DOM FERNANDO
GUIMARÃES
por mercê de Deus e
da Santa Sé Apostólica
Bispo Diocesano de
Garanhuns
Carta Pastoral aos
Padres e Seminaristas
na Quinta-Feira
Santa de 2010
O SANTO CURA D’ARS,
ÍCONE DA VIDA SACERDOTAL
Prezados Filhos e
Irmãos caríssimos no Sacerdócio de Cristo,
Celebramos hoje a instituição do Santíssimo
Sacramento da Eucaristia e comemoramos também o nosso Sacerdócio ministerial,
tão intimamente ligado ao Augusto Sacramento. Nesta ocasião tão solene, desejo
partilhar com o meu Presbitério uma reflexão sobre a figura ímpar de São João
Maria Vianney, o Santo Cura d’Ars, no contexto do 150º aniversário do seu “dies natalis” e do Ano Sacerdotal que,
para comemorá-lo, foi instituído por nosso Santo Padre o Papa Bento XVI.
Ao convocar este Ano Sacerdotal, o Santo
Padre pretendia “fomentar o empenho de
renovação interior de todos os sacerdotes para um seu testemunho evangélico
mais vigoroso e incisivo”, pedindo à Virgem Maria, Mãe dos sacerdotes, que
suscitasse “no ânimo de cada presbítero
um generoso relançamento daqueles ideais de total doação a Cristo e à Igreja
que inspiraram o pensamento e a ação do Santo Cura d'Ars”. Concluía o nosso
Santo Padre, referindo-se ao Santo: “Com
a sua fervorosa vida de oração e o seu amor apaixonado a Jesus crucificado,
João Maria Vianney alimentou a sua quotidiana doação sem reservas a Deus e à
Igreja. Possa o seu exemplo suscitar nos sacerdotes aquele testemunho de
unidade com o Bispo, entre eles próprios e com os leigos que é tão necessário
hoje, como o foi sempre”. [1]
Seguindo a proposta do Santo Padre, desejo
apresentar-lhes o Cura d’Ars como um ícone eloquente da vida e da santidade do
padre diocesano. Para isto, como em um daqueles ícones orientais compostos de
diversos quadros, esboçarei alguns traços característicos daquele que é o
Patrono dos padres. Em seguida, desenvolverei algumas linhas principais que, a
propósito da santidade do clero, transparecem do documento Presbyterorum ordinis, do Concílio Ecumênico Vaticano II, ainda
hoje um marco obrigatório nesta matéria. Finalmente, a guisa de conclusão, em
uma terceira parte referir-me-ei a alguns desafios que enfrenta a santidade do
clero diocesano na realidade atual. Pretendo reafirmar alguns elementos que
considero importantes para a superação da crise que, muitas vezes, ronda
aqueles que, por vocação, são chamados a encarnar sacramentalmente, no meio dos
fiéis, a imagem do Cristo, Bom Pastor.
PARTE I
O SANTO CURA D’ARS:
UM ÍCONE SACERDOTAL
João Maria Vianney,
conhecido no mundo inteiro como o Santo Cura d'Ars, nasceu em Dardilly,
perto de Lião (França), no dia 8 de maio de 1786, em uma família de camponeses
muito religiosa e generosa para com os pobres. Consegue realizar a sua vocação
sacerdotal graças ao Padre Balley, pároco de Écully, que apoia com uma
constância iluminada a vocação do jovem, durante as numerosas provas e
dificuldades que teve que enfrentar para se tornar sacerdote. Ordenado padre
aos 29 anos, o Bispo envia-o à longínqua paróquia de Ars, na região de Dombes,
apelidada então "a Sibéria da diocese de Lião" pelo seu clima úmido e
insalubre e pela situação de abandono em que se encontrava. João Maria Vianney
chega a Ars no dia 13 de fevereiro de 1818 e ali, durante 41 anos, exerce seu
ministério sacerdotal, consumando-se no amor e no dom de si em prol da
comunidade que lhe fora confiada, testemunhando com a sua vida o seguimento
mais radical de Cristo Bom Pastor, Sacerdote e Vítima pela salvação das almas. Ele
não apenas consegue fazer reflorescer a vida cristã na sua paróquia, através da
pregação eficaz, da catequese constante e da adoração prolongada diante do
Sacrário, mas transforma Ars em um modelo de vida cristã para as paróquias
vizinhas. Ars e seu Cura logo se tornam meta de uma incessante peregrinação e o
confessionário do Santo é assediado por todo tipo de pessoas, provenientes de
todas as regiões da França e até de outros países. Morre, consumado pelo amor
apostólico e pelas penitências, no dia 4 de agosto de 1859. Beatificado pelo
Papa São Pio X no dia 8 de janeiro de 1905, foi canonizado pelo Papa Pio XI em
31 de maio de 1925. Pelo mesmo Sumo Pontífice, João Maria Vianney foi proclamado
"Patrono de todos os Párocos" em 29 de abril de 1929 e, no 150º
aniversário de sua morte (1859-2009), o Papa Bento XVI proclamou-o também
"Patrono de todos os sacerdotes do mundo".
Em atitude de admiração contemplativa,
procuremos traçar agora os elementos que compõem o nosso ícone.
Ao
centro, coloco em destaque o episódio da chegada de São João Maria Vianney ao
vilarejo de Ars, no dia 13 de fevereiro de 1818, imortalizado no pequeno e
sugestivo monumento hoje situado à entrada da cidade.[2] O fato é
conhecido: após uma difícil viagem a pé por estradas desconhecidas e nas quais perdeu-se
várias vezes, Vianney encontra finalmente um menino e pergunta-lhe como fazer
para chegar a Ars. A frase que o sacerdote responde a Antoine Givre, que lhe
indica o rumo certo, é todo um programa de vida sacerdotal: “Pois bem, meu amigo, você me mostrou o
caminho para Ars, eu vim para lhe mostrar o caminho para o céu”.[3] Definitivamente,
não há outro sentido nem finalidade mais importante no ministério sacerdotal: o
que se espera do padre é que ele indique sempre os caminhos do céu, ou seja,
como acolher e realizar, em nossa pobre existência humana, o mistério
transcendente que se encontra na sua origem e que deverá constituir eternamente
– somente ele – o seu termo.
Continuemos a compor nosso ícone ao
redor deste quadro central. Creio poder fazê-lo identificando alguns objetos
que simbolizam outros momentos igualmente importantes ou, se preferirem, os
meios que o Santo Cura d’Ars utilizou para realizar a sua missão sacerdotal.
