Diretório (1994: nos 1-11) e pela recente Instrução, tende a definir
com maior clareza a relação de configuração sacramental do presbítero com
“Cristo Enviado, Servidor, Cabeça, Pastor e Esposo da Igreja”, retomando a
afirmação sinodal que diz que “o sacerdote coloca-se não apenas na Igreja, mas também perante a Igreja” (Pastores dabo vobis, 16; 22). Com isso são delineados os dois aspectos essenciais da relação presbítero-Igreja:
a. De um lado, afirma-se
a “relação de comunhão” pela qual o sacerdote
ordenado se insere na Igreja e é “o homem da comunhão” que deve fazer-se
uma “transparência” de Cristo “em meio ao rebanho” que lhe é confiado. A
Instrução descreve essa tarefa como direção e serviço para todos, no que o
presbítero exerce a mesma função pastoral de Cristo (ibid.). Esse primeiro e fundamental
aspecto deve ser visto em perspectiva
pneumatológica, em partilhar relação com a “missão do Espírito” que já opera no evento do Cristo, enviado pelo
Pai, para doar à Igreja, em seu “evento pascal”, os frutos de sua obra
redentora (LG 4 e 12), suscitando nela carismas e ministérios para sua
edificação comunitária, por meio
precisamente do sacramento da Ordem (1Cor 12,28), especialmente na
celebração eucarística e na vida pastoral (At 20,28). Por essa ação animadora
da comunhão, no Espírito, o presbítero exerce não apenas o ministério como repraesentatio Christi, mas também como repraesentatio Ecclesiae, esta também
baseada no Cristo Cabeça, em sua relação com o Corpo. Assim, o sacerdote
ordenado exerce sua ministerialidade na
força do Espírito, doado pelo Pai para o Cristo Ressuscitado, como princípio animador da vida da
comunidade eclesial. É “essencial”, então, para o sacerdote ordenado, que este seja compreendido em sua inserção
na Igreja. Esse exercício de ministerialidade requer, para seu sucesso, ser
formado, como insiste a Instrução (nº 9), seguindo a Pastores dabo vobis, por aquela “peculiar espiritualidade” que se
define como “espiritualidade de comunhão”,
tema sobre o qual voltou com frequência, mais recentemente, o ensinamento
pontifício de João Paulo II. Em virtude de sua repraesentatio Ecclesiae, o presbítero não tende a uma santidade meramente
pessoal: ele deve viver o sentido
eclesial e santificar-se em sua
tarefa pastoral de promoção do sentido eclesial nos que creem.
Essa tarefa deve, porém,
ser realizada por ele com a consciência e a responsabilidade eclesiais descritas
pela Instrução, sempre em relação com a constante intenção de “fazer o que faz
a Igreja”, o que deve ser entendido não apenas em sentido jurídico, para a
validade de seus atos ministeriais, mas, ainda mais, no sentido de um constante
olhar de fé que “ilumina a vida espiritual do ministro sagrado, convidando-o a
reconhecer a instrumentalidade pessoal ao serviço de Cristo e da Igreja” (nº
13). No plano de sua formação espiritual, isso implica a constante “adequação
da sua vontade”, na consciência de que “o agir ministerial é instrumento do
operar de Cristo e da Igreja, seu Corpo”. Não se trata, portanto, apenas de uma
atitude de obediência e de disciplina eclesiásticas, assimilada no plano da
formação espiritual; é muito mais: a Instrução diz expressamente que essa
espiritualidade de comunhão “exige que ele respire um clima de proximidade ao
Senhor Jesus, de amizade e de encontro pessoal, de missão ministerial
‘compartilhada’, de amor e serviço à sua Pessoa na ‘pessoa’ da Igreja, seu
Corpo, sua Esposa” (nº 13).
Esse amor à Igreja, essa
“caridade pastoral vem, antes de mais nada, do sacrifício eucarístico”, que
constitui “centro e raiz de toda a vida do presbítero, de sorte que a alma
sacerdotal se esforçará por interiorizar o que na ara sacrifical se passa” (nº
13; cf. Presbiterorum Ordinis, 14).
