ANTROPOLOGIA SOBRENATURAL

I. Uma grande missão renovadora para os novos sacerdotes

«Então a lua vai brilhar como o sol, e o brilho do sol será sete vezes maior, brilho de sete dias, quando o Senhor enfaixar as quebraduras do seu povo, no dia em que curar as suas feridas» (Is 30,26)

            1.1 Na virada do milênio, o Papa João Paulo II, na Carta Apostólica Novo millennio ineunte, rasgava um horizonte empolgante para a Igreja: «Sigamos em frente, com esperança! Diante da Igreja abre-se um novo milênio como um vasto oceano onde se aventurar com a ajuda de Cristo. O Filho de Deus, que se encarnou há dois  mil anos por amor do homem, continua também hoje em ação: devemos possuir um olhar perspicaz para a contemplar [essa ação de Cristo], e sobretudo um coração grande para nos tornarmos instrumentos dela» (n. 58).

            1.2 Corresponde sobretudo a nós, sacerdotes, participantes e herdeiros do múnus apostólico, a missão de ser, como diz São Paulo, «cooperadores de Deus» (1 Cor 3,9), bons cooperadores dos desígnios de Cristo para esse momento crucial da vida da Igreja e do mundo.

            1.3 A nossa fidelidade à vocação penso especialmente em vocês, seminaristas exige, hoje, que tenhamos aquele «olhar perspicaz» de que fala João Paulo II, a fim de que saibamos perceber com clareza a contribuição específica que Deus nos pede na hora presente. Há uma missão perene do sacerdote, mas, em determinadas épocas, Deus lhe pede especialmente sentir-se responsável por missões específicas.

            1.4 Na realidade, não precisamos de ter uma perspicácia muito grande para nos darmos conta de que a Providência está inspirando e guiando hoje uma virada muito positiva e profunda na Igreja. Nós só colaboraremos como Deus espera com essa santa virada, se houver da nossa parte um compromisso de autenticidade muito sério, uma lealdade heróica custe o que custar para com Cristo e com a Igreja (única maneira de sermos leais ao nosso sacerdócio).

            1.5 Basta ter olhos na cara (e na alma) para ver que aquele “pós-Concílio da descontinuidade e da ruptura”, de que falou Bento XVI em sua mensagem de Natal à Cúria, em 2005, está ficando para trás (ainda que isso se esteja dando lentamente, especialmente entre o clero e os religiosos, e se processe só parcialmente). Mas está alvorecendo de modo visível uma fase renovadora, uma nova época, caracterizada pela “continuidade na renovação” – ou, se preferirmos, pela reforma na continuidade –, de que falava então Bento XVI.

            1.6 Os pregoeiros da ruptura com a Igreja pré-conciliar, com o bom desejo, com a boa intenção inicial de aproximar a Igreja do mundo a ser evangelizado, foram deslocando a fé, a moral e a vida pastoral da Igreja do seu eixo verdadeiro Deus, Cristo, e o fim sobrenatural do homem redimido  , e acabaram por colocar tudo no falso eixo dos valores puramente humanos, dos parâmetros mundanos, das ideologias mundanas, das chamadas ciências humanas, com a ilusão de levar assim a Igreja ao diálogo evangelizador com o mundo. Na realidade, o que aconteceu o que ainda continua a acontecer em muitos ambientes eclesiais é que foi o mundo (no que tem de mais anti-cristão ou de não-cristão) o que foi penetrando no interior da Igreja.

            1.7 Com muito boas vontades (é preciso desculpar) tem-se afogado a fé, a moral, os Sacramentos, a pastoral e a vida a Igreja no pântano do mundo, onde a fé se desvanece, as riquezas sobrenaturais cristãs são dissolvidas, a moral cede e se  ajoelha complexada diante do mundanismo, e tudo perde a autenticidade, acabando por se trair Cristo com o beijo de um falso aggiornamento.