O primeiro quadro do nosso ícone será
constituído, sem sombra de dúvida, pelo sacrário da igrejinha de Ars tendo, aos
seus pés, o velho e usado breviário de Vianney. Sim, a oração do Santo Cura
d’Ars encontra-se no centro de sua vida inteira, ela é o centro do seu
ministério sacerdotal, o segredo da sua fecundidade apostólica, como
pressentiram muito bem e desde o início as pessoas simples que viveram com ele.
Um de seus primeiros paroquianos, Jean Pertinand, testemunhava, no processo de
beatificação: “No início do seu
ministério em Ars, ele se dirigia à igreja regularmente às quatro horas da
madrugada e permanecia em adoração aos pés do altar-mor até o momento da missa,
que ele celebrava às sete. Durante todo este tempo, permanecia de joelhos, sem
se apoiar, e de vez em quando lançava um olhar para o sacrário com uma
expressão tal, que os habitantes do lugar acreditavam que ele via Nosso
Senhor”. [4] A oração pessoal
era a alma do ministério de Vianney. Não somente no início, mas também quando
se tornou célebre e procurado e o pobre padre só conseguia encontrar curtas e
fragmentadas parcelas de tempo para a oração pessoal, todo consumido pelo
atendimento aos fiéis. A um sacerdote que lhe perguntava como fazia para manter
o espírito de oração ao longo de sua jornada tão cheia de fadiga, respondeu: “ Desde o início do meu dia, esforço-me por
me unir intimamente a Nosso Senhor e faço tudo o mais com o pensamento desta
união”.[5] Em suas memórias, escreve
Catherine Lassagne, a sua colaboradora mais próxima: “De vez em quando, lançava um olhar para o sacrário, com um sorriso tão
doce que parecia ver Nosso Senhor”.[6] Esta sua atitude
de oração é hoje imortalizada na estátua de Cabuchet, situada na capela da
relíquia do coração de São João Maria Vianney em Ars. Ela inspira-se nas
declarações do Irmão Athanase, que lemos nas atas do processo de beatificação
do santo: quando descreve o modo com que o Cura d’Ars se preparava na oração
para a celebração da Santa Missa, esta testemunha ocular nos informa: “Ele permanecia imóvel, ajoelhado sobre o
chão do coro, as mãos juntas e os olhos fixos no sacrário e não havia nada que
fosse capaz de distraí-lo nestes momentos de intimidade com Deus”. [7]
Já o seu
velho breviário, exposto ainda hoje na casa paroquial da cidade de Ars, traz as
marcas visíveis do seu uso constante, testemunho eloquente de sua vida de
oração na intimidade com Deus: “Com que
angélica piedade recitava o seu breviário!... Não tenho palavras para exprimir
tudo isto... Eu mesmo, diante dele, experimentava sentimentos de respeito e de
veneração em um grau que nem consigo expressar”. [8] Os testemunhos são
abundantes: “Ele recitava seu ofício sempre
de joelhos... e de vez em quando olhava o sacrário com um sorriso cheio de
doçura que parecia ver Nosso Senhor. O servo de Deus recitava seu ofício na
igreja e de joelhos. Mostrava-se tão recolhido que não percebia nem a multidão
que o rodeava nem o barulho que ela fazia”. [9] O Santo costumava dizer: “O
breviário era leve como uma pluma aos padres canonizados”. [10]
Conclui
um seu biógrafo recente: “É no silêncio
das horas de adoração que se encontra a explicação de toda a história de Ars”.
[11]
Após a vida de oração do Santo Cura
d’Ars, intensa e constante, passamos ao segundo quadro do nosso ícone: a igrejinha de Ars, que representa o seu zelo
e amor pelos objetos litúrgicos e por tudo o que dizia respeito a Deus e à
sacralidade do templo e do culto. Ao chegar em Ars, João Maria Vianney
encontrou uma capela em ruínas e um povo desagregado e afastado de Deus. “Existe pouco amor de Deus naquela paróquia;
você vai levá-lo”, disse-lhe o Vigário Geral da Diocese ao lhe entregar o
documento de nomeação. [12] O imenso trabalho
para construir a comunidade cristã no coração dos habitantes de Ars aliava-se
ao seu zelo pelo templo material. E enquanto santificava a pequena comunidade
do vilarejo, ele transformava e embelezava a pequena igreja em ruínas. O amor
do Cura d’Ars por seus paroquianos passava também pelo amor do padre por seu
templo material e pela beleza do culto: da construção do campanário e das
capelas laterais às suas prodigalidades pelos novos paramentos litúrgicos, não
esquecendo os vasos sagrados, que ele queria belos e ricos porque destinados ao
Senhor. [13] Nas atas do
processo de beatificação, houve quem lembrasse que o Cura d’Ars desejou um
cálice de ouro maciço, porque “o mais
belo daqueles que ele possuía não lhe parecia ainda digno de conter o sangue de
Jesus Cristo”. [14] O contraste é
impressionante, entre a casa paroquial pobre e despojada, a sua vida austera e
penitente, por um lado, e, por outro, a riqueza com que ele quis dotar a sua
igreja: nada para mim, tudo para o Senhor! E a quem pretendia substituir sua batina
velha e surrada, respondeu com convicção: “Minha
velha batina combina muito bem com uma bela casula”. [15] O povo logo
compreendeu, como no passado tinham compreendido os construtores das grandes
catedrais medievais. Como compreendem ainda hoje todos aqueles que reconhecem a
Deus o lugar central em nossa sociedade e em suas próprias existências. Com que
emoção, em algumas visitas que realizei a Ars no exercício do meu ministério
sacerdotal, pude utilizar alguns destes cálices e ostensórios que pertenceram
ao Santo Cura d’Ars e que lá são conservados; é uma recordação que ainda hoje
me anima e dá forças.
Gostaria de acrescentar ao nosso ícone
um terceiro quadro, representado pela biblioteca de São João Maria Vianney, conservada
ainda hoje no seu quarto na casa paroquial, agora transformada em museu-relicário.
