O presbítero, identidade e missão

Reflexões teológicas à margem da recente Instrução da Congregação para o Clero

 

Marcello Bordoni

 

 

Introdução

 

A identidade e a missão do Presbítero, que há várias décadas vem sendo estudada com crescente insistência, revela-se cada vez mais como uma questão que diz respeito não apenas a um ministério particular entre tantos outros, mas à identidade da própria Igreja, em sua essência de “comunhão e de missão”, em sua relação com Cristo, no mistério trinitário, e em sua relação com a humanidade e o mundo inteiro.

As concepções atuais, derivadas das sociedades democráticas, levam muitas vezes a “transferir automaticamente para a própria Igreja a mentalidade e a práxis existentes em algumas correntes culturais sócio-políticas de nosso tempo”, a suprimir “qualquer diferença de papel entre os membros do Corpo místico de Cristo que é a Igreja, negando na prática sua doutrina certa acerca da distinção entre o sacerdócio comum e o ministerial”, como também a formas de participação eclesial que “tendem a confundir as tarefas dos presbíteros e as dos fiéis leigos”. Hoje, em particular, afirma a recente Instrução da Congregação para o Clero sobre O presbítero. Pastor e guia da comunidade paroquial, apresentada pelo cardeal Darío Castrillón Hoyos: “Na sociedade, assinalada hoje pelo pluralismo cultural, religioso e ético, parcialmente caracterizada pelo relativismo, pelo indiferentismo, pelo irenismo e pelo sincretismo, parece que alguns cristãos se tenham quase habituado a uma espécie de ‘cristianismo’ destituído de reais referências a Cristo e à sua Igreja; tende-se, dessa forma, a reduzir o projeto pastoral a temáticas sociais colhidas numa perspectiva exclusivamente antropológica, no âmbito de um genérico apelo ao pacifismo, ao universalismo e a uma referência não bem especificada a ‘valores’”.

Assim, “uma cultura amplamente secularizada, que tende a homologar o sacerdote nas malhas das suas categorias de pensamento, despojando-o da sua essencial dimensão mistério-sacramental, é amplamente responsável pelo fenômeno. Daí nascem aqueles desalentos, que podem levar ao isolamento, a uma espécie de deprimente fatalismo ou a um ativismo dispersivo. Isso não quer dizer que a ampla maioria dos sacerdotes, em toda a Igreja, correspondendo à solicitude dos seus bispos, não enfrente positivamente os difíceis desafios da presente conjuntura histórica e não consiga viver em plenitude e com alegria a sua identidade e o generoso compromisso pastoral”.

Há também, hoje de modo particular, situações, às quais a Instrução alude abertamente, que impõem problemas derivados da grande escassez de sacerdotes (nº 23) e que às vezes levam a imaginar, “como acontece em alguns lugares, que o bispo, tendo tudo considerado com prudência, confie, nas modalidades permitidas canonicamente, uma cooperação ad tempus no exercício do cuidado pastoral da paróquia a uma pessoa ou a uma comunidade de pessoas não revestidas do caráter sacerdotal”. Ora, nesses casos, devem ser observadas e preservadas as propriedades originárias de diversidade e complementaridade entre os dons e as funções dos ministros ordenados e dos fiéis leigos, próprias da Igreja, que Cristo desejou organicamente estruturada. Ainda que existam situações objetivamente extraordinárias que justificam essa colaboração, não podem no entanto ser legitimamente ultrapassadas as fronteiras da especificidade ministerial sacerdotal e leiga. Justamente por isso, impõe-se, diz João Paulo II, que as expressões que indicam o sentido de “principalidade” – como “pastor”, “capelão”, “diretor”, “coordenador” ou equivalentes – sejam reservadas exclusivamente aos sacerdotes. Nesse campo, hoje muito atual, a Exortação dicasterial Ecclesiae de mysterio, aprovada de modo específico pelo Santo Padre em 15 de agosto de 1997, constitui a trilha segura que devemos tomar.

