CARTA DO SANTO PADRE
JOÃO PAULO II
AOS SACERDOTES
POR OCASIÃO DA
QUINTA-FEIRA SANTA DE 1986

 

Queridos Irmãos Sacerdotes,

1. Eis-nos chegados de novo às proximidades da Quinta-Feira Santa, o dia em que Jesus Cristo instituiu a Eucaristia e, ao mesmo tempo, o nosso Sacerdócio ministe­rial. Cristo, “tendo amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13,1). Como Bom Pastor, Ele ia dar a vida pelas sua ovelhas (Cf. Jo 10,11), para salvar os homens, reconciliá-los com o seu Pai e introduzi-los numa vida nova. E já nessa hora Ele deu aos Apóstolos, como alimento, o seu Corpo, entregue por eles, e o seu Sangue, derramado por eles.

Cada ano que passa, este Dia é grande para todos os cristãos. Na esteira dos primeiros discípulos, vão receber o Corpo e o Sangue de Cristo na Liturgia da tarde em que se renova a Ceia. Recebem do Salvador o testamento do amor fraterno, que deverá inspirar toda a sua vida, e começam a velar com Ele, para se unirem à sua Paixão. E sois vós quem os congregará e orientará a sua oração.

Mas este Dia é especialmente grande para nós, queridos Irmãos Sacerdotes. É a festa dos Sacerdotes. E o Dia em que nasceu o nosso Sacerdócio, o qual é participação no único Sacerdócio de Cristo Mediador. Neste Dia os Sacerdotes do mundo inteiro são convidados a concelebrar a Eucaristia com os seus Bispos e a renovar, juntos em torno deles, as promessas dos seus compromissos sacerdotais ao serviço de Cristo e da Igreja.

Bem sabeis quanto eu me sinto próximo de cada um de vós, nesta ocasião. E, como sucede todos os anos, como sinal da nossa união sacramental no mesmo Sacerdócio, movido pela estima afetuosa que eu tenho por vós e movido pelo meu dever de confirmar todos os meus irmãos no seu serviço ao Senhor, vos envio esta Carta, no intuito de vos ajudar a reavivar o dom extraordinário que vos foi conferido pela imposição de mãos (Cf. 2Tm 1,6). Este Sacerdócio ministerial, que é nossa herança, é também a nossa vocação e a nossa graça. Ele marca toda a nossa vida com o selo de um serviço sumamente necessário e o mais exigente que há: o da salvação das almas. Para ele nos sentimos arrastados pelo exemplo de uma multidão de irmãos que nos precederam.

 

O exemplo ímpar do Cura d’Ars

 

2. Um desses Sacerdotes, que continua muito presente na memória da Igreja e que este ano será especialmente comemorado, por ocasião do segundo centenário do seu nascimento, é São João Maria Vianney, pároco de Ars.

Desejamos todos dar graças a Cristo, Príncipe dos Pastores, por esse modelo extraordinário de vida e serviço sacerdotal, que o Santo Cura d’Ars constitui para toda a Igreja e, antes de mais, para nós Sacerdotes.

Quantos de nós se prepararam para o Sacerdócio, ou exercem hoje o difícil múnus de pároco, tendo diante dos olhos a figura de São João Maria Vianney! O seu exemplo não deveria cair jamais no esquecimento. Hoje, mais do que nunca, nós temos necessidade do seu testemunho e da sua intercessão, para saber enfrentar as situações do nosso tempo, em que, não obstante haver alguns sinais de esperança, a evangelização é contrariada por uma secularização crescente, em que se descura a ascese sobrenatural e muitos perdem de vista as perspectivas do Reino de Deus e em que, enfim, acontece, precisamente na pastoral, haver quem se preocupe de maneira por demais exclusiva do aspecto social e dos objetivos temporais. O Cura d’Ars, no século passado, teve de enfrentar dificuldades que talvez tivessem outro cariz, mas que não eram menores que as de hoje. Com a sua vida e com a sua atividade, ele constituiu para a sociedade do seu tempo como que um grande repto evangélico, que produziu frutos de conversão admiráveis. Não duvidamos de que ele nos apresente, ainda nos dias de hoje, esse grande desafio evangélico.

Convido-vos, pois, a meditar agora sobre o nosso Sacerdócio, diante deste pastor ímpar, o qual soube ilustrar ao mesmo tempo o cumprimento pleno do ministério sacer­dotal e a santidade do ministro.

