Um fogo

que acende outros fogos

 

 

Páginas escolhidas do

Pe. Alberto Hurtado, S.J.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Centro de Estudios y Documentación «Padre Hurtado»

Pontificia Universidad Católica de Chile


Apresentação

 

            «Iahweh é um fogo devorador», diz a Bíblia (Dt 4,24); e Jesus afirma: «Eu vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso!» (Lc 12,49); e em Pentecostes os apóstolos receberam «como língua de fogo» ficando cheios do Espírito Santo (At 12,49). Esta qualidade de Deus, revelada em Cristo e que permanece na sua Igreja por obra do Espírito, fez-se visível de modo particular no Pe. Alberto Hurtado s.j.

            Quem o conheceu recorre freqüentemente à imagem do fogo para descrever a sua vida: «Seu fogo era capaz de acender outros fogos», afirmou Mons. Francisco Valdés. O Pe. Damián Symon –seu diretor espiritual– disse que quando Alberto tinha vinte anos, o seu coração era como «um caldeirão em ebulição»; um teólogo jesuíta, seu companheiro em Lovaina, escreveu depois da sua morte: «Era uma chama: ele foi literalmente devorado». E na oração fúnebre, Mons. Larraín recordou que as vocações que nasciam «ao contato de uma alma inflamada de um apóstolo, era a realização, no tempo, da eterna palavra de Jesus: “ Eu vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso!”». E assim poderiam oferecer-se muitos testemunhos.

            O Pe. Hurtado reuniu «sob o olhar do Pai Deus e protegidos pelo manto maternal de Maria, uma juventude ardente, temperada de entusiasmo, portadora de archotes brilhantes, e com a alma cheia de fogo e de amor», e foi capaz disto, precisamente porque nele ardia o fogo do amor a Cristo, e esse fogo, por ser um fogo devorador, tende a propagar-se. Seu convite não era a reservar-se e a proteger-se, mas a doar-se e a consumir-se: «Deus deu-nos a graça para que sejamos santos, e o ideal cristão é consumir-se em chama, fogo e ação», e por isso exorta os jovens a «consumirem-se por Cristo, como esses archotes que se consumam em vossas mãos».

            O seu não era «um fogo artificial», que só busca brilhar, mas é passageiro; o fogo do Pe. Hurtado era autêntico, ele mesmo indica-nos a sua fonte: «Tomo o Evangelho, vou a São Paulo, e ali encontro um cristianismo todo fogo, toda vida, conquistador; um cristianismo verdadeiro que toma o homem inteiro, retifica toda a vida, abarca toda atividade. É como um rio de lava ardendo, incandescente, que sai do fundo mesmo da religião». A grande fecundidade apostólica do Pe. Hurtado não é só fruto das suas notáveis qualidade humanas; ela é fruto da sua união com Cristo que, como o fogo, apoderou-se da sua vida até tender a dizer com São Paulo: «Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é cristo que vive em mim» (Gl 2,20).

            O presente livro não pretende descrever a obra e as ações do Pe. Hurtado, mas introduzir-se em seu coração. Por isso, oferecem-se textos escritos por ele mesmo, que permitem conhecer «desde dentro» o coração do apóstolo.


            * Nota: O presente livro pretende difundir a palavra do Pe. Hurtado a um público amplo. Por isso, os textos foram ligeiramente adaptados, para facilitar a sua leitura, e, no caso dos documentos demasiado longos, foram omitidos alguns parágrafos. De todos os modos, o leitor poderá aceder aos textos completos, que foram editados –com introduções e notas– por Ediciones Universidad Católica de Chile. As anedotas e testemunhos, em geral, forma tomados da enquete do Pe. Pomar s.j. e do Processo Cognocional do Servo de Deus Alberto Hurtado Cruchaga S.J., o que assegura a sua confiabilidade, pois se trata de documentos oficiais do processo de canonização. Esperamos que a leitura destas páginas desperte o interesse pelos textos completos. A referência da fonte de cada documento encontra-se no final, na pág.???


Breve biografia do Pe. Alberto Hurtado Cruchaga, s.j.

 

            Nascimento e infância

            Alberto Hurtado Cruchaga nasce em Viña del Mar (Chile), aos 22 de janeiro de 1901. Passa a sua infância na Fazenda Mina del Agua, perto de Casablanca, com seus pais, Alberto Hurtado Larraín e Ana Cruchaga Tocornal, e seu único irmão, Miguel, dois anos mais jovem do que ele. Em 1905, falece seu pai, o que acarretará sérias dificuldades econômicas e a posterior venda das terras, que eram o patrimônio familiar. Por isso mudam-se para Santiago e começam a viver em casas de distintos parentes, sem ter uma casa própria. Em 1909, entra no Colégio Santo Inácio. Nesse mesmo ano faz a sua primeira comunhão, e no ano seguinte é confirmado. As dificuldades econômicas não impedem que, junto com sua mãe, trabalhasse pelos mais pobres, no Patronato Santo Antônio. Termina o colégio em 1917.

            «Não podia ver a dor sem querer remediá-la»

            Em março de 1918, começa seus estudos de Direito na Universidade Católica do Chile. Envolve-se intensamente na vida universitária, participando do Centro de Estudantes de Direito. Continua com a sua grande preocupação pelos mais pobres, tanto pelo apostolado que realiza o Patronato de Andacollo, como pela atividade política que desenvolve com grande preocupação social. Sabe unir a sua própria carreira à sua inquietude por servir aos outros, organizando, junto com alguns estudantes de Direito, um consultório jurídico para operários, e dedicando as suas teses de graduação a buscar soluções jurídicas a alguns graves problemas sociais.

            Augusto Salinas, um dos seus companheiros de curso e futuro bispo auxiliar de Santiago, declara: «Sua vida de união com Jesus Cristo arrastava-o para os que sofrem». Durante a crise trabalhista do salitre, organiza seus companheiros de curso para servir aos operários que vieram para Santiago e que estavam instalados em pensões muito precárias. Além disso, participa do Circo de Estudos Leão XIII, onde liam as encíclicas sociais com o Pe. Jorge Fernández Pradel s.j., e é professor voluntário do Instituto Noturno Santo Inácio, organismo para a formação dos operários. Entre agosto e novembro de 1920, faz o Serviço Militar no regimento Yungay.

            O Pe. Damián Symon, ss.cc., seu diretor espiritual nestes anos, descreve-o nestes termos: «Conheci-o quando já era universitário. As virtudes que foram aflorando e solidificando-se foram deslumbrantes, sobretudo a que se referia à caridade, pois apareceu um zelo incontido, que tinha que moderar repetidamente para que não chegasse à exageração. Não podia ver a dor sem querer remediá-la, nem uma necessidade qualquer sem estudar como solucioná-la. Vivia num ato de amor a Deus que se traduzia constantemente em algum ato de amor ao próximo; o seu zelo quase desbordado, não era senão seu amor que se punha em caminho. Tinha um coração como um caldeirão em ebulição que necessita uma via de escape».

            Discernimento vocacional

            As cartas ao seu amigo Manuel Larraín, futuro bispo de Talca, são testemunha de uma profunda busca da vontade de Deus. Ambos os jovens enfrentam a mesma aventura com grande seriedade, perguntando-se: O que quer Deus de mim? Alberto tem claro que Deus designa um lugar para cada homem, e que, naquele lugar, Deus dar-lhe-á as graças abundantes; por isso, oferece-se ao Senhor: «Eu te faço a entrega de tudo o que sou e possuo, eu desejo dar-to tudo, servir-te onde não tenha nenhuma restrição em meu dom total». Mas, saber onde servir o Senho não era tarefa fácil. Alberto sente-se chamada ao sacerdócio, mas também ao matrimônio e a realizar um apostolado como leigo, e, ademais, pensou em ser monge cartuxo (Pe. Vives dissuadiu-o). Em 1923, Alberto escreve a seu amigo Manuel: «Reza, mas com toda a alma, para que possamos arrumar nossas coisas e os dois cumpramos este ano a vontade de Deus». Para Alberto, cumprir a vontade de Deus era entrar no noviciado jesuíta e, para Manuel, entrar no Seminário de Santiago.

            Alberto não podia entrar nos jesuítas porque devia sustentar economicamente sua família. O Pe. Damián Symon relata como chegou a solução: «Durante todo o Mês do Sagrado Coração de Jesus, do ano de 1923, às 10 da noite, vi-o estender-se no chão, diante do Santíssimo Sacramento, e passar uma hora inteira nessa postura, implorando, na oração mais fervorosa, que o Senhor solucionasse os seus problemas econômicos para poder consagrar-se totalmente a Deus». A solução chegou de modo providencial, precisamente o dia do Sagrado Coração.

            Aos 07 de agosto de 1923, depois de ter apresentado a sua tese de Mestrado O trabalho a domicílio, faz o seu exame final, que aprova com nota máxima por unanimidade, e, com isto, recebe o seu título de Advogado.

            Justamente antes de entrar no Noviciado jesuíta, a Universidade Católica despede o seu ex-aluno. Assim testifica-o a Revista Universitaria, um documento de inestimável valor, por ser contemporâneo aos fatos: «Depois de ter cursado com ele, com o mais formoso êxito, os cinco anos da Faculdade de Direito, e de ter obtido brilhantemente seu título de advogado com nota ótima da Corte Suprema e distinção unânime da Universidade Católica, Alberto Hurtado, nosso amigo, o amigo de todos os jovens católicos, o amigo de pobres e ricos, partiu para o noviciado da Companhia de Jesus. Seu imenso amor a Deus foi premiado pela Divina Providência que lhe concedeu o mérito de abandonar tudo que podia ter. A Universidade Católica sentiu a necessidade de despedir com todo carinho o exemplar ex-aluno e celebrou nas vésperas da sua partida uma Missa que oficiou o senhor Reitor e para a qual concorreu um numeroso grupo de seus amigos» (Revista Universitaria, 1923). Alberto nem sequer espera receber o diploma de Advogado e parte para Chillán, para iniciar seu Noviciado no dia 15 de agosto, o que mostra a sua proximidade à Santíssima Virgem, que se manterá ao longo de toda a sua vida.

            Estudante jesuíta

            A alegria de Alberto por ter entrado no Noviciado fica bem expressada numa carta ao seu inseparável amigo: «Querido Manuel: por fim aqui estou como jesuíta, feliz e contente como não se pode ser mais nesta terra: transbordo de alegria e não me canso de agradecer a Nosso Senhor porque me trouxe a este verdadeiro paraíso, onde a gente pode dedicar-se a Ele nas 24 horas do dia. Tu podes compreender o meu estado de ânimo nestes dias; dizendo-te que quase chorei de gozo».

            A primeira parte da sua formação desenvolve-se em Chillán, entre Retiros Espirituais e trabalhos humildes. Posteriormente, translada-se para Córdoba, Argentina, para terminar ali o seu período de noviciado e consagrar-se ao Senhor com seus votos religiosos, aos 15 de agosto de 1925. Segundo recorda-se, «pedia os trabalhos humildes da cozinha». Os escritos desta época refletem um sincero esforço para avançar no caminho da santidade: toma muito a sério a sua formação, a oração e os estudos; e compromete-se em pequenas virtudes como não falar mal dos outros, ser amável, ou destacar as virtudes alheias. Entre seus apontamentos pessoais, escreve: «Não criticar meus irmãos, velar seus defeitos, falar de suas qualidades… Falar sempre bem dos Superiores e das suas disposições. Falar sempre bem dos meus irmãos, desculpar seus defeitos, pôr em relevo as suas qualidades».

            Entre os anos de 1927 e 1931, estuda filosofia e começa com a teologia em Sarriá, Espanha. Uma testemunha daqueles anos afirma-o, «tão abnegado, tão caritativo, tão trabalhador, tão zeloso da glória de Deus e do bem dos seus próximos, e, como fundamento de tudo, tão sobrenatural, unido com Deus e piedoso, principalmente em sua devoção à Santíssima Virgem». Pela situação política da Espanha, os jesuítas tiram do país os seus estudantes estrangeiros. E Alberto deve continuar a teologia na Universidade Católica de Lovaina, uma das mais prestigiosas do mundo. Um companheiro de formação recorda: «A gente gostava de estar com ele, já que se sentia cômodo. Ouvia seus companheiros com muita atenção. Vivia sempre num ambiente de fé. Era muito mortificado, dedicava-se completamente ao estudo, a sua caridade era grande; sempre serviçal, com um sorriso acolhedor». Um outro assegura: «Possuía um grande dom de simpatia que fazia tão agradável tratar com ele; que era simples e modesto». Uma formosa testemunha retrata o seu caráter: «Seu pronto sorriso e seu olhar indagador, num modo indefinível, parecia impelir a gente para coisas mais altas… Seu sorriso dava a impressão de que estava olhando no interior da minha alma e estava ansioso por ver-me fazer maiores e melhores coisas pelo Senhor».