Ela impressionou-me já em minha primeira visita a Ars, no longínquo 1975,
quando eu tinha apenas 4 anos de ordenação sacerdotal. João Maria Vianney
herdou-a do Padre Balley, seu primeiro pároco e formador. Mais recentemente, tive
a ocasião de examiná-la de perto, folheando os livros que a compõem: como está
longe da realidade a imagem estereotipada de um João Maria Vianney ignorante e
de cabeça dura. [16] Nunca foi
um aluno brilhante, é certo, nem teve um cérebro genial. Mas, quanta aplicação
no estudo, sobretudo quando, no contato com o povo, ele se sentiu responsável
por indicar-lhe o caminho do céu: “O
resultado de seus estudos era nulo porque ele não compreendia suficientemente o
latim... Apesar disso, ele parecia aplicar-se continuamente ao estudo”,
declarava Vincent Besacier, seu colega de seminário. [17] Os tratados de
espiritualidade, os livros dogmáticos, a teologia moral que ele folheou
constantemente, preparando-se com escrupulosidade para o ministério da
pregação, ainda se encontram naquelas estantes, testemunho silencioso de sua
aplicação, apesar do assédio dos fiéis e das jornadas completamente preenchidas
pelo seu serviço pastoral. Padre João Maria Vianney não descuidava da preparação
intelectual. Pelo contrário, no processo de beatificação somos informados de
que ele relia a obra moral de Gousset a cada inverno, quando lhe restava um
pouco mais de tempo por causa da diminuição dos peregrinos. [18] É sabido que o seu
rigorismo moral inicial foi completamente transformado pelo contato com a
primeira divulgação em língua francesa do pensamento moral de Santo Afonso
Maria de Ligório, o Padroeiro dos moralistas e dos confessores. [19]
Este mesmo santo doutor que, quando era vivo, pregava aos padres sobre a
necessidade de um estudo contínuo e diligente, ao lado de uma intensa vida de
oração, para que pudessem se tornar guias seguros do povo de Deus. A
inteligência espiritual, sem sombra de orgulho humano, saciada pela presença de
Deus, eis um desafio aos padres de ontem, de hoje e de sempre. Dizia o Santo
Cura d’Ars: “A cruz é o livro mais sábio
que se possa ler. Quem não a conhece é um ignorante, mesmo que conheça todos os
outros livros. Verdadeiramente sábios são somente aqueles que a amam”. [20] Oxalá possa ser
dito de cada um de nós, queridos Padres, aquilo que a Sra. Lassagne escreveu
sobre o seu Pároco: “O senhor Pároco
considerava-se tão pouca coisa que o Espírito Santo tinha gosto em preencher
aquele vazio com a sua sabedoria admirável”. [21]
A metade de nosso ícone está pronta e
diz respeito à realidade interior, ao coração de nosso Santo. A outra metade
refere-se ao relacionamento de São João Maria Vianney com os fiéis. Assim
sendo, o quarto quadro do ícone é representado pelo confessionário do Santo. Ou
melhor, pelos confessionários de Ars, pois ele tinha o costume de confessar os
homens na sacristia, enquanto as mulheres e crianças eram atendidas em outro
confessionário, situado numa capela lateral da igreja. Hoje em dia, é comum os
peregrinos pararem por alguns instantes diante de confessionário da sacristia,
tão simples e pobre e, no entanto, tão eloquente em seu silêncio. Quantas vidas
passaram por aquelas pranchas de madeira pobre e despojada! Quantos dramas
humanos, quantos sofrimentos, quanto desespero, dor, angústia! Mas também
quantas palavras de conforto, quantas conversões, quantas vidas transformadas!
Diretor espiritual incomparável, seu conselho inspirado encontra-se na origem
de numerosas congregações religiosas fundadas por penitentes seus, ao longo do
século XIX. Operário silencioso, o
pobre padre empregava seu tempo mais precioso e todas as suas energias ao
serviço da reconstrução do ser humano, resgatando-o do pecado e tornando-o
filho pródigo de um Deus de amor. [22] Seus confessionários
espalharam a luminosidade do Evangelho da salvação bem além dos limites do
vilarejo e sua luz acabou por resplandecer no mundo inteiro. Como escreve um
dos seus biógrafos: “Quantas outras almas
e quantas paróquias devem a Vianney sua melhoria. Conhecemos pouco da sua
influência de confessor e de diretor espiritual. O resto, ignorado pelos
homens, será revelado diretamente por Deus. Padre Vianney – conta a condessa de
Garret – viu-se obrigado um dia a reconhecer que só no juízo final será conhecido
todo o bem realizado por seu ministério”. [23]
O quinto quadro de nosso ícone é
constituído pelo púlpito do Santo Cura d’Ars. Aliás, são dois, bem plantados na
pequena igreja do vilarejo: o púlpito da pregação e outro, menor, de onde ele
ensinava o catecismo diariamente. O catecismo, a formação permanente da fé
cristã, é um dos deveres primordiais de um Pároco: durante quase quinze anos,
de 1845 a 1859 – ano de sua morte, São João Maria Vianney nunca faltou a este
dever, através daquilo que ficou conhecido como o “catecismo das onze horas”. [24] Seu estilo muito
pessoal e o conteúdo de seus sermões e de sua catequese são, hoje em dia, bem
estudados. [25] Reconhece-se o seu
estilo simples, direto, que falava ao coração, anunciando o amor de Deus e
convidando à santidade de vida, sem concessões à mentalidade corrente mas tão
somente apoiado na Verdade do Evangelho. Mas, sobretudo, era a sua sinceridade
e a sua fé pessoal que convenciam, inflamavam e atraíam. Ele mesmo costumava
repetir: “Qualquer que seja o padre, é
sempre o instrumento de que se serve o bom Deus para distribuir a sua santa
palavra... Os padres não dizem o que querem; eles dizem o que está no
Evangelho”. [26]
Com
efeito, a Palavra de Deus ocupa um lugar central na vida e no ministério de São
João Maria Vianney. E tal era o seu testemunho pessoal que mesmo no final de
sua vida, envelhecido e cansado, quando tinha apenas um fio de voz e os
ouvintes não conseguiam compreender bem o que ele dizia, seu ensinamento
continuava a ser eficaz, porque ele mesmo tinha se tornado uma pregação viva. O
olhar inflamado, dirigindo-se ao sacrário de sua pequena igreja, as lágrimas
correndo abundantes, o dedo indicador apontando trêmulo o tabernáculo, ele
conseguia apenas balbuciar: “Ele está lá”.