 

 

1. O presbítero: ponto de encontro entre o mistério de Cristo e o da Igreja

 

A importância da pessoa e da missão do presbítero vem sendo delineada cada vez mais como “ponto crucial” da relação entre o mistério de Cristo e o da Igreja, como ponto de sutura entre esses dois aspectos essenciais. A Instrução a que me estou referindo fala, a propósito do presbítero, de “uma identidade tridimensional, pneumatológica, cristológica e eclesiológica” que não podemos perder de vista e que constitui a “arquitetura teológica primordial do mistério do sacerdote”, chamado a ser ministro da salvação, o que unicamente permite esclarecer, de modo adequado, o significado de seu ministério pastoral concreto na paróquia. Está clara a prioridade da referência cristológica, afirmada por muitos documentos eclesiais a partir da Optatam totius, na linha do documento final do Sínodo Episcopal de 1971 e da Exortação Pós-Sinodal Pastores dabo vobis. Graças à “referência cristológica”, o ministério presbiteral ganha a relação com o ministério trinitário, de fundamental importância para o desenvolvimento cristológico.

A importância prioritária dessa fundamentação aparece tanto na Pastores dabo vobis (1992) quanto no Diretório (1994) e na Instrução Ecclesiae de mysterio (1997), como também na última Instrução sobre O presbítero. Pastor e guia da comunidade paroquial (2002). Esta frisa o “princípio teológico do ministério ordenado”, que consiste na “configuração a Cristo”, na medida em que o sacerdote ordenado está habilitado a agir in persona Christi Capitis, por um “vínculo ontológico específico que une o sacerdote a Cristo, Sumo Sacerdote e Bom Pastor”. Por esse vínculo o presbítero constitui, na Igreja e pela Igreja, uma imagem viva e transparente, uma “representação sacramental de Jesus Cristo Cabeça e Pastor” (PDV, 15).

Também a recente Instrução sobre o presbítero trabalha na mesma linha, afirmando o princípio de que o “sacramento da Ordem, que configura a Cristo sacerdote, de modo a poder agir na pessoa de Cristo Cabeça com a sagrada potestade para oferecer o Sacrifício e para perdoar os pecados”, confere sacramentalmente aos batizados que tiverem recebido o dom do sacerdócio ministerial “uma missão nova e específica: a de personificar no seio do povo de Deus o tríplice múnus – profético, cultual e régio – do próprio Cristo como Cabeça e Pastor da Igreja”.

O Diretório, seguindo a Pastor dabo vobis, afirmava com clareza também a raiz trinitária da consagração presbiteral, na medida em que, “em virtude da consagração recebida mediante o sacramento da Ordem, o sacerdote é posto numa relação particular e específica com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo”. De fato, “a nossa identidade tem a sua fonte última na caridade do Pai. Ao Filho, por Ele enviado como Sumo Sacerdote e Bom Pastor, estamos unidos sacramentalmente mediante o sacerdócio ministerial pela ação do Espírito Santo. A vida e o ministério do sacerdote são uma continuação da vida e da ação do próprio Cristo. Esta é a nossa identidade, a nossa verdadeira dignidade, a fonte da nossa alegria, a certeza da nossa vida”. Na mesma linha se insere a Instrução sobre o presbítero, que extrai da fundamentação cristológica de sua identidade a base para seu particular e insubstituível ministério na Igreja (nos 7-8).

Os documentos recentes desenvolvem a perspectiva cristológico-trinitária de Lumen gentium 28, à luz de Presbyterorum Ordinis 2, do Vaticano II, na linha evangélica do Cristo consagrado e enviado ao mundo pelo Pai (Jo 10,36), quando afirmam que “toda a Igreja foi tornada participante da unção sacerdotal de Cristo no Espírito Santo. Pois, na Igreja, todos os fiéis formam um sacerdócio santo e real” e que, para que todos os fiéis fossem unidos num só corpo, no qual, porém, nem todos os membros têm a mesma função (Rm 12,4), instituiu o Senhor alguns como ministros, enviando primeiro os apóstolos como ele mesmo fora enviado pelo Pai, e que, portanto, “tornou partícipes de sua consagração e de sua missão seus sucessores, ou seja, os bispos, cuja função ministerial foi transmitida em grau subordinado aos presbíteros...”