            Um jesuíta belga transmite-nos um eloqüente testemunho: «O Pe. Hurtado tinha o temperamento de um mártir; tenho a íntima convicção de que ele se ofereceu como vítima pela salvação do seu povo, e especialmente pelo mundo operário da América. Conheci o Pe. Hurtado na teologia, em Lovaina. Impressionava e edificava sobretudo a sua caridade, tão ardente e atenta, resplandecente de alegria e entusiasmo. Já então ‘consumia-se’ de ardor e de zelo. Sempre pronto a alegrar os outros. Quanto amava seu país e seu povo! Esse amor fazia-o sofrer profundamente. Voltei a ver o querido Padre no Congresso de Versalhes, em 1947. Era a mesma chama: o fogo interior abrasava-o de amor a Cristo e ao seu povo. Meu querido amigo era uma alma de uma qualidade ‘muito rara’, e para di-lo tudo: um santo; um mártir do amor de Cristo e das almas».

            Sacerdote de Cristo

            Aos 24 de agosto de 1933, é ordenado sacerdote. Na sua primeira missa, acompanha-o o seu inseparável amigo e futuro provincial, o Pe. Álvaro Lavín. Um vez ordenado sacerdote, escreve a um amigo: «Já me tens sacerdote do Senhor! Bem compreenderás a minha felicidade imensa.  Com toda a sinceridade, posso dizer-te que sou plenamente feliz. Agora não desejo mais que exercer o meu ministério com a maior plenitude possível de vida interior e de atividade exterior».

            Durante estes anos, presta um grande serviço em favor da fundação da Faculdade de Teologia da Universidade Católica do Chile. O esgotante trabalho que realizou mostra o grande apreço que Alberto Hurtado professa pelo estudo sério da teologia. Em dezembro de 1934, Mons. Casanueva expressa-lhe seu agradecimento nestes termos: «A imensa gratidão que te devo pelo teu empenho tão abnegado, tão inteligente, tão atinado e tão carinhoso, que jamais poderei pagar-te e que só Deus poderá recompensar-te devidamente; depois de Deus e da pessoa que fez esta fundação, a ninguém se deverá esta faculdade como a ti».

            Aos 24 de maio de 1934, aprova a graduação em teologia. O presidente da comissão era o Pe. Janssens, futuro superior geral da Companhia de Jesus, que comentou: «Em meus longos anos de Superior não vi passar junto a mim uma alma de maior irradiação apostólica que a do Padre Hurtado». Entre os anos 1934 e 1935, finaliza a sua formação e, aos 10 de outubro, faz o seu exame para o Doutorado em Ciências Pedagógicas, na Universidade de Lovaina, tendo apresentado a tese O sistema pedagógico de Dewey diante das exigências da doutrina católica. É aprovado com «máxima distinção».

            Antes de voltar, faz uma viagem por diversos países europeus , com a finalidade de estudar várias instituições educacionais. Pensa-se nele para professor de Ética e Sociologia na Argentina, mas, dadas as necessidades, é destinado para o Chile. Aos 22 de janeiro de 1936, justo ao cumprir 35 anos, embarca-se em Hamburgo, às 10:00 h da manhã, de regresso para a sua pátria.

 


            Apóstolo entre os jovens

            Voltando a Santiago, em fevereiro de 1936, começa o seu apostolado com os jovens, de modo especial, no Colégio Santo Inácio e na Universidade Católica. Mas, a tarefa educativa do Pe. Hurtado não se limita só às aulas; o carisma deste apóstolo atrai os jovens mais além dos compromissos acadêmicos. Promove o serviço aos mais pobres, porque «ser católicos eqüivale a ser sociais». Ao mesmo tempo, dá grande importância aos retiros espirituais. Várias vezes, durante o ano, impelirá diversos grupos, de jovens e adultos, a um encontro profundo com o Senhor e a buscar com seriedade a vontade de Deus. Num destes retiros afirma: «Todo cristão deve aspirar sempre a isto: a fazer o que faz, como Cristo faria no seu lugar…».

            Seu amor ao sacerdócio e à eucaristia fica retratado num seu formoso testemunho: no ano de 1937, em San José de la Mariquina, um missionário capuchinho observa-o celebrar a Missa, e chama-lhe tão poderosamente a atenção «que dizia não ter visto nunca uma celebração da missa tão edificante, que se fossem assim os sacerdotes chilenos, deveriam ser todos santos».

            Nos inícios de 1941, o Pe. Hurtado é nomeado assessor da Ação Católica de jovens de Santiago. A A.C. fora impulsionada em 1923 pelo Papa Pio XI, e significou um decidido impulso à participação ativa dos leigos na Igreja. Trabalho também com alunos de liceus públicos de Santiago.

            No mesmo ano de 1941, publica um livrou que marcou uma época: É o Chile um país católico?, que, com grande agudeza, otimismo e valentia, abre os olhos de muitos católicos acerca da verdadeira situação do catolicismo no Chile, assinalando o grave problema da escassez de vocações sacerdotais. É um tempo de profundas transformações, o mundo é disputado por ideologias opostas e totalitárias, enquanto a Europa dessangra-se na Segunda Guerra Mundial. O Pe. Hurtado estremece-se diante dos horrores da guerra, mas, além disso, começa a pensar em como reconstruir, com Cristo, o mundo da pós-guerra.

            A sua fecundidade pastoral leva-o, aos poucos meses, a ser nomeado Assessor Nacional da Ação Católica Juvenil. Percorre o país organizando os grupos e pregando retiros. É o tempo das grandes procissões de archotes aos pés da imagem de Maria Santíssima, no Cerro San Cristóbal, com milhares de jovens. Neste contexto, apela à generosidade dos jovens: «Se Cristo descendesse nesta noite escaldada de emoção, repetiria, olhando a cidade escura: ‘Tenho compaixão dela’, e dirigindo-se a vocês diria com ternura infinita: ‘Vocês são a luz do mundo… Vocês são os que  devem iluminar estas trevas. Querem colaborar comigo? Querem ser meus apóstolos?’».

            O seu trabalho não é compreendido, e começa a sentir que não conta com a confiança do Mons. Salinas, seu amigo da Universidade, e Assessor Geral da A.C. Devido a este clima de discrepâncias e tensões, em abril de 1942, apresenta a renúncia ao cargo de Assessor Nacional da Ação Católica, renúncia que é rechaçada pelos bispos chilenos.

            O trabalho continua: em fevereiro de 1943, zarpa para Magallanes, para forma a A.C. na cidade mais austral do mundo, visitando Puerto Natales, Porvenir e Punta Arenas. A fecundidade desta visita permitirá a celebração posterior de um Congresso Eucarístico e uma mudança de ambiente em relação com a Igreja.

            Posteriormente, seguir-se-ão suscitando incompreensões e divergências com Mons. Salinas. As críticas que se repetem são falta de espírito hierárquico, idéias avançadas no campo social e uma certa independência a respeito do resto dos ramos da A.C. Isto motiva, finalmente, que renuncie, irrefutavelmente, ao seu cargo, em novembro de 1944. A situação deve ter sido muito dura para ele, dado que tinha muitas esperanças postas na Juventude Católica, e, por outra parte, a oposição não vinha ‘da hierarquia’, pois contava com o apoio e a admiração de numerosos bispos, entre eles, o Cardeal Caro; a oposição vinha do seu próprio amigo Augusto Salinas. Esta amarga situação, heroicamente aceitada, foi a ocasião de uma grande maturação espiritual para o Pe. Hurtado.

            O 'Hogar de Cristo' (Lar de Cristo)

            No mês anterior à sua renúncia, tal como ele mesmo o relata, numa noite fria e chuvosa, aproxima-se dele «um pobre homem com uma amigdalite aguda, tiritando, em mangas de camisa, que não tinha onde amparar-se». A sua miséria estremece-o. Poucos dias depois, aos 15 de outubro, dando um retiro para senhoras, na Casa do Apostolado Popular, fala, sem tê-lo previsto, sobre a miséria que existe em Santiago e a necessidade da caridade: «Cristo vaga por nossas ruas na pessoa de tantos pobres, enfermos, desalojados do seu mísero cortiço. Cristo, encorrugido  debaixo das pontes, na pessoa de tantos meninos que não têm a quem chamar ‘pai’, que carecem desde muitos anos do beijo da mãe sobre a sua testa… Cristo não tem lar! Não queremos dar-lho nós, os que temos a dita de ter um lar confortável, comida abundante, meios para educar e assegurar o porvir dos filhos? ‘O que fizerdes ao mais pequeninos dos meus irmãos, o fareis a mim, disse Jesus». E assim nasce o Lar de Cristo. Na saída do retiro, recebe as primeiras doações – um terreno, vários cheques e jóias – por parte das senhoras presentes.

            Em maio de 1945, o Arcebispo de Santiago, Mons. José Maria Caro benze a primeira sede do Lar de Cristo. No ano seguinte, inaugura-se a Hospedaria da rua Chorrillos. Pouco a pouco, o Lar de Cristo crescerá até níveis admiráveis, prestando um inestimável serviço aos mais pobres e criando uma corrente de solidariedade que atualmente superou as fronteiras da nossa pátria. O seu propósito é não se contentar somente com dar alojamento: «Uma das primeiras qualidades que se deve devolver aos nossos indigentes é a consciência do seu valor de pessoas, da sua dignidade de cidadãos, mais ainda, de filhos de Deus». Os meninos do Mapocho deviam chegar a ser operários especializados.

            Entretanto continua o seu trabalho formativo entre os jovens, e prossegue com a pregação de retiros. Em junho do mesmo ano, num bate-papo de preparação para a festa do Sagrado Coração, recorda aos estudantes a sua responsabilidade social, responsabilidade que é uma conseqüência das palavras de Cristo: «O dever social do universitário não é senão a tradução concreta na sua vida de estudante hoje e de futuro profissional, amanhã, dos ensinamentos de Cristo», e convida cada um a «estudar a sua carreira em função dos problemas sociais próprios do seu ambiente profissional». Pede aos jovens uma grande generosidade, com a certeza de que «quem olhou profundamente uma vez sequer os olhos de Jesus , não o esquecerá jamais».

            Em setembro de 1945, o Pe. Hurtado faz uma viagem nos Estados Unidos e em outros países da América Central. Em outubro chega em Dallas e começa uma nutrida agência de entrevistas e visitas e instituições de beneficência, semelhantes ao Lar de Cristo. Aos 29 de janeiro começa o seu retiro espiritual em Baltimore. A viagem de volta de New York para Valparaíso, a bordo do barco «Illapel». Durante essa travessia escreve: «Cada vez  que subia ao ponte de comando e via o trabalho do timoneiro, não podia fazer a menos que uma meditação fundamental, a mais fundamental de todas, a que marca ‘o Rumo da vida’».

            Apostolado social

            Volta aos seus nutridos trabalhos habituais: pregação de retiros, direção espiritual de jovens, preocupação pelas vocações sacerdotais, o Lar de Cristo, aulas no Colégio Santo Inácio e na Universidade Católica, etc. Aos 13 de junho de 1947, dia do Sagrado Coração, junto com um grupo de universitários, constitui a Ação Sindical e Econômica Chilena (ASICH), como um modo de buscar «a maneira de realizar um trabalho que fizesse presente a Igreja no terreno do trabalho organizado».

            Entre julho de 1947 e janeiro de 1948, o Pe. Hurtado realiza uma viagem na França para assistir a uma série de importantes congressos e semanas de estudo. A seu superior, o Pe. Álvaro Lavín, solicita a permissão para a viagem: «Será muita audácia pedir-lhe que pense se seria possível que assistisse este servidor o Congresso de Paris?». Outorgada a permissão, parte para a França aos 24 de julho de 1947. Participa da 34ª Semana Social em Paris, onde entabula conversas com o Cardeal E. Suhard, Arcebispo de Paris; passa uma semana em L’Action Populaire (centro de ação social organizado pelos jesuítas franceses, atualmente CERAS), e logo participa da Semana Internacional dos jesuítas em Versalhes, onde o Pe. Hurtado fala em duas oportunidades acerca da situação do Chile. A sua exposição é descrita como «um grito de angústia, mas, ao mesmo tempo, uma irresistível lição de zelo apostólico puro e ardentemente sobrenatural», e é considerado uma das personalidades mais notáveis do encontro. Aos 24 de agosto, passando por Lourdes, viaja para a Espanha, e, de regresso, permanece dois dias com os sacerdotes operários em Marselha; em setembro assiste ao Congresso de Pastoral Litúrgica, em Lião, e participa da Semana de Assessores da Juventude Operária Católica em Versalhes. Em outubro viaja para Roma, e tem três audiências com o Pe. Geral da Companhia de Jesus, um encontro com Mons. Montini (futuro Papa Paulo VI), e, aos 18 de outubro, é recebido em audiência especial por S.S. Pio XII, que lhe outorga um grande apoio. Finalmente, junto com Manuel Larraín, visita o filósofo Jacques Maritain. O próprio Pe. Hurtado afirma: «O mês em Roma foi uma graça do céu, pois vi e ouvi coisas sumamente interessantes que me animaram muito para seguir integramente na linha começada. Neste sentido, as palavras de alento do Santo Padre e do Nosso Padre Geral foram para mim um estímulo imenso».

            Volta para a França e permanece duas semanas com o Pe. J. Lebret em Économie et Humanisme, outra instituição católica dedicada ao estudo dos problemas sociais e econômicos. Durante estes dias, realizou uma viagem rápida para estudar a Liga de Camponeses Católicos, os Sindicatos Cristãos e a Juventude Operária Católica. Com razão pôde escrever: «acumulo toneladas de experiências interessantíssimas».