Como vós sabeis, João Maria Batista Vianney morreu em Ars, no dia 4 de agosto de 1859, depois de cerca de quarenta anos de devotamento desgastante. Tinha então setenta e três anos de idade. A sua chegada, Ars era uma pequena aldeia desconhecida da Diocese de Lyon; atualmente pertence à de Belley. No final da sua vida acorria ali gente de toda a França; e depois da sua morte, a sua fama de santidade depressa chamou a atenção da Igreja universal. Assim, São Pio X beatificou-o em 1905; e Pio XI canonizou-o em 1925; e, mais ainda, em 1929, declarou-o patrono dos Sacerdotes de todo o mundo. Quando foi do centenário da sua morte, João XXIII escreveu a encíclica Sacerdotii nostri primordia, para apresentar o Cura de Ars como modelo de vida e ascese sacerdotais, modelo de piedade e de culto à Eucaristia, modelo, enfim, de zelo pastoral; e isto, no contexto das necessidades do nosso tempo. Hoje, desejaria somente chamar a vossa atenção para alguns aspectos essenciais, a fim de que isso nos ajude a redescobrir e a viver melhor o nosso Sacerdócio.

 

VIDA VERDADEIRAMENTE EXTRAORDINÁRIA

DO CURA D’ARS

 

A sua vontade tenaz de preparar-se para o Sacerdócio

 

3. O Cura d’Ars é modelo, em primeiro lugar, de vontade decidida, para aqueles que se preparam para o Sacerdócio. Numerosas provações que se sucederam poderiam ter feito com que perdesse a coragem: os efeitos da tormenta revolucionária, a reticências do pai, a necessidade de participar nos trabalhos agrícolas, as incertezas da vida militar e, sobretudo, a sua grande dificuldade em aprender e memorizar não obstante a sua inteligência intuitiva e a sua viva sensibilidade - dificuldade, portanto, em seguir os cursos de teologia em latim, e para cúmulo, por este mesmo motivo, um adiamento no Seminário de Lyon. No entanto, tendo sido reconhecida a autenticidade da sua vocação, aos 29 anos ele pôde ser ordenado Sacerdote.

Pela sua tenacidade no trabalho e na oração, conseguiu superar todos os obstáculos e limitações, como o conseguiria mais tarde, na sua vida sacerdotal; recorde-se a preparação laboriosa das suas pregações, bem como a continuação, à noite, da leitura de obras de teólogos e de autores espirituais. Animava-o, desde a sua juventude, uma grande aspiração de “conquistar almas para Deus” tornando-se Sacerdote; e nisso era apoiado pela confiança do pároco da vizinha aldeia de Ecully, o qual, não duvidando da sua vocação, tomou ao seu cuidado uma boa parte da sua preparação. Que belo exemplo de coragem para aqueles que, nos dias de hoje, recebem a graça de ser chamados ao Sacerdócio!

 

Profundidade do seu amor a Cristo e do seu amor às almas

 

4. O Cura d’Ars é um modelo de zelo sacerdotal para todos os pastores. O segredo da sua generosidade está, sem dúvida alguma, no seu amor a Deus, vivido sem reservas, numa resposta constante ao amor que se manifestou em Cristo crucificado. Ele baseia aí o seu desejo de fazer todo o possível para salvar as almas resgatadas por Cristo, a um preço tão elevado, e de as reconduzir ao amor de Deus. Fixemos uma daquelas frases lapidares, de que ele possuía o segredo: “o Sacerdócio é o amor do Coração de Jesus”[1]. Nas suas pregações e catequeses, ele não deixava de insistir sempre neste amor:

“Ó meu Deus, eu prefiro antes morrer amando-vos, do que viver um só instante sem vos amar... Eu amo-vos, meu divino Salvador, porque vós fostes crucificado por mim... porque me sustendes crucificado para vós”[2].

Por causa de Cristo, ele procura conformar-se fielmente às exigências radicais que Jesus propõe no Evangelho aos discípulos que envia em missão: oração, pobreza, humildade, abnegação de si mesmo e penitência voluntária. E, à semelhança de Cristo, ele sente para com as suas ovelhas um grande amor, que o leva ao devotamento de si mesmo. Raramente um pastor terá estado consciente até a este ponto das suas responsabilidades, devorado assim pelo desejo ardente de arrancar todos os fiéis do seu pecado ou da sua tibieza. “O meu Deus, concedei-me a conversão da minha paróquia: eu aceito sofrer tudo o que vós quiserdes, durante toda a minha vida”.