Esse sentimento se traduz na “constante e sincera atitude de sentir com a Igreja” (Diretório,
56), que implica trabalhar sempre no vínculo da comunhão eclesial com o Papa,
os bispos, os confrades sacerdotes, os fiéis consagrados, os fiéis leigos
(ibid.).
b. Há, porém, uma segunda relação fundamental do
presbítero com a Igreja, desenvolvida pelos recentes documentos eclesiais, que
retomam as afirmações sinodais: é a que diz respeito ao presbítero “diante ou perante a Igreja”. A Pastores dabo vobis chama a atenção para
isso em dois lugares (16 e 22). Esse destaque, repetido com insistência, tem um
valor não apenas estrutural, mas profundamente
teológico: de fato, salienta, na estrutura da Igreja, o valor do sacerdócio ordenado como “sinal da
prioridade absoluta e da gratuidade da graça, que à Igreja é oferecida por
Cristo ressuscitado. Por meio do sacerdócio ministerial, a Igreja toma
consciência, na fé, de não vir de si mesma, mas da graça de Cristo no Espírito
Santo. Os apóstolos e seus sucessores, como detentores de uma autoridade que
lhes vem de Cristo Cabeça e Pastor, são postos - juntamente com o seu
ministério - perante a Igreja como
prolongamento visível e sinal sacramental de Cristo no seu próprio estar diante
da Igreja e do mundo, como origem permanente e sempre nova da salvação, ‘Ele,
que é o salvador do seu corpo’ (Ef 5,23)” (ibid., 16).
Assim, podemos dizer que
nessa sua dupla realização o presbítero parece
essencialmente relacionado à Igreja, no sentido de que, se não deve ser
definido de modo “anterior à Igreja” (ibid., 16), também não deve ser definido
de modo “posterior à comunidade eclesial”, “de modo que esta pudesse ser
concebida como já constituída independentemente de tal sacerdócio” (ibid.). Na
realidade, a Igreja, em sua tríplice
dimensão, enquanto “mistério”,
porque nesta se realizam os sinais sacramentais da presença do Cristo
Ressuscitado (especialmente a Eucaristia), enquanto “comunhão”, como lugar de unidade na harmonia das diversas vocações,
carismas e serviços, e enquanto “missão”,
como “comunidade anunciadora e testemunha do Evangelho”, não pode realizar plenamente a si mesma sem o serviço desse sacerdócio,
que participa íntima e sacramentalmente da unção e missão de Cristo pela
própria Igreja e pelo mundo.
Essa essencial e
múltipla referência à Igreja deve ser definida em relação não apenas à Igreja universalmente considerada, mas
também em relação à Igreja local. A Pastores dabo vobis salienta mais o
plano da formação espiritual do presbítero, pela qual seu “estar numa Igreja
particular” constitui um elemento qualificador para viver a espiritualidade cristã
(nº 31). Do “ponto de vista eclesiológico”, tendemos hoje a afirmar que, se a
identidade do presbítero fosse definida essencialmente em relação a uma só
“dignidade pessoal”, aspecto que de qualquer forma deve ser evidenciado,
poderia ser definida em sua completitude, de maneira a-local; mas, se, seguindo o Concílio e a pesquisa que o seguiu, o
presbiterato tiver de ser definido como essencialmente “ministerial”, porque intrinsecamente
relacionado ao ministério próprio do
ser de Cristo, o Enviado do Pai para servir, então a referência a uma Igreja local, com seu bispo e presbitério,
parece essencial, e é por essa densidade teológica da Igreja local que adquire
valor a abertura à Igreja universal.
Assim, não podemos definir a identidade do
presbítero primeiramente ordenado e
depois inserido na Igreja local e dentro de seu presbitério, mas o
presbítero é, sim, ordenado na Igreja
local e dentro de seu presbitério. É
preciso, porém, ter bem claro que, se no plano concreto pertencer à Igreja
local constitui uma mediação necessária, o ministro deve ter sempre consciência
de que a Igreja universal “é uma realidade
ontológica e temporalmente prévia a qualquer Igreja particular”. Por isso,
“não é a soma das Igrejas particulares que constitui a Igreja universal”. As
Igrejas particulares, frisa a Instrução (nº 17), na e a partir da Igreja
universal, devem estar sempre abertas a uma realidade de verdadeira comunhão de
pessoas, de carismas, de tradições espirituais, sem fronteiras geográficas,
intelectuais ou psicológicas (LG 23). “O presbítero deve ter bem claro que uma
só é a Igreja! A universalidade, ou seja, a catolicidade, deve encher de si a
particularidade” (ibid., 17).