            Depois deste nutrido itinerário de congressos e entrevistas, aos 17 de novembro chega em Paris, para «fechar-me por um tempo em meu quarto, pois as experiências acumuladas são demasiado numerosas e é preciso assimilá-las, amadurecê-las, anotá-las». Em dezembro, escreve: «Aqui estou em Paris, fazendo vida de Casa de Retiro, fechado num quarto, cheio de livros… há tanto que fazer, tanto que ler e meditar, pois, esta viagem deu-ma Deus para que me renove e me prepare nos tremendos problemas que lá temos». Permanece mais de dois meses quase sem sair de Paris, e só vai uns dias a um Congresso de moralistas. A sua exposição é acerca da relação entre Igreja e Estado, e intitula-se: «Com ou sem o poder?».

            Desta viagem resgata muitos aspectos; a sua opinião geral do movimento católico social é certamente positiva, mas também adianta-se em ver certos riscos. Por exemplo, a respeito do Congresso de moralistas, vê «um afã excessivo de renovação» e uma tendência «a esquecer os valores reais da Igreja, a visão tradicional», tendência que tem como conseqüência deixar a Igreja «sem dirigentes autenticamente cristãos, mas com homens de mística social, mas não cristão-social»; mas, ao mesmo tempo, assinala que «por cima de tudo há muito espírito, muito desejo de servir à Igreja, e uma abnegação realíssima como demonstra-se nos trabalhos que empreendem».

            De volta ao Chile, estas experiências permitem-lhe amadurecer o seu projeto das ASICH, pondo como ponto de partida o seu sólido fundamento em Cristo e em sua Igreja. A tarefa é dura e não isenta de maus entendidos e críticas injustas. A ASICH nasce para oferecer formação cristã aos operários, centrada no ensinamento social da Igreja, e com miras a defender a dignidade do trabalho humano sobre qualquer consigna ideológica. As críticas repetem-se; todavia, não conseguem desanimar o Pe. Hurtado. Uma carta que revela a personalidade do Pe. Hurtado, diz: «Claro que há muitos perigos, e que o terreno é difícil… Quem não o vê? Mas, será esta uma razão para abandoná-lo ainda mais tempo?… Que alguma vez vou dar um fora? Certo! Mas, não será mais dar o fora, se por covardia, pelo desejo do perfeito, do acabado, não fazer o que se possa?».

            Últimos anos de apostolado

            Continua com a sua intensa atividade apostólica habitual, de aulas, confessionário, grupos, direção espiritual, Lar de Cristo e retiros espirituais. Durante o ano de 1948 faz algumas conferências em Valparaíso, Temuco, Sewell, Inquique, Putaendo e Chillán; algumas conferências são muito freqüentadas, até 4.000 pessoas, e são transmitidas pelo rádio. As pregações do mês de Maria, na Igreja de São Francisco, são consideradas pelo Pe. Hurtado «o ministério de mais fruto do ano».

            As atividades multiplicam-se. Cumpre-se o que ele escrevera: «Se alguém começou a viver para Deus em abnegação e amor pelos outros, todas as misérias marcarão um encontro na sua porta… Sou com freqüência como uma rocha golpeada por todos os lados pelas ondas que sobem. Não fica mais escapada que por cima. Durante uma hora, durante um dia, deixo que as ondas açoitem a rocha; não olho o horizonte, só olho para cima, para Deus. Ó bendita vida ativa, toda consagrada ao meu Deus, toda entregada aos homens, e cujo excesso mesmo conduz-me para encontrar-me a dirigir-me para Deus! Ele é a única saída possível para as  minhas preocupações, meu único refúgio».

            Em janeiro de 1950, o episcopado boliviano convida-o a participar da Primeira Concentração Nacional de Dirigentes do Apostolado Econômico Social. Nela urge buscar o Cristo Completo, com todas as suas conseqüências, e, «pela fé devemos ver Cristo nos pobres», e buscar soluções técnicas adequadas, pois, «chegou a hora em que a nossa ação econômico-social deve cessar de contentar-se com repetir consignas gerais tiradas das encíclicas dos Pontífices e propor soluções bem estudadas de aplicação imediata no campo econômico e social».

            Impulsado pelo seu interesse pelo apostolado intelectual, funda a Revista Mensaje. O Pe. Hurtado desejava a publicação de «uma revista que voe» com a finalidade de dar formação religiosa, social e filosófica. O que ele queria era: «Orientar, e ser o testemunho da presença da Igreja no mundo contemporâneo». Eu outubro de 1951, apareceu o primeiro número de Mensaje. No seu editorial, explica que o nome alude «à Mensagem que o Filho de Deus trouxe do céu para a terra e cujas ressonâncias a nosso revista deseja prolongar e aplicar à nossa pátria chilena e aos nossos atormentados tempos».

            Doença e morte

            Seu testemunho mais comovedor é a sua doença e a sua morte. Diante da morte, revela-se a profundidade do homem e manifesta-se a grandeza de Deus. Quando comunicam-lhe a notícia da sua doença incurável, o Pe. Hurtado exclama: «Como não vou fiar contente! Como não estar agradecido com Deus! Em lugar de uma morte violenta, manda-me uma longa enfermidade para que possa preparar-me; não me dá dores; dá-me o gosto de ver tantos amigos, de vê-los todos. Verdadeiramente, Deus tem sido para mim um Pai carinhoso, o melhor dos pais».

            O Pe. Hurtado desejou profundamente ao longo do seu árduo trabalho a vida eterna, isto é, o encontro definitivo com Cristo. Assim mostra-o uma das páginas mais formosas dos seus escritos: «E eu? Diante da minha eternidade. Depois de mim, a eternidade. O meu existir, um suspiro entre duas eternidades. A minha vida, pois, um disparo para a eternidade. Não me apegar aqui, mas através de tudo olhar a vida ventura. Que todas as criaturas sejam transparentes e me deixem verdadeiramente ver Deus e a eternidade. Na hora em que se façam opacas, torno-me terreno e estou perdido. Depois de mim a eternidade. Para lá vou e muito cedo… Quando alguém pensa que muito cedo terminará o presente, tira uma conclusão: ser cidadãos do céu, não do solo». A imagem do disparo, junto com manifestar a fugacidade da vida, insiste em que a vida está concentrada numa só direção: a eternidade.

            A generosidade da sua entrega compreende-se à luz das suas convicções: «A vida foi dada ao homem para cooperar com Deus, para realizar seu plano; a morte é o complemento dessa colaboração, pois é a entrega dos nossos poderes nas mãos do Criador. Que cada dia seja como a preparação da minha morte, entregando-me de minuto em minuto à obra de cooperação que Deus me pede, cumprindo a minha missão, a que Deus espera de mim, a que não posso fazer senão eu».

            Durante todo o seu ministério, fala da eternidade, que descreve como «uma viagem infinitamente nova e eternamente longa», e busca as imagens mais atrativas para referir-se a ela: «Esta vida nos foi dada para buscar Deus, a morte para encontrá-lo, a eternidade para possuí-lo. Chega o momento em que depois do caminho chega-se ao termo. O filho encontra seu Pai e joga-se nos seus braços, braços que são de amor, e por isso, para nunca fechá-los deixou-os pregados na sua cruz; entra em seu lado que, para significar seu amor, ficou aberto pela lança, manando dele sangue que redime e água que purifica». O valor destas palavras aumenta pela alegria e serenidade com que o Pe. Hurtado enfrentou a sua própria morte. Esta visão de eternidade levara-o a comprometer-se tão profundamente com o mundo e com os homens «até não poder suportas as suas desgraças»; esta visão de fé impulsara-o a escrever: «Encerrar os homens no meu coração, todos ao mesmo tempo. Ser plenamente consciente do meu intenso tesouro, e com um oferecimento vigoroso e generoso, oferecê-los a Deus. Fazer em Cristo a unidade dos meus amores. Tudo isto em mim como uma oferenda, como um dom que arrebenta o peito; um movimento de Cristo no meu interior que desperta e aviva a minha caridade; um movimento da humanidade, por mim, para Cristo. Isso é ser sacerdote!».

            No dia 18 de agosto de 1952, às 05 da tarde, o Pe. Hurtado morre santamente, rodeado pelos seus irmãos da comunidade. Poucos dias antes da sua morte, dita uma carta, que podemos considerar um convite: «Na medida em que apareçam as necessidades e as dores dos pobres, busquem como ajudá-los como se ajudaria o Mestre. Ao desejar a todos e a cada um em particular esta saudação, confio-lhes, em nome de Deus, os pobrezinhos».

            O testemunho da sua morte choca a sociedade chilena. Aos 20 de agosto, às 8:30 h, celebra-se a missa dos funerais. O Cardeal Caro reza o responso, e a homilia está a cargo do seu amigo, Mons. Manuel Larraín, bispo de Talca, que afirmou: «Se silenciássemos a lição do Pe. Hurtado, desconheceríamos o tempo de uma grande visita de Deus à nossa pátria». Assiste uma grande multidão de gente, de todos os setores da sociedade. Às 10:30 h, sai o cortejo para a Paróquia de Jesus Operário. O trajeto de umas quarentas quadras se faz a pé, a pedido dos assistentes. Ao sair da igreja de Santo Inácio, forma-se no céu um cruz de nuvens.

            As poéticas palavras que lhe escreve Gabriela Mistral permanecem com uma lembrança e uma tarefa: «Durma quem muito trabalhou. Não durmamos nós, não, como grandes devedores fugazes que não volvem a cara para o que nos rodeia, nos cinge e nos urge quase como um grito…».

            No mesmo ano da sua morte, o Pe. Álvaro Lavin sugere ao Pe. Geral que se inicie o processo de beatificação. Em 1955, o Pe. Provincial, Carlos Pomar, começa com as consultas às testemunhas. Anos depois, em abril de 1971, a Assembléia Plenária da Conferência Episcopal do Chile concorda em pedir a introdução da Causa da sua Beatificação. A causa avança rapidamente e na sua visita ao Chile, o Santo Padre, João Paulo II, visita o Lar de Cristo e reza diante da tumba do Pe. Hurtado. Aos 16 de outubro de 1994, o Papa beatifica o Pe. Hurtato na Praça São Pedro, do Vaticano, e agora encontramo-nos na espera da sua iminente canonização.

            João Paulo II propõe-nos estas desafiadoras palavras: «Poderá também nos nossos dias o Espírito suscitar apóstolos da estatura do Pe. Hurtado, que mostrem com o seu abnegado testemunho de caridade a vitalidade da Igreja? Estamos seguros que sim; e o pedimos com fé».


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PÁGINAS ESCOLHIDAS

DOS ESCRITOS DO

Pe. ALBERTO HURTADO S.J.

 

 

 

           


A quem amar?

            Reflexão pessoal escrita em novembro de 1947

 

            A quem amar? A todos os meus irmãos de humanidade. Sofrer com os seus fracassos, com as suas misérias, com a opressão de que são vítimas. Alegrar-me das suas alegrias. Começar por trazer de novo ao meu espírito todos aqueles que encontrei no meu caminho: aqueles de quem recebi a vida, que me deram a luz e o pão. Aqueles com os quais partilhei o teto e o pão. Os que conheci no meu bairro, no meu colégio, na Universidade, no quartel, nos meus anos de estudo, no meu apostolado… Aqueles a quem combati, a quem causei dor, amargura, dano… A todos aqueles a quem socorri, ajudei, tirei de um apuro… Os que me contrastaram, me desprezaram, me fizeram um dano. Aqueles que vi nos cortiços, nos barracos, debaixo das pontes. Todos estes cuja desgraça pude adivinhar, vislumbrar a sua inquietude. Todos estes meninos pálidos, de carinhas deprimidas… Estes tísicos de San José, os leprosos de Fontilles… Todos os jovens que encontrei num círculo de estudos… Aqueles que me ensinaram com os livros que escreveram, com a palavra que me dirigiram. Todos os da minha cidade, os do meu país, os que encontrei na Europa, na América… Todos os do mundo: são meus irmãos.

            Encerrá-los no meu coração, todos de uma vez. Cada um no seu lugar, porque, naturalmente, há lugares diferentes no coração do homem. Ser plenamente consciente do meu imenso tesouro, e com um oferecimento vigoroso e generoso, oferecê-los a Deus. Fazer em Cristo a unidade dos meus amores. Tudo isto em mim como uma oferenda, como um dom que arrebenta o peito; um movimento de Cristo no meu interior que desperta e aviva a minha caridade; um movimento da humanidade, por mim, para Cristo. Isto é ser sacerdote!

            Minha alma jamais sentira-se mais rica, jamais fora arrastada por um vento tão forte, e que partia do mais profundo dela mesma; jamais reunira em si mesma tantos valores para elevar-se com eles para o Pai.

            Urgido pela justiça e animado pelo amor

            Atacar, não tanto os efeitos, quanto as suas causas. Que ganhamos com gemer e lamentar-nos? Lutar contra o mal corpo a corpo. Meditar e voltar a meditar o evangelho do caminho de Jericó (cf. Lc 10, 30-32). O agonizante do caminho é o desgraçado que encontro cada dia, mas é também o proletariado oprimido, o rico materializado, o homem sem grandeza, o poderoso sem horizonte, toda a humanidade do nosso tempo, em todos os seus setores.

