SACERDOTES PARA UMA NOVA EVANGELIZAÇÃO (*)
Mons. Álvaro
del Portillo
As
presentes considerações, sob o título «Sacerdotes para uma nova
evangelização», fazem directamente referência ao novo empreendimento
evangelizador — novo e ao mesmo tempo antigo, porque começou em Cristo há vinte
séculos — que os tempos reclamam e a que o Santo Padre João Paulo II nos instiga [1].
Todos temos bem patente que o Concílio Vaticano II associou à causa da
renovação da Igreja todos os seus ensinamentos, e em particular os Decretos
sobre o ministério e a vida dos presbíteros, e acerca da formação sacerdotal [2].
1. Necessidade
de uma nova evangelização
Esta nova evangelização, sobretudo no Ocidente, não se dirige a um
mundo que nunca tenha ouvido a pregação cristã, mas, pelo contrário, a um mundo
em que foi anunciada, crida e amada a mensagem de Cristo, embora agora se
mostre como que separado das suas origens [3].
Mais ainda, a sociedade ocidental tem evoluído, em grande medida,
paradoxalmente em luta com as suas próprias raízes espirituais e culturais, e,
a par do seu progresso material, é patente um processo de grave regressão moral
[4].
É habitual falar nos nossos dias desta sociedade qualificando-a de
“pós-cristã". Talvez esta designação seja expressiva nalguns casos, ao
reflectir uma situação de facto e umas tomadas de posição que podem explicar-se
por uma deformação intelectual e prática da consciência dos crentes [5];
mas seria totalmente inadequada tal designação — “pós-cristã"—, se com ela
se pretendesse insinuar que a doutrina de Cristo perdeu a capacidade de
penetrar e animar o mundo contemporâneo : nada mais afastado da realidade, de
uma realidade que a graça de Deus nos faz tocar em tantos ambientes e,
sobretudo, no mundo preciosíssimo da alma de multidões de pessoas.
Por isso, a actual urgência de uma nova evangelização não pode
fazer-nos esquecer «a perene missão de levar o Evangelho a quantos — e são
milhões e milhões de homens e mulheres — não conhecem ainda Cristo como
Redentor do homem. Essa é a responsabilidade mais especificamente missionária
que Jesus confiou e diariamente volta a confiar à sua Igreja» [6].
Precisamente, essa missão evangelizadora universal exige uma Igreja renovada,
revitalizada com a perene mensagem de Cristo, transbordante de uma imperecível
actualidade; por outras palavras, requer um novo despertar das consciências
cristãs que atraia o mundo à luz de Cristo, esse nosso Cristo que, como gostava
de repetir com força Mons. Escrivá de Balaguer, «não é uma figura que passou.
Não é uma recordação que se perde na história. Vive! “Jesus Christus heri et
hodie: ipse et in saecula!” — diz S. Paulo. Jesus Cristo ontem e hoje e
sempre!» [7].
A decisão de assumir as responsabilidades apostólicas que nos
competem como cristãos da nossa época, não é compatível com visões pessimistas
e negativas do presente. Para anunciar eficazmente o Reino de Deus e trabalhar
na sua propagação, é necessário amar o mundo em que vivemos, amá-lo
«apaixonadamente» — na expressão do Fundador do Opus Dei[8]
— : quer dizer, contemplar esta precisa situação histórica e as pessoas que
nela estão inseridas «com os olhos do próprio Cristo», como escreveu João Paulo
II na sua primeira
Encíclica [9].
Deste modo, no claro--escuro de fenómenos cambiantes, que em muitos casos a
tornam irreconhecível, também hoje se descobre aquela inquietação da alma
humana, que anela e sente a nostalgia de Deus, expressa por Santo Agostinho no
famoso início das suas Confissões: «fecisti nos ad te, et inquietum est cor
nostrum donec requiescat in te» [10].
A acelerada dinâmica que caracteriza em linhas gerais a nossa época, é
acompanhada e marcada pela inquietação de tantos corações que caminham num
contínuo desassossego, sem conseguirem descobrir um norte claro para a sua
existência ou um sentido para a História humana. Ora bem, precisamente aí, no
meio dessa inquietação, se há-de proclamar de viva voz que Quem procuram é
Cristo, e aquilo que ignoram e anelam é o amor paterno de Deus que se lhes
oferece, a todos e a cada um, em Cristo e na Igreja [11].
Estamos
a assistir nos últimos meses a grandes transformações em vastas zonas do mundo,
sobretudo no Velho Continente, que parecem anunciar uma nova era de liberdade,
de responsabilidade, de solidariedade, de espiritualidade, para milhões de
pessoas. Não podemos esquecer, no entanto, e temos de o dizer com dor, que
existem igualmente na nossa sociedade ocidental vastos âmbitos fechados e
hostis à Cruz salvadora [12],
olhos que se recusam a admirar a beleza de Deus reflectida na face de Cristo [13].
2. Missão de
todos na Igreja
Perante
este nosso mundo, está claro que — volto a dizer — a evangelização será nova
não pelo conteúdo essencial da doutrina que se anuncie, nem pelo modelo de
vida que se proponha aos nossos contemporâneos. A novidade terá de residir nas
novas energias espirituais e apostólicas postas em jogo por todos os fiéis, uma
vez que todos participamos e somos responsáveis pela missão da Igreja [14].
De particular importância se revestirá o testemunho corrente dos fiéis leigos,
a quem — em palavras de João Paulo II — «corresponde, dar testemunho de como a fé
cristã (...) constitui a única resposta plenamente válida aos problemas e
expectativas que a vida coloca a cada homem e a cada sociedade. Isto será
possível — prossegue o Papa — se os fiéis laicos souberem superar em si mesmos
a fractura entre o Evangelho e a vida, reconstituindo na sua vida familiar
quotidiana, no trabalho e na sociedade, essa unidade de vida que no Evangelho
encontra inspiração e força para se realizar em plenitude» [15].
Com grande
força e singular eficácia, anunciou insistentemente esta doutrina Mons. Escrivá
de Balaguer, de forma cada vez mais atractiva e com crescente vigor, a partir
da terceira década deste século: «Todos, pelo Baptismo — são palavras suas de
1960 — fomos constituídos sacerdotes da nossa própria existência, para
oferecer vítimas espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo (1 Pe
2, 5), para realizar cada uma das nossas acções em espírito de obediência à
vontade de Deus, perpetuando assim a missão do Deus-Homem» [16].