Na busca da fundamentação neotestamentária do arraigamento cristológico-trinitário do sacramento da Ordem, em relação à perspectiva eclesiológica, possui particular importância o “modelo missionário-pastoral” imitado da figura de Cristo enviado pelo Pai, consagrado pela ação do Espírito Santo n’Ele, para anunciar a boa nova aos pobres (Lv 4,18). Por conseguinte, o ponto de partida da teologia do sacerdócio ordenado está ligado, justamente pela fundação cristológica, à missionaridade, na qual se integra o valor da “consagração e santificação”. O fundamento cristológico evangélico mais aderente ao mistério do ser e à missão do presbítero nos remete, portanto, à autocompreensão de Jesus como o Enviado do Pai, que por sua vez envia os apóstolos (Jo 13,20; 17,18; 20,21).

Uma “cristologia da missão” que afunda suas raízes trinitariamente na relação entre Cristo e o Pai e na missão do Espírito do Pai e do Filho: essa é a perspectiva que permite uma mais imediata conexão do mistério da identidade do presbítero com o mistério da Igreja. “A missão constitui a natureza do ministério e o põe em linha vicarial em relação a Jesus: é sempre Cristo que, presente no ministro, continua nele sua missão. À luz da missão e da vicariedade de Cristo podem ser lidos a ordenação, o caráter e a sacramentalidade em termos que superam a alternativa entre ontológico e funcional”.

Por isso, os documentos pontifícios recentes dão ressonância particular à figura bíblica de Jesus “Bom Pastor”, e integram a prioridade da missão de proclamação do Evangelho com a celebração dos sacramentos, em particular da Eucaristia, e com a diakonia da caridade. Como em Presbyterorum Ordinis 2, é retomada a afirmação de que o ministério dos presbíteros “começa com a mensagem evangélica”, mas “tira do Sacrifício de Cristo sua força e virtude e converge em seu esforço a que toda a cidade redimida, isto é, a sociedade e a assembleia dos santos, seja oferecida como sacrifício universal a Deus pelo Sumo Sacerdote, que também se ofereceu a Si Mesmo na Paixão por nós, para que fôssemos o corpo de uma tão importante Cabeça”.

 

 

2. Do mistério cristológico ao mistério eclesiológico

 

A fundamentação “cristológico-trinitária” da identidade do presbítero, a partir da visão do ser de Cristo como “missionário do Pai”, desenvolve sua missão perante a Igreja, não como um apêndice, mas como elemento estruturador de seu próprio ser, como diz a Pastores dabo vobis, “Cabeça, Pastor, Esposo da Igreja”, e como repete eficazmente a Instrução atual sobre a identidade do presbítero: “O ser e o agir do sacerdote – a sua pessoa consagrada e o seu ministério – são realidades teologicamente inseparáveis e têm como finalidade o serviço ao desenvolvimento da missão da Igreja”, a salvação eterna de todos os homens. No mistério da Igreja – revelada como Corpo Místico de Cristo e Povo de Deus que caminha na história, estabelecida como sacramento universal de salvação -, encontramos e descobrimos a razão profunda do sacerdócio ministerial. Por isso, de fato, “a comunidade eclesial tem absoluta necessidade do sacerdócio ministerial para que Cristo, Cabeça e Pastor, esteja presente na mesma”. Podemos dizer, portanto, que “Sem a presença de Cristo representado pelo presbítero, guia sacramental da comunidade, a comunidade não seria plenamente eclesial”.