            Ter presente em primeiro lugar a miséria do povo. É a menos merecida, a mais tenaz, a que mais oprime, a mais fatal. E o povo não tem ninguém que o preserve, para que o tire do seu estado. Alguns se compadecem dele, outros lamentam os seus males, mas, quem se consagra em corpo e alma a atacar as causas profundas dos seus males? Daqui a ineficácia da filantropia, da mera assistência, que é um emplastro à ferida, mas não o remédio profundo. A miséria do povo é ao mesmo tempo do corpo e da alma.

            O primeiro, amá-los: amar o bem que se encontra neles, a sua simplicidade, a sua rudeza, a sua audácia, a sua força, a sua franqueza, as suas qualidades de lutador, as suas qualidades humanas, a sua alegria, a missão que realizam diante das suas famílias… Amá-los até não poder suportar as suas desgraças… Prevenir as causas dos seus desastres, afastar dos seus lares o alcoolismo, as enfermidades venéreas, a tuberculose. A minha missão não pode ser somente consolá-los com formosas palavras e deixá-los na sua miséria, enquanto eu almoço tranqüilamente, e enquanto nada me falta. A sua dor deve fazer-me mal: a falta de higiene das suas casas, a sua alimentação deficiente, a falta de educação dos seus filhos, a tragédia das suas filhas: que tudo o que os diminui, que me dilacere a mim também.

            Amá-los para fá-los viver, para que a vida humana se desenvolva neles, para que se abra a sua inteligência e não fiquem retrasados. Que os erros ancorados no seu coração firam-me continuamente. Que as mentiras ou as ilusões com que lhes embriagam, atormentem-me; que os jornais materialistas que lhes ilustram, irritem-me; que os seus prejuízos estimulem-me a mostrar-lhes a verdade.

            E isto não é mais que a tradução da palavra «amor». Coloquei-os no meu coração para que vivam como homens na luz, e a luz não é senão Cristo, verdadeira luz que ilumina todo homem que vem a este mundo (Jn 1, 9). Toda luz da razão natural é luz de Cristo; todo conhecimento, toda ciência humana. Cristo é a ciência suprema.

            Mas Cristo traz-lhes outra luz, uma luz que orienta as suas vidas para o essencial, que lhes oferece um resposta às suas perguntas mais angustiosas. Por que vivem? A que destino foram chamados? Sabemos que há um grande chamamento de Deus sobre cada um deles, para fá-los felizes na visão de Ele mesmo, face a face (1Cor 13, 12). Sabemos que forma chamados a alargar o seu olhar até saciar-se do mesmo Deus. E este chamamento é para cada um deles, para os mais miseráveis, para os mais ignorantes, para os mais descuidados, para os mais depravados entre eles. A luz de Cristo brilha nas trevas para todos eles (cf. Jo 1, 5). Necessitam desta luz. Sem esta luz serão profundamente desgraçados.

            Amá-los apaixonadamente em Cristo, para que a semelhança divina progrida neles, para que se retifiquem no seu interior, para que tenham horror de destruir-se ou de diminuir-se, para que tenham respeito da sua própria grandeza e da grandeza de toda criatura humana, para que respeitem o direito e a verdade, para que todo o seu ser espiritual desenvolva-se em Deus, para que encontrem Cristo como a coroação da sua atividade e do seu amor, para que o sofrimento de Cristo seja-lhes útil, para que o seu sofrimento complete o sofrimento de Cristo (cf. Cl 1, 24).

            Se lhes amamos, saberemos o que teremos que fazer por eles. Responderão eles? Sim , em parte. Deus quer sobretudo o meu esforço, e nada se perde do que se faz no amor.


            O Rumo da vida

            Meditação, escrita a bordo de um barco, voltando dos Estados Unidos, em 1946

 

            Um presente do meu Pai Deus foi uma viagem de 30 dias de barco, de Nova York para Valparaíso. Por generosidade do bondoso Capitão tinha uma mesa na ponte de comando, ao lado do timoneiro, onde ia trabalhar tranqüilo com luz, ar, vista formosa… A única distração eram as vozes de ordem com relação ao rumo da viagem. E ali aprendi que o timoneiro, como dizia-me o Capitão, leva nossas vidas em suas mãos porque leva o rumo do navio. O rumo da navegação é o mais importante. Um piloto constata-o permanentemente, segue-o passo a passo sobre o mapa, controla-o tomando o ângulo de sol e o horizonte, inquieta-se nos dias nublados porque não pôde verificá-lo, escreve-se num quadro-negro diante do timoneiro, dão-lhe ordens que, para certificar-se que as entendeu, deve repeti-las cada uma: «A bombordo, a estibordo, um pouquinho a bombordo, assim como vai…». São vozes de ordem que aprendi e não esquecerei.

            Cada vez que subia à ponte e via o trabalho do timoneiro, não podia evitar de fazer uma meditação fundamental, a mais fundamental de todas, a que marca o rumo da vida.

            Em Nova York, multidão de navios, de toda espécie. O que é que os diferencia mais fundamentalmente? O rumo que vão tomar. O mesmo barco ‘Illapel’, em Valparaíso, tinha como rumo Nova York ou Rio de Janeiro; em Nova York tinha como rumo Liverpool ou Valparaíso.

            Apreciar a necessidade de tomar a sério o rumo. Num barco, o piloto que se distrai é despedido sem remissão, porque joga com algo demasiado sagrado. E, na vida, cuidamos do nosso rumo?

            Qual é o teu rumo? Se fosse necessário deter-se ainda mais nesta idéia, rogo a cada um dos senhores que lhe dê a máxima importância, porque acertar nisto é simplesmente acertar; falhar nisto é simplesmente falhar.

            Barco magnífico: o «Queen Elizabeth», 70.000 toneladas (o «Illapel» carregado são 8.000 toneladas). Se me tento pela sua formosura e subo nele sem cuidar-me do seu rumo, corro o pequeno risco de que, em lugar de chegar a Valparaíso, chegue em Manila!! E em lugar de estar com os senhores, veja caras filipinas.

            Quantos vão sem rumo e perdem suas vidas… gastam-nas miseravelmente, dilapidam-nas sem nenhum sentido, sem bem para ninguém, sem alegria para eles e depois de algum tempo sentem a tragédia de viver sem sentido. Alguns tomam rumo em tempo, outros naufragam em alto mar, ou morrem por falta de víveres, extraviados, ou vão a espatifar-se numa costa solitária.

            O trágico problema da falta de rumo, talvez o mais trágico problema da vida. O que perde mais vidas, o responsável de maiores fracassos. Eu penso que se os escolhos morais fossem físicos, e a nossa conduta fossem um barco de ferro, por mais sólido que tenha sido construído, não ficaria senão restos de naufrágios.

            Se a fé dá-nos o rumo e a experiência mostra-nos os escolhos, tomemo-los a sério. Manter o timão. Fixar o timão, e, como em cada momento, as ondas e as correntes desviam, retificar, retificar em cada instante, de dia e de noite… Não as costas atrativas, mas o rumo assinalado! Pedir a Deus a graça grande: ser homens de rumo.

            1º ponto. O porto de partida. É o primeiro elemento básico para fixá-lo. E aqui pregar minha alma no fato básico: Deus e eu. O primeiro fato maciço de toda filosofia, de todo sistema de vida: venho de Deus, sim dele. Todo dele. Nada mais certo, e sobre este fato vou edificar a minha vida, sobre este primeiro dado vou fixar o meu rumo.

            E aqui como sempre: esta fato é assim? É um fato? Porque a religião funda-se sobre fatos, não sobre teorias.

            Tomar a sério estas verdades: que sirvam para fundar a minha vida, para dar-me rumo. Uma pessoa é cristã na medida em que tira as conseqüências das verdades que aceita. Daqui também essa atitude, não de orgulho, mas sim de valentia, de serenidade e de confiança, que nos dá a nossa fé: não nos fundamos numa cavilação, mas numa maciça verdade.

            2º ponto. O porto de chegada. É o outro ponto que fixa o rumo. Valparaíso ou Liverpool? De Nova York saía junto conosco Liberty, porta-aviões… Para onde se dirigem? Desde a Universidade do Chile o desde a fábrica, para onde? O termo da minha é Ele!

            3º ponto. O caminho. Tenho os dois pontos, os dois portos. Por onde devo endereçar o meu barco? Ao porto de chegada, por um caminho que é a vontade de Deus. A realização em concreto do que Deus quer. Eis aqui a grande sabedoria. Todo o trabalho da vida sábia consiste nisto: em conhecer a vontade do meu Senhor e Pai. Trabalhar para conhecê-la, trabalho sério, obra de toda a vida, de cada dia, de cada manhã: que queres, Senhor, de mim? Trabalhar em realizá-la, em servi-lo em cada momento. Esta é a minha grande missão, maior que fazer milagres. Deus nos quer santos. Esta é vontade de Deus: não medíocres, mas santos.

            Qual é o Caminho da minha vida? A vontade de Deus: santificar-me, colaborar com Deus, realizar a sua obra. Haverá algo maior, mais digno, mais formoso, mais capaz de entusiasmar? Chegar ao Porto!!

            E para chegar ao porto não há mais que este caminho que conduza… Os outros a outros portos, que não são o meu!! E aqui está todo o problema da vida. Chegar ao porto que é o fim da minha existência. Quem acerta, acerta; e quem aqui não chega é um grande errado, seja um milionário, um Hitler, um Napoleão, um afortunado no amor, se aqui não acerta, a sua vida nada vale; se aqui acerta: feliz para sempre jamais. Amém!!

            De onde venho? Para onde vou? Que grande! Por que caminho? Enfrentar o rumo. O timão firme na minha mão e quando aumentem os ventos, rumo a Deus; e quando me chamem da costa, rumo a Deus; e quando me canse, rumo a Deus!!

            Só? Não. Com todos os tripulantes que Cristo quis encarregar-me de conduzir, alimentar e alegrar! Que grande é a minha vida! Que plena de sentido. Com muitos rumos para o céu. Dar aos homens a coisa mais preciosa que existe: Deus; e dar a Deus o que mais ama, aquilo pelo qual deu seu filho: os homens.

            Senhor, ajuda-me a sustentar o timão sempre para o céu, e se vou soltar, prega-me no meu rumo, pela tua Mãe Santíssima, Estrela dos mares, Doce Virgem Maria.


            A busca de Deus

            Reflexão pessoal que o Pe. Hurtado pediu que se publicasse depois da sua morte

 

            Época trágica a nossa. Esta geração conheceu as horríveis guerras mundiais e está às portas de um conflito mais trágico, um conflito tão cruel que até os mais interessados em provocá-lo se detêm espantados, diante do pensamento das ruínas que acarretará. A literatura que expressa o nosso século é uma literatura apocalíptica, testemunho de um mundo atormentado até a loucura.

            Quantos, no nosso século, se não loucos, sentem-se inquietos, desconcertados, tristes, profundamente sós no vasto mundo superpovoado, mas sem que a natureza nem os homens falem de nada ao seu espírito, nem lhes dêem uma mensagem de consolo! Por que? Porque Deus está ausente do nosso século. Muitas definições podem-se dar da nossa época: idade do maquinismo, do relativismo, do conforto. Melhor se diria uma sociedade da qual Deus está ausente.

            Os grandes ídolos do nosso tempo são o dinheiro, a saúde, o prazer, a comodidade: o que serve ao homem. E se pensamos em Deus, sempre fazemos dele um meio a serviço do homem: pedimo-lhe contas, julgamos seus atos, e queixamos quando não satisfaz os nossos caprichos. Deus em si mesmo parece não nos interessar. A contemplação está esquecida, a adoração e o louvor é pouco compreendido. O critério da eficácia, o rendimento, a utilidade, funda os juízos de valor. Não se compreende o ato gratuito, desinteressado, do qual nada se pode esperar economicamente.

            Até os cristãos, à força de respirar esta atmosfera, estamos impregnados de materialismo, de materialismo prático. Confessamos a Deus com os lábios, mas a nossa vida de cada dia está longe dele. Absorvem-nos mil preocupações. A nossa vida de cada dia é pagã. Nela não há oração, nem estudo do dogma, nem tempo para praticar a caridade ou para defender a justiça. A vida de muitos de nós, não é, por acaso, um absoluto vazio? Não lemos os mesmos livros, assistimos os mesmos espetáculos, emitimos os mesmos juízos sobre a vida e sobre os acontecimentos, sobre a divórcio, a limitação da natalidade, a anulação dos matrimônios, os mesmos juízos que os ateus? Tudo o que é próprio do cristão: consciência, fé religiosa, espírito de sacrifício, apostolado, é ignorado e até denigrido: parece-nos supérfluo. A maioria leva uma vida puramente material, da qual a morte é o termo final. Quantos batizados choram diante de uma tumba como os que não têm esperança!

            A imensa amargura da alma contemporânea, o seu pessimismo, a sua solidão… as neuroses e até a loucura, tão freqüentes no nosso século, não são o fruto de um mundo que perdeu Deus? Já bem o dizia Santo Agostinho: «Criaste-nos, Senhor, para ti e o nosso coração está inquieto até que não descanse em ti».