O amplo progresso doutrinal, pelo qual a vocação baptismal foi compreendida e
apresentada com o relevo eclesiológico que lhe corresponde, é sem dúvida um dos
pilares em que a Igreja se apoia para enfrentar o seu futuro evangelizador.
A necessária insistência para que os fiéis leigos assumam as suas
responsabilidades, para tornar possível uma presença mais viva da luz cristã na
sociedade, deve ir a par da insistência na essencial necessidade de um
exercício abundante, generoso, humilde e audaz ao mesmo tempo, do ministério
público dos sacerdotes: «na medida em que as famílias cristãs e os laicos
assumam em um mais vasto nível (...) os seus múltiplos compromissos
apostólicos, maior necessidade terão de sacerdotes que sejam plenamente
sacerdotes, precisamente para a vitalidade da sua vida cristã. E, noutro
sentido, quanto mais descristianizado está o mundo, ou carece de maturidade na
fé, mais necessidade tem de sacerdotes que estejam totalmente consagrados a dar
testemunho da plenitude do mistério de Cristo» [17].
A Igreja que queremos ver reflorescer e dar frutos novos, «a
Igreja do novo Advento — como lemos na Encíclica Redemptor Hominis —, a
Igreja que se prepara continuamente para a nova vinda do Senhor, tem de ser a
Igreja da Eucaristia e da Penitência. Somente com este perfil espiritual da sua
vitalidade e actividade, ela é a Igreja da missão divina, a Igreja ‘in statu
missionis’ (em estado de missão), conforme no-la revelou o Concílio
Vaticano II» [18]. E a Igreja da Eucaristia e da Penitência é necessariamente a
Igreja do exercício infatigável do sacerdócio ministerial, a Igreja do
sacerdote santo, do sacerdote que ama no fundo da sua alma, de todo o seu ser,
portanto, o chamamento que recebeu do Mestre, para se conduzir a todo o momento
como alter Christus, como ipse Christus[19].
Não
é necessário determo-nos mais agora sobre a necessidade do ministério
sacerdotal para a nova evangelização, nem sobre a mútua ordenação existente
entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum de todos os fiéis. Para
todos é, na verdade, bem claro que sem uma abundante administração dos grandes
«mistérios de Deus» [20]
da Eucaristia e da Penitência, e do alimento da Palavra divina, languidesceria
a vida sobrenatural dos fiéis. A nova evangelização depende essencialmente da
existência de ministros que dispensem generosamente — com fome de santidade,
sua e dos outros — a palavra de Deus e os Sacramentos; homens formados pela
Igreja, que sintam sempre com a Igreja, para ser, a cem por cento, à medida do
dom de Cristo, sempre bem unidos ao seu Bispo, com veneração por toda a
Hierarquia da Igreja, e de um modo particular pelo Romano Pontífice.
3. Necessidade
de sacerdotes santos
Contra a nova evangelização, erguem-se dificuldades numerosas e,
em conjunto, tremendas. Perante essa onda que pretende ser avassaladora, o
cristão — e talvez de modo particular o sacerdote — experimenta, por vezes de
modo particularmente intenso, a radical insuficiência das suas próprias forças
humanas.
Esta realidade evoca em mim, com grande acuidade, a eminente
figura sacerdotal do Fundador do Opus Dei, a quem (e isso me leva a erguer o
coração em acção de graças à Santíssima Trindade, por intercessão de Santa
Maria, juntamente com milhões de almas que fazem o mesmo nos cinco continentes)
o Santo Padre quis conceder o Decreto de virtudes heróicas, no dia 9 do mês
passado. Quando tinha 26 anos, recebeu de Deus uma missão evangelizadora de
enormes proporções: a missão de difundir por todo o mundo,
entre pessoas de todos os ambientes sociais, uma tomada de consciência, teórica
e prática, feita vida, da chamada universal à santidade. Assim escrevia em
1930: «Viemos para dizer, com a humildade de quem se sabe pecador e pouca coisa
— homo peccator sum (Luc. V, 8), dizemos com Pedro
— mas com a fé de quem se deixa guiar pela mão de Deus — que a santidade não é
coisa para privilegiados; que a todos nos chama o Senhor, que de todos espera
Amor — de todos, estejam onde estiverem; de todos, qualquer que seja o seu
estado, a sua profissão ou o seu ofício. Porque esta vida corrente, ordinária,
sem aparência exterior, pode ser meio de santidade: (...) todos os caminhos da
terra podem ser ocasião de um encontro com Cristo» [21].
As dificuldades que o nosso Fundador encontrou ao longo de toda a sua vida
também foram gigantescas. Não obstante, a eficácia da graça de Deus na sua
vida, consumida gostosamente — por vezes com grande dor — em correspondência
heróica ao dom de Deus, foi assombrosa.
Recordo um episódio sucedido em Agosto de 1958. O Fundador do Opus
Dei caminhava um dia pela City de Londres e, ao passar pelas sedes
centrais de famosos bancos e grandes empresas comerciais e industriais,
colocado diante do panorama de um mundo humanamente poderoso mas indiferente,
ou mesmo hostil às coisas de Deus, sentiu com particular intensidade toda a sua
fraqueza, a sua incapacidade para realizar aquela missão que tinha recebido,
trinta anos antes, de vivificar com o espírito do Evangelho todas as realidades
humanas, de colocar Cristo no cume de todas as actividades dos homens. Mas,
imediatamente, sentiu de modo claro no seu íntimo uma locução divina: «Tu
não podes, mas Eu sim».
Era
uma nova confirmação do que sempre tinha sido na sua alma, na sua conduta, uma
plena certeza sobrenatural: a fé segura, certa, de que é o próprio Cristo —
verdadeiro e eterno Sacerdote da Nova Aliança, estabelecida definitivamente no
seu Sangue — o único a realizar a amorosa comunhão dos homens entre si; a fé,
portanto, de que o seu trabalho sacerdotal, como toda a acção sacerdotal na
Igreja, só é eficaz precisamente porque se realiza per Christum et cum
Christo et in Christo [22].
Se a nova
evangelização, como a primeira, como a de toda a história, e como todo o
trabalho verdadeiramente sobrenatural, é impossível para as nossas forças
humanas — as de cada um e as de todos juntos na Igreja —, é, não obstante,
possível para Deus, é possível para Cristo; e torna--se, por isso mesmo, possível
para nós, para todos e para cada um, na medida em que todos e cada um
sejamos (acho ser necessária esta insistência, que sempre será actual) «não já alter
Christus, mas Ipse Christus, o próprio Cristo!» [23].