Em sua dinâmica missionária, o ser Pastor, Cabeça e Esposo conflui para a dimensão que dá uma marca singular a cada ministério na Igreja e se exprime na dimensão diaconal, que nasce do estilo próprio, pastoral e esponsal, de missionaridade e poder do Cristo Servidor (diácono), como vemos em passagens evangélicas bem conhecidas, como Mc 10,45 e Lc 22,26-27. Quando Paulo afirma que “há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo” (1Cor 12,5), exprime também, com isso, que a unidade na diversidade dos ministérios tem uma raiz cristológica, a do Cristo que se fez Servo (Fl 2,7) e veio “para servir” (Mc 10,45). As principais funções próprias do ministério presbiteral exercidas no estilo diaconal do Cristo são, assim, resumidas na proclamação evangelizadora da Palavra, na realização de ações litúrgicas, especialmente na presidência Eucarística, na direção pastoral da comunidade e na coordenação dos carismas de cada batizado, para que sejam exercidos na caridade.

 

 

3. O presbítero na Igreja e diante da Igreja

 

No contexto da perspectiva cristológico-trinitária, a Exortação Pós-Sinodal Pastores dabo vobis (1992), seguida pelo Diretório (1994: nos 1-11) e pela recente Instrução, tende a definir com maior clareza a relação de configuração sacramental do presbítero com “Cristo Enviado, Servidor, Cabeça, Pastor e Esposo da Igreja”, retomando a afirmação sinodal que diz que “o sacerdote coloca-se não apenas na Igreja, mas também perante a Igreja” (Pastores dabo vobis, 16; 22). Com isso são delineados os dois aspectos essenciais da relação presbítero-Igreja:

a. De um lado, afirma-se a “relação de comunhão” pela qual o sacerdote ordenado se insere na Igreja e é “o homem da comunhão” que deve fazer-se uma “transparência” de Cristo “em meio ao rebanho” que lhe é confiado. A Instrução descreve essa tarefa como direção e serviço para todos, no que o presbítero exerce a mesma função pastoral de Cristo (ibid.). Esse primeiro e fundamental aspecto deve ser visto em perspectiva pneumatológica, em partilhar relação com a “missão do Espírito” que já opera no evento do Cristo, enviado pelo Pai, para doar à Igreja, em seu “evento pascal”, os frutos de sua obra redentora (LG 4 e 12), suscitando nela carismas e ministérios para sua edificação comunitária, por meio precisamente do sacramento da Ordem (1Cor 12,28), especialmente na celebração eucarística e na vida pastoral (At 20,28). Por essa ação animadora da comunhão, no Espírito, o presbítero exerce não apenas o ministério como repraesentatio Christi, mas também como repraesentatio Ecclesiae, esta também baseada no Cristo Cabeça, em sua relação com o Corpo. Assim, o sacerdote ordenado exerce sua ministerialidade na força do Espírito, doado pelo Pai para o Cristo Ressuscitado, como princípio animador da vida da comunidade eclesial. É “essencial”, então, para o sacerdote ordenado, que este seja compreendido em sua inserção na Igreja. Esse exercício de ministerialidade requer, para seu sucesso, ser formado, como insiste a Instrução (nº 9), seguindo a Pastores dabo vobis, por aquela “peculiar espiritualidade” que se define como “espiritualidade de comunhão”, tema sobre o qual voltou com frequência, mais recentemente, o ensinamento pontifício de João Paulo II. Em virtude de sua repraesentatio Ecclesiae, o presbítero não tende a uma santidade meramente pessoal: ele deve viver o sentido eclesial e santificar-se em sua tarefa pastoral de promoção do sentido eclesial nos que creem.