E a comunidade inteira percebia a realidade da presença real de Cristo na
Eucaristia. [27] A sua era uma
palavra de eternidade. [28] Afirma um dos
biógrafos do Santo: “O Cura d’Ars
permanece na memória da Igreja como o homem da Palavra urgente, prioritária,
apelo à conversão porque dom do Amor”. [29]
O último quadro de nosso ícone – não
porque não haja muitos outros que poderiam ser aqui traçados, mas porque devo
restringir-me a alguns mais diretamente ligados ao nosso tema – poderia ser
constituído pela imagem do Cura d’Ars visitando as órfãs da Providência e os
doentes da paróquia, visitas que ele fazia habitual e regularmente após ter
passado toda a manhã na igreja e antes de retornar a ela pela tarde. Para mim,
estas visitas são a imagem do zelo que se faz presença, do pastor que não espera
as ovelhas mas vai à procura das mais fracas, das mais abandonadas e daquelas
que mais se afastaram do rebanho. Ainda hoje, a cidade de Ars conserva pequenas
placas nas fachadas de muitas casas, indicando que ele esteve naquela
residência, levando consigo a imagem visível do bom Pastor que a todos abraça e
reúne. A presença do Santo Cura d’Ars junto aos moribundos foi descrita por um
sacerdote, testemunha ocular, no processo para a beatificação de nosso Santo: “Nunca ouvi falar da outra vida com tanta fé
e convicção. Dir-se-ia que ele contemplava com seus próprios olhos aquilo que
ele dizia, enquanto consolava os pobres moribundos e reanimava a sua confiança.
Todos queriam poder morrer entre as
suas mãos”. [30]
Contemplando na fé este maravilhoso ícone
do Cura d’Ars, agora completo, podemos compreender como a santidade pessoal do
ministro sacramental de Cristo Pastor espalha-se e se difunde nos atos de seu
ministério para o bem do povo de Deus e de toda a humanidade. Mas podemos dizer
também que os atos do ministério, realizados em sintonia com a realidade do
nosso estado de configurados com o Cristo Pastor, são a via real da nossa
santificação como padres. Tal é o ensinamento do Concílio Ecumênico Vaticano
II, que analisaremos a seguir. João Maria Vianney, em sua vida sacerdotal, antecipou
e viveu plenamente tal ensinamento.
PARTE II
A CARIDADE
PASTORAL,
GARANTIA DA UNIDADE
DO MINISTÉRIO
E FONTE DA ESPIRITUALIDADE
SACERDOTAL
Passemos ao segundo ponto de nossa
reflexão, ou seja, o ensinamento do Concílio Ecumênico Vaticano II. Sabemos que
a discussão conciliar em torno do esquema do futuro documento Presbyterorum ordinis procurava, entre
outras finalidades, também a de identificar um princípio unificador da vida do
padre, dividido entre as múltiplas necessidades do seu ministério ativo e, por
outro lado, a necessidade de se santificar a si mesmo. A vocação universal à
santidade, proclamada tão solenemente pelo Vaticano II, [31]
reveste uma dimensão especial no caso do padre, configurado ontologicamente a
Cristo Cabeça e Pastor da Igreja, sendo constituído portanto como ministro da
santificação do povo de Deus, chamado a ser sinal sacramental do Cristo em meio
aos homens e mulheres e a agir em nome e na pessoa de Cristo.
O número 12 do documento conciliar Presbyterorum ordinis apresenta um
primeiro elemento básico, ao afirmar: “Pelos
ritos sagrados de cada dia e por todo o seu ministério exercido em união com o
Bispo e os outros presbíteros, eles mesmos se dispõem à perfeição da própria
vida”. E no número seguinte, o documento é ainda mais preciso: “Os presbíteros atingem a santidade pelo
próprio exercício do seu ministério, realizado sincera e infatigavelmente no
espírito de Cristo”. [32]
Não se trata aqui da “heresia da ação”, sempre ameaçadora da vida sacerdotal e
que pretende tudo resumir à eficácia do agir humano. Trata-se, pelo contrário,
de criar uma sintonia real com Cristo, de quem os padres são sinal sacramental:
somos chamados a exercer o ministério recebido em vista da finalidade que lhe é
própria, ou seja, para a glória de Deus e a salvação dos seres humanos,
esquecendo nossos próprios interesses para fazer nossos os interesses de Jesus
Cristo. É preciso – maravilhosa obra da graça com a colaboração humana –
construir a conformidade interior que deve existir entre o padre, causa
instrumental, e Jesus, que permanece o único agente principal da Redenção.
Somente assim o tríplice ministério de
pregar o Evangelho, de apascentar a comunidade eclesial e de celebrar o culto [33]
constituirá não somente um “trabalho” ou um “serviço” a ser realizado, uma
“função” a ser executada, mas também um caminho de fé que cumpre toda a Igreja,
clero e fiéis, cada um em seu grau e no específico da própria vocação.
O anúncio
da Palavra torna-se, para o padre, ocasião de um encontro pessoal com a
Palavra viva, que questiona e provoca a sua resposta pessoal de fé, para que
sua pregação seja autêntica e sincera. Recordava-o o Papa Paulo VI,
dirigindo-se aos padres: “Como poderíamos
nós anunciar com fruto a Palavra de Deus se ela não nos for familiar pela
meditação e pela oração quotidiana? E como poderia ela ser acolhida, se não
for sustentada por uma vida de fé profunda, de caridade ativa, de total
obediência, de oração fervorosa e de penitência humilde? A coisa mais necessária
não é a abundância de palavras, mas que a palavra esteja em harmonia com uma
vida mais evangélica”. [34]
A santificação
do povo de Deus, à qual se consagra o ministério presbiteral [35]
não pode deixar indiferente a pessoa do padre, chamado a personificar o Cristo
na celebração dos sacramentos. Ele é chamado a imitar aquilo que ele toca, “hóstia com a hóstia imolada”, sacerdos et
victima. Percebe-se esta realidade, de maneira eloquente, na celebração do
Mistério Eucarístico, centro e cume de toda a vida eclesial. Dessa maneira, o
Concílio Vaticano II pode afirmar: “Enquanto
os presbíteros se unem com a ação de Cristo Sacerdote, oferecem-se todos os
dias totalmente a Deus, e, alimentando-se do Corpo do Senhor, participam
amorosamente da caridade daquele que se dá como alimento aos fiéis”. [36]
O Pontifical Romano recorda essa verdade, na exortação dirigida aos ordenandos:
“Exercei também em Cristo a função de
santificar... Tomai consciência do que fazeis e ponde em prática o que
celebrais, de modo que, ao celebrar o mistério da morte e ressurreição do
Senhor, vos esforceis por mortificar o vosso corpo, fugindo aos vícios, para
viver uma vida nova”. [37]
A direção
da comunidade corresponderá à atitude pessoal daquele que se deixou
conduzir pelo desígnio de Deus e se oferece totalmente, por toda a vida, a este
mesmo projeto. Se o padre não se apresentar diante dos fiéis como um homem de
fé profunda, de esperança inquebrantável e de caridade ardente, ele corre o
risco de cair pouco a pouco na profissionalização do seu ministério. Este não é
um risco sempre à espreita, em nossos dias?