Aqui reside a profunda razão teológica da necessidade da santidade
pessoal, para toda a obra apostólica concreta e para a recristianização do
mundo na sua totalidade. Na verdade, a identificação com Cristo é um dom, mas
também é uma tarefa. Todo o cristão e, de modo peculiar e próprio, o
sacerdote, é ipse Christus «imediatamente, de forma sacramental» [24].
Não podemos — não devemos! — esquecer que esta identificação constitui também a
meta definitiva, o objecto de uma tarefa encomendada, uma responsabilidade
pessoal, para tornarmos realidade em cada um de nós as frases de S.Paulo: «Para
mim, o viver é Cristo» [25];
«não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim» [26],
de modo a levantarmos bem alto, como uma bandeira, este programa de vida aos
olhos do homem e da mulher do mundo de hoje, e de todos os tempos, a fim de que
todos o assumam em plenitude.
Por conseguinte, hoje como ontem e como sempre, face aos desafios
de cada época, a pergunta «que tipo de sacerdotes necessita hoje a Igreja e
o mundo?», tem uma resposta que começa necessariamente assim: «a Igreja
e o mundo necessitam de sacerdotes santos», quer dizer, sacerdotes que,
conhecedores da sua própria limitação e miséria, se esforçam decididamente por
percorrer os caminhos de santidade, da perfeição da caridade, da identificação
com Jesus Cristo, em correspondência fiel à graça divina. Não é uma resposta
nova, mas é uma resposta sempre actual, sempre necessária, sempre decisiva. O
Concílio Vaticano II afirmou-o
com palavras claras: «Os sacerdotes estão obrigados a adquirir essa perfeição
com especial motivo, dado que, consagrados a Deus de um novo modo pela recepção
da Ordem, se convertem em instrumentos vivos de Cristo Eterno Sacerdote, para
prosseguir através do tempo a Sua admirável obra» [27].
A identificação com Jesus Cristo exige uma vida de oração e de
penitência; e isto, não como "assunto privado" do sacerdote, mas como
condição da sua eficácia pastoral, precisamente porque o sacerdote, por si
mesmo, não pode, mas precisamente também porque na medida em que é
Cristo, sim, pode.
Neste
contexto vem também à minha memória um apontamento que Mons. Escrivá de
Balaguer escreveu em 1932. Penso que são de justiça estas referências se
considerarmos que o Venerável Servo de Deus, movido pela acção divina, levou ao
altar milhares de sacerdotes, incardinados em inúmeras dioceses e na Prelatura
do Opus Dei. Ao contemplar uma vez mais na sua oração a magnitude da missão que
Deus lhe tinha confiado, escrevia: «sinto que ainda que ficasse só na Obra, por
permissão de Deus, ainda que me visse desonrado e pobre — mais do que o sou
agora — e doente... não duvidaria da divindade da Obra nem da sua realização! E
ratifico a minha convicção de que os meios seguros de levar a cabo a Vontade de
Jesus, mais do que actuar e mover-me, são: orar, orar e orar; expiar, expiar e
expiar» [28].
4. Santidade
sacerdotal e vida de oração
Vede,
considere cada um de nós, que «Entre a santidade e a oração existe
necessariamente tão íntima relação que não é possível uma sem a outra. É
verdade esta frase do Crisóstomo: «Julgo que se torna manifesto para todos que
é simplesmente impossível viver virtuosamente sem a ajuda da oração» (De
praecatione, orat. I)» [29].
«Talvez nestes anos —
escrevia João Paulo II a todos os sacerdotes por ocasião da Quinta feira Santa de 1979 —
(...) se tenha discutido demasiado sobre a identidade do sacerdote, sobre o
valor da sua presença no mundo contemporâneo, etc., e, pelo contrário, se tenha
rezado demasiado pouco. Não houve bastante coragem para realizar esse mesmo
sacerdócio através da oração, para tornar eficaz o seu autêntico dinamismo
evangélico, para confirmar a identidade sacerdotal. É a oração que indica o
estilo do sacerdócio» [30].
A necessidade de sermos homens de oração, trás de novo ao
meu pensamento a figura do nosso Fundador e a sua extraordinária fecundidade
apostólica. Não é possível, nos limites destas minhas palavras, traçar sequer
um breve esboço do que foi a sua vida de oração contínua, de que fui testemunha
directo — na medida do possível — durante quarenta anos. Não duvido em afirmar
que Deus lhe concedeu abundantemente o dom da contemplação infusa. Recordo,
entre tantos outros pormenores, como durante o pequeno almoço, enquanto líamos
o jornal, logo que o nosso Padre começava a ler, ficava abstraído, metido em
Deus; apoiava a fronte na palma da mão e deixava de o ler para fazer oração. A
minha emoção foi grande, quando depois da sua morte, li nos seus Apontamentos
íntimos esta nota de 1934, onde plasma com uma extrema simplicidade o seu
diálogo com o Senhor: «Oração: embora eu não ta dirija (...), fazes-me senti-la
a desoras e, por vezes, ao ler o jornal, devo ter-te dito: deixa-me ler! — Que
bom és, meu Jesus! E eu, pelo contrário...» [31].
