As fraternidades sacerdotais: amizade fundamental entre presbíteros,

apoio nas dificuldades

 

Podemos falar de fraternidades ou amizades sacerdotais de um ponto de vista jurídico, examinando o que estas são na Igreja; é um ponto de vista interessante, pois o direito sempre revela a história do homem e as concepções segundo as quais enxergou-se a si mesmo e aos outros homens. Mas prefiro enfrentar esse tema de um ponto de vista mais profundo, que vê nas fraternidades ou amizades sacerdotais a expressão de algo que é essencial à vida da Igreja e, mais ainda, à vida do homem enquanto tal. O tema passa a ser, então, a experiência da amizade, sobre o que, obviamente, só posso apresentar aqui alguns lampejos.

Esta abordagem existencial do tema da amizade é a que sinto mais correspondente ao que marcou as últimas décadas de minha vida, desde quando me vi fundando e tornando-me superior de uma fraternidade sacerdotal. Nela e por meio dela pude descobrir o quanto essa realidade constitui uma resposta ao conteúdo de minhas expectativas mais verdadeiras, mas também da promessa que tinha sido feita a minha vida no encontro com Cristo.

 

1. A amizade na Antiguidade

 

A importância decisiva da amizade na vida do homem de todos os tempos pode ser reconhecida também pelo fato de os maiores escritores e filósofos da humanidade terem falado muitas vezes desse assunto e terem visto na amizade um tema fundamental para a compreensão do homem: algo que entra na própria definição da vida.

Quero citar aqui, como exemplificação, apenas os casos de Aristóteles e Cícero. O primeiro, na Etica Nicomachea, nos livros VIII e IX, ao falar da amizade, afirma que “não há nada mais necessário à vida e que sem esta todo bem não é bem”. E o grande orador romano, em seu diálogo Lelius de amicitia, no capítulo VI, escreve: “Não sei se, além da sabedoria, exista alguma coisa melhor para o homem, dom dos deuses imortais a sua vida, que a amizade”.

Portanto, a amizade é vista por esses grandes homens da Antiguidade pré-cristã como um bem necessário, dom de Deus. A amizade é também considerada fonte de felicidade: no mesmo Lelius, no capítulo XXVII, Cícero diz que, quando a vida perde a caridade e a benevolência – que, como veremos, para ele são as características da amizade –, lhe é tirada qualquer possibilidade de alegria.

A amizade, portanto, é um aspecto do amor, é o ponto mais alto do amor. Esta implica, em primeiro lugar, uma reciprocidade, que não é necessária em qualquer outra forma de amor: é possível amar uma coisa, um bem, até uma pessoa, sem que esse amor necessariamente seja invalidado pela ausência da reciprocidade. A amizade, por sua vez, é uma virtude ativa, que implica a resposta do outro: a amizade implica o amigo.

E não é só isso; a amizade implica que o amigo seja um outro “eu mesmo” (como dizem Aristóteles e Cícero, este último no livro XXI do Lelius), um outro “eu mesmo” que é amado como amamos a nós mesmos. Com o amigo, vivemos uma vida de concórdia e de comunhão. Os bens da vida presente e os esperados para a vida futura: tudo se torna instrumento para alimentar a harmonia dessa vida em comum. Cícero define a amizade “consensio divinarum et humanarum rerum” – que poderíamos traduzir como convergência e fruição em comum dos bens humanos e divinos -, vivida “cum benevolentia et caritate”. A palavra “caridade” – lembramos que, com Cícero, estamos ainda fora de um contexto cristão – expressa aqui a gratuidade que deve existir nesse consenso, enquanto a palavra “benevolência” expressa o desejo de que o único critério da relação com o outro seja seu bem. Por conseguinte, na amizade não são procuradas vantagens – diz ainda Cícero, no livro XXVII -, a não ser as que brotam por si só da amizade: a letícia que vem de uma vida vivida na sabedoria e no amor.

Aristóteles acrescenta uma observação importante: a amizade é ativa e seletiva, ou seja, se alimenta da preferência, é uma intensidade do amor que torna a vida entre os amigos uma espécie de escola da caridade que somos chamados a ter com todos.

 

2. A novidade de relações trazida por Cristo

 

No ponto mais alto de Sua vida, Jesus, que deu amplo testemunho ao longo de Sua vida pública do que significava amizade para Ele, escolheu alguns com quem ter uma relação mais estreita e, entre os discípulos, quis os apóstolos, “para que ficassem com Ele” (Mc 3,14), e para que lhes confiasse todo o mistério de Sua vida. Aqui estão novamente, portanto, as duas características da amizade que Cícero genialmente intuíra: comunhão nas coisas humanas e nas divinas. Essa é a comunidade apostólica, o exemplo mais elevado de amizade que a história já apresentou. O próprio Jesus nos oferece a chave de leitura da experiência vivida por Ele com os discípulos. Diz o Senhor: “Eu vos chamei amigos, porque disse-vos tudo o que o Pai me disse” (cf. Jo 15,15).