Os Padres do Concílio Vaticano II indicam
o princípio unificador da vida e da ação sacerdotal na expressão “caridade
pastoral”: “Fazendo as vezes do Bom
Pastor, encontrarão no exercício da caridade
pastoral o vínculo da prefeiçaõ sacerdotal que conduz à unidade de vida e
ação. Esta caridade pastoral flui
sobretudo do sacrifício eucarístico, que permanece o centro e a raiz de toda a
vida do presbítero, de tal maneira que aquilo que ele realiza sobre a ara do
sacrifício, isso mesmo procura realizar em si o espírito sacerdotal. Isto,
porém, só se pode obter à medida em que os presbíteros penetram cada vez mais
profundamente no mistério de Cristo pela oração”. [38]
O termo
supõe, antes de tudo, a centralidade de Cristo Bom Pastor na vida do ministro
ordenado, o Cristo como centro e raiz da vida sacerdotal. Os padres são
convidados a procurar a unidade de sua vida olhando para o Cristo, o qual, no
exercício de seu ministério, procurava cumprir sempre a vontade do Pai que o
enviara. Hoje, são os presbíteros os instrumentos de Cristo que, por meio
deles, continua a sua ação redentora. É portanto lógico que a espiritualidade
presbiteral seja centrada no fato de que o próprio Cristo vive em seus padres e
quer, por seu intermédio, continuar exercendo no mundo a sua atividade
sacerdotal. Para alcançar a unidade de vida, os padres devem portanto “unir-se a Cristo no conhecimento da vontade
do Pai e no dom de si mesmos pelo rebanho que lhes foi confiado”. [39]
Trata-se, pois, de dois elementos que se exigem mutuamente, evitando tanto um
espiritualismo desencarnado como um ativismo desenfreado feito de múltiplas
atividades que terminam por cansar o físico e por esvaziar o espírito do padre.
A unidade de vida deve ser buscada em Cristo, como o modelo perfeito do
cumprimento da vontade do Pai e da doação incondicional aos homens.
A
caridade pastoral supõe por conseguinte uma união vital e profunda com Cristo,
fonte e garantia da doação autêntica aos outros. Ela não pode identificar-se
simplesmente com uma atividade ou com o apostolado externo, mas antes com a
alma deste apostolado que é a união vital com Cristo. O Venerável João Paulo II
afirma-o com ênfase, quando ensina: “A
caridade pastoral é uma participação da própria caridade pastoral de Jesus
Cristo”. [40]
A unidade interior da pessoa do padre
adulto é uma unidade de amor [41],
dada pela centralidade do amor esponsal e da sua identificação com Cristo
sacerdote e vítima de redenção. Esta unidade interior é um processo que deve
durar a vida inteira, desenvolvendo-se através das sucessivas etapas da
existência cronológica e psicológica do ser humano do padre, da juventude à
idade madura e à velhice. Trata-se de uma unidade dinâmica, em contínua
renovação, através das batalhas e dos desafios, das misérias, das
insuficiências e dos limites, mas que consegue tudo ultrapassar e vencer,
concentrando e unificando tudo na experiência do agapé, única modalidade suprema do amor. [42]
Um ulterior elemento constitutivo da “caridade
pastoral”, princípio unificante da vida e da identidade sacerdotal, é apontado
pelo Concílio Vaticano II na fidelidade à Igreja. Este é um ponto importante em
nossa vida sacerdotal e gostaria de realçá-lo com força. O número 14 do
documento conciliar Presbyterorum ordinis
afirma: “Para que possam verificar
concretamente a unidade de vida, (os padres) considerem todas as suas iniciativas, examinando qual será a vontade
de Deus, ou seja, qual será a conformidade dessas iniciativas com as normas da
missão evangélica da Igreja. A fidelidade para com Cristo não se pode separar
da fidelidade para com a Igreja. Por isso, a caridade pastoral exige que os
presbíteros, para que não corram em vão, trabalhem sempre em união com os
bispos e com os outros irmãos no sacerdócio. Procedendo dessa forma,
encontrarão os presbíteros a unidade da própria existência na mesma unidade da
missão da Igreja, e assim unir-se-ão com o Senhor, e por meio dele com o Pai,
no Espírito Santo, a fim de que possam encher-se de consolação e de alegria”.
Nosso ministério não é uma realidade
que é vivida apenas em um âmbito pessoal e particular. Ele deve ser expressão
do ministério confiado por Cristo à sua Igreja, da qual nós não somos donos mas
apenas os ministros. A experiência constante demonstra como as crises
sacerdotais aparecem quando se pretende percorrer sozinhos uma estrada que
teimamos em estabelecer por nós mesmos, ainda quando ela acaba nos afastando do
caminho eclesial.
Meus
irmãos padres, devemos evitar o aparente zelo subjetivo e independente, que nos
afasta progressivamente daquela comunhão hierárquica que é não somente um sinal
de autenticidade de nosso ministério, mas também o “humus” necessário para que
nossa vocação possa resistir aos momentos mais duros e difíceis que, de tempos
em tempos, podem aparecer na vida e no ministério de cada um de nós. Nosso
Santo Padre, o Papa Bento XVI, recordou-nos esta verdade por ocasião de
ordenações presbiterais por ele presididas. Dirigindo-se aos novos padres,
afirmava: “Conhecer as ovelhas como
Jesus, Bom Pastor, quer dizer também conhecer com o coração. Mas isso só será
possível em profundidade se o Senhor abrir nosso coração; se nossa maneira de
conhecer não prender as pessoas ao nosso pequeno ego privado, a nosso coração
limitado, mas as conduzir ao coração de Jesus, ao coração do Senhor. Deve ser
um conhecimento com o coração de Jesus e a Ele orientado, uma maneira de
conhecer que não ligue o ser humano à minha pessoa, mas o leve a Jesus
tornando-o livre e aberto. E assim também nós, no meio dos seres humanos, nos
tornamos próximos. Peçamos sempre ao Senhor que nos seja dada esta maneira de
conhecer com o coração do Cristo, de nunca ligar a nós mesmos mas de unir os
fiéis ao coração de Jesus e, assim, criar uma verdadeira comunidade”. [43]
PARTE III
DESAFIOS À
SANTIDADE DO PADRE
O padre é um homem batizado que
recebeu, por força da ordenação sacerdotal, uma configuração especial que o
coloca ao serviço da santificação da comunidade dos batizados, da qual ele
também faz parte. Com sua perspicácia bem reconhecida, Santo Agostinho definiu
esta situação da seguinte forma: “Para
vós eu sou bispo, convosco eu sou cristão”. Em seguida, ele diz que esta
função “obriga a uma perigosa prestação
de contas”, porque – ele afirma – “enquanto
cristão, devo dedicar-me ao meu próprio proveito, mas, como bispo, devo
dedicar-me unicamente ao vosso”. [44]
O que ele diz do bispo aplica-se, sem sombra de dúvida, também aos padres de
todos os tempos.