Seria interminável comentar adequadamente a riqueza da vida de
oração deste sacerdote, (sempre sacerdote!), no decorrer da qual o Espírito
Santo o levou indubitavelmente a altíssimos cumes de união mística no meio da
vida corrente, atravessando também duríssimas purificações passivas dos
sentidos e do espírito. Permiti-me, contudo, sublinhar que se estes e outros
numerosíssimos factos, de que temos conhecimento, evidenciam uma específica
acção do Espírito Santo na sua alma, a profundidade com que se radicou na sua vida,
em cada jornada — de dia e de noite — o hábito da oração contínua revela, ao
mesmo tempo, a fidelidade e a generosidade da sua dedicação aos tempos diários
de meditação e oração mental e à recitação do Breviário e de outras orações
vocais. Mais: a irrupção extraordinária de Deus na sua alma foi muitas vezes
como que a resposta divina a essa fidelidade à oração mental em momentos em que
esta se lhe tornava particularmente custosa ou difícil. Por exemplo, numa
anotação sua — entre outras muitas de 1931 — escrevia: «Ontem, de tarde, às
três, fui ao presbitério da Igreja do Patronato para fazer um pouco de oração
diante do Santíssimo Sacramento. Não me apetecia. Mas ali estive feito um
fantoche. De vez em quando, voltando a mim, pensava: Tu já vês, bom Jesus, que,
se estou aqui, é por Ti, para Te dar gosto. Mas debalde. A imaginação andava
solta, longe do corpo e da vontade, tal como o cão fiel, deitado aos pés do
dono, dormita a sonhar com correrias e caça e os amigalhotes (cães como ele) e
se agita e ladra baixinho... mas sem se afastar do seu dono. Do mesmo modo, eu
estava tal como um cão, completamente, quando reparei que sem querer, repetia
umas palavras latinas, em que nunca me havia detido e que nada justificava que
recordasse: ainda agora, para me lembrar, necessitarei de as ler numa ficha,
que sempre trago comigo para apontar o que Deus quer (na ficha de que falo
anotei essa frase de um modo instintivo, levado pelo costume, ali mesmo no
presbitério, sem lhe dar importância). Dizem assim as palavras da Escritura que
encontrei em meus lábios: "et fui
tecum in omnibus ubicumque ambulasti, firmam regnum tuum in aeternum":
apliquei então a minha inteligência ao sentido da frase, repetindo-a devagar. E
depois, ontem à tarde, e hoje mesmo, quando voltei a ler essas palavras (pois,
repito, como se Deus tivesse empenho em confirmar-me que eram suas, não as tive
presentes entretanto) compreendi claramente que Cristo Jesus me deu a entender,
para nossa consolação, que "A Obra de Deus estará com Ele em todos os
lugares, afirmando o reinado de Jesus Cristo para sempre"» [32].
É
na oração perseverante de cada dia, com facilidade ou com aridez, que o
sacerdote, como qualquer cristão, recebe de Deus — mesmo de uma forma
extraordinária, se preciso fosse — luzes novas, firmeza na fé, segura esperança
na eficácia sobrenatural do seu trabalho pastoral, amor renovado; numa palavra,
o impulso para perseverar nesse trabalho e a raíz da efectiva eficácia do
trabalho em si. Sem oração, e sem uma oração que se esforça por ser contínua,
no meio de todos os afazeres, não há identificação com Cristo, no que esta tem
de tarefa, fundamentada no que tem de dom. Mais ainda, atrevo-me
a dizer que um sacerdote sem oração, se não falseia a imagem que dá de Cristo —
modelo para todos —, apresenta-a como uma nebulosa que não atrai nem orienta,
que não serve de norte para o povo que nos vê ou que nos ouve. Muitas vezes
ouvi a Mons. Escrivá de Balaguer afirmar que «a Obra de Deus se fez com
oração». Com estas palavras não aplicava teoricamente, ao fruto do seu
trabalho, uma frase feita da vida espiritual, mas exprimia uma realidade
profundamente assimilada e sentida, inteiramente equivalente à afirmação,
também frequente nos seus lábios, de que a Obra de Deus a fez e a faz Deus.
Assim rezava em voz alta, no dia 27 de Março de 1975: «Como se fez o Opus Dei?
Fizeste-o Tu, Senhor, com quatro pobres homens... Stulta mundi, infirma
mundi, et ea quae non sunt (Cfr. 1 Cor 1, 26-27). Toda a doutrina de
S. Paulo se cumpriu: buscaste meios completamente ilógicos, nada aptos, e
estendeste o trabalho pelo mundo inteiro» [33].
5. Santidade
sacerdotal e vida de penitência
O
seguimento e a identificação com Jesus Cristo requerem a par da oração, aquele
tomar sobre si a Cruz de cada dia [34],
a voluntária participação no mistério da Cruz redentora. Concretamente «O
sacerdote — com palavras de Pio XII — deve tratar de reproduzir na sua alma tudo o
que sucede sobre o altar. Tal como Jesus Cristo se imola a Si mesmo, o Seu
ministro deve imolar-se com Ele; tal como Jesus expia os pecados dos homens,
também ele, seguindo o árduo caminho da ascética cristã, deve trabalhar pela
sua própria purificação e pela dos outros» [35].
O sacerdote há-de ser homem penitente, e perseverantemente penitente,
não apenas mortificado; há-de expiar, em união com a Cruz de Cristo, os seus
pecados e pelos de toda a gente; há-de poder dizer com S. Paulo «sofro na
minha carne o que falta à Cruz de Cristo, pelo Seu Corpo, que é a Igreja» [36].
O
Fundador do Opus Dei não só aceitou com alegria a Cruz, na doença, na
perseguição, em todo o género de dificuldades exteriores e nas purificações
interiores que Deus lhe fez atravessar, como além disso, a procurou, com o
profundo convencimento de que encontrar a Cruz é encontrar Cristo. Assim se
exprimia, com palavras de singular altura teológica e mística, numa meditação,
em 28 de Abril de 1963, rememorando momentos especialmente duros de mais de
trinta anos antes: «Quando o Senhor me dava aquelas pancadas, lá pelo ano
trinta e um, eu não O entendia. E de repente, no meio daquela amargura tão
grande, estas palavras: Tu és meu filho (Sl 2, 7), tu és Cristo. E
eu não fazia mais que repetir: Abba, Pater!; Abba, Pater!, Abba! Abba! Abba!
E agora vejo-o a uma nova luz, como uma descoberta; como se vê, passados
anos, a mão do Senhor, a Sabedoria divina, do Omnipotente. Tu fizeste, Senhor,
que eu entendesse que ter a Cruz é encontrar a felicidade, a alegria. E o
motivo — vejo-o agora com mais clareza do que nunca — é este: ter a Cruz é
identificar-se com Cristo, é ser Cristo, e, por isso, ser filho de Deus» [37].