Essa tarefa deve, porém, ser realizada por ele com a consciência e a responsabilidade eclesiais descritas pela Instrução, sempre em relação com a constante intenção de “fazer o que faz a Igreja”, o que deve ser entendido não apenas em sentido jurídico, para a validade de seus atos ministeriais, mas, ainda mais, no sentido de um constante olhar de fé que “ilumina a vida espiritual do ministro sagrado, convidando-o a reconhecer a instrumentalidade pessoal ao serviço de Cristo e da Igreja” (nº 13). No plano de sua formação espiritual, isso implica a constante “adequação da sua vontade”, na consciência de que “o agir ministerial é instrumento do operar de Cristo e da Igreja, seu Corpo”. Não se trata, portanto, apenas de uma atitude de obediência e de disciplina eclesiásticas, assimilada no plano da formação espiritual; é muito mais: a Instrução diz expressamente que essa espiritualidade de comunhão “exige que ele respire um clima de proximidade ao Senhor Jesus, de amizade e de encontro pessoal, de missão ministerial ‘compartilhada’, de amor e serviço à sua Pessoa na ‘pessoa’ da Igreja, seu Corpo, sua Esposa” (nº 13).

Esse amor à Igreja, essa “caridade pastoral vem, antes de mais nada, do sacrifício eucarístico”, que constitui “centro e raiz de toda a vida do presbítero, de sorte que a alma sacerdotal se esforçará por interiorizar o que na ara sacrifical se passa” (nº 13; cf. Presbiterorum Ordinis, 14). Esse sentimento se traduz na “constante e sincera atitude de sentir com a Igreja” (Diretório, 56), que implica trabalhar sempre no vínculo da comunhão eclesial com o Papa, os bispos, os confrades sacerdotes, os fiéis consagrados, os fiéis leigos (ibid.).

b. Há, porém, uma segunda relação fundamental do presbítero com a Igreja, desenvolvida pelos recentes documentos eclesiais, que retomam as afirmações sinodais: é a que diz respeito ao presbítero “diante ou perante a Igreja”. A Pastores dabo vobis chama a atenção para isso em dois lugares (16 e 22). Esse destaque, repetido com insistência, tem um valor não apenas estrutural, mas profundamente teológico: de fato, salienta, na estrutura da Igreja, o valor do sacerdócio ordenado como “sinal da prioridade absoluta e da gratuidade da graça, que à Igreja é oferecida por Cristo ressuscitado. Por meio do sacerdócio ministerial, a Igreja toma consciência, na fé, de não vir de si mesma, mas da graça de Cristo no Espírito Santo. Os apóstolos e seus sucessores, como detentores de uma autoridade que lhes vem de Cristo Cabeça e Pastor, são postos - juntamente com o seu ministério - perante a Igreja como prolongamento visível e sinal sacramental de Cristo no seu próprio estar diante da Igreja e do mundo, como origem permanente e sempre nova da salvação, ‘Ele, que é o salvador do seu corpo’ (Ef 5,23)” (ibid., 16).

Assim, podemos dizer que nessa sua dupla realização o presbítero parece essencialmente relacionado à Igreja, no sentido de que, se não deve ser definido de modo “anterior à Igreja” (ibid., 16), também não deve ser definido de modo “posterior à comunidade eclesial”, “de modo que esta pudesse ser concebida como já constituída independentemente de tal sacerdócio” (ibid.). Na realidade, a Igreja, em sua tríplice dimensão, enquanto “mistério”, porque nesta se realizam os sinais sacramentais da presença do Cristo Ressuscitado (especialmente a Eucaristia), enquanto “comunhão”, como lugar de unidade na harmonia das diversas vocações, carismas e serviços, e enquanto “missão”, como “comunidade anunciadora e testemunha do Evangelho”, não pode realizar plenamente a si mesma sem o serviço desse sacerdócio, que participa íntima e sacramentalmente da unção e missão de Cristo pela própria Igreja e pelo mundo.