Com a ordenação presbiteral, o padre
recebe um caráter espiritual indelével, que o acompanhará por toda a eternidade
e o habilita a agir na pessoa de Cristo, Cabeça da Igreja, no cumprimento da
tríplice função de ensinar, santificar e guiar a comunidade eclesial. Esta
graça, no entanto, não elimina a fraqueza humana nem a possibilidade de cair no
erro e, menos ainda, ela não impede que nós possamos pecar. Infelizmente, é-nos
necessário reconhecer que, às vezes, faltam a algumas ações e atitudes dos
ministros de Cristo o sinal da fidelidade ao Evangelho. Ultimamente, a Igreja
tem sido sacudida, em vários países do mundo e também em nosso Brasil, pela
exposição mediática de situações de pecado e de miséria que revelam cruelmente
todo o peso da fragilidade humana de tantos sacerdotes e o dano terrível causado
por seus comportamentos pecaminosos.
Tais ações – verdadeiros escândalos para o Povo de Deus e para o mundo
em geral – obscurecem o belíssimo ideal sacerdotal, enxovalham a figura
estupenda do sacerdote católico – de que o Santo Cura d’Ars é autêntico ícone –
e tornam-se gravemente prejudiciais à fecundidade do apostolado da própria
Igreja. Estes fatos provocam em todos
nós um sentimento de profunda vergonha.
Neste
Ano Sacerdotal, somos chamados a pedir perdão – a Deus e aos homens – pelos
pecados e escândalos que, por meio de ministros ordenados, possam ter causado
sofrimento e dor a muitos e afastaram da Igreja a tantos. Mas não basta o
pedido de perdão.
É verdade que a eficácia dos atos
sacramentais é sempre garantida pelo fato de que ela não depende da santidade
do padre, mas realiza-se “ex opere
operato”, ou seja, é obra mesma de Cristo, de quem o padre é representante.
Mas, por outro lado, é necessário que nós sacerdotes nos empenhemos efetivamente
na nossa própria santificação pessoal. Com efeito, Deus manifesta oradinariamente
a sua ação salvífica por meio do ministério de padres que, dóceis à inspiração
e à direção do Espírito Santo, demonstram uma real santidade de vida, graças a
qual podem dizer como São Paulo: “Não sou
eu quem vive, é Cristo que vive em mim”. [45]
A santificação pessoal do padre torna-se, então, uma exigência lógica e
intrínseca do seu caráter sacramental e do seu ministério, como ela é também
uma consequência necessária do seu batismo.
Retomando em nossa reflexão o ícone do
Santo Cura d’Ars anteriormente delineado, gostaria de deixar à consideração de
cada um de nossos queridos padres, alguns elementos concretos que podem ser
aprofundados na vida quotidiana e no nosso ministério, a guisa de propósitos
que deem continuidade à celebração do Ano Sacerdotal: Fidelidade de Cristo, Fidelidade do Sacerdote!
Contra o esgotamento do ministério e a
fadiga que parecem pesar sobre tantos confrades nossos, em diversas partes do
mundo, somos desafiados, queridos Padres, pelo primeiro quadro de nosso ícone:
o sacrário e o breviário do Santo Cura d’Ars. Uma intensa vida de oração –
pessoal e comunitária – meditativa, contemplativa e litúrgica, poderá
redespertar em nós aquele espírito que reaviva o caráter que está em nós desde
que recebemos a imposição das mãos apostólicas.
Contra a banalização de nossa vida
sacerdotal e o empobrecimento de nossa missão, concebida redutivamente como o
exercício de uma mera função social talvez até considerada ultrapassada pela
modernidade, somos desafiados pelo segundo quadro de nosso ícone: a pequena
igreja de Ars, os belos paramentos e os ricos vasos sagrados através dos quais
São João Maria Vianney quis tudo dar e doar-se a si mesmo ao Senhor,
consagrando-se inteiramente à salvação da humanidade e reconhecendo Cristo como
centro de sua existência e única fonte de seu ministério. Nosso sacerdócio será
tanto mais moderno e atualizado, quanto mais for reconhecido por todos como
autêntico e sincero; e isso só será possível na medida em que no centro de
nosso ser e de nosso agir se encontrar o Cristo, Sacerdote e Bom Pastor. E na
medida em que nossa atividade e nossas ações se concentrarem na dimensão
teológica, cristológica e eclesiológica que são a base da autêntica doutrina
católica sobre o Sacramento da Ordem.
Contra a mediocridade do pensamento e o
rebaixamento dos ideais sacerdotais, somos desafiados pelo terceiro quadro de
nosso ícone: a biblioteca do Santo Cura d’Ars. Homens de oração, os padres são
chamados hoje a serem também homens de cultura, da busca incessante de uma
teologia profunda, do saber que se adquire por um estudo metódico e perseverante,
que se torna humilde contemplação do mistério de Deus, revelado em Jesus Cristo
pelo Espírito e vivido na dinâmica sobrenatural da Igreja. Fides quaerens intellectum, o antigo axioma recorda-nos que a fé
autêntica necessita ser meditada e esclarecida a partir da razão humana
iluminada pela Revelação. E porque nunca suficientemente esgotada – esta
reflexão é uma busca apaixonada que só será saciada na contemplação beatífica –
nós somos chamados a construir um estilo de vida no qual o estudo tenha também a
sua parte importante, não nos contentando com slogans fáceis e vazios, que,
infelizmente, parecem ser hoje característicos de uma superficialidade de
doutrina, que acaba por empobrecer a vida eclesial, debilitando-a. Este estudo,
como em São João Maria Vianney, será sempre realizado de joelhos, unindo a
razão e o espírito e nos levando à contemplação mais verdadeira.
Contra a tentação do ativismo que,
tantas vezes, acaba por esconder o vazio do coração e do espírito, contemplemos
em nosso ícone o confessionário e o púlpito de São João Maria Vianney. A
palavra vivida é anunciada, talvez sem a eloquência humana mas com a força do
testemunho e da autenticidade de vida. E esta palavra em seguida gera a
experiência do amor misericordioso de Deus, do Pai que acolhe seu filho
pródigo. O que pode caracterizar melhor o padre, depois do altar do Sacrifício,
do que o confessionário e o púlpito? O que pode contribuir mais para a
santificação do padre, além do altar, do que o confessionário e o púlpito?