Amados Irmãos Sacerdotes: alimentados pelo Concílio Vaticano II que, felizmente, situou a consagração do Sacerdote bem no enquadramento da sua missão pastoral, procuremos o dinamismo para o nosso zelo sacerdotal, com São João Maria Vianney, no Coração de Jesus, no seu amor pelas almas. Se não fôssemos beber a essa mesma fonte, o nosso ministério correria o risco de dar muito pouco fruto.

 

Os frutos admiráveis e múltiplos do seu ministério

 

5. No caso do Cura d’Ars, precisamente, os frutos foram surpreendentes, um pouco como o que sucedeu com Jesus no Evangelho. A João Maria Vianney, que consagrou ao mesmo Jesus todas as suas forças e todo o seu coração, o Salvador dá-lhe em troca, de certo modo, as almas. E confia-lhas com profusão.

 

Em primeiro lugar, a sua paróquia - que à sua chegada contava somente 230 pessoas - viria a ser profundamente transformada. É bom recordar que, nesta aldeia, existia muita indiferença e uma prática religiosa mínima, entre os homens. O Bispo tinha advertido o Padre João Maria Vianney: “Não há muito amor de Deus nessa paróquia; o Senhor irá fazer por suscitá-lo”. E bem depressa o novel Pároco se tornou, mesmo para além da sua aldeia, o pastor de uma multidão, que aí acorria de toda a região, das diversas partes da França e de outros países. Fala-se de 80.000 pessoas no ano de 1858! Há quem tenha de esperar, algumas vezes, diversos dias para poder encontrar-se com ele e confessar-se. O que atraía as pessoas não era principalmente a curiosidade, nem sequer a reputação justificada por milagres e curas extraordinárias, que o Santo desejaria ocultar. Era sobretudo o pressentimento de ir encontrar-se com um Santo, admirável pela sua penitência, tão familiar com Deus na oração e notável pela paz que irradia e pela humildade no meio dos êxitos populares e, sobretudo, tão intuitivo para corresponder às disposições interiores das almas e libertá-las dos seus pesos, especialmente no confessionário. Sim, Deus escolheu como modelo de pastores alguém que poderia parecer pobre, fraco, sem defesa e desprezível aos olhos dos homens (Cf. l Cor 1,27-29). Mas favoreceu-o com os seus melhores dons, como orientador e médico das almas.

Embora reconhecendo a graça particular concedida ao Cura d’Ars, não haverá nele um sinal de esperança para os pastores que nos dias de hoje sofrem de uma certa desolação espiritual?

 

ATOS MAIS IMPORTANTES DO MINISTÉRIO DO CURA D'ARS

 

As diversas atividades apostólicas, orientadas para o essencial

 

6. João Maria Vianney consagrou-se essencialmente ao ensino da fé e à purificação das consciências; e estes dois ministérios convergiam para a Eucaristia. Não terá de se ver nisto, ainda hoje, os três pólos do serviço pastoral dos Sacerdotes?

A finalidade deste serviço, sem dúvida alguma, é congregar o Povo de Deus em torno do Ministério eucarístico, com a catequese e a penitência; mas há outras ativida­des apostólicas que, segundo as circunstâncias, também são necessárias: por vezes, será uma simples presença, durante anos, com o testemunho silencioso da fé nos meios não cristãos; ou então, será o estar com as pessoas, interessar-se por elas, pelas famílias e pelas suas preocupações; será ainda, um primeiro anúncio, que procura despertar para a fé os incrédulos e os tíbios; será, talvez, o testemunho da caridade e da justiça, com­partilhando com os leigos cristãos, que torna mais crível a fé e a põe em prática. E, a partir disto, há toda uma série de trabalhos e obras apostólicas, que preparam e dão con­tinuidade à formação cristã. O próprio Cura d' Ars se empenhou em tomar iniciativas adequadas ao seu tempo e aos seus paroquianos. Entretanto, todas as suas atividades sacerdotais estavam centralizadas na Eucaristia, na catequese e no sacramento da Reconciliação.

 

O sacramento da Reconciliação

 

7. A dedicação incansável ao sacramento da Penitência foi, sem dúvida alguma, o que manifestou o carisma principal do Cura d’Ars e o que o tornou justamente famoso. Será bom que este exemplo nos impulsione, nos dias de hoje, a dar novamente ao ministério da Reconciliação toda a importância que lhe corresponde e que o Sínodo dos Bispos de 1983 justamente pôs em evidência.[3] Sem a diligência de conversão, de penitência e de pedido do perdão, que os ministros da Igreja devem incansavelmente animar e acolher, a tão desejada atualização (aggiornamento) permaneceria superficial e ilusória.