            1.8. Esse erro, com a perspectiva dos anos, está ficando cada vez mais patente, inclusive pelos frutos negativos inegáveis que produziu. A nossa missão consiste no resgate do eixo verdadeiro, no aprofundamento nesse eixo que, afinal, é Cristo, Deus e Homem verdadeiro, em lealdade plena à autêntica e única Igreja do Verbo Encarnado. Essa é a nossa grande responsabilidade. 

 

II. O resgate do eixo verdadeiro. A antropologia cristã

            2.1 Antes de abordar o tema da antropologia cristã” (centro desta palestra), vale a pena citar um trecho muito lúcido da Exortação Apostólica Pastores dabo vobis, de João Paulo II, sobre a formação dos sacerdotes: «Para aquele que tem fé, a interpretação da situação histórica encontra o seu princípio cognoscitivo e o critério das opções operativas consequentes, numa realidade nova e original, ou seja, no discernimento evangélico; é a interpretação que se verifica à luz e com a força do Evangelho, do Evangelho vivo e pessoal de Jesus Cristo, e com o dom do Espírito Santo» (n. 10). Esse texto expõe com clareza meridiana qual deve ser a luz orientadora da teologia e da ação pastoral. Fora desse foco, tudo se esfuma, falseia e deturpa.

            2.2 Partindo, pois, desse princípio irrenunciável, comecemos por constatar que o mergulho no mundo de que acabamos de falar , fez com que muitos, na Igreja, se limitassem (infelizmente) a estudar o ser humano, a sua realidade psico-física, a sua vida em sociedade, a sua vida familiar, a sua vocação, os seus problemas, etc, quase que exclusivamente com a ótica das ciências humanas (psicologia, psiquiatria, sociologia, historicismo, antropologia natural, etc.).

            2.3  A “antropologia sobrenatural cristã[1], pelo contrário,  evidencia que o homem e a mulher cristãos não podem ser compreendidos nem formados apenas (nem principalmente) por meio das ciências humanas, uma vez que é, “ontologicamente (não só moralmente), uma «criatura nova» (2 Cor 5,17), um «homem novo» (Ef 4,24), em quem foi restaurada, pelo batismo, a “semelhança  com Deus (Catecismo da Igreja Católica [CCE], n. 734, 1701, etc.), pois foi feito, pela graça do Espírito Santo, «participante da natureza divina» (2 Ped 1,4 e CCE, n. 460).

            2.4 É muito esclarecedor o processo que se observa – não de modo linear, mas quase que “em espiral ascendente” (como diria Romano Guardini [2]) –, no Evangelho de São João, para ilustrar a “vida nova” do “homem novo”:

                        a) Já no prólogo do seu Evangelho, São João afirma que, aos que crêem em Cristo, Ele «deu-lhes o poder de se tornarem» [portanto, trata-se de uma transformação] filhos de Deus, os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus» (Jo 1, 12-13). É mesmo uma “nova criação”;

                        b) No cap. 3, na conversa com Nicodemos, Jesus declara: «Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus» (Jo 3,5). É uma referência evidente à necessidade do novo nascimento para a vida nova, que se opera pelo Batismo;

                        c) No cap. 3, ao conversar com a Samaritana, Cristo dá mais um passo e ilustra essa “vida nova” com a imagem da água que não pára de jorrar e subir: «O que beber da água que eu lhe der, virá a ser nele fonte de água, que jorrará até a vida eterna» (Jo 4,14). É uma referência ao dinamismo da nova vida sobrenatural do cristão, chamada a crescer sem cessar, até desabrochar na santidade e, plenamente, na vida eterna (cf. 1 Jo 3,2);

                        d) Finalmente, na festa dos Tabernáculos, o Evangelho de João explicita claramente que essa «água» é a graça do Espírito Santo. Jesus, de pé, clamou: «Quem crê em mim, como diz a Escritura, “do seu interior manarão rios de água viva”. Dizia isso referindo-se ao Espírito Santo que haviam de receber os que cressem nele»  (Jo 7,38-39). Cf. também, por exemplo, Rm 5,5, Rm 6,4, etc, etc.