            Felizmente, a alma humana não pode viver sem Deus. Busca-o espontaneamente, mesmo em manifestações objetivamente desviadas. Na fome e sede de justiça que devora muitos espíritos, no desejo de grandeza, no espírito de fraternidade universal, está latente o desejo de Deus. A Igreja Católica desde a sua origem, mais ainda, desde o seu precursor, o Povo prometido, não é senão a afirmação nítida, resoluta, da sua crença em Deus. Por confessá-lo, morrerem muitos no Antigo Testamento; por ser fiel à mensagem do seu Pai, morreu Jesus, e depois dele, por confessar um Deus Uno e Trino cujo Filho habitou entre nós, morreram milhões de mártires. Desde Estêvão e os que como archotes iluminavam os jardins de Nero, até os que, nos nossos dias, na Rússia, na Tchecoslováquia, na Iugoslávia; ontem no Japão, na Espanha e no México, deram seu sangue por Ele. A outros não foi pedido este testemunho extremo, mas em sua vida de cada dia afirmam-no valentemente: religiosos que abandonam o mundo para consagrar-se à oração; religiosos que unem a sua vida de operários, na fábrica, a uma profunda vida contemplativa; universitários animados de um sério espírito de oração; operários, como os da Juventude Operária Católica, que são já mais de um milhão no mundo, para os quais a oração parece algo conatural e junto a eles, sábios, sábios que se prezam da sua qualidade de cristãos. Há grupos seletos de almas escolhidas que buscam a Deus com toda a sua alma e cuja vontade é o supremo anelo das suas vidas.

            E quando encontraram-no, a sua vida descansa como numa rocha perene; o seu espírito repousa na paternidade divina, como o menino nos braços da sua mãe (cf. Sl 130). Quando Deus foi encontrado, o espírito compreende que o único grande que existe é Ele. Diante de Deus, tudo se desvanece: tudo quanto a Deus não interessa, se torna indiferente. As decisões realmente importantes e definitivas são as que jazem nele.

            A quem encontrou Deus acontece o que acontece a quem ama pela primeira vez: corre, voa, sente-se transportado; todas as suas dúvidas estão na superfície, no profundo do seu ser reina a paz. Não lhe importa nem muito nem pouco qual seja a sua situação, nem se escuta ou não as suas preces. O único importante é: Deus está presente. Deus é Deus. Diante deste fato, cala seu coração e repousa.

            Na alma deste repatriado há dor e felicidade ao mesmo tempo. Deus é ao mesmo tempo a sua paz e a sua inquietude. Nele descansa, mas não pode permanecer um momento imóvel. Tem que descansar andando; tem que amparar-se na inquietude. Cada dia levanta-se Deus diante dele como um chamado, como um dever, como dita próxima não alcançada.

            Quem acha Deus sente-se buscado por Deus, como perseguido por Ele, e nele descansa, como num vasto e tíbio mar. Esta busca de Deus só é possível nesta vida, e esta vida só toma sentido nessa mesma busca. Deus aparece sempre e em todas as partes, e em nenhum lado é encontrado. Ouvimo-lo no ruído das ondas, e, no entanto, cala. Em todas as partes sobe ao nosso encontro e nunca podemos captá-lo; mas um dia cessará a busca e será o definitivo encontro. Quando encontramos Deus, todos os bens deste mundo estão encontrados e possuídos.

            O chamado de Deus, que é o fio condutor de uma existência sana e santa, não é outra coisa senão o canto que desde as colinas eternas descende doce e rugiente, melodioso e cortante. Chegará um dia em que veremos que Deus foi a canção que balançou as nossas vidas. Senhor, faz-nos dignos de escutar esse chamado e de segui-lo fielmente.


            Jesus recebe os pecadores

            Meditação de retiro sobre a misericórdia de Jesus

 

            «Este recebe os pecadores!», era a acusação que lançavam contra Jesus Cristo, hipocritamente escandalizados, os fariseus (Lc 15,2). «Este recebe os pecadores!». E é verdade! Essas palavras são como o distintivo exclusivo de Jesus Cristo. Aí podem escrever-se sobre essa cruz, na porta desse Sacrário!

            Distintivo exclusivo, porque se não é Jesus Cristo, quem recebe misericordiosamente os pecadores? Por acaso o mundo?… O mundo?… por Deus!, se se nos assomara diante toda a lepra moral de injustiças que quiçá ocultamos nos dobras da consciência, o que faria o mundo senão fugir de nós gritando escandalizado: Fora o leproso!? Rechaçar-nos brutalmente, dizendo-nos, como o fariseu, afasta-te que manchas com o teu contato!

            O mundo faz pecadores os homens, mas logo que os faz pecadores, condena-os, injuria-os, e acrescenta à lama dos seus pecados a lama do desprezo. Lama sobre lama é o mundo: o mundo não recebe os pecadores. Somente Jesus Cristo recebe os pecadores.

            São João Crisóstomo: Meu Deus, tem misericórdia de mim! Misericórdia pedes? Pois não temas! Onde há misericórdia não há investigações judiciais sobre a culpa, nem aparato de tribunais, nem necessidade de alegar raciocinadas escusas. Grande é a tormenta dos meus pecados, meu Deus! Mas, maior é a bonança da tua misericórdia!

            Jesus Cristo, logo que apareceu no mundo, a quem chama? Os magos! E depois do magos? Ao publicano! E depois do publicano a prostituta. E depois da prostituta? O salteador! E depois do salteador? O perseguidor ímpio.

            Vives como um infiel? Infiéis eram os magos. És usurário? Usurário era o publicano. És impuro? Impura era a prostituta. És homicida? Homicida era o salteador. És ímpio? Ímpio era Paulo, porque primeiro foi blasfemo e logo apóstolo; primeiro perseguidor, logo evangelista… Não me digas: «sou blasfemo, sou sacrílego, sou impuro».  Pois, não tens exemplo de todos os pecados perdoados por Deus?

            Pecaste? Faz penitência. Pecaste mil vezes? Faz penitência mil vezes. Ao teu lado colocar-se-á Satanás para despertar-te. Não o sigas, recorda antes estas quatro palavras: «Jesus recebe os pecadores», palavras que são um grito inefável do amor, uma efusão inesgotável de misericórdia, e uma promessa inquebrantável de perdão.

            Quão formoso é tornando a tuas pegadas

            de novo por elas

            seguro correr.

            Não é tão doce depois de uma noite sombria

            a luz do dia

            que começa a nascer.


            O Sangue do Amor

Discurso pronunciado durante o Desfile, em 1944

 

            Três palavras parecem mover o mundo contemporâneo e estão no fundo de todos os sistemas que se oferecem como solução aos males da nossa época: coletividade, solidariedade, justiça social. A Nossa Santa Mãe Igreja não despreza estas palavras, mas, muito pelo contrário, supera-as com infinita maior riqueza e com um conteúdo imensamente mais revolucionário e, elevando-se sobre elas, fala de unidade, fraternidade, amor. Estas três palavras são o fundo de todo o ensinamento da Igreja, do seu ensinamento de sempre, mas especialmente renovado nos nossos dias que presenciaram um desenvolvimento insuspeitado na riqueza das suas aplicações das doutrinas mais sociais e revolucionárias que jamais se tenham pronunciado sobre a terra. Cristãos não sois máquinas, nãos sois animais de carga, sois filhos de Deus! Amados por Cristo, herdeiros do Céu… Autenticamente filhos de Deus; sois um em Cristo; em Cristo não há ricos nem pobres, burgueses nem proletários; nem arianos nem saxões; nem mongóis nem latinos, mas que Cristo é a vida de quem quer aceitar a divinização do seu ser.

            As grandes devoções que enchem o nosso século, as que brilham como o sol e a lua no nosso firmamento, são: a fé profunda em Cristo, caminho para o Pai, e a ternura filial para Maria, nossa doce Mãe, caminho para Cristo. O amor à Maria faz crescer nos fiéis a compreensão de que Maria é o que é por Cristo, seu Filho. «Ide a Jesus!» é a palavra ininterrupta de Maria, é o conselho que cada noite ressoa no mês de Maria. E os fiéis vão a Jesus.

            Nesse momento em que o mundo derrama seu sangue pela guerra; nestes momentos em que vemos a nossa Pátria numa das etapas mais difíceis da história, quando o desemprego está rondando os nossos grandes centros industriais e começamos a ver fábricas que param e operários que se afundam no desespero da miséria; nestes momentos em que se agudizam as palavras de ódio, fruto da amargura e da fome, o nosso Bispo quer que levantemos os olhos para este símbolo de um amor que não perece, de um amor que nos incita a amar-nos de verdade, e urge-nos a fazer efetivo este amor com obras de justiça primeiro, mas de justiça superada e coroada pela caridade. No meio de tanto sangue que derrama o ódio humano, a cobiça de possuir, a paixão da honra, quer nossa Mãe a Igreja que olhemos este outro sangue, sangue divino derramado pelo amor, pela ânsia de dar-se, pela suprema ambição de fazer-nos felizes. O sangue do ódio lavado pelo Sangue do Amor.

            Nestes momentos, irmãos, a nossa primeira missão há de ser que nos convençamos profundamente que Deus nos ama. Homens todos da terra, pobres e ricos, Deus nos ama; o seu amor não pereceu, pois somos seus filhos. Este grito simples, mas mensagem de esperança, não deve gelar-se nunca nos nossos lábios: Deus nos ama, somos seus filhos… Somos seus filhos! Ó, vós dos 50.000.000 de homens que vagais agora fora da vosso Pátria, lançados fora do vosso lar pelo ódio da guerra!, Deus vos ama! Tende fé! Deus vos ama! Jesus também quis conhecer a vossa dor e teve que fugir da sua Pátria e comer o pão do deserto! Vós, operários que estais submergidos no fundo das minas arrancando o carvão, às vezes debaixo do mar para ganhar um pedaço de pão, Deus vos ama! Sois seus filhos! O Filho de Deus foi também operário! Vós, enfermos, que jazeis no leito da dor devorados pela atroz enfermidade, sois filhos de Deus! Deus vos ama, Jesus, vosso irmão, compreende o vosso sofrimento, aquele que tomou sobre si a dor do mundo. Vós, mendigos, vós os que careceis de tudo, até de um teto que vos cubra, os que viveis debaixo destas pontes ou encolhidos em miseráveis choças… Deus vos ama! Sois filhos de Deus! Os pássaros tinha ninho, as raposas uma toca, mas Jesus, vosso irmão, não tinha onde reclinar sua cabeça. Vós, os que valentemente defendeis os direitos dos oprimidos, os que pedis que se dê ao trabalhador um salário que concorde com a sua dignidade de homem, vós os que clamais, às vezes como João no deserto, que haja mais igualdade no trabalho, mais equidade na repartição dos cargos e no gozo dos benefícios, que a palavra amor deixe de ser uma palavra vazia para carregar-se de profundo sentido divino e humano, não cesseis, não temais; não estais fazendo obra revolucionária, mas profundamente humana, mais ainda, divina, pois Deus ama seus filhos e quer vê-los tratados como filhos e não como párias. Se padeceis pela justiça, não vos desalenteis, Ele a padeceu primeiro, Ele morreu para dar testemunho da verdade e do amor, mas tende confiança, Ele é o vencedor do mundo e vós vencereis se não vos separais dos seus ensinamentos e dos seus exemplos.

            Se Deus nos ama, como não amá-lo? E se o amamos, cumpramos o seu mandamento grande, o seu mandamento por excelência: Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisso conhecerão todos que sois meu discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros (Jo 13,34-35). A devoção aos Sagrados Corações, não se pode contentar com saborear o amor de Deus, mas deve retribuí-lo com um amor efetivo. E a razão que eleva o nosso amor ao próximo a uma altura nunca suspeitada por nenhum sistema humano, é que o nosso próximo é Cristo. Que o respeito do próximo tome o lugar das desconfianças: que em cada homem, por mais pobre que seja, vejamos a imagem de Cristo e o tratemos com espírito de justiça e de amor, dando-lhe sobretudo a confiança da sua pessoa que é o que o homem mais aprecia.

            Ao levantar nossos olhos e encontrar-nos com os de Maria, nossa Mãe, Ela nos mostrará tantos filhos seus, prediletos do seu coração que sofrem a ignorância mais total e absoluta; ensinar-nos-á as suas condições de vida nas quais é impossível a prática da virtude, e dir-nos-á: filhos, se me amais deveras como Mãe, fazei quanto podais por estes meus filhos, os que mais sofrem, portanto, os mais amados do meu coração.

            Vós, cristãos, os que tendes uma posição mais folgada, olhai para aqueles que se afogam em sua posição; os que tendes, dai aos deserdados: dai-lhes justiça, dai-lhes serviços, o serviço do vosso tempo, ponde a serviço deles a vossa educação, ponde o serviço do vosso exemplo, dos vossos meios. Que o fruto deste Congresso seja um incendiar-se nossas almas em desejos de amar, de amar com obras, e que esta noite, ao retirar-nos para os nossos lares, perguntemo-nos: que fiz pelo meu próximo? O que estou fazendo por ele? O que me pede Cristo que faça por ele?