O Cura d’Ars punha todo o cuidado, antes de mais, em formar os fiéis no desejo do arrependimento. Nesse sentido, ele procurava mostrar a beleza do perdão de Deus. Não foram, porventura, toda a sua vida sacerdotal e todas as suas forças consagradas à conversão pecadores? É no confessionário precisamente que se manifesta, acima de tudo, a grande misericórdia de Deus. Por isso mesmo, ele não queria furtar-se aos penitentes que vinham de toda a parte procurá-lo e aos quais dedicava freqüentemente dez horas por dia, outras vezes quinze ou mais. Esta era para ele, sem dúvida, a maior das suas práticas ascéticas, um “martírio”: fisicamente, primeiro que tudo, por causa do calor, do frio ou da atmosfera asfixiante; e também moralmente, dado que sofria pelos pecados que ouvia acusar e, mais ainda, pela falta de arrependimento. “Eu choro - dizia - por tudo aquilo por que vós não chorais". Além dos indiferentes, que acolhia da melhor maneira possível, procurando despertá-los para o amor de Deus, o Senhor concedia-lhe o ensejo de reconciliar grandes pecadores arrependidos como também de guiar para a perfeição almas que desta tinham sede. Era nesta coisas sobretudo, que Deus exigia dele participar na Redenção.

Nós redescobrimos, para nós hoje melhor do que no século passado, o aspecto comunitário da penitência, da preparação para o perdão e da ação de graças depois do perdão. No entanto, o perdão sacramental exigirá sempre um encontro pessoal com Cristo crucificado por intermédio do seu ministro[4]. Muitas vezes acontece, infelizmente, que os penitentes se apresentam no confessionário sem fervor algum, como no tempo do Cura d'Ars. Sendo assim e quando há um grande número de pessoas que, por diversas razões, parecem privar-se totalmente da confissão, isso é sinal de que se tornou urgente atuar toda uma pastoral do sacramento da Reconciliação, levando os cristãos a redescobrirem incessantemente: as exigências de uma verdadeira relação com Deus; o sentido do pecado em que se dá o fechamento ao mesmo Deus e aos outros; a necessidade de converter-se e de receber, mediante a Igreja, o perdão, como dom gratuito do Senhor; e, ainda, as condições que se requerem para celebrar bem o Sacramento, superando os preconceitos, os falsos temores e a rotina em relação ao mesmo[5]. A situação, como se apresenta, requer ao mesmo tempo que fiquemos muito disponíveis para este ministério do perdão, prontos a dedicar-lhe o tempo e atenção ne­cessários e, diria mesmo, a dar-lhe a prioridade em relação a outras atividades. Os fiéis reconhecerão, desta maneira, a importância que nós lhe damos, como sucedia com o Cura d’Ars.

Certamente, como tive ocasião de escrever na Exortação Pós-sinodal sobre a Penitência[6], o ministério da Reconciliação continua a ser sem dúvida o mais difícil, o mais delicado, o mais fatigante e o mais exigente, sobretudo em ocasiões em que os Sacerdotes são em número reduzido, Ele pressupõe também, na pessoa do confessor, grandes qualidades humanas e, acima de tudo, uma vida espiritual intensa e sincera; é necessário que o próprio Sacerdote recorra com regularidade a este Sacramento para seu proveito.

Podeis estar sempre convencidos disto, amados Irmãos Sacerdotes: este ministério da misericórdia é um dos mais belos e dos mais consoladores. Permitir-vos-á esclarecer as consciências, dar-lhes o perdão e revigorá-las em nome do Senhor, ser para elas médico e conselheiro espiritual; ele continua a ser “a insubstituível expressão e verificação do ministério sacerdotal”[7].

 

A Eucaristia: oferecimento da Missa, comunhão e adoração

 

8. Os dois sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia andam sempre intimamente unidos. Sem uma conversão constantemente renovada e a recepção da graça sacramental do perdão, a participação na Eucaristia não chegaria a ter a sua plena eficácia redentora[8]. A semelhança de Cristo, que começou o seu ministério exortando: “arrependei-vos e acreditai na Boa-Nova” (Mc 1,15), também o Cura d’Ars começava geralmente a sua atividade de cada dia com o ministério do perdão. Mas sentia-se feliz por orientar os seus penitentes reconciliados para a Eucaristia.