Sejamos sempre, queridos irmãos Padres, ministros generosos e dedicados da
misericórdia de Deus, na pregação incansável e no sacramento da Confissão,
sempre em sua forma ordinária, a da confissão auricular com absolvição
individual, como determinado pelas normas da Igreja e pelas disposições
particulares de nossa Diocese.
Contra a tentação da solidão, tão
pesada nesta época de comunicações que com frequência permanecem apenas
virtuais, contemplemos o último quadro de nosso ícone: o amor ardente do Santo
Cura d’Ars que se manifesta na atenção pelos pequeninos do Senhor. Nosso
celibato sacerdotal tornar-se-á então uma fonte inesgotável de amor-doação, de
amor-serviço, de castidade consagrada que se torna exercício generoso de
paternidade espiritual. Nosso agir sacerdotal será “para” e “com” Cristo,
contemplado e amado nos irmãos, aos quais consagramos toda a nossa existência,
sem nada reter para nós mesmos. Só assim o padre será, verdadeiramente, um alter Christus, manifestando em todo o seu agir – também na
forma exterior de se apresentar diante da sociedade – Aquele a quem somos
identificados ontologicamente.
Seguindo as pegadas de São João Maria
Vianney, nosso Patrono celeste, somos chamados a ser, como ele,
- Homens
de oração, testemunhas do absoluto ao serviço do mundo;
- Homens
de Igreja, assinalados por uma sólida fé teológica e ancorados na
obediência, expressão de nosso amor à Igreja, e no dom maior do amor vivido no
celibato;
-
Homens eucarísticos, que fazem da celebração diária da Santa Missa o ponto
mais alto da jornada e do Sacramento Eucaristíco a fonte perene da força e eficácia
do nosso ministério;
- Homens
do perdão, construtores de unidade em nossas comunidades e administradores
incansáveis da misericórdia divina;
- Homens
de discernimento, autênticos pastores, conselheiros e amigos de nosso povo,
na disponibilidade total de nossos seres e de nossas vidas;
- Homens
da ação apostólica, inteiramente dedicados à evangelização, discípulos e
missionários que edificam as comunidades e as conduzem à missão;
- Homens
de coragem, capazes de opções viris e decididas, de empenhar para sempre
nossa palavra e nossa vida, mesmo enfrentando dificuldades e momentos difíceis,
porque conscientes de caminhar ancorados em uma configuração ontológica que faz
de nós imagens autênticas de Cristo Pastor. [46]
Na quinta-feira santa de 2006, nosso
Santo Padre Bento XVI surpreendeu-nos com uma singular confidência: “Minha oração preferida é o pedido que a
liturgia põe em nossos lábios antes da comunhão: não permitais que eu me separe de vós. Pedimos para nunca
permanecer fora da comunhão com seu Corpo, com o próprio Cristo, nunca
permanecer fora do mistério eucarístico. Pedimos que ele nunca largue nossa
mão... O Senhor pôs sua mão sobre nós. O sentido deste gesto ele expressou com
estas palavras: ‘Já não vos chamo servos,
porque o servo não sabe o que seu senhor faz; mas eu vos chamo amigos,
porque tudo o que ouvi de meu Pai eu vos dei a conhecer’ (Jo 15,15). Já não vos
chamo servos, mas amigos: nestas palavras poderíamos até ver a instituição do
sacerdócio. O Senhor nos faz seus amigos: ele nos confia tudo; ele nos confia a
si mesmo, de maneira que podemos falar com o seu Eu – in persona Christi
capitis. Que confiança! Ele
verdadeiramente entregou-se em nossas mãos”. [47]
Possamos também nós, Sacerdotes de
Cristo, em resposta ao Cristo que se entrega a nós, entregar-nos também em suas
mãos e sermos seus, para sempre! Que nos acompanhe até o fim de nossa
existência terrena a ardente oração de amor do Santo Cura d’Ars:
“Amo-Te, meu Deus, e meu único desejo
é o de Te amar até o último respiro da minha
vida.
Amo-Te, ó Deus infinitamente amável,
e prefiro morrer amando-Te,
do que viver um só instante sem amar-Te.
Amo-Te, Senhor, e a única graça que te peço
é a de amar-Te eternamente.
Amo-Te, meu Deus, e desejo o céu
somente para ter a felicidade de amar-Te
perfeitamente. (...)
Meu Deus, se a minha língua não pode dizer a
cada instante: amo-Te,
que o meu coração o repita a cada respiro.
Dá-me a graça de sofrer amando-Te e de Te amar
sofrendo (...).
Meu Deus, dá-me a graça de expirar, um dia,
amando-Te
e sentindo que Te amo.
Meu Deus, à medida em que se aproxima meu fim,
dá-me a graça de aumentar meu amor e de
aperfeiçoá-lo.
Amém.” [48]
Ao concluir esta Carta Pastoral, confio
o Clero e os Seminaristas da Diocese de Garanhuns à proteção materna de Maria
Santíssima, tão ternamente amada pelo Cura d’Ars. Ainda hoje, no peito da bela
estátua da Imaculada que ele adquiriu para sua igreja, podemos ver um coração
de ouro que contém o seu nome e o de todos os seus paroquianos. Ele o ofereceu
à Virgem em 1836, celebrando um solene ato de consagração de sua Paróquia à
Virgem concebida sem pecado. [49]
Espiritualmente, desejo inscrever no coração da Virgem, Mãe de Deus e nossa, os
nossos nomes, queridos Padres e Seminaristas, para que ela nos conduza no
caminho de nossa santificação, para sermos sempre padres segundo o Coração de
seu Filho.
Com os
melhores votos de felicidades, de santidade e de perseverança, neste nosso dia
e nesta nossa festa, abençoo-os afetuosamente em nome do Pai X e do Filho X e do Espírito X Santo. Amém.
Garanhuns, 1º de
Abril de 2010.
X Fernando Guimarães
Bispo Diocesano de Garanhuns
[1] BENTO PP. XVI, Carta
Apostólica no lançamento do Ano Sacerdotal, 16 de Junho de 2009.
[2] A data da chegada
é 13 de fevereiro, e não o dia 9 como está indicado no pedestal do monumento:
cf. R. FOURREY, Jean-Marie Vianney, Curé
d’Ars – Vie authentique, Desclée de Brower, Paris 1981, p. 80.