Para compreender o que é realmente a amizade que Cristo viveu como ponto máximo da caridade que nasceu d’Ele, de Sua encarnação, de Sua morte e ressurreição, é preciso, portanto, participar da vida de Cristo. A amizade que Ele viveu com Seus mais íntimos, a amizade que Ele tornou possível entre os homens, nasce também hoje de Seus sacramentos, do batismo, da eucaristia, da penitência, nasce também hoje de Seu ensinamento e se manifesta em quem O segue como reconhecimento do espaço central que Ele solicita assumir na existência de quem o encontra. A amizade de Cristo vive, portanto, como serviço de Sua pessoa (não é sem razão que Agostinho diz, comentando a frase do evangelho de João que citei acima: “Embora me chames amigo, eu continuo a considerar-me teu servo”).

Justamente por isso, muitos pensadores cristãos dedicaram à amizade páginas de grande profundidade. Em suas reflexões, as intuições dos antigos filósofos são esclarecidas e postas em prática graças, precisamente, a sua experiência pessoal de amizade, vivida num contexto cristão (que muitas vezes era um mosteiro). Santo Tomás, por exemplo, retoma muitos temas tanto de Aristóteles quanto de Cícero. Para ele, como para esses autores, a amizade é “amor benevolentiae”, o amor que quer o bem do outro, um amor de comunhão, de reciprocidade, um amor que consiste em comportarmo-nos com o amigo como nos comportamos com nós mesmos. A amizade se baseia numa comunhão de vida, de bens e de virtudes. Sendo o ponto mais alto da caridade, a amizade dá ao homem a experiência da própria vida divina: não é a Trindade o exemplo mais elevado e inalcançável de amizade?

Não por acaso, Alfredo de Rivaulx, um grande estudioso medieval da amizade (poderíamos lembrar aqui também São Bernardo), em seu De spirituali amicitia, no livro II, afirma que a amizade é um degrau para o amor e o conhecimento de Deus.

Nessa mesma linha, os Padres orientais – e a partir deles uma tradição que chega até a teologia ortodoxa destes dois últimos séculos – viram na amizade a expressão mais alta da união mística entre Deus e o homem. Pavel Florenski dedica à amizade uma parte da obra A coluna e o fundamento da verdade (a carta XI), em que observa: “A unidade mística de dois é uma condição para o conhecimento e para a manifestação do espírito de verdade que gera esse conhecimento”. Ele leva até as extremas consequências as afirmações de Cícero e de Aristóteles, retomadas por Tomás. O amigo não é apenas aquele que trata o outro como trataria a si mesmo; os amigos constituem, isto sim, uma bi-unidade, uma díade: os amigos já não são apenas o que eram, se tomados individualmente, mas algo mais, uma só alma. Nessa unidade, cada um dos amigos vê confirmada a sua personalidade, encontrando seu eu no eu do outro.

 

 

3. Fraternidade e sacerdócio

 

Ao visar os temas da fraternidade e da amizade, quis certamente descrever a essência do acontecimento cristão, mas ao mesmo tempo assinalei o que considero uma dimensão essencial do humano. Em outras palavras, pretendi descrever tanto o tecido do ser quanto o tecido do acontecimento inaugurado pelo Ser que entrou na história, ou seja, por Deus feito homem.

Ora, o que é verdade para cada batizado é verdade também para cada uma das vocações que se inserem no batismo. Logo, também para o sacerdócio. De fato, tudo o que nasce do batismo participa da estrutura de vida que este comunica ao homem, que é a comunhão, e ao mesmo tempo a exprime. Assim, a experiência de qualquer vocação cristã só pode ser alimentada por uma experiência de fraternidade. Não existe no cristianismo uma vocação à relação com Deus que não seja acontecimento de comunhão; não existe um atalho para Deus que passe ao largo de Cristo e de Seu corpo.

De modo particular, a palavra “fraternidade”, sendo uma palavra que descreve a essência do acontecimento cristão, não pode ser separada da própria essência da vida sacerdotal; pelo contrário, adquire uma urgência histórica e existencial justamente para estes tempos em que somos chamados a viver. Realmente, o problema de nosso tempo é este: a busca espasmódica de um atalho para Deus – já que não conseguimos abdicar de Deus -, um atalho que evite a corporeidade de Cristo.

Ninguém hoje consegue resistir aos ataques dessa mentalidade mundana, a não ser quando sua afeição é guiada por um juízo claro sobre a realidade a que pertence. É desse juízo que se alimenta e se torna atraente a possibilidade de viver a virgindade, a pobreza e a obediência que o sacerdote é chamado a abraçar (como todo cristão, de acordo com seu estado): se pertenço a meus irmãos, já não pertenço a mim mesmo, meu tempo já não me pertence, as coisas que tenho já não me pertencem, meu dinheiro, meus dons, meus relacionamentos, nada disso me pertence.

Descobrir isso na própria existência é algo infinitamente maior e mais pleno de letícia que pertencer a si mesmo, possuir a si mesmo. Possuir a si mesmo reduz; ao contrário, descobrir que pertenço a rostos chamados comigo, descobrir e aceitar que pertenço à história de Cristo no mundo por meio desses rostos me engrandece. A grandeza da minha pessoa é dada pela história de Cristo entre os homens, a quem quero pertencer em resposta a Seu chamado.