A Eucaristia era, na verdade, o centro da sua vida espiritual e da sua atividade pastoral. Dizia ele: “Todas as boas obras juntas não equivaleriam nunca ao Sacrifício da Missa, porque são obras dos homens; ao passo que a santa Missa é obra de Deus”[9]. É nela que é tornado presente o sacrifício do Calvário para a Redenção do mundo. O Sacerdote, evidentemente, deve unir ao oferecimento da Missa a doação de si mesmo: “faz bem, portanto, qualquer Sacerdote em oferecer-se a Deus em sacrifício todas as manhãs”[10]. “A sagrada Comunhão e o santo sacrifício da Missa são os dois atos mais eficazes para conseguir a transformação dos corações”[11].

Deste modo, a Missa era para o Padre João Maria Vianney a grande alegria e conforto da sua vida de Sacerdote. Ele punha todo o cuidado, apesar da afluência dos penitentes, em preparar-se bem, em silêncio, durante mais de um quarto de hora. Cele­brava com recolhimento, exprimindo bem a sua atitude adoradora nos momentos da consagração e da comunhão. Notava ele, de maneira realista: “A causa do relaxamento do Sacerdote está no fato de não se prestar atenção à Missa”[12].

O Cura d’ Ars sentia-se particularmente arrebatado pela permanência da presença real de Cristo na Eucaristia. Era geralmente diante do sacrário que ele passava longas horas de adoração, antes do amanhecer ou pela tarde; durante as suas homilias, muitas vezes, voltava-se para o sacrário dizendo com emoção: “Ele está ali!” Era também por este motivo que ele, tão pobre no seu presbitério, não hesitava em gastar quanto fosse necessário para adornar a sua igreja. O bom resultado viu-se no fato dos seus paroquianos bem depressa terem ganhado o costume de vir rezar diante do Santíssimo Sacramento, descobrindo através da atitude do próprio pároco a grandeza do Mistério da fé.

Ao olhar para um tal testemunho, pensamos naquilo que o Concílio Vaticano II nos diz a respeito dos Sacerdotes: “exercem o seu ministério sagrado sobretudo no culto eucarístico”[13]. E ainda recentemente o Sínodo extraordinário dos Bispos (dezembro de 1985) recordava: “A Liturgia deve fomentar o sentido do sagrado e fazê-lo resplandecer. Ela deve estar impregnada de reverência, de adoração e de glorificação de Deus... A Eucaristia é a fonte e o ápice de toda a vida cristã”[14].

Queridos Irmãos Sacerdotes: o exemplo do Cura d' Ars convida-nos a um sério exame de consciência: que lugar damos nós, na nossa vida quotidiana, à Santa Missa? Constitui ela, como no dia da nossa Ordenação - foi o nosso primeiro ato como Sa­cerdotes! - o princípio da nossa atividade apostólica e da nossa santificação pessoal? Qual o cuidado com que nos aplicamos em preparar-nos para ela e em celebrá-la? Como rezamos e quanto diante do Santíssimo Sacramento? Formamos neste sentido os nossos fiéis? Empenhamo-nos em fazer das nossas igrejas Casa de Deus, para onde a presença divina atraia os nossos contemporâneos que, com muita freqüência, têm a impressão de um mundo vazio de Deus?

 

A pregação e a catequese

 

9. O Cura d'Ars tinha muito a peito, ainda, nunca descuidar em nada o ministério da Palavra, absolutamente necessário para suscitar a predisposição para a fé e para a conversão. Ele chegava ao ponto de dizer: “Nosso Senhor, que é a própria verdade, não faz menos caso da sua Palavra que do seu Corpo”[15]. É conhecido quanto tempo ele dedicava, sobretudo ao princípio, a elaborar cuidadosamente a sua pregação do domingo. Com a prática, depois, ele chegou a exprimirse com maior espontaneidade, sempre com uma convicção ardente e clara, servindo-se de imagens e comparações tiradas da experiência quotidiana, muito sugestivas para os seus fiéis. As suas catequeses às crianças constituíam também uma parte importante do seu ministério; e os adultos juntavam-se de muito bom grado às mesmas crianças para aproveitarem deste testemunho ímpar, que brotava do coração.