            O cristianismo resume-se por inteiro na palavra amor: é um desejo ardente de felicidade para os nossos irmãos, não só da felicidade eterna do céu, mas também de tudo quanto possa fazer-lhe melhor e mais feliz esta vida, que há de ser digna de um filho de Deus. Tudo quanto encerram de justo os programas mais avançados, o cristianismo reclama-o como seu, por mais audaz que pareça; e se rechaça certos programas de reivindicações não é porque ofereçam demasiado, mas porque em realidade hão de dar demasiado pouco aos nossos irmãos, porque ignoram a verdadeira natureza humana, e porque sacrificam o que o homem necessita ainda mais do que os bens materiais, os do espírito, sem os quais não pode ser feliz quem foi criado para o infinito.

            O homem precisa de pão, mas, antes de tudo, precisa de fé; precisa de bens materiais, mas, ainda mais, precisa do raio de luz que vem de cima e alenta e orienta a nossa peregrinação terrena: e essa fé e essa luz, só Cristo e a sua Igreja podem dá-la. Quando essa luz se compreende, a vida adquire outro sentido, ama-se o trabalho, luta-se com valentia e, sobretudo, luta-se com amor. O amor de Cristo já arraigou-se nesses corações… Eles falarão de Jesus em todas as partes e contagiarão outras almas no fogo do amor.


            Visão de eternidade

            Meditação de Semana Santa para jovens, escrita em 1946

 

            «Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância» (Jo 10,10)

            Estou chegando do maior país do mundo. Assim dizia-o o segundo Churchill, falando da América do Norte no maior Hotel do globo, o Waldorf Astoria, o mais cômodo do globo. Ali estão os edifícios mais altos: o Empire: 102 andares, o Chrysler… O teatro maior, o Radio City, enche-se desde as 7 da manhã até a manhã seguinte. Os rios atravessam-se por túneis subterrâneos; nas cidades três, quatro e mais planos de locomoção… Todos os recordes: velocidade, quatro mil quilômetros em quatro horas; produção, fábricas que produzem quinhentos automóveis por hora e esperam produzir mil… Ali está hoje mais de 46% do ouro do mundo; progressos técnicos fantásticos: a morte vai-se distanciando, a vida prolongando. Em Washington, cada três minutos sai um avião: os grandes Constellations cruzam agora todos os mares; milhões de automóveis, de geladeiras… E como dizia alguém: e daí?

            E que impressão de conjunto? Que a matéria não basta, que a civilização não enche, que o conforto está bem, mas que não reside nele a felicidade. Que dá demasiado pouco e cobra demasiado caro! Que a preço desses brinquedos, tira-se do homem a sua verdadeira grandeza! Porque, na realidade, o preço de toda esta vida para a grande maioria é um anular-se aqui, o perder a vista do espírito, a cegueira diante do sobrenatural. A concepção do homem progressista que domina a matéria: limpo, higiênico, bem feito pelo esporte, alimentação sã, roupa limpa, música, carro, e bonitos carros! Quiçá para alguns, viagens em redor do mundo, a sua casa cômoda, uma mulher enquanto se entenda com ela, sem prejuízos… Eliminar as doenças e aos setenta anos morrer. Que mais? E ao voltar de uma viagem esplêndida, num navio cargueiro, lento, único passageiro, que me permita orar, pensar, escrever… refletia: e é isto tudo?

            Ao olhar esse céu esplêndido, magnífico, imponente, que atrai: e é tudo isto o fim da vida? Setenta anos com todas estas comodidades? O homem é o rei da criação, só por isto? O progresso da humanidade, será só chegar a possuir banheiro, rádio, máquina de lavar, um carro? É esta toda a grandeza do homem? Não há mais do que isto? É esta a vida? Enquanto chega a próxima guerra que todos farejam, que sentem vir com arrepio?

            Empire, Chrysler: quanto tempo mais alçar-vos-eis de pé? Fábricas Ford, Packard, Chrysler, quanto tempo mais conseguireis durar? Einstein acaba de escrever, horrorizado diante de uma guerra atômica, que com os pobres meios de que agora dispõe a energia atômica, que só desde recentemente consegue desintegrar-se, podem perecer as duas terceiras partes da humanidade!! É isto a vida? É esta a coroa do homem?

            E olho a noite plácida… serena… As estrelas enviam a sua luz serena… E ressoam em meus ouvidos: «Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único» (Jo 3,16). Amou-me a mim, também a mim! Quem? Deus! O Deus eterno, Criador de toda energia, dos astros, da terra, do homem, das quiçá duas mil gerações de homens que passaram pela terra, e milhões que quiçá ainda devem vir… Esse Deus imenso diante de quem desaparece o homenzinho minúsculo. Quanto maior é que o homem!

            O que pensa Deus do homem? Da vida? Do sentido da nossa existência? Condena Ele essas invenções, esse progresso, este afã de descobrir remédios eficazes, automóveis velozes, aviões contra todo risco? Não. Ainda mais, alegra-se com estes esforços que fazem melhor esta vida para nós. Mas, para os que no meio de tanto ruído guardam ainda os seus ouvidos para escutar, diz-nos: «Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância».

            Ouve, filho: «Eu». Quem? «Eu», Jesus, Filho de Deus e Deus verdadeiro. «Eu», o Deus eterno, «vim». Fiz uma viagem… viagem real, longuíssimo. Do infinito ao finito, viagem tão longa que escandaliza os sábios, que desconcerta os filósofos. O infinito ao finito! O eterno ao temporal! Deus à criatura? Sim, assim é. Essa viagem é a minha viagem realíssima. «Eu vim»: esta é a minha viagem!

            Pelo homem. A única razão dessa viagem: o homem. Esse minúsculo e maiúsculo? Porque se bem é pequeno, é muito grande; é o maior do universo? Maior que os astros? Por eles nunca viajei, nem sequer sofri! Pelo homem sim…

            Pelo homem, quiçá não me entendes: por ti negrinho, por ti pobre japonês; por ti, chileninho dos meus amores, por ti, liceal de Curicó. Eu não amo a massa; amo a pessoa: um homem, uma mulher... «Vim» por ti!

            «Para que tenham vida». Vida? Mas, de que vida se trata? A vida, a verdadeira vida, a única que pode justificar uma viagem de Deus é a vida divina: «Que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos» (1Jo 3,1). Sejamos chamados, e o sejamos de verdade!! Não faz uma viagem longe o Deus eterno senão para dar-nos um dom de grande preço: nada menos que a sua própria vida divina, a participação da sua natureza que se nos dá pela Graça.

            Cremos nessa vida? Há católicos, como um companheiro de viagem que me dizia: «Outra vida? Não, pois, Padre, deixa disso». Há católicos que nunca pensaram nessa vida… A maioria não se preocupa dela. Prescindem. E esta é a única verdadeira vida: quem a tem, vive; e quem não a tem, ainda que esteja bem, rico, sábio, com amigos: é um morto.

            «Que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?» (Mt 16,26). «Aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, o que perder a sua vida por mim via salvá-la» (Mc 8,35). O velho refrão da Igreja! O único necessário, tão grande porque tão velho, ou melhor, tão velho porque tão grande, tão necessário, e tão insubstituível! O homem com toda a civilização não pôde apagar o eco destas palavras, e se chega a apagá-las, morre, não só para esta vida, mas também para a vida humana.

            «E que a tenham em abundância». Há uma vida paupérrima, que apenas é vida; vida pobre, de infidelidades à graça, surdez espiritual, falta de generosidade; e uma vida rica, plena, fecunda, generosa. A esta chama-nos Cristo. É a santidade. E Cristo quer cristãos plenamente tais, que não fechem a sua alma a nenhum convite da Graça, que se deixem possuir por essa torrente invasora, que se deixem tomar por Cristo, penetrar por Ele. A vida é vida na medida em que se possui Cristo, na medida em que se é Cristo. Pelo conhecimento, pelo amor, pelo serviço. Deus quer fazer de mim um santo! Quer ter santos estilo século XX: estilo Chile, estilo liceu, estilo advogado, mas que reflitam plenamente a sua vida. Isto é a coisa maior que há no mundo! Maior, infinitamente maior, que um Empire Building, que uma fábrica Ford, que oito mil automóveis de produção diária; de imensamente mais precioso para a humanidade do que descobrir a energia atômica, ou a vacina, ou a penicilina.

            Aqui não nos cabe senão dizer como a Samaritana: «Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede» (Jo 4,15). Ou como Nicodemos: «como pode um homem nascer, sendo já velho?» (Jo 3,4). É dom de Deus! Mas dom que Ele me quer conceder, pois «Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho único» (Jo 3,16). Quem nos deu o seu Filho Unigênito, o que nos irá negar? (cf. Rm 8,32). Por Cristo, Nosso Senhor. Dá-nos, Senhor, viver: viver plenamente. «E tão alta vida espero, que morro porque não morro».


            Como satisfazer a minha vida?

            Conferência para senhoras, pronunciada em Viña del Mar, em 1946

 

            A doença de moda nos nossos dias é a neurose. Uma das profissões que mais trabalho tem é a de psiquiatra… Muitas pessoas que se crêem atacadas por neuroses não têm neuroses, mas vacuidade de vida: não têm nada que fazer, nada que as tire de si mesmas; vivem concentradas no seu interior, sempre olhando-se no espelho do seu pensamento: se estão bem, se estão mal; se as estimam ou não; se a olharam, porque; se não, porque deixaram de olhá-la… Castelos no ar… sobre o que os outros pensam dela… A neurose está na porta, a vida tingiu-se para sempre de tristeza. O egoísmo está na raiz do mal! Como curar esta neurose? Antes de ir ao psiquiatra, eu aconselharia a esta pessoa que consultasse um Diretor Espiritual prudente. Pode ser que a raiz do seu mal seja um complexo sepultado no seu interior, desde os seus primeiros anos, mas o mais provável é que seja simplesmente uma vida vazia, sem sentido; uma alma que espera algo que a satisfaça, que a tome, que lhe dê sentido à sua existência.

            É tão triste vegetar! Ver que os anos passam e que não se fez nada! Que ninguém a olha com olhos agradecidos… que não tem onde volver-se para encontrar amor.

            O cristianismo nesta matéria, como nas demais, não é só lei de santidade, mas também de saúde espiritual e mental. Para alguns, a moral cristã é um código sumamente complicado, longo, detalhado, estreito… que pode ser violado mesmo sem dar-se conta. É um conjunto de leis ordinariamente negativas: não faças isto, nem aquilo… Como vou poder encher a minha vida com negações?

            Mas, felizmente, a verdade é muito distinta. O cristianismo não é um conjunto de proibições, mas uma grande afirmação… e não muitas, uma: amar. «Deus é amor» (1Jo 4,8), e a moral daqueles que foram criados à imagem e semelhança de Deus, é a moral do Amor. Qual é o grande mandamento da lei? Amarás… e o segundo é semelhante a esse: amarás o teu próximo como a ti mesmo (cf. Mt 22,37-39). Por isso, Bossuet, com o seu gênio claríssimo, podia dizer: «Sejamos cristãos, isto é, amemos nossos irmãos.

            A melhor maneira de realizar a vida: enchê-la de amor, e ao fá-lo assim não estamos senão cumprindo o preceito do Mestre. Pouco antes de partir deste mundo, ao querer resumir todo o seu ensinamento num preceito fundamental, encarregou-nos: Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros… Nisso conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros… (cf. Jo 13,34-35). Nisso e só nisso, conhecerá o mundo que sois meus discípulos!

            Os primeiros cristãos: – Como se salva um homem? – Amado-o, sofrendo com ele, fazendo-se um com ele, na dor, no seu próprio sofrimento. Não com discursos, que não custa nada pronunciá-los; com sermões que não mudam as nossas vidas; mas com a evidente demonstração do amor! A igreja necessita, não de demonstradores, mas de testemunhas.

            Por isso é que creio que nos tempos difíceis que nos esperam, Deus, em sua imensa misericórdia, vai suscitar espíritos novos. Eu não me estranharia de ver uma nova Congregação religiosa vestida de macacão, com voto de trabalhar nas fábricas e de viver nos cortiços para salvar o mundo; como vimos as irmãs da Assunção e as da Santa Cruz dar-se inteiras para a redenção dos que sofrem. E acabamos de ler uma obra maravilhosa de um sacerdote operário, que para salvar seus irmãos expatriados, deporta-se, como eles…

            E entre todos os homens, há alguns aos quais Cristo nos recomenda de forma especial: os seus pobres. Quem é o meu próximo?, pergunta um doutor da lei a Jesus, e Ele lhe responde: Pelo caminho de Jericó descia um pobre homem… meio morto… Faz tu o mesmo (cf. Lc 15,29-37). E fazer ou não fazer estas obras de caridade com o próximo é tão grave aos olhos de Deus que vai constituir a matéria do juízo: Tive fome… tive sede… estive preso… Não «me» destes… não «me»… (cf. Mt 25,31-46). O próximo, o pobre em especial, é Cristo em pessoa. O que fizerdes ao menor dos meus pequeninos a «mim» o fizestes. O pobre jornaleiro de rua, o engraxate, a pobre mulherzinha tuberculosa, é Cristo. O bêbado, não nos escandalizemos, é Cristo! Insultá-lo, burlar-se dele, desprezá-lo, é desprezar Cristo! O que fizerdes ao menor, a mim o fizestes!! Esta é a razão do nome «Lar de Cristo».