Essa essencial e múltipla referência à Igreja deve ser definida em relação não apenas à Igreja universalmente considerada, mas também em relação à Igreja local. A Pastores dabo vobis salienta mais o plano da formação espiritual do presbítero, pela qual seu “estar numa Igreja particular” constitui um elemento qualificador para viver a espiritualidade cristã (nº 31). Do “ponto de vista eclesiológico”, tendemos hoje a afirmar que, se a identidade do presbítero fosse definida essencialmente em relação a uma só “dignidade pessoal”, aspecto que de qualquer forma deve ser evidenciado, poderia ser definida em sua completitude, de maneira a-local; mas, se, seguindo o Concílio e a pesquisa que o seguiu, o presbiterato tiver de ser definido como essencialmente “ministerial”, porque intrinsecamente relacionado ao ministério próprio do ser de Cristo, o Enviado do Pai para servir, então a referência a uma Igreja local, com seu bispo e presbitério, parece essencial, e é por essa densidade teológica da Igreja local que adquire valor a abertura à Igreja universal.

Assim, não podemos definir a identidade do presbítero primeiramente ordenado e depois inserido na Igreja local e dentro de seu presbitério, mas o presbítero é, sim, ordenado na Igreja local e dentro de seu presbitério. É preciso, porém, ter bem claro que, se no plano concreto pertencer à Igreja local constitui uma mediação necessária, o ministro deve ter sempre consciência de que a Igreja universal “é uma realidade ontológica e temporalmente prévia a qualquer Igreja particular”. Por isso, “não é a soma das Igrejas particulares que constitui a Igreja universal”. As Igrejas particulares, frisa a Instrução (nº 17), na e a partir da Igreja universal, devem estar sempre abertas a uma realidade de verdadeira comunhão de pessoas, de carismas, de tradições espirituais, sem fronteiras geográficas, intelectuais ou psicológicas (LG 23). “O presbítero deve ter bem claro que uma só é a Igreja! A universalidade, ou seja, a catolicidade, deve encher de si a particularidade” (ibid., 17).

 

 

 

4. A dimensão mariana da identidade e missão do Presbítero

 

Um dos aspectos particularmente bem evidenciados na recente Instrução sobre a “identidade e missão do Presbítero” é sua “dimensão mariana”. Não que faltem referências marianas nos documentos que se multiplicaram nos últimos anos e que, seguindo uma antiga e contínua tradição eclesial, fazem da “devoção mariana” um ponto de referência essencial na formação presbiteral, concretamente expressa também nas belas orações com que esses documentos são concluídos. É preciso reconhecer, porém, que aos chamados de atenção vocacionais correspondem, neles, conteúdos teológicos, ainda que estes, sobre a relação “Maria-presbítero”, exijam sempre maiores aprofundamentos, que possam mostrar como a dimensão mariana deve ser entendida não apenas como um importante componente afetivo espiritual da consciência presbiteral, mas também como um elemento constitutivo “do próprio ser e do operar” do presbitero, cujo elemento devocional nasce de modo espontâneo. Essa acentuação mariana da Instrução é tanto mais relevante se considerarmos justamente o problema da identidade do presbítero, que, como eu observava no início, delineia-se hoje no quadro de uma certa tensão entre cristologia e eclesiologia. Ora, é precisamente nessa perspectiva mariana que essa tensão pode encontrar luz e equilíbrio. De fato, como observava Paulo VI, “o conhecimento da verdadeira doutrina católica sobre Maria constituirá sempre uma chave para a exata compreensão do mistério de Cristo e da Igreja”. Tal conhecimento, portanto, constitui também uma indispensável chave para a exata compreensão da identidade e da missão do presbítero.

O tema mereceria ser amplamente aprofundado, mas devo aqui, por exigências de concisão, limitar-me a considerar apenas alguns aspectos relacionados à dimensão constitutiva mariológica do ser do presbítero e de seu agir, mais imediatamente lembrados pelo documento em questão. A Instrução da Congregação para o Clero sobre a identidade e a missão do presbítero oferece, em verdade, uma preciosa contribuição acerca de dois pontos que dizem respeito à relação de comunicação salvífica entre o presbítero e Maria em referência ao mistério da Igreja e a sua relação com Ela na cooperação para o mistério da redenção de Cristo. Falando do ministério do Sacerdote, que em seu poder de “anunciar autorizadamente o Evangelho, de vencer o mal do pecado mediante o perdão sacramental” (nº 8), age “in persona Christi Capitis” (ibid.), afirma que “em Maria, Mãe do Sumo e Eterno Sacerdote, o sacerdote toma consciência de ser, com Ela, ‘instrumento de comunicação salvífica entre Deus e os homens’, ainda que de modo diverso: a Santa Virgem, mediante a Encarnação; o sacerdote, mediante os poderes da Ordem”.