4. A dimensão mariana da
identidade e missão do Presbítero
Um dos aspectos
particularmente bem evidenciados na recente Instrução sobre a “identidade e
missão do Presbítero” é sua “dimensão mariana”. Não que faltem referências
marianas nos documentos que se multiplicaram nos últimos anos e que, seguindo
uma antiga e contínua tradição eclesial, fazem da “devoção mariana” um ponto de
referência essencial na formação presbiteral, concretamente expressa também nas
belas orações com que esses
documentos são concluídos. É preciso reconhecer, porém, que aos chamados de
atenção vocacionais correspondem, neles, conteúdos teológicos, ainda que estes,
sobre a relação “Maria-presbítero”, exijam sempre maiores aprofundamentos, que possam
mostrar como a dimensão mariana deve ser
entendida não apenas como um importante componente afetivo espiritual da
consciência presbiteral, mas também como um elemento constitutivo “do próprio ser e do operar” do presbitero, cujo
elemento devocional nasce de modo espontâneo. Essa acentuação mariana da Instrução é tanto mais relevante se considerarmos
justamente o problema da identidade do presbítero, que, como eu observava no
início, delineia-se hoje no quadro de uma certa tensão entre cristologia e eclesiologia. Ora, é precisamente nessa perspectiva mariana que essa tensão pode
encontrar luz e equilíbrio. De fato, como observava Paulo VI, “o conhecimento da verdadeira doutrina
católica sobre Maria constituirá sempre uma chave para a exata compreensão do
mistério de Cristo e da Igreja”. Tal conhecimento, portanto, constitui
também uma indispensável chave para a exata compreensão da identidade e da
missão do presbítero.
O tema mereceria ser
amplamente aprofundado, mas devo aqui, por exigências de concisão, limitar-me a
considerar apenas alguns aspectos relacionados à dimensão constitutiva mariológica do ser do presbítero e de seu agir, mais imediatamente lembrados pelo
documento em questão. A Instrução da Congregação para o Clero sobre a
identidade e a missão do presbítero oferece, em verdade, uma preciosa contribuição acerca de dois pontos que dizem respeito
à relação de comunicação salvífica entre o presbítero e Maria em referência ao
mistério da Igreja e a sua relação com Ela na cooperação para o mistério da
redenção de Cristo. Falando do ministério do Sacerdote, que em seu poder de
“anunciar autorizadamente o Evangelho, de vencer o mal do pecado mediante o
perdão sacramental” (nº 8), age “in
persona Christi Capitis” (ibid.), afirma que “em Maria, Mãe do Sumo e
Eterno Sacerdote, o sacerdote toma consciência de ser, com Ela, ‘instrumento de
comunicação salvífica entre Deus e os homens’, ainda que de modo diverso: a
Santa Virgem, mediante a Encarnação; o sacerdote, mediante os poderes da
Ordem”.
Portanto, “a relação do
sacerdote com Maria”, prossegue a Instrução, “não é só necessidade de proteção
e de ajuda; trata-se, antes, de uma tomada de consciência de um dado objetivo:
‘a proximidade de Nossa Senhora’ como ‘presença operante, juntamente com a qual
a Igreja quer viver o mistério de Cristo’”. Desenvolvendo essa importante
observação, podemos perceber profundas relações, que, mesmo com as devidas
distinções, unem intimamente a obra
de comunicação salvífica na Igreja entre o papel materno de Maria e aquele que
deriva do poder da Ordem no presbítero. De fato, “existe uma ‘relação essencial
[...] entre a Mãe de Jesus e o sacerdócio dos ministros do Filho’, que deriva
da que existe entre a divina maternidade de Maria e o sacerdócio de Cristo”.
O primeiro aspecto importante, na relação Maria-presbítero, está
baseado, portanto, na “Maternidade de Maria” perante a Cabeça e o Corpo
místico, pela qual, na Encarnação, Maria Mãe do Sumo Sacerdote se torna também
Mãe de toda a Igreja Corpo de Cristo e Mãe de todo “sacerdote ministro”,
maternidade espiritual proclamada pelo Cristo Crucificado (Jo 19,25-27). A
participação de Maria na ação comunicadora da graça, dom do Espírito, se
realiza, porém, segundo a característica
própria de sua “mediação materna”, que pode ser descrita como mediação “em
Cristo”, ou, melhor ainda, como “participação da única mediação do Redentor”
(LG 62). Essa expressão, como diz o recente documento da Fami, é “mais conforme
ao sensus fidelium e menos sujeita a
contestações”. Em virtude da Encarnação, e de sua presença no evento de
redenção da cruz e no evento do dom do Espírito no Pentecostes, a ação
“vivificante materna de Maria” é exercida na Igreja, por meio da graça do Espírito, pela qual a ação
sacramental do ministro ordenado, operando a “representação da Pessoa de Cristo
Cabeça e Pastor”, pode penetrar intimamente nos corações, fazer crescer a
comunhão de graça com Cristo e com os
membros de seu Corpo. Tudo isso pela mediação do seio materno da Igreja, que só
é Mãe em Maria.