A vida penitente de Mons. Escrivá de Balaguer foi constituída,
sobretudo por uma constante negação de si mesmo nas mil circunstâncias da vida
corrente, mas também por uma forte penitência corporal. Entre muitas outras
manifestações dessa sua união com a Cruz de Cristo, poderia deter-me, por
exemplo, nos anos em que, por causa da guerra civil espanhola, as incomodidades
e carências de todo o género eram de tal ordem, que qualquer pessoa, mesmo
muito mortificada, teria considerado suficiente suportá-las oferecendo-as a
Deus. Mons. Escrivá, pelo contrário, correspondendo às amorosas solicitações do
Senhor, viu que tudo isso não era suficiente para seguir o Seu chamamento e que
devia fazer mais. Pude comprová-lo pessoalmente, sobretudo nos meses que passei
com ele na Legação das Honduras em Madrid: todos os que ali estávamos
refugiados sofríamos de verdadeira fome, mas ele sabia prescindir, com
naturalidade, mesmo do pouco que havia, praticando um jejum muito rigoroso,
como fez em muitas outras épocas da sua vida. Por exemplo, depois da sua morte
pude ler uma anotação sua do dia 22 de Junho de 1933, dirigida ao seu
confessor, na qual manifestava os propósitos de penitência que tinha formulado
durante uns recentes dias de retiro espiritual. São estas as suas palavras
exactas: «Pede-me o Senhor sem sombra de dúvida, Padre, que aumente a
penitência. Quando lhe sou fiel neste ponto, parece que a Obra toma um novo
incremento». E pormenoriza, seguidamente, os propósitos concretos: «Disciplinas:
segundas-feiras, quartas e sextas; mais, extraordinárias, nas vésperas das
festas do Senhor ou da Santíssima Virgem; outras semanais, extraordinárias, em
petição ou em acção de graças. Cilícios: dois diários, até à hora do almoço;
até ao jantar, um, e na sexta-feira o do ombro, como até agora. Deitar: no
chão, se é de madeira, ou sem colchão na cama, nas terças, quintas e sábados.
Jejum: aos sábados, tomando apenas o que me derem para o pequeno-almoço» [38].
Não
se trata necessariamente aqui de prescrever um determinado caminho de
penitência, mas é necessário afirmar que a identificação com Cristo e, por
conseguinte, a eficácia no ministério sacerdotal, requerem uma forte
experiência da Cruz na nossa carne e no nosso espírito. E mais ainda nos nossos
dias, mais ainda para a nova evangelização de um mundo em grande parte submerso
no hedonismo. Só à luz da fé, tem sentido tudo isto: à luz da fé no mistério da
Redenção, no mistério do Filho de Deus, feito obediente até à morte e morte de
Cruz [39].
6. Santidade sacerdotal
e caridade pastoral
Seria supérfluo deter-me a considerar que o ministério exige que o
sacerdote seja também um homem de acção, dado que a sua evidência salta
aos olhos com uma clareza meridiana. Sob o ponto de vista da fé, podemos
considerar igualmente evidente que o motor da actividade pastoral do sacerdote
radica exclusivamente na caridade de Cristo: «caritas Christi urget nos» [40],
afirma S. Paulo. Um amor sobrenatural que brota como fruto da Cruz, por
ser — com palavras de S. Tomás de Aquino — «uma certa participação da
Caridade infinita, que é o Espírito Santo» [41].
Com efeito, só a caridade, que sabe mostrar-se paciente e benigna, que tudo
desculpa, tudo crê e tudo suporta [42],
pode levar, não só ao cumprimento mais ou menos rigoroso de uns determinados
deveres pastorais, como ainda a uma entrega total ao ministério que se
concretize numa incessante actividade pelo bem das almas, para além do que a
estrita justiça poderia exigir do sacerdote para com os fiéis confiados ao seu
cuidado pastoral.
Também sob este aspecto, não posso deixar de evocar a caríssima
figura do nosso Fundador. Para a sua dedicação incansável ao ministério nunca
viu obstáculos na fadiga, na doença, ou nas circunstâncias adversas. Ora esta
caridade pastoral, que conduz a uma entrega sem condições ao serviço das almas [43],
confere necessariamente especiais matizes à fraternidade sacerdotal, elemento
integrante da comunhão, entendida como a unidade afectiva e efectiva
procedente da comum participação nos mesmos bens. Uma fraternidade sacerdotal
que não confunde a unidade com a uniformidade, que respeita a legítima
liberdade de todos, inclusivamente no vasto âmbito da espiritualidade
sacerdotal.
Muito
poderia falar do amor e do serviço, verdadeiramente heróicos, do Fundador do
Opus Dei para com os seus irmãos sacerdotes. Recordo, por exemplo, que entre os
numerosíssimos retiros que, por encargo de muitos Bispos, pregou por toda a
Espanha a sacerdotes até partir para Roma, foi também dirigir em Outubro de
1944, os exercícios espirituais da comunidade de Agostinhos do Escorial. No dia
anterior adoeceu; a febre atingiu trinta e nove graus; mas não se deteve em
face desse obstáculo. Acompanhei-o eu. Apesar desse forte acesso de febre, que
no dia seguinte subiu a quarenta graus, pregou integralmente esses exercícios,
procurando — e conseguindo — que os que o escutavam não se apercebessem da sua
doença.
7. Uma vida
radicada e centrada na Eucaristia
Dirijamos
agora as nossas reflexões para outro aspecto importante, o aspecto mais radical
e central da vida do sacerdote, garantia da sua eficácia evangelizadora.
Oração, penitência, acção guiada por uma incansável caridade
pastoral... Estas são uma espécie de coordenadas da identificação do sacerdote
com Cristo, no que essa identificação tem de tarefa pessoal, em
correspondência ao dom de Deus. Mas cairia numa gravíssima omissão se
deixasse de considerar que a vida cristã e, especialmente esses aspectos da
existência sacerdotal, hão-de estar radicados, centrados e, portanto, unificados
no Sacrifício de Cristo, na Santa Missa, na Eucaristia.
A Santa Missa é com efeito, «o centro e a raiz de toda a vida do
Presbítero» [44], como
recordou o Concílio Vaticano II,
com palavras que haviam sido já muitas vezes repetidas por Mons.
Escrivá de Balaguer [45].
Não cabe dúvida de que esta centralidade do Sacrifício Eucarístico
constitui uma realidade na vida de todo o cristão, mas no sacerdote este facto
adquire matizes especiais. Como afirma João Paulo II, «Mediante a nossa ordenação
— cuja celebração está vinculada à Santa Missa desde o primeiro
testemunho litúrgico — nós estamos unidos de um modo singular e excepcional à
Eucaristia. Somos de modo particular, responsáveis de ela. Somos em certo
sentido, "por Ela" e "para Ela". Somos, de um
modo particular, responsáveis "por Ela"» [46].