Portanto, “a relação do sacerdote com Maria”, prossegue a Instrução, “não é só necessidade de proteção e de ajuda; trata-se, antes, de uma tomada de consciência de um dado objetivo: ‘a proximidade de Nossa Senhora’ como ‘presença operante, juntamente com a qual a Igreja quer viver o mistério de Cristo’”. Desenvolvendo essa importante observação, podemos perceber profundas relações, que, mesmo com as devidas distinções, unem intimamente a obra de comunicação salvífica na Igreja entre o papel materno de Maria e aquele que deriva do poder da Ordem no presbítero. De fato, “existe uma ‘relação essencial [...] entre a Mãe de Jesus e o sacerdócio dos ministros do Filho’, que deriva da que existe entre a divina maternidade de Maria e o sacerdócio de Cristo”.

O primeiro aspecto importante, na relação Maria-presbítero, está baseado, portanto, na “Maternidade de Maria” perante a Cabeça e o Corpo místico, pela qual, na Encarnação, Maria Mãe do Sumo Sacerdote se torna também Mãe de toda a Igreja Corpo de Cristo e Mãe de todo “sacerdote ministro”, maternidade espiritual proclamada pelo Cristo Crucificado (Jo 19,25-27). A participação de Maria na ação comunicadora da graça, dom do Espírito, se realiza, porém, segundo a característica própria de sua “mediação materna”, que pode ser descrita como mediação “em Cristo”, ou, melhor ainda, como “participação da única mediação do Redentor” (LG 62). Essa expressão, como diz o recente documento da Fami, é “mais conforme ao sensus fidelium e menos sujeita a contestações”. Em virtude da Encarnação, e de sua presença no evento de redenção da cruz e no evento do dom do Espírito no Pentecostes, a ação “vivificante materna de Maria” é exercida na Igreja, por meio da graça do Espírito, pela qual a ação sacramental do ministro ordenado, operando a “representação da Pessoa de Cristo Cabeça e Pastor”, pode penetrar intimamente nos corações, fazer crescer a comunhão de graça com Cristo e com os membros de seu Corpo. Tudo isso pela mediação do seio materno da Igreja, que só é Mãe em Maria.

Se, de fato, a Igreja é “sinal e instrumento da íntima união com Deus, tem a sua base na maternidade que lhe é própria: porque, vivificada pelo Espírito Santo, ‘gera’ filhos e filhas da família humana para uma vida nova em Cristo. Com efeito, assim como Maria está ao serviço do mistério da Encarnação, também a Igreja permanece ao serviço do mistério da adoção como filhos mediante a graça” (Redemptoris Mater, 43). Nessa obra, portanto, que a Igreja realiza por meio de seus sacerdotes ministros, “Maria não é só modelo e figura da Igreja; mas é muito mais do que isso. Com efeito, ‘ela coopera com amor de mãe para a regeneração e formação’ dos filhos e filhas da mãe Igreja. A maternidade da Igreja realiza-se não só segundo o modelo e a figura da Mãe de Deus, mas também com a sua ‘cooperação’. A Igreja vai haurir copiosamente nessa cooperação de Maria, isto é, na mediação materna que é característica de Maria...” (ibid., 44).