O Cura d’Ars tinha a coragem de denunciar o mal sob todas as suas formas, sem contemporizações, porque estava em jogo a salvação eterna dos seus fiéis: “Se um pastor fica calado ao ver que Deus é ultrajado e as almas a desencaminharem-se, infeliz dele! Se ele não quer condenar-se, é preciso que, se houver qualquer desordem na sua paróquia, saiba calcar aos pés o respeito humano e o temor de ser menosprezado ou odiado”. Esta responsabilidade constituía para ele, como pároco, uma angústia. Mas, geralmente, ele insistia na ternura de Deus ofendido e na ventura de ser amado por Deus, unido a Deus, de viver na sua presença e para ele.

Queridos Irmãos Sacerdotes: estais bem persuadidos, certamente, da importância do anúncio do Evangelho, que o Concílio Vaticano II pôs em primeiro plano entre as funções do Sacerdote[16]. Procurais, sem dúvida, pela catequese, pela pregação e por outras formas de comunicar, que fazem parte dos meios de comunicação, tocar o coração dos nossos contemporâneos, com as suas expectativas e com as suas incertezas, para despertar e alimentar a fé. À imitação do Cura d'Ars e seguindo a exortação do Concílio[17], pondo todo o empenho em ensinar a genuína Palavra de Deus, que chama todos os homens à conversão e à santidade.

 

A IDENTIDADE DO SACERDOTE

 

O ministério específico do Sacerdote

 

10. São João Maria Vianney apresenta uma resposta eloqüente para algumas interrogações quanto à identidade do Sacerdote, que surgiram no decorrer dos últimos vinte anos; entretanto, parece que se estão a tomar posições mais equilibradas.

O Sacerdote encontra sempre, e de uma maneira imutável, a fonte da própria identidade em Cristo Sacerdote. Não é o mundo que fixa o seu estatuto, ao sabor das ne­cessidades ou das concepções das categorias sociais. O Sacerdote está marcado com o selo do Sacerdócio de Cristo, para participar na sua função de único Mediador e Re­dentor.

Assim, em virtude deste vínculo fundamental, abre-se diante do Sacerdote o campo imenso do serviço das almas, que visa a sua salvação em Cristo e na Igreja. Este serviço deve ser totalmente inspirado pelo amor às almas, à semelhança de Cristo, que dá a própria vida por elas. Deus quer que todos os homens sejam salvos, que nenhum dos seus filhos se perca (cf. Mt 18,14). “O Sacerdote deve estar pronto para corresponder às necessidades das almas”, dizia o Cura d’Ars[18]. “Ele não é para si mesmo, mas para vós”[19].

O Sacerdote é para os leigos: é ele quem os anima e apóia no exercício do sacerdócio comum dos batizados, que foi bem posto em realce pelo Concílio Vaticano II; esse exercício constante em fazer da própria vida uma oferenda espiritual, em dar testemunho do espírito cristão na família e nos encargos assumidos nas coisas temporais e, enfim, em tomar parte na evangelização dos seus irmãos. Entretanto, o serviço do Sacerdote é de outra ordem diversa. Ele foi ordenado para atuar em nome de Cristo-Cabeça, para levar os homens a entrar na vida nova trazida por Cristo, para lhes dispensar os seus mistérios - Palavra, Perdão, Pão da Vida - reuni-los no seu Corpo, ajudá-los a formarem-se interiormente, e viverem e agirem segundo o desígnio salvífico de Deus. Numa palavra, a nossa identidade de Sacerdotes manifesta-se no desenvolvimento “criativo” do amor pelas almas comunicado por Cristo Jesus.

As tentativas de laicizacão do Sacerdote são prejudiciais para a Igreja. Isto não quer dizer de forma alguma que o Sacerdote possa ficar alheado das preocupações humanas dos leigos: deve estar-lhes muito próximo, como João Maria Vianney, mas como Sacerdote, sempre guiado por uma perspectiva que seja a da salvação deles e do progresso do Reino de Deus. Ele é testemunha e dispensador de uma vida distinta da vida terrestre[20]. É essencial para a Igreja que a identidade do Sacerdote seja salvaguardada, com a sua dimensão vertical. A vida e a personalidade do Cura d’Ars são, quanto a isto, uma ilustração particularmente elucidativa e vigorosa.

 

Sua configuração íntima com Cristo e sua solidariedade com os pecadores

 

11. São João Maria Vianney não se contentou, de fato, com o cumprimento ritual dos atos do seu ministério. Procurou conformar com o modelo de Cristo o seu coração e a sua vida.