Necessito de voltar novamente à eminente figura sacerdotal do
Fundador desta Universidade. Para mim é algo de irresistível e sei que, tal
como para mim, também para vós é um motivo de alegria. Durante quarenta anos,
dia após dia, fui testemunha do seu empenho em transformar cada jornada num
holocausto, num prolongamento do Sacrifício do Altar. A Santa Missa era o
centro da sua heróica dedicação ao trabalho e a raiz que vivificava a sua luta
interior, a sua vida de oração e de penitência. Graças a essa união com o
Sacrifício de Cristo, a sua actividade pastoral adquiriu um valor santificador
impressionante. Na verdade, em cada um dos seus dias tudo era operatio Dei,
Opus Dei, num autêntico caminho de oração, de intimidade com Deus, de
identificação com Cristo na sua entrega total para a salvação do mundo.
Externamente
nunca houve nada de extraordinário ou de singular na Missa de Mons. Escrivá de
Balaguer, embora fosse impossível não apreciar a sua profunda devoção. Desde o
princípio do seu ministério sacerdotal, esforçou-se por não dar cabimento à
rotina nem à precipitação ao celebrar o Santo Sacrifício, mau grado a sua
habitual escassez de tempo para realizar múltiplas actividades pastorais. Pelo
contrário, tendia espontaneamente a dizer a Missa com muito sossego, penetrando
em cada texto e no sentido de cada gesto litúrgico, a ponto de, durante muitos
anos, ter de esforçar-se positivamente — de acordo com o que lhe confirmavam na
direcção espiritual — por andar mais depressa, a fim de não chamar a atenção e
por se saber ao serviço dos fiéis que contavam para a Missa com um tempo bem
menor. Neste contexto se entende o que escreveu em 1932, como um suspiro que se
lhe escapou da alma: «Ao dizer a Santa Missa, deveriam parar todos os relógios»
[47].
Essa
intensidade com que se unia pessoalmente ao Sacrifício do Senhor na Eucaristia,
culminou no que não tenho dúvidas em considerar como um peculiar dom místico, e
que o próprio Padre relatou com grande simplicidade no dia 24 de Outubro de
1966: «Aos sessenta e cinco anos, fiz uma descoberta maravilhosa. Gosto muito
de celebrar a Santa Missa, mas ontem custou-me tremendamente. Que esforço! Vi
que a Missa é verdadeiramente Opus Dei, trabalho, como foi um trabalho para
Jesus Cristo a sua primeira Missa: a Cruz. Vi que o ofício do sacerdote, a
celebração da Santa Missa, é um trabalho para confeccionar a Eucaristia; que
nela se experimenta dor, e alegria, e cansaço. Senti na minha carne o
esgotamento de um trabalho divino». Não duvido de que esta descoberta correspondia
a um pedido que constantemente dirigia aos que estávamos à sua volta: «Pedi ao
Senhor que saiba ser mais piedoso na Santa Missa, que tenha cada dia mais fome
de renovar o Santo Sacrifício».
8. A dimensão
mariana da vida do sacerdote
Ao pé da Cruz de Cristo, no Calvário, estava Maria, sua Mãe, «e
junto dela o discípulo que amava» [48].
A tradição da Igreja viu sempre representados na figura do Apóstolo
S. João todos os cristãos, todos os homens e mulheres que receberam no
sacramento do Baptismo, com carácter indelével, uma participação no sacerdócio
de Cristo. As palavras do Senhor agonizante na Cruz descobrem-nos uma dimensão
essencial da vida cristã: «Aí tens a tua Mãe» [49].
É, numa expressão de João Paulo II, «a dimensão mariana da vida dos discípulos de
Cristo; não só de João, que naquele instante se
encontrava aos pés da Cruz na companhia da Mãe do seu Mestre, mas de todo o
discípulo de Cristo, de todo o cristão» [50].
A identificação com Cristo tem esta dimensão fundamental. Ser alter
Christus, ipse Christus traz consigo necessariamente sermos filhos de Santa
Maria. E, tal como essa identificação com o Senhor é, simultaneamente, dom e
tarefa, também a filiação em relação à Santíssima Virgem é um dom: «um
dom que o próprio Cristo faz pessoalmente a cada homem» [51];
e é também uma tarefa que o evangelista condensa em poucas palavras: «e
a partir daquela hora, o Discípulo a acolheu na sua casa» [52].
«Entregando-se filialmente a Maria — comenta o Romano Pontífice —, o cristão,
como o Apóstolo João, "acolhe entre as suas próprias coisas" a Mãe de
Cristo e introdu-la em todo o espaço da sua vida interior» [53].
Se isto é assim para todo o cristão, é-o por um novo título para o
sacerdote, que foi chamado a participar de um modo novo no sacerdócio de Cristo
e a viver centrado de um modo particular no sacrifício da Cruz. Como discípulo
do Senhor deve entregar-se filialmente a Maria, tratá-la como Mãe e aprender
d’Ela o que significa ter «alma sacerdotal»: o anseio de corredimir com
Cristo, a sede de salvar almas, o espírito de reparação; em suma, o desejo de
adquirir os mesmos sentimentos de Cristo Jesus [54].
Como ministro do Senhor, não pode esquecer, quando renova o Sacrifício do
Calvário e dispensa os tesouros da graça de Cristo, que, ao pé da Cruz, Nossa Senhora «se entregou
totalmente ao Mistério da Redenção dos homens» [55],
e que o Corpo e o Sangue de Cristo, que se tornam presentes sobre o altar, são
os mesmos que Ele recebeu da sua Santíssima Mãe.
O último Concílio exortou os presbíteros a que «venerem e amem com
filial devoção a esta Mãe do Sumo e Eterno Sacerdote, Rainha dos Apóstolos e
Auxílio do seu ministério» [56].
De que maneira experimentou o Fundador do Opus Dei esta realidade maravilhosa
do auxílio materno da Santíssima Virgem, no seu ministério sacerdotal! Assim o
recordava, na festa de S. José de 1975, poucos meses antes de falecer,
volvendo o olhar para o seu trabalho pastoral por volta dos anos trinta:
«Quantas horas a caminhar por aquele meu Madrid, todas as semanas de um lugar
para o outro, envolto na minha capa! (...). Aqueles rosários completos, rezados
pela rua, como podia, mas sem os abandonar, diariamente (...). Nunca pensei que
levar a Obra por diante traria consigo tanta pena, tanta dor física e moral:
sobretudo moral (...). Iter para tutum! Minha Mãe! Não te tinha mais do
que a Ti! Mãe, obrigado! (...) Mãe, Cor Mariae Dulcíssimum! Oh, quanto
recorri a Ti!