Creio que essa observação, que é ao mesmo tempo psicológica e espiritual, descreva bem a passagem da naturalidade para o ser novo a que o batismo chama cada um de nós.

Mas quero aprofundar minhas considerações. A condição para que uma personalidade autenticamente cristã possa nascer é que esta reconheça o acontecimento da companhia em que Cristo a inseriu e se deixe gerar por essa companhia. Nenhum de nós pode caminhar para a verdade de si mesmo sem a mudança a que a presença dos outros o impele. A presença do outro muda a nossa vida, muito mais que os séculos de chuva que sulcam o terreno e desgastam as pedras. Esse é o valor sacramental do irmão que é posto a meu lado.

Nesse sentido, chego a dizer que, se alguém não percebe o outro como um obstáculo, não pode amá-lo. Se não somos espiritualistas ou superficiais, não podemos deixar de perceber em certos momentos da vida o peso daqueles que são postos ao nosso lado no lugar em que trabalhamos, oriundo da diferença de percepção das coisas, da diferença de histórias e de temperamento pessoal... Diferenças que talvez experimentemos justamente naqueles que, por outro lado, sentimos extraordinariamente próximos. É aí que a pessoa descobre o significado do outro como presença sacramental, na medida em que entende que essa alteridade ou diversidade é o sinal de uma Presença que transcende o outro e o torna sinal de algo mais.

Dizia Gilbert Cesbron: “Toda grande existência nasce do encontro com um grande acaso”. Na companhia de Cristo, essa grande oportunidade dada a nossa vida é o outro que é posto ao nosso lado, é a grandeza d’Aquele que nos alcança por intermédio do outro que é posto ao nosso lado. Mas percebam: não necessariamente graças à santidade do outro, talvez até pela pobreza do outro. O crescimento da pessoa não é uma empreitada hercúlea, não é um esforço da vontade; é fruto da provocação constante de uma companhia verdadeira: “Sufficientia nostra ex Deo”, diz São Paulo (2Cor 3,5). Os outros, se são desejados, reconhecidos e portanto acolhidos como sinal de Sua companhia, tornam a nossa pessoa capaz, por sua vez, de se tornar companhia no caminho dos homens que encontramos.

 

4. Degenerações na vivência da companhia

 

Como todas as coisas humanas, a companhia que é sinal do mistério e lugar da presença de Cristo também pode ser vivida de um modo redutivo. Quando isso acontece, é sempre o nosso critério humano que prevalece sobre a novidade introduzida por Cristo nas relações entre os homens. Assim, quero citar esquematicamente três momentos desse risco de redução.

Uma primeira degeneração possível é sentir a companhia, a amizade em Cristo, como expressão de um dever. Seria um pouco como dizer: “Já que estamos juntos, já que Alguém nos pôs uns com os outros, então temos o dever de viver a nossa vida como expressão comum”. A raiz dessa degeneração é a desconhecimento da verdadeira natureza da caridade, acontecimento da gratuidade do amor de Cristo por nós e da resposta a esse amor. Em razão dessa insuficiência, uma amizade reduzida de forma moralista a dever tem história curta e acaba quase sempre em violência: a companhia cristã não é gerada por si mesma, não nasce (apenas) como fruto de um esforço ascético meu, mas é um dom, é uma graça em sua origem e vive como memória dessa graça.

Uma segunda expressão degenerada da companhia em Cristo é a comunidade concebida e vivida como uma estratégia: “A união faz a força”, como diz um provérbio. A companhia, assim, é vista como estratégia para compreender melhor, para intervir melhor numa situação, para agir com maior eficácia (até mesmo na missão). Essa pode ser uma tentação sutil e perigosa justamente porque se apoia em sentimentos de generosidade e compromisso que facilmente se apresentam como aspectos do amor da pessoa a Cristo. A “doença” dessa posição está, mais uma vez, no fato de depositar toda a sua confiança na própria pessoa e em seu fazer.

Uma terceira degeneração é, enfim, conceber a amizade ou a companhia como um abrigo: como um lugar cômodo, uma fuga do mundo. O erro, aqui, está em considerar a companhia como uma coisa bonita, que nos faz felizes, sim, mas em sentido naturalista, distraindo-nos da missão que Cristo nela e com ela nos confia. Uma companhia concebida dessa forma transforma-se no lugar em que ocorre uma soma de solidões, em que, a longo prazo, podemos buscar no outro apenas a condescendência ao que “sentimos”, ao que “nos agrada”. O significado de uma verdadeira fraternidade cristã, ao contrário, é que Deus não deixa o homem só na provação da existência. Isto seria diabólico: a solidão. Na companhia, o drama é possível, pois é vencida a tragédia do homem sozinho diante do mal: a tragédia é vencida porque Alguém a venceu por nós. Cristo não chamou os Doze apenas para que estivessem com Ele, mas “para enviá-los” (Mc 3,14) a anunciar essa Sua vitória.

Massimo Camisasca