                        Essa nova vida brota, por assim dizer, da chaga do peito de Cristo crucificado (Jo 19,34), uma vez consumado o Sacrifício redentor, que tem como “fruto” o envio do Espírito Santo («emisit Spiritum»: Mt 27,50), do «santificador» (Rm 1,4), daquele que – conforme gosta de frisar a tradição teológica oriental – nos “deifica”, nos “diviniza”, nos “cristifica” (cf. Rm 8,29; Gál 2,20). [3]

            B) Com base nessas verdades «ontológicas» da antropologia cristã, só compreensível à luz da Revelação e da fé, a “teologia espiritual” explica que o Espírito Santo, ao criar em nós uma “vida nova”, implanta na nossa alma um “novo organismo”, o que a teologia ascética e mística clássica (p.e. Garrigou-Lagrange, Royo Marin), e também o Catecismo da Igreja Católica (n. 1266), chamam “o organismo da vida sobrenatural do cristão”: concretamente, a “graça santificante” é infundida na essência da alma, e as “virtudes  e “dons do Espírito Santo, são  infundidos nas potências da alma (inteligência, vontade...).

             O Catecismo da Igreja Católica explica assim esse “organismo”:

                        «A Santíssima Trindade dá ao batizado a graça santificante, a graça da justificação, a qual

            torna-o capaz de crer em Deus, de esperar nele e de amá-lo por meio das virtudes teologais;

            concede-lhe o poder de viver e agir sob a moção do Espírito Santo, por seus dons;

            permite-lhe crescer no bem pelas virtudes morais.

            Assim, todo o organismo da vida sobrenatural do cristão tem a sua raiz no santo Batismo» (n. 1266).

            2.5 Isso evidencia que todo o trabalho pastoral da Igreja, portanto, dos sacerdotes, deve ir orientado, fundamentalmente, a proporcionar, a alimentar e a aumentar a vida da graça, a cultivar as virtudes (teologais e morais ou humanas), e a buscar uma purificação e união com Deus cada vez maiores, de modo que o filho de Deus se torne capaz de secundar com delicadeza as moções do Espírito Santo, que não cessa de impelir para uma vida santa por meio dos seus dons.

            2.6 Ao mesmo tempo, a teologia espiritual ensina que as fontes da graça comunicada pelo Espírito Santo resumem-se fundamentalmente em três:

            1) Os sacramentos;

            2) A oração (pela sua eficácia impetratória e transformadora);

            3) O mérito sobrenatural das boas obras, ou seja, o amor sobrenatural com que se praticam os atos das virtudes e dos deveres (Cf. CCE nn. 2010 e 2011). Esses atos das virtudes e dos deveres abrangem, permeiam, todos e cada um dos aspectos da vida, desde os mais importantes até os mínimos.

            2.7  Em síntese, a vida cristã ("a vida no Espírito" do homem novo), chamada a amadurecer sobrenaturalmente até à santidade, consiste na ação do Espírito Santo na alma (na alma que é dócil e não lhe opõe entraves nem resistências), ação que nos vai identificando com Cristo, "cristificando", para usar uma expressão da patrística , que nos faz viver a vida e o amor dos filhos de Deus Pai:  «Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho que clama: "Abá, Pai!"» (Gál 4, 6);  «todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus» (Rom 8, 14).

            2.8 Como bem sabemos, o amor, a caridade sobrenatural, que o «Espírito Santoderrama nos nossos corações» juntamente com a graça (cf. Rom 5, 5) é, para todos os cristãos, «o vínculo da perfeição» (Col 3, 14), de tal modo que «se não tiver caridade não sou nada..., nada me aproveita» (cf. 1 Cor 13, 2-3).  E isso não vem «do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus» (Jo 1,13), isso não vem daquelas realidades que as ciências humanas podem explicar.