E outras vezes, falando e pregando, reparando em que não valia
nada, que nada era, mas com uma certeza... Mãe! Minha Mãe! Não me abandones!,
Mãe! minha Mãe!».
Eram estas exclamações profundamente sinceras, de filho, que
brotavam da sua alma sacerdotal, precisamente na última festa de S. José
que celebrou nesta terra, porque no seu coração — e também no seu nome — Maria
e José se encontravam indissoluvelmente unidos, e eram o caminho para tratar
intimamente com Jesus, e por Ele, com Ele e n’Ele, o Pai e o Espírito Santo.
Alcançar
uma profunda devoção e um terno amor à Santíssima Virgem tem de ser um dos
objectivos primários da formação sacerdotal. Existem profundas razões
teológicas para afirmar que não pode ser considerado como um acréscimo piedoso
ao conjunto da formação, mas algo que se enraíza no «dom» recebido pelo
sacerdote na ordenação, e que está destinado a crescer e a desenvolver-se na
vida do sacerdote. O Senhor quis associar a Sua Mãe de modo especialíssimo à
obra da Redenção. De igual modo o sacerdote, que recebe o poder de actuar in
persona Christi necessita do auxílio maternal de Nossa Senhora no seu
ministério. Sem Maria não se pode alcançar uma existência verdadeiramente
sacerdotal.
9. Conclusão:
formação para a santidade
As
actuais circunstâncias da sociedade, e o novo empenho evangelizador em que
todos estamos comprometidos, exigem encarar a fundo uma pessoal melhora
qualitativa do nosso sacerdócio, e por conseguinte, da formação sacerdotal. Na
Carta aos sacerdotes por ocasião da Quinta-Feira Santa, João Paulo II escreveu: «Hoje
próximos já do terceiro milénio da vinda de Cristo, talvez experimentemos de
uma maneira mais profunda a magnitude e as dificuldades da messe: "A messe
é muita", mas vemos também a escassez de obreiros: "Os
obreiros são poucos" (Mt 9, 37). "Poucos"; e isto diz
respeito não só à quantidade, mas também à qualidade. Daí, portanto, a
necessidade da formação» [57].
Impõe-se conseguir que os sacerdotes adquiram nos seus anos de
preparação e na sucessiva formação permanente, uma clara consciência da
identidade que existe entre a realização da sua vocação pessoal — ser sacerdote
na Igreja — e o exercício do ministério in persona Christi Capitis. O
seu serviço à Igreja consiste, essencialmente (outros modos de serviço do
sacerdote podem ser legítimos, mas secundários) em personificar activa e
humildemente, entre os seus irmãos, Cristo Sacerdote, que dá vida e purifica a
Igreja, Cristo Bom Pastor que a conduz em unidade para o Pai, e Cristo Mestre,
que a conforta e estimula com a sua Palavra, e com o exemplo da sua Vida.
Esta formação do sacerdote é algo que dura toda a vida, porque,
nos seus diversos aspectos, tende — deve tender — a formar Cristo nele [58],
realizando essa identificação como tarefa, em resposta ao que essa
identificação tem já como dom sacramental recebido. Uma tarefa que postula
antes ainda de uma incessante actividade pastoral, e como condição de eficácia
desta, uma intensa vida de oração e de penitência, uma sincera direcção
espiritual, um recurso ao sacramento da Penitência vivido com periodicidade e
extremada delicadeza, e toda essa existência enraizada, centrada e unificada no
Sacrifício Eucarístico.
Uma nova evangelização, sim, mas com a consciência clara de que —
com palavras de Mons. Escrivá de Balaguer — «na vida espiritual não há
nada que inventar; só é necessário lutar por se identificar com Cristo, sermos
outros Cristos — ipse Christus —, e apaixonar-se e viver de Cristo, que
é o mesmo ontem que hoje, e será o mesmo sempre: Iesus Christus heri et
hodie, ipse et in saecula (Heb 13, 8)» [59].
De Cristo Sumo e Eterno Sacerdote canta a Igreja: Ave Verum
corpus natum de Maria Virgine. E eu peço ao Senhor que na formação
sacerdotal esteja sempre presente o caminho mariano pelo qual o Filho de Deus
veio aos homens.
(*)
Este texto é retirado da conferência pronunciada por Mons. Álvaro del Portillo
na Universidade de Navarra, no decurso do Simpósio de Teologia de 1990 sobre o
tema “A formação dos sacerdotes nas circunstâncias actuais”. O texto integral
da conferência foi
publicado em italiano no livro Consagração e Missão do sacerdote (Ares, Milano
1990, 2a edição ampliada, pp. 101-126)
Na versão aqui apresentada foram suprimidos apenas alguns
breves parágrafos iniciais e algum outro trecho, nos quais Mons. del Portillo
ilustrava a consonância entre o tema escolhido e a recente declaração das
virtudes heróicas de Mons. Josemaría Escrivá, fundador do Opus Dei, através de
um decreto publicado poucos dias antes, a 9 de Abril de 1990. Estas pequenas
modificações foram introduzidas para ressaltar melhor a actualidade do texto,
que permanece sempre consultável na sua versão original.
Mons. Álvaro del Portillo, Bispo, Prelado do Opus Dei, viveu
durante quase quarenta anos junto de S. Josemaría e foi o seu colaborador mais
próximo. Tendo falecido em 23 de Março de 1994, está em curso a sua Causa de
Beatificação e Canonização.
[1] Cfr.,
p. ex., JOÃO PAULO II, Discursos: no
Acto europeísta de Santiago de Compostela, 9-XI-1982 (“Insegnamenti” V, 3
(1982) 1257-1263); ao Conselho das Conferências Episcopais Europeias, 2-I-1986
(“Insegnamenti” IX, 1 (1986) 12-17); na catedral de Ausburgo, 3-V-1987
(“Insegnamenti” X, 2 (1987) 1565-1574); em Speyer, 4-V-1987 (“Insegnamenti”, X,
2 (1987) pp. 1593-1602); à Assembleia do Conselho Pontifício para a Cultura
12-I-1990 (“L’Osservatore Romano, 13-I-1990); aos Membros do Corpo Diplomático,
13-I-1990 (L’Osservatore Romano” 14-I-1990).
[2] Cfr. CONC.
VATICANO II, Decr. Presbyterorum Ordinis n. 1; Decr. Optatam Totius, proémio.
[3] Cfr. JOÃO PAULO II, Ex.
Ap. Christifideles laici, n. 34.