[3] Cf. F. TROCHU, Il
Curato d’Ars, Marietti, Genova 19972, p. 151.
[4] R. FOURREY, Vie authentique, p. 90. Em suas memórias, comenta
Catherine Lassagne, a governante do Cura d’Ars: “Como era belo e edificante ver aquela figura emagrecida pela
penitência, à luz da sua vela, rezar com tanto recolhimento, lançando de vez em
quando um olhar ao sacrário, com um sorriso tão doce que dava a impressão de
estar vendo Nosso Senhor!” (C. LASSAGNE, Le Curé d’Ars au quotidien, p. 77).
[5] Declarações do Pe.
Dufour, Procès apostolique in genere,
citado por F. TROCHU, Il Curato d’Ars, p.
413. A testemunha concluía sua declaração afirmando: “A vida do Padre Vianney era uma oração contínua”.
[6] Petit Memoire, 2ª redação,
citado por F. TROCHU, Il Curato d’Ars,
p. 393.
[7] Procès de
l’Ordinaire, p. 814, citado por F. TROCHU, Il
Curato d’Ars, pp. 395-396.
[8] Declarações do
Padre Beau, que foi confessor do Santo: Procès
de l’Ordinaire, citado por F. TROCHU, Il
Curato d’Ars, p. 532.
[9] B. NODET, Le Curé d’Ars – pensées, p. 91.
[10] Ibid., p. 100.
[11] J.-J. ANTIER, Le Curé d’Ars, Perrin, Paris 2006, p.
264.
[12] C. LASSAGNE, Petit memoire (2a. redação), transcrita
na obra Le Curé d’Ars au quotidien – par
un témoin privilegié, Parole et Silence, Paris 2003, p. 54.
[13] Cf. F. TROCHU, Il
Curato d’Ars, pp. 210-222; FOURREY,
Vie authentique, p. 114-122.
[14] Declaração do Irmão Athanase, Procès apostolique em general, p. 317; citado por F. TROCHU, Il Curato d’Ars, p. 396.
[15] Cf. FOURREY, Vie authentique, p. 119.
[16] Cf. a este
respeito, a opinião de B. NODET, Le Curé
d’Ars – Pensées, Foi vivante, Paris
2000, pp. 13-15; TROCHU, Il Curato d’Ars,
pp. 331-347.
[17] J-M. ANTIER, Le
Curé d’Ars, Perrin 2006, p. 59.
[18]
Cf. F. TROCHU, Il Curato d’Ars, p. 336.
[19] Os volumes da primeira tradução em francês da Teologia
Moral de Santo Afonso encontram-se entre os volumes da biblioteca do Santo Cura
d’Ars.
[20] Cf. J-M. ANTIER, Le
Curé d’Ars, p. 158.
[21] C. LASSAGNE, Petit
mémoire (3ª. redação), in : Le
Curé d’Ars au quotidien, p. 117.
[22]
Cf. F. TROCHU, Il Curato d’Ars, pp. 377-395; 574-577.
[23]
F.
TROCHU, Il Curato d’Ars, p. 391. A declaração da
condessa consta no Procès de l’Ordinaire,
p. 791. A mesma expressão é transmitida por C. LASSAGNE, que a ouviu várias
vezes do Cura d’Ars: Le Curé d’Ars au
quotidien, p. 58.
[24]
Cf. F. TROCHU, Il Curato d’Ars, pp. 401-405.
[25] Sermons of the Curé
d’Ars, ao cuidado de L. SHEPPARD, Tan Books and Publishers, Illinois 1995;
J.-J. ANTIER, Le Cure d’Ars, pp.
264-266.
[26] A. MONNIN, Esprit
du Curé d’Ars, Téqui, Paris 1975, p. 77.
[27]
F. TROCHU, Il
Curato d’Ars, p 664.
[28] Tal é a expressão de F. TROCHU, Il Curato d’Ars, p. 402.
[29] A. DUPLEIX, Comme
insiste l’amour – présence du Curé d’Ars, Nouvelle Cité, Paris 1999, p. 156.
[30] Padre Tailhades, Procès
de l’Ordinaire, p. 1507, citado por TROCHU, Il Curato d’Ars, p. 407.
[31] Cf. CONCÍLIO
ECUMÊNICO VATICANO II, Const. Dogm. Lumen
gentium, cap. 3, nn. 39-42.
[32] CONCÍLIO ECUMÊNICO
VATICANO II, Decr. Presbyterorum ordinis,
n. 13.
[33] Cf. CONCÍLIO
ECUMÊNICO VATICANO II, Const. dogm. Lumen
gentium, n. 28
[34] PAULO PP. VI,
Exort. Apost. Quinque iam anni, AAS
62 (1971), p. 104.
[35] Cf. CONCÍLIO
ECUMÊNICO VATICANO II, Decr. Presbyterorum
ordinis, n. 5.
[36] CONCÍLIO ECUMÊNICO
VATICANO II, Decr. Presbyterorum ordinis,
n. 13.
[37] PONTIFICAL ROMANO, Rito da ordenação de Presbíteros, n.
123.
[38] CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO
II, decr. Presbyterorum ordinis, n.
14.
[39] CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO
II, Decr. Presbyterorum ordinis, n.
14.
[40] JOÃO PAULO PP. II, Exort.
Apost. Pastores dabo vobis, n. 23.
[41] Ibid., n. 72.
[42] Cf. BENTO PP. XVI, Carta encícl. Deus caritas est, n. 6.
[43] BENTO PP. XVI, Homilia durante a ordenação presbiteral,
7.5.2006, Domingo do Bom Pastor, em: BENEDETTO XVI, Cari Sacerdoti, ao cuidado
de T. STENICO, Editrice Shalom, Camerata Picena 2006, p. 57.
[44] S. AGOSTINHO, Sermão sobre os Pastores, .....
[45] Citar.
[46] Os títulos inspiram-se nos
diversos capítulos da obra de A. DUPLEIX, Comme
insiste l’amour – présence du Curé d’Ars, pp.294-295.
[47] BENTO PP. XVI, Homilia na Quinta-feira santa de 2006, in BENEDETTO XVI, Cari Sacerdoti, p. 77.
[48] Le Cure d’Ars – Pensées, ao cuidado de
B. NODET, Desclée de Brower, Paris 2000, p. 45. Oração composta pelo Santo
provavelmente em 1848.
[49] C. LASSAGNE, Le Curé d’Ars au quotidien, p. 86-87 ; J.-M. FOURREY, Vie authentique, pp. 172-174.