A oração foi a alma da sua vida: uma oração silenciosa, contemplativa, geralmente na igreja, aos pés do sacrário. Por Cristo, a sua alma abria-se às três Pessoas divinas, às quais, no seu testemunho, ele entregaria “a sua pobre alma”. “Soube conservar uma união constante com Deus, no meio da sua vida extremamente ocupada”. E nunca descurava o Ofício divino nem o terço. De maneira espontânea, voltava-se amiúde para a Virgem Santíssima.

A sua pobreza era extraordinária. Despojou-se literalmente em favor dos pobres. E fugiu das honras. A castidade resplandecia no seu olhar. Soube bem quanto custava a pureza para “encontrar a fonte do amor, que é Deus”. Para João Maria Vianney a obe­diência a Cristo traduzia-se na obediência à Igreja e especialmente ao seu Bispo. Soube encarná-la na aceitação do pesado cargo de pároco, que freqüentemente o horrorizava.

O Evangelho, porém, insiste de modo especial na renúncia a si mesmo, na aceitação da cruz. Numerosas cruzes se apresentaram ao Cura d’Ars ao longo do seu ministério: calúnias da parte do povo, incompreensões da parte de um vigário-coadjutor ou dos colegas, contradições e, ainda, uma luta misteriosa contra as potências infernais e, algumas vezes, mesmo a tentação do desespero, no meio de uma noite espiritual que atravessou.

E, contudo, ele não se contentou em aceitar estas provações, sem nunca se queixar; ia ao encontro da mortificação, impondo-se jejuns continuados e outras maneiras rudes para “reduzir o seu corpo à servidão”, como diz São Paulo. Mas o que é necessário notar bem nesta penitência, da qual o nosso século, infelizmente, anda um pouco arredio, são os motivos: o amor de Deus e a conversão dos pecadores. Assim, pôde ele interpelar um colega desanimado: “Tem rezado... gemido... ? Tem jejuado, porventura, e tem feito vigílias...?”[21]. Pode entrever-se aqui a interpelação feita por Jesus aos Apóstolos: “esta espécie de demônios não se expulsa senão à força de oração e jejum” (Mt 17,21).

No fim de contas, João Maria Vianney santifica-se a fim de ser mais apto para santificar os outros. A conversão continua a ser, certamente, um segredo dos corações, livres nas suas diligências, e um segredo da graça de Deus. Por meio do seu ministério, o Sacerdote mais não pode fazer do que esclarecer as pessoas, orientá-las no foro interno e proporcionar-lhes os Sacramentos. Estes Sacramentos são na realidade atos de Cristo; e a sua eficácia não é diminuída pela imperfeição ou indignidade do ministro. No entanto, o resultado deles depende também das disposições daqueles que os recebem; e estas disposições são grandemente favorecidas pela santidade pessoal do Sacerdote, pelo seu testemunho perceptível, assim como pelo intercâmbio misterioso dos merecimentos na comunhão dos santos. São Paulo escrevia: “completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja” (Cl 1,24). João Maria Vianney queria, de alguma forma, arrancar a Deus estas graças de conversão, não somente com as suas orações, mas também com o sacrifício de toda a sua vida. Desejava amar a Deus por aqueles que não o amavam e mesmo fazer em boa parte a penitência que eles não faziam. Ele era verdadeiramente o pastor solidário com o seu povo pecador.

Queridos Irmãos Sacerdotes, não tenhamos medo deste empenhamento pessoal - marcado pela ascese e inspirado pelo amor - que Deus nos pede para exercermos bem o nosso Sacerdócio. Recordemos sempre a recente reflexão dos Padres Sinodais: “Parece que nas dificuldades atuais Deus quer ensinar-nos, de maneira mais profunda, qual o valor, a importância e a centralidade da Cruz de Jesus Cristo”[22]. No Sacerdote, Cristo torna a viver a sua Paixão pelas almas. Demos graças a Deus, que nos permite, deste modo, participar na Redenção, com o nosso coração e com a nossa carne.

Por todas estas razões, São João Maria Vianney não cessa de ser uma testemunha, sempre viva e sempre atual, da verdade sobre a vocação e sobre o serviço sacerdotal. Há que recordar a maneira convincente como ele soube falar da grandeza do Sacerdote e da sua necessidade absoluta. Os sacerdotes e, de igual modo, aqueles que se preparam para o Sacerdócio e os que vierem a ser chamados para isso, precisam de fixar o olhar no seu exemplo e de o seguir. E os próprios fiéis, graças a ele, poderão captar melhor o mistério do Sacerdócio vivido pelos que o receberam. Não, a figura do Cura d'Ars jamais passará!