[4] Recorde-se, p. ex., as descrições que se fazem
nas Encíclicas Redemptor hominis, nn. 48-53; Dives in misericordia, nn.
63-77; Dominum et vivificantem, nn. 56-57.
[5] Sobre a “crise da consciência e do sentido de
Deus”, que inevitavelmente vão unidas ao obscurecimento do sentido do pecado,
tal como o reflectem determinados elementos da cultura actual, cfr. JOÃO PAULO II, Ex. Ap. Reconciliatio et Poenitentiae, n.
18.
[6] JOÃO PAULO II Ex. Ap. Christifideles laici, n.
35.
[7] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Caminho,
n. 584.
[8] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Temas Actuais do
Cristianismo, Ed. Prumo, n. 113.
[9] JOÃO PAULO II, Enc.
Redemptor Hominis, n. 74.
[10] SANTO AGOSTINHO, Confissões, lib. 1, c.
1, n. 1: PL 32, 661. Cfr. CONC. VATICANO II, Const.
past. Gaudium et Spes, n. 41.
[11] Recorde-se, entre outros textos, a passagem da
Encíclica Dives in misericordia, onde se fazem umas reflexões profundas
sobre o amor paterno de Deus revelado em Cristo.
[12] Cfr. Fl 3, 18.
[13] Cfr. 2 Cor 4, 6.
[14] Cfr., p. ex., A. DEL PORTILLO, O sacerdote do
Vaticano II, Col.
Éfeso (1972); Fiéis e Leigos na Igreja, Aster (1971).
[15] JOÃO PAULO II, Ex.
Ap. Christifideles laici, n. 34. Sobre o sacerdócio comum dos fiéis,
cfr., p. ex., 1 Pe 2, 9; Ap 1, 6; 5, 9-10; 20, 6; Constitutiones
apostolicae III, 16,
3: SC 329, p. 157; S. AMBRÓSIO, De Mysteriis 6, 29-30: SC25 bis, p.
173; S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae III, q. 63, a.3; CONC. VATICANO II, Const.
dogm. Lumen Gentium, nn. 10-11; Decr. Presbyterorum Ordinis, n.
2.
[16] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Cristo que Passa, n.
96.
[17] JOÃO PAULO II, Discurso, 30-V-1980:
“Insegnamenti” III, 1
(1980) p. 1532. Cfr. Carta aos sacerdotes na Quinta-Feira Santa de 1990,
12-IV-1990, n. 3.
[18] JOÃO PAULO II, Enc.
Redemptor Hominis, n. 20.
[19] Cfr. J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Homilia Sacerdote
para a Eternidade, 13-IV-1973, em Amar a Igreja, Ed. Prumo / Rei dos
Livros.
[20] 1 Cor 4, 1.
[21] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Carta, 24-III-1930,
n. 2.
[22] Cfr., p. ex., S. TOMÁS DE AQUINO, Summa
Theologiae, III, q. 22,
a. l; CONC. DE TRENTO, Decr. De sacrifício Missae: Denz. 1739-1740;
CONC. VATICANO II, Const.
Sacrossantum Concilium, nn. 5-8.
[23] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Cristo que Passa,
n. 104.
[24] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Homilia Sacerdote
para a Eternidade, Op. cit, p. 72.
[25] Fl 1,
21.
[26] Gl 2,
20.
[27] CONC. VATICANO II, Decr.
Presbyterorum Ordinis, n. 12. Entre os inúmeros testemunhos patrísticos
sobre a exigência da santidade pessoal que o sacerdócio exige, cfr., p. ex.,
S. GREGÓRIO NAZIANZENO, Oratio 2, n. 91: PG 35, 493; S. JOÃO
CRISÓSTOMO, De sacerdotio, lib. 6, n. 5: PG 48, 682; S. PEDRO
CRISÓLOGO, Sermo 108: PL 52, 500-501; S. ISIDRO PELUSIOTA, Epístola
284: PG 78, 713; S. GREGÓRIO MAGNO, Dialogi, lib. 4, c. 59: PL
77, 428.
[28] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Apontamentos íntimos,
n. 1699.
[29] S. PIO X, Ex.
Haerent animo, 4-VIII-1908:
AASS 41 (1908) p. 564.
[30] JOÃO PAULO II, Carta
Novo Incipiente, 8-IV-1979, n. 10.
[31] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Apontamentos íntimos,
n. 1130.
[32] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Apontamentos íntimos,
n. 273.
[33] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Meditação, 27-III-1975.
[34] Cfr. Lc 9, 23; 14, 27; Mt 10, 38; Mc
8, 34; Gl 2, 9; etc.
[35] PIO XII, Ex.
Ap. Menti nostrae, 23-IX-1950: AAS 42 (1950) pp. 667-668.
[36] Cl 1,
24.
[37] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Meditação, 28-IV-1963.
[38] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Apontamentos íntimos,
n. 1724.
[39] Cfr. Fl 2, 8.
[40] 2 Cor 5, 14.
[41] S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, II-II,
q. 24, a. 7 c.
[42] Cfr. 1 Cor 13, 4-7.
[43] Cfr. 2 Cor 12, 15.
[44] CONC. VATICANO II, Decr.
Presbyterorum Ordinis, n. 14.
[45] Cfr., p. ex., J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Carta, 2-II-1945,
n. 11; Cristo que Passa, n. 87; Forja, n. 69.
[46] JOÃO PAULO II, Carta Dominicae cenae, 24-II-1980,
n. 2.
[47] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Apontamentos íntimos,
n. 728; cfr. Forja, op. cit, n. 436.
[48] Jo
19, 26.
[49] Jo
19, 27.
[50] JOÃO PAULO II, Enc.
Redemptoris Mater, 25-III-1987, n. 45.
[51] JOÃO PAULO II, Enc.
Redemptoris Mater, 25-III-1987, n. 45.
[52] Jo 19,
27.
[53] JOÃO PAULO II, Enc.
Redemptoris Mater, op. cit., n. 45.
[54] Cfr. Fl 2, 5.
[55] CONC. VATICANO II, Decr.
Presbyterorum Ordinis, n. 18.
[56] CONC. VATICANO II, Decr.
Presbyterorum Ordinis, n.18.
[57] JOÃO
PAULO II, Carta aos
sacerdotes por ocasião da Quinta-Feira Santa de 1990, n. 4.
[58] Cfr. Gl 4, 19.
[59] J. ESCRIVÁ DE BALAGUER, Carta, 9-I-1959,
n. 6.