            Fala-se muito neste dias de ordem social cristã e com muita razão. Ordem que supõe uma legislação baseada no bem comum, na justiça social, mas ordem que só será possível se os cristãos nos enchamos do desejo de amor, que se traduzirá em doar. Menos palavras e mais obras. O mundo moderno é antiintelectual: crê no que vê, nos fatos.

            Quando os pobres vêem, palpam a sua dor e olham para nós cristãos, o que têm direito a pedir-nos? A nós que cremos que Cristo vive em cada pobre? Poderão aceitar a nossa fé se nos vêem proteger todas as comodidades, e odiar o comunismo pelo que nos pretende tirar, mais pelo que tem de ateu? Qual deve ser a nossa atitude? Sentido social, servir, dar, amar. Realizar a minha vida, a dos outros.


            Sempre em contato com Deus

            Reflexão pessoal escrita em novembro de 1947

 

            O grande apóstolo não é o ativista, mas o que guarda em todo momento a sua vida sob o impulso divino. Cada uma das nossas ações tem um momento divino, uma duração divina, uma intensidade divina, etapas divinas, término divino. Deus começa, Deus acompanha, Deus termina. A nossa obra, quando é perfeita, é ao mesmo tempo toda sua e toda minha. Se é imperfeita, é porque nós pusemos as nossas deficiências, é porque não guardamos o contato com Deus durante toda a duração da obra, é porque não caminhamos mais depressa ou mais devagar do que Deus. A nossa atividade não é plenamente fecunda, senão na submissão perfeita ao ritmo divino, numa sincronização total da minha vontade com a de Deus.

            Seria perigoso, no entanto, sob o pretexto de guardar o contato com Deus, refugiar-nos numa preguiça sonolenta. Entra no plano de Deus ser espremidos… A caridade urge-nos de tal maneira que não podemos rechaçar o trabalho: consolar um triste, ajudar um pobre, um enfermo que visitar, um favor que agradecer, uma conferência a fazer; dar um aviso, fazer uma diligência, escrever um artigo, organizar uma obra; e tudo isto acrescentado aos deveres cotidianos. Se alguém começou a viver para Deus em abnegação e amor pelos outros, todas a misérias marcarão um encontro na sua porta. Se alguém teve êxito no apostolado, as ocasiões de apostolado multiplicar-se-ão para ele. Se alguém cumpriu bem as responsabilidades ordinárias, tem que estar preparado para aceitar as maiores. Assim a nossa vida e o zelo apostólico, conduzem-nos a uma marcha rapidamente acelerada que nos desgasta, sobretudo porque não nos dá tempo para reparar as nossas forças físicas ou espirituais… e um dia chega em que a máquina se rompe. E onde nós críamos ser indispensáveis, põe-se outro em nosso lugar!!

            Contudo, podíamos recusar? Não era a caridade de Cristo que nos urgia? E, dar-se aos irmãos, não é acaso dar-se a Cristo? Quanto mais amor se tem, mais se sofre: ainda recusando-nos mil oferecimentos, a gente fica repleta de coisas e não nos permanece o tempo de encontrar-nos a nós mesmos e de encontrar Deus. Doloroso conflito de uma nobre busca: a do plano de Deus, que temos que realizar nos nossos irmãos; e a busca do mesmo Deus, que desejamos contemplar e amar. Conflito doloroso que não se pode resolver senão na caridade que é indivisível.

            Se a gente quer guardar zelosamente as suas horas de paz, de doce oração, de leitura espiritual, de oração tranqüila… temo que seríamos egoístas, servidores infiéis. A caridade de Cristo nos urge: ela nos obriga a entregar-lhe, ato por ato, toda a nossa atividade, a fazer-nos todo para todos (cf. 2Cor 5,14; 1Cor 9,22). Poderemos seguir o nosso caminho tranqüilamente cada vez que encontramos um agonizante no caminho, para o qual somos «o único próximo»?

            Mas, contudo, orar, orar. Cristo retirava-se com freqüência ao monte; antes de começar o seu ministério escapou quarenta dias ao deserto. Cristo tinha claro todo o plano divino, e não realizou senão uma parte; queria salvar todos os homens e, todavia, não viveu entre eles senão três anos. Cristo não tinha necessidade de refletir para cumprir a vontade do Pai: conhecia todo o plano de Deus, o conjunto e cada um dos seus detalhes. E, no entanto, retirava-se a orar. Ele queria dar a seu Pai uma homenagem pura de todo o seu tempo, ocupar-se só dele, para louvá-lo só a Ele, e devolver-lhe tudo. Queria, diante do seu Pai, no silêncio e na solidão, reunir no seu coração misericordioso toda a miséria humana para fá-la cada vez mais sua, para sentir-se oprimido, para chorá-la. Cristo não se deixou arrastar pela ação. Ele, que tinha como ninguém o desejo ardente da salvação dos seus irmãos, recolhia-se e orava.

            Nós não somos senão discípulos e pecadores. Como poderemos realizar o plano divino, se não detemos com freqüência o nosso olhar sobre Cristo e sobre Deus? Os nossos planos, que devem ser partes do plano de Deus, devem cada dia serem revisados e corretos.

            Depois da ação, é preciso voltar continuamente à oração para encontrar-se a si mesmo e encontrar Deus; para dar-se conta, sem paixão, se em verdade caminhamos no caminho divino, para escutar de novo o chamado do Pai, para sintonizar com as ondas divinas, para despregar as velas, segundo o sopro do Espírito. Os nossos planos de apostolado necessitam de controlo, e tanto maior enquanto somos mais generosos. Quantas vezes queremos abraçar demasiado, mais do que podem conter os nossos braços!

            Para guardar o contato com Deus, para manter-se sempre sob o impulso do Espírito, para não construir senão o desejo de Cristo, é preciso impor periodicamente restrições ao seu programa de apostolado. A ação chega a ser daninha quando rompe a união com Deus. Não se trata da união sensível, mas sim da união verdadeira, a fidelidade, até nos detalhes, ao querer divino. O equilíbrio das vidas apostólicas só pode obter-se na oração. Os santos guardam o equilíbrio perfeito entre uma oração e uma ação que se compenetram até não poder separar-se, mas todos eles se impuseram horas, dias, meses em que se entregam à santa contemplação.

            Esta vida de oração tem que levar, pois, a alma a entregar-se a Deus, ao dom completo de si mesma. Muitos perdem anos e anos em enganar Deus. A maior parte dos diretores espirituais não insistem bastante no dom completo. Deixam a alma nesse trato medíocre com Deus: pedem e oferecem, práticas piedosas, orações complicadas. Isto não basta para esvaziar a alma de si mesma, isso não a enche, não lhe dá a suas dimensões, não a inunda de Deus. Não há mais que o amor total que dilate a alma segundo a sua própria medida. É pelo dom de si mesmo que se deve começar, continuar, terminar.

            Dar-se, é cumprir justiça; dar-se, é oferecer-se a si mesmo e tudo o que se tem; dar-se, é orientar todas as suas capacidades de ação para o Senhor; dar-se, é dilatar o seu coração e dirigir firmemente a sua vontade para quem as aguarda; dar-se, é amar para sempre e de maneira tão completa como se é capaz. Quando a gente se deu, tudo parece simples. Encontrou-se a liberdade e experimenta-se toda a verdade da palavra de Santo Agostinho: Ama e faz o que queiras.


            Um testemunho

            Reflexão autobiográfica, escrita em novembro de 1947

 

            Encontrei no meu caminho um destes apóstolos ardentes, sempre alegre, apesar das suas fadigas e dos seus fracassos. Perguntei-lhe o segredo da sua vida. Um pouco surpreendido, abriu-me a sua alma. Eis aqui o seu segredo:

            «O Senhor pergunta-me como equilibra-se a minha vida, eu também mo pergunto. Estou cada dia mais e mais consumido pelo trabalho: correspondência, telefone, artigos, visitas; a engrenagem terrível das ocupações, congressos, semanas de estudos, conferências prometidas por debilidade, por não dizer «não», ou por não deixar esta ocasião de fazer o bem; gastos a cobrir; resoluções que é necessário tomar diante de acontecimentos imprevistos. A corrida para ver quem chegará por primeiro em tal apostolado urgente. Sou com freqüência como uma rocha golpeada por todos os lados pelas ondas que sobem. Não tem outra saída senão voltar-me “para cima”. Durante uma hora, durante um dia, deixo que as ondas açoitem a rocha; não olho para o horizonte, olho para cima, para Deus.

            Ó bendita vida ativa, toda consagrada ao meu Deus, toda entregue aos homens, e cujo excesso mesmo conduz-me a encontrar-me e dirigir-me para Deus. É a só saída possível nas minhas preocupações, meu único refúgio.

            As horas sombrias vêm também. A atenção retesada continuamente em tantas direções, chega um momento em que não posso mais; o corpo já não acompanha a vontade. Muitas vezes obedeceu, mas agora já não pode… A cabeça está vazia e dolorida, as idéias não se unem, a imaginação não trabalha, a memória está como desprovida de lembranças. Quem não conheceu estas horas?

            Não se pode senão resignar-se: durante alguns dias, alguns meses, quiçá alguns anos, a deter-se. Obstinar-se seria inútil: impõe-se a capitulação; e então, como em todos os momentos difíceis, fujo para Deus, entrego-lhe todo o meu ser e o meu querer à sua providência de Pai, apesar de não ter forças nem sequer para falar-lhe.

            Ah, e como compreendi a sua bondade também nestes momentos! No meu trabalho de cada dia, era Ele quem eu buscava, mas parece-me que, ainda que a minha vida estava-lhe entregada, eu não vivia bastante para Ele… agora sim… nos meus dias de sofrimento, eu não tenho mais do que Ele diante dos meus olhos, Ele só, no meu esgotamento e na minha impotência.

            Aguardam-me novas dores nas minhas horas de impotência. As obras, às quais me tenho entregado, gravemente ameaçadas; os meus colaboradores, esgotados também eles, à força de trabalho; os que deveriam ajudar-nos, redobram a sua incompreensão; os nossos amigos voltam-nos as costas ou desalentam-se; as massas que nos deram a sua confiança, no-la retiram; os nossos inimigos erguem-se vitoriosamente contra nós; a situação é como desesperada; o materialismo triunfa, todos os nossos projetos de trabalho por Cristo jazem por terra.

            Enganáramo-nos? Não temos sido trabalhadores de Cristo? A Igreja do nosso tempo, pelo menos na nossa Pátria, resistirá a tantos golpes? Mas a fé dirige todavia a minha alma para Deus. Rodeado de trevas, fujo mais totalmente para a luz.

            Em Deus sinto-me cheio de uma esperança quase infinita. As minhas preocupações dissipam-se. Se abandono-as. Eu me abandono todo inteiro nas suas mãos. Sou dele e Ele tem cuidado de tudo, e de mim mesmo. A minha alma, por fim, reaparece tranqüila e serena. As inquietações de ontem, as mil preocupações para que «venha a nós o vosso Reino», e ainda o grande tormento de faz poucos momentos diante do temor do triunfo dos seus inimigos… tudo deixa lugar à tranqüilidade em Deus, possuído inefavelmente no mais espiritual da minha alma. Deus, a rocha imóvel, contra a qual se rompem em vão todas as ondas. Deus, o perfeito resplendor que nenhuma mancha empana; Deus, o triunfador definitivo, está em mim. Eu o alcanço com plenitude no termo do meu amor. Toda a minha alma está nele, durante um minuto, como arrebatada nele. Estou banhado pela sua luz. Penetra-me com a sua força. Ama-me.

            Eu não seria nada sem Ele. Simplesmente eu não seria. O otimismo que, nestes dias do triunfo do mal, abandonara-me, voltou. A Igreja triunfa em cada um dos seus filhos. A Igreja de Deus estabelece-se e triunfa, pelo trabalho heróico dos seus santos; pela prece das suas contemplativas; pela aceitação das mães da obra da natureza, e que vão realizar no seu lar a obra da ternura e da fé; pela educação de quem ensina e pela docilidade de quem escuta. Pelas horas de fábrica, de navegação, de campo sob o sol e a chuva; pelo trabalho do pai que cumpre assim o seu dever cotidiano. Pela resistência do patrão, do político ou do dirigente de sindicato às tentações do dinheiro, ao ato desonesto que enriquece; pelo sacrifício da viúva tuberculosa que deixa crianças pequeninas e une-se com amor a Cristo crucificado; pela energia do membro da Juventude Operária Católica que sabe permanecer alegre e puro no meio de egoístas e corruptos; pela esmola do pobre que dá o necessário… A Igreja, em todo momento, constrói-se e triunfa.

            Não, não é a hora de desesperar. Deus serve-se também dos seus inimigos para estabelecer o seu Reino. A sua vontade não é totalmente má, a sua razão não está total obscurecida. Quando vêem e querem o bem, o que certamente fazem, constróem também conosco, são instrumentos de Deus.

            Para o cristão, a situação não é jamais desesperada. Pela luz que recebemos do alto, pelo dom que cada um faz de si, construímos a Igreja. O seu triunfo não se obterá senão depois de rudes combates».