            2.9 Havendo fé, portanto (e, se não tivéssemos fé, o que estaríamos fazendo aqui?), a perspectiva pastoral do sacerdote deve ser profundamente sobrenatural. As ciências humanas podem ser apenas auxiliares secundárias, subsidiárias, desde que fiquem restritas aos seus limites e submetidas pela fé, que nos firma  na Verdade à Revelação e à sua interpretação autêntica dada pelo Magistério da Igreja.

            2.9 Isso, por exemplo,  vê-se de maneira claríssima, no tema da virtude da castidade e do celibato. O reducionismo plano, o humanismo terra-a-terra, que leva a considerar a sexualidade e a falar dela apenas com as ferramentas da antropologia natural, da psicologia, da psiquiatria, da fisiologia materialista  (eliminando totalmente o sobrenatural, a vida nova,  a nova criação), torna impossível compreender, explicar, aconselhar e ajudar a viver essa virtude cristã.  Sem a fé no Espírito Santo, sem a convicção de que a castidade (e o celibato, a virgindade, a castidade de solteiros e casados) é um «dom» que só Deus pode dar (cf. Mt 19,10-11 e 1 Cor 7,7), sem a firme certeza de que há coisas que para os homens são impossíveis, mas «para Deus tudo é possível» (Mt 19,26), qualquer orientação pastoral (nas homilias, na catequese, no confessionário) estará inevitavelmente falsificada.

III. Duas considerações finais

            3.1 Falávamos da responsabilidade dos sacerdotes ( e dos futuros sacerdotes) perante a santa virada que Cristo pede agora à sua Igreja, especialmente através dos ministros sagrados. Creio que vêm a calhar, no final desta palestra, duas considerações, límpidas como um diamante, feitas por João Paulo II ao traçar o programa para o novo milênio (Ex. Ap. «Novo millennio ineunte»):

            3.2  Primeira: «Não se trata de inventar um programa novo. O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar e imitar, para nele viver a vida trinitária e com ele transformar a história até a sua plenitude na Jerusalém celeste [...]. Esse programa de sempre é o nosso programa para o terceiro milênio» (n. 29).

            3.3 Segunda: «Em primeiro lugar, não hesito em dizer que o horizonte para o qual deve tender todo o caminho pastoral é a santidade [...]. Apontar para a santidade permanece, da forma mais evidente, uma urgência pastoral [...]. É hora de propor de novo a todos, com convicção, essa medida alta da vida cristã ordinária: toda a vida da comunidade eclesial e das famílias cristãs deve apontar nessa direção» (nn. 30 e 31).

Pe. Francisco Faus

 



[1] Ver, a esse respeito, o início da nossa palestra sobre direção espiritual, dada no Instituto Internacional de Ciência Sociais (IICS), dentro do Curso de Atualização Teológica para Sacerdotes, realizado em julho de 2009 (texto “O Diretor espiritual...”, neste site www.padrefaus.org).

[2]Le message de Saint Jean”, Éditions du Cerf, Paris 1965, pp. 77 ss.

[3] «O Espírito Santo – explica São Josemaria Escrivá – é o Espírito enviado por Cristo para realizar em nós a santificação que Ele [Cristo] nos mereceu na terra» (É Cristo que passa, n. 130). E São Cirilo de Alexandria diz: «O Espírito Santo não é um artista que desenhe em nós a divina substância como se fosse alheio a ela; não é assim que nos conduz à semelhança divina. Sendo Deus e procedendo de Deus, Ele mesmo se imprime nos corações que o recebem, como o selo sobre a cera e, dessa forma, pela comunicação de si mesmo e pela semelhança, restabelece a natureza consoante a beleza do modelo divino e restitui ao homem a imagem de Deus» (Tesouro da santa e consubstancial Trindade, 34).