 

Conclusão para a Quinta-Feira Santa

 

12. Meus amados Irmãos: que estas reflexões possam reavivar a vossa alegria de ser Sacerdotes e o vosso desejo de o ser ainda mais profundamente! O testemunho do Cura d'Ars encerra outras riquezas a serem aprofundadas. Voltarei a tratar, de maneira mais desenvolvida, destes temas, por ocasião da peregrinação que, se Deus quiser, terei a alegria de fazer no próximo mês de outubro - dado que os Bispos franceses me convi­daram a visitar Ars - indo participar nas comemorações do segundo centenário do nas­cimento de São João Maria Vianney.

Apresento-vos esta primeira meditação, queridos Irmãos, pela Solenidade da Quinta-Feira Santa. Vamos reunir-nos em cada uma das nossas Comunidades diocesanas, nesse dia do nascimento do nosso Sacerdócio, para renovar a graça do sacramento da Ordem e para reavivar o amor que caracteriza a nossa vocação.

Vamos ouvir Cristo a dizer-nos, mais uma vez, como disse aos Apóstolos: “ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos... Já não vos chamo servos ... chamei-vos amigos” (Jo 15,13-15).

Diante d’Aquele que manifesta o Amor na sua plenitude, nós, Sacerdotes e Bispos, vamos renovar os nossos compromissos sacerdotais.

Vamos rezar uns pelos outros, cada um pelo seu irmão e todos por todos.

Vamos pedir ao eterno Pai que a lembrança do Cura d'Ars nos ajude a reavivar nosso zelo ao seu serviço.

Vamos suplicar ao Espírito Santo que chame para o bem da Igreja muitos Sacerdotes da têmpera e com a santidade do Cura d'Ars: também no nosso tempo ela tem uma grande necessidade de uma e outra coisa, e não é menor a sua capacidade para fazer desabrochar vocações assim.

Confiamos o nosso Sacerdócio à Virgem Maria, Mãe dos Sacerdotes, à qual João Maria Vianney recorria incessantemente, com terna afeição e com total confiança. Isso constituía para ele mais um motivo de ação de graças: “Jesus Cristo - dizia ele - de­pois de nos ter dado tudo o que nos podia dar, quis ainda fazer de nós herdeiros do que tinha de mais precioso, ou seja, da sua Santíssima Mãe”[23].

Reafirmo-vos, da minha parte, todo o meu afeto e, juntamente com o vosso Bispo, douvos a Bênção Apostólica.

 

Vaticano, 16 de março de 1986,
quinto Domingo da Quaresma,
oitavo ano do meu Pontificado.

 

 

 

Assinatura do Papa João Paulo II.png

 

Ionnes Paulus PP. II

 

 



[1] Cfr. Jean MarieVianney, Curé D'Ars sa pensé, son coeur, presenté par Bernard Nodet. Ed. Xavier Mappus, Le Puy, 1985. p. 100. Doravente, o citaremos como Nodet.

[2] Nodet, 44.

[3] Cf. João Paulo II, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Reconciliatio et pœnitentia.

[4] Cf. João Paulo II, Carta Encíclica Redemptor Ho­minis, n. 20

[5] Cf. João Paulo II, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Reconciliatio et pœnitentia, n. 28.

[6] Cf. Ibidem, n. 29.

[7] João Paulo II, Carta aos Sacerdotes por ocasião da Quinta-Feira Santa de 1983, n. 3

[8] Cf. João Paulo II, Carta Encíclica Redemptor Ho­minis, n. 20

[9] NODET, p. 108.

[10] NODET, p. 107

[11] NODET, p. 110.

[12] NODET, p. 108.

[13] Constituição dogmática Lumen Gentium, n. 28.

[14] Relação final, II, B, b/I e C/l; cf. Conc. Ecum. Vat. lI, Constituição dogmática Lumen Gentium, n. 11.

[15] NODET, p. 126.

[16] Cf. Decreto Presbyterorum Ordinis, n. 4.

[17] Cf. Ibid.

[18] NODET, p. 101.

[19] NODET, p. 102.

[20] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decreto Presbyterorum Ordinis, n. 3.

[21] NODET, p. 193.

[22] Relação final, D/2.

[23] Nodet, p. 252.