            Até aqui o meu amigo. Cala-se, como envergonhado por ter-se aberto tão profundamente. Sinto que não tem mais o que me dizer, mas compreendi a sua lição: se o encontro sempre alegre, sempre valente, não é porque lhe faltem dificuldades, mas porque, no meio delas, sabe fugir para Deus. O seu sorriso e o seu otimismo vêm do céu.


«Vós sois a luz do mundo»

Discurso aos jovens na cima do Cerro San Cristóbal, em outubro de 1938

 

            Meus queridos jovens

            A impressionante cerimônia que se realiza esta noite está cheia do mais profundo significado. No alto de um cerro, sob o olhar do nosso Pai Deus e protegidos pela manto maternal de Maria, que eleva as suas mãos abertas para o alto intercedendo por nós, reúne-se, caldeada de entusiasmo, uma juventude ardente, portadora de archotes brilhantes, com a alma cheia de fogo e de amor, enquanto aos seus pés a grande cidade jaz no silêncio pavoroso da noite.

            Esta cena recorda-me uma outra, ocorrida há quase dois mil anos, também sobre um monte ao cair as trevas da noite… No alto, Jesus e seus apóstolos, aos seus pés uma grande multidão, e mais além as regiões sepultadas nas trevas e na escuridão da noite do espírito (cf. Sl 106,10). E Jesus, comovido profundamente diante do pavoroso espetáculo das almas sem luz, diz a seus apóstolos «Vós sois a luz do mundo» (Mt 5,14). Vós sois os encarregados de iluminar esta noite das almas, de caldeá-las, de transformar esse calor em vida, vida nova, vida pura, vida eterna…

            Também a vós, queridos jovens, Jesus vos mostra agora esta cidade que jaz aos vossos pés, e, como então, compadece-se dela: «Tenho compaixão desta multidão» (Mc 8,2). Enquanto vós –muitos, mas ao mesmo tempo demasiado poucos– marcaram um encontro de amor no alto… Quantos, quantos… nesta mesmas horas sujam as suas almas, crucificam de novo Cristo nos seus corações, nos lugares de prazer, transbordantes de uma juventude decrépita, sem ideais, sem entusiasmo, ansiosa unicamente de gozar, ainda que seja às custas da morte das suas almas…! Se Jesus aparecesse nestes momentos no meio de nós, estendendo compassivo o seu olhar e as suas mãos sobre Santiago e sobre o Chile, diria-nos: «Tenho compaixão desta multidão» (Mc 8,2).

            Assim, aos nossos pés, jaz uma multidão imensa que não conhece Cristo, que tem sido educada durante anos e anos sem ouvir apenas nunca pronunciar o nome de Deus, nem o santo nome de Jesus.

            Eu não duvido, pois, que se Cristo descesse ao San Cristóbal esta noite caldeada de emoção, repetiria-vos, olhando para a cidade escura: «Compadeço-me dela», e dirigindo-se a vós, diria-vos com ternura infinita: «Vós sois a luz do mundo… Vós sois os que devem iluminar estas trevas. Quereis colaborar comigo? Quereis ser meus discípulos?».

            Esta é a chamada urgente que dirige o mestre aos jovens de hoje. Ó, se se decidissem! Ainda que fossem poucos… Um reduzido número de operários inteligentes e decididos, poderiam influir na salvação da nossa Pátria… Mas, que difícil resulta em algumas partes encontrar ainda esse reduzido número! A maioria ficam em seus prazeres, em seus negócios… Mudar de vida, consagrá-la ao trabalho para a salvação das almas, não se pode, não se quer…

            Quantos são chamados por Cristo nestes anos de vôo magnífico da juventude! Escutam, parecem duvidar um instante. Mas, a torrente da vida os arrasta. Mas, vós, meus queridos jovens, respondestes a Cristo que quereis ser destes escolhidos, quereis ser apóstolos… Mas, ser apóstolos não significa levar uma insígnia na botoeira do paletó; não significa falar da verdade, mas vivê-la, encarnar-se nela transformar-se em Cristo. Ser apóstolo não é levar um archote na mão, possuir a luz, mas ser a luz…

            O Evangelho, mais do que uma lição, é um exemplo. É a mensagem convertida em vida vivente. «O Verbo de fez carne» (Jo 1,14). O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos, e nossas mãos apalparam, é o que vo-lo anunciamos (cf. 1Jo 1,1-3). O Verbo, a Mensagem divina, encarnou-se: a Vida manifestou-se. Temos que ser semelhantes a cristais puros, para que a luz irradie-se através de nós. «Vós os que vedes, o que fizestes da luz?» (Claudel).

            Uma vida integramente cristã –meus queridos jovens– eis aqui a única maneira de irradiar Cristo. Vida cristã, portanto, no vosso lar; vida cristã com os pobres que nos rodeiam; vida cristã com os seus companheiros; vida cristã no trato com as jovens… Vida cristã em vossa profissão; vida cristã no cinema, no baile, no esporte.

            O cristianismo, ou é uma vida inteira de doação, uma transformação em Cristo, ou é uma ridícula parodia que move ao riso e ao desprezo.

            E esta transformação em Cristo supõe identificar-se com o Mestre, mesmo nas suas horas de Calvário. Não pode, portanto, ser apóstolo quem pelo menos alguns momentos não está crucificado como Cristo. Nada farão, portanto, os que façam consistir unicamente o apostolado, a Ação Católica, num esporte de discursos e manifestações grandiosas… Muito bem estão os atos, mas estes não são a coroação da obra, mas o seu começo, um cobrar entusiasmo, um animarmo-nos mutuamente a acompanhar Cristo mesmos nas horas duras da sua Paixão, a subir com Ele na cruz.

            Antes de descer do monte –jovens queridos– pergunto-vos também, em nome de Cristo: podeis beber o cálice das amarguras do apostolado? Podeis acompanhar Jesus nas suas dores, no tédio de uma obra continuada com perseverança? Podeis? Se vós titubeais, se não vos sentis com brios para não serdes da massa, dessa massa amorfa e medíocre, se como o jovem do Evangelho sentis tristeza dos sacrifícios que Cristo vos pede… renunciem ao formoso título de colaborador e amigo de Cristo.

            Ó Senhor! Se nesta multidão que se agrupa aos teus pés brotasse em alguns a chama de um desejo generoso e dissesse alguém com verdade: «Senhor, toma e recebe toda a minha liberdade, a minha memória, o meu entendimento, toda a minha vontade, tudo o que eu tenho e possuo, consagra-o todo inteiro, Senhor, a trabalhar por ti, a irradiar a tua vida, contente com não ter outra paga que te servir e, como esses archotes, que se consumam em nossas mãos, consumir-se por Cristo…». Renovariam no Chile as maravilhas que realizaram os apóstolos na sociedade pagã, que conquistaram para Jesus.


A morte

Meditação de retiro, sobre o significado cristão da morte

 

            A vida do homem oscila entre dois pólos. A adoração de Deus ou a adoração do seu «eu»; o serviço de Deus ou a luta contra Deus. Para apreciar os verdadeiros valores em jogo nesta contenda, nada mais útil que meditar na morte, o que não quer dizer contemplação terrorística, mas, pelo contrário, visão de alento e esperança. Há duas maneiras de olhar a morte: uma puramente humana e outra cristã.

            1. O conceito humano considera a morte como o grande despenhadeiro, o fim de tudo. É um conceito impregnado de tristeza (os filósofos estóicos suicidavam-se para serem plenamente donos do seu fim como queriam sê-lo da sua vida). Desde os primeiros tempos o homem sentiu pavor diante da morte. Ninguém a conhece por experiência própria e dos que passaram por ela, ninguém voltou para dizer-nos o que é: entrou num eterno silêncio.

            A morte vai ordinariamente precedida por uma dolorosa enfermidade, acompanhada por uma impotência crescente, que chega a ser total. Os que rodeiam o moribundo contemplam, em completa passividade, como este ser querido é arrastado para o inevitável abismo. Quando queremos segui-lo com o olhar, parece-nos que o nada o tivesse devorado.

            Quando vivemos, não parecemos tão sós diante de Deus. Há outros seres que, ainda que fracos, oferecem-nos refúgio para esconder-nos, mas, no momento da morte, não fica já onde ocultar-se: a alma é arrancada e jogada na planície infinita onde não ficam mais do que ela e seu Deus.

            2. O conceito cristão da morte é imensamente mais rico e consolador: a morte, para o cristão, é o momento de achar Deus, o Deus que procurou durante toda a sua vida. A morte, para o cristão, é o encontro do filho com o Pai; é a inteligência que acha a suprema verdade, é a inteligência que se apodera do sumo Bem. A morte não é morte.

            Nós o veremos cara a cara, Ele, o nosso Deus, que hoje está escondido. Veremos sua mãe, a nossa doce Mãe, a Virgem Maria. Veremos seus santos, seus amigos que serão também os nossos amigos; acharemos os nossos pais e parentes, e aqueles seres cuja partida nos precedeu. Na vida terrestre não pudemos penetrar no íntimo dos seus corações, mas na Glória ver-nos-emos sem escuridões nem incompreensões. Muitos perguntam-se se na outra vida conheceremos os seres queridos. Conhecendo a maneira de atuar de Deus, não seria uma burla estranha em seu proceder a de pôr nos nossos corações um amor imenso, ardente pelos seres que para nós são mais que nós mesmos, se esse amor fosse chamado a desaparecer com a morte? Tudo o que é nosso acompanhar-nos-á no outro mundo. Deus não rompe os vínculos que criou. Mas, acima de tudo, o grande dom do céu é estar presentes diante de Deus. O que mais posso necessitar!

            Qual será a surpresa e a alegria do cristão ao terminar a sua vida terrena e ver que a sua prova terminou? As dores passaram, e chegou aquilo pelo qual lutou e sacrificou-se. Que preço tão barato por uma Glória eterna! Alguns anos difíceis. Mas, que curtos foram! Que coisa tão desprezável é a vida humana vista em si mesma! Que grande se se considera nos seus efeitos eternos! É como uma semente pequena e barata que germina e amadurece para a eternidade! Esta vida é preciosa enquanto revela-nos, nas suas sombras e figuras, a existência e os atributos do Deus todo poderoso; é preciosa porque permite-nos tratar com almas imortais que estão como nós na prova, é preciosa porque permite-nos tratar com almas imortais que estão conosco na prova, é preciosa porque permite-nos ajudá-las a conhecer Cristo e permite-nos remover os obstáculos que o mundo oferece à graça.

            Dores? Nesta vida teremos dores, mas as dores não são só castigo, como tampouco morrer é só castigo. É belo poder sofrer por Cristo. Ele sofreu primeiro por nós. Desceu do Céu à terra para buscar o único que no Céu não encontrava: a dor e tomou-a sem medidas por amor do homem. Tomou-a na sua alma, tomou-a na sua imaginação, no seu coração, no seu corpo e no seu espírito, porque «me amou e se entregou a si mesmo por mim» (cf. Gl 2,20). Depois dele, Maria, sua Mãe e minha Mãe, é Rainha do Céu, porque amou e sofreu.

            A vida foi dada ao homem para cooperar com Deus, para realizar o seu plano, a morte é o complemento dessa colaboração, pois é a entrega de todos os nossos poderes nas mãos do Criador. Que cada dia seja como a preparação da minha morte, entregando-me minuto por minuto à obra de cooperação que Deus me pede, cumprindo a minha missão, a que Deus espera de mim, a que não posso fazer senão eu.

            A morte é a grande conselheira do homem. Ela nos mostra o essencial da vida, como a árvore no inverno, uma vez despojada das suas folhas, mostra o tronco. Cada dia vamos morrendo, como as águas vão aproximando-se, minuto por minuto, ao mar que as há de receber. Que a nossa morte cotidiana seja a que ilumine as nossas grandes determinações: na sua luz, que claras aparecerão as resoluções que devemos tomar, os sacrifícios que temos que aceitar, a perfeição de temos de abraçar.

            O grande estímulo para a vida e para lutar nela, é a morte: motivo poderoso para dar-me a Deus por Deus. E enquanto o pagão nada empreende por temor da morte, o cristão apressa-se a trabalhar porque o seu tempo é breve, porque falta tão pouco para apresentar-se àquele que lhe deu tudo, àquele a quem ele ama mais do que a si mesmo. Apreça-te, alma, faz algo grande e belo porque logo tens que morrer! Fá-lo hoje, e não amanhã, que hoje Ele pode vir tomar a tua alma! Se compreendemos assim a morte, entenderemos perfeitamente que, para o cristão, a sua meditação não lhe inspira temor, antes, pelo contrário, alegria, a única autêntica alegria.

            Irmãos, creio que a meditação da morte não tem sido para nós uma meditação de pavor, mas de consolo. Por que temê-la? Por que assustarmo-nos de abandonar este mundo enganador, os que fomos batizados para o outro mundo? Por que estar ansiosos de uma longa vida, de riquezas, honras e comodidades, os que sabemos que o céu será quanto desejamos de melhor, e não somente em aparência mas em verdade, e para sempre? Por que descansar neste mundo quando não é mais do que a imagem, o símbolo do outro verdadeiro? Por que contentarmo-nos com a superfície em lugar de apropriarmo-nos do tesouro que encerra?

            Paro os que têm fé, cada coisa que vêem lhes fala do outro mundo, as belezas da natureza, o sol, a luz, tudo é como