Se, de fato, a Igreja é “sinal
e instrumento da íntima união com Deus, tem a sua base na maternidade que lhe é
própria: porque, vivificada pelo Espírito Santo, ‘gera’ filhos e filhas da
família humana para uma vida nova em Cristo. Com efeito, assim como Maria está ao serviço do mistério da
Encarnação, também a Igreja permanece
ao serviço do mistério da adoção como filhos mediante a graça” (Redemptoris Mater, 43). Nessa obra,
portanto, que a Igreja realiza por meio de seus sacerdotes ministros, “Maria
não é só modelo e figura da Igreja; mas é muito mais do que isso. Com efeito, ‘ela coopera com amor de mãe para a
regeneração e formação’ dos filhos e filhas da mãe Igreja. A maternidade da
Igreja realiza-se não só segundo o modelo e a figura da Mãe de Deus, mas também
com a sua ‘cooperação’. A Igreja vai
haurir copiosamente nessa cooperação de Maria, isto é, na mediação materna
que é característica de Maria...” (ibid., 44).
Podemos dizer, portanto,
que “na economia redentora da graça, atuada sob a ação do Espírito Santo,
existe uma correspondência singular entre o momento da Encarnação do Verbo e o
momento do nascimento da Igreja. E a pessoa que une esses dois momentos é
Maria: Maria em Nazaré e Maria no
Cenáculo de Jerusalém. Em ambos os casos, a sua presença discreta, mas
essencial, indica a via do ‘nascimento do Espírito’. Assim, aquela que está
presente no mistério de Cristo como Mãe torna-se – por vontade do Filho e por
obra do Espírito Santo – presente no mistério da Igreja. E também na Igreja
continua a ser uma presença materna,
como indicam as palavras pronunciadas na cruz: ‘Mulher, eis o teu filho’; ‘Eis
a tua mãe’” (ibid., 24).
Mas há outro aspecto na
relação Maria-presbítero que se realiza
ainda, de modo particular, como diz a Instrução, na “presença e participação”
de Maria na ação do sacerdote ordenado: é o da
vida litúrgico-sacramental da Igreja. O documento a que me refiro (nº 13),
ao sublinhar, justamente, o momento culminante dessa vida eclesial que é a celebração da Eucaristia, afirma, chamando
a atenção para as palavras de João Paulo II, que “quando celebramos a Santa
Missa, no meio de nós encontra-se a Mãe do Filho de Deus, e introduz-nos no
mistério da sua Oferenda de Redenção. Desta forma, Ela torna-se mediadora das
graças que, para a Igreja e para todos os fiéis brotam dessa mesma Oferenda”.
De fato, “Maria esteve associada, de modo singular, ao sacrifício sacerdotal de
Cristo, compartilhando a Sua vontade de salvar o mundo mediante a Cruz. Ela foi
a primeira e mais perfeita partícipe espiritual da Sua oblação de Sacerdos et Hostia. Como tal, pode obter
e dar, àqueles que no plano ministerial participam do sacerdócio do seu Filho,
a graça do impulso para responderem
cada vez melhor às exigências da oblação espiritual, que o sacerdócio comporta:
de modo particular, a graça da fé, da esperança e da perseverança nas provas,
reconhecidas como estímulos a uma participação mais generosa na oferta
redentora”.
Seguindo essa pista,
podemos dizer que, se na oferta (parédoken)
do Espírito por parte de Jesus ao morrer na cruz (Jo 19,30) é anunciada e antecipada a hora da consumação
de sua obra redentora, que está para acontecer na Ressurreição e no
Pentecostes, essa consumação envolve a oblação da “Mãe Maria-Igreja”, a Cristo
unida de modo esponsal, em sua ação redentora. De fato, não existe uma
consumação da ação sacerdotal de Jesus que prossiga, na história, numa “Igreja
Sacramento”, sem a participação ativa de “Maria Mãe” e, n’Ela, da Igreja Mãe e de
todo o povo sacerdotal (1Pd 2,9-10). A participação ativa, pessoal, de Maria no
evento da cruz de Cristo personaliza e antecipa a existência objetiva do
sacerdócio universal de toda a Igreja, oferta, porém, que não se realiza
paralelamente à do sacerdócio ministerial, mas é exercida em comunhão com este
(LG 10-11), num único ato de oblação, na única oferta sacerdotal de Jesus,
elevada, no Espírito, em louvor e glória do Pai.
Então, tal como a alteridade do ministro ordenado diante da
Igreja mantém viva a consciência de que nós, na doação da graça, nova criação,
não estamos na origem de nós mesmos, a mediação materna de Maria nos lembra
também que somos sempre, mesmo ao receber a graça, “doados a nós mesmos como pessoas responsáveis”, porque a graça que
Cristo nos oferece se faz graça que
permite e impele a responder. Em Maria, unem-se, juntos, um e outro aspecto em sua missão de maternidade esponsal da Igreja. Por
isso, “aos pés da cruz ‘está’ Maria, a primeira dos discípulos e a Mãe do
Senhor. Ela [...] é ao mesmo tempo o ícone
do Amor trinitário e as primícias da humanidade nova revestida da veste nupcial
da caridade. N’Ela se conjugam o sim do
amor de Deus e o sim da humanidade remida em Cristo”.