Podemos dizer, portanto, que “na economia redentora da graça, atuada sob a ação do Espírito Santo, existe uma correspondência singular entre o momento da Encarnação do Verbo e o momento do nascimento da Igreja. E a pessoa que une esses dois momentos é Maria: Maria em Nazaré e Maria no Cenáculo de Jerusalém. Em ambos os casos, a sua presença discreta, mas essencial, indica a via do ‘nascimento do Espírito’. Assim, aquela que está presente no mistério de Cristo como Mãe torna-se – por vontade do Filho e por obra do Espírito Santo – presente no mistério da Igreja. E também na Igreja continua a ser uma presença materna, como indicam as palavras pronunciadas na cruz: ‘Mulher, eis o teu filho’; ‘Eis a tua mãe’” (ibid., 24).

Mas há outro aspecto na relação Maria-presbítero que se realiza ainda, de modo particular, como diz a Instrução, na “presença e participação” de Maria na ação do sacerdote ordenado: é o da vida litúrgico-sacramental da Igreja. O documento a que me refiro (nº 13), ao sublinhar, justamente, o momento culminante dessa vida eclesial que é a celebração da Eucaristia, afirma, chamando a atenção para as palavras de João Paulo II, que “quando celebramos a Santa Missa, no meio de nós encontra-se a Mãe do Filho de Deus, e introduz-nos no mistério da sua Oferenda de Redenção. Desta forma, Ela torna-se mediadora das graças que, para a Igreja e para todos os fiéis brotam dessa mesma Oferenda”. De fato, “Maria esteve associada, de modo singular, ao sacrifício sacerdotal de Cristo, compartilhando a Sua vontade de salvar o mundo mediante a Cruz. Ela foi a primeira e mais perfeita partícipe espiritual da Sua oblação de Sacerdos et Hostia. Como tal, pode obter e dar, àqueles que no plano ministerial participam do sacerdócio do seu Filho, a graça do impulso para responderem cada vez melhor às exigências da oblação espiritual, que o sacerdócio comporta: de modo particular, a graça da fé, da esperança e da perseverança nas provas, reconhecidas como estímulos a uma participação mais generosa na oferta redentora”.

Seguindo essa pista, podemos dizer que, se na oferta (parédoken) do Espírito por parte de Jesus ao morrer na cruz (Jo 19,30) é anunciada e antecipada a hora da consumação de sua obra redentora, que está para acontecer na Ressurreição e no Pentecostes, essa consumação envolve a oblação da “Mãe Maria-Igreja”, a Cristo unida de modo esponsal, em sua ação redentora. De fato, não existe uma consumação da ação sacerdotal de Jesus que prossiga, na história, numa “Igreja Sacramento”, sem a participação ativa de “Maria Mãe” e, n’Ela, da Igreja Mãe e de todo o povo sacerdotal (1Pd 2,9-10). A participação ativa, pessoal, de Maria no evento da cruz de Cristo personaliza e antecipa a existência objetiva do sacerdócio universal de toda a Igreja, oferta, porém, que não se realiza paralelamente à do sacerdócio ministerial, mas é exercida em comunhão com este (LG 10-11), num único ato de oblação, na única oferta sacerdotal de Jesus, elevada, no Espírito, em louvor e glória do Pai.

Então, tal como a alteridade do ministro ordenado diante da Igreja mantém viva a consciência de que nós, na doação da graça, nova criação, não estamos na origem de nós mesmos, a mediação materna de Maria nos lembra também que somos sempre, mesmo ao receber a graça, “doados a nós mesmos como pessoas responsáveis”, porque a graça que Cristo nos oferece se faz graça que permite e impele a responder. Em Maria, unem-se, juntos, um e outro aspecto em sua missão de maternidade esponsal da Igreja. Por isso, “aos pés da cruz ‘está’ Maria, a primeira dos discípulos e a Mãe do Senhor. Ela [...] é ao mesmo tempo o ícone do Amor trinitário e as primícias da humanidade nova revestida da veste nupcial da caridade. N’Ela se conjugam o sim do amor de Deus e o sim da humanidade remida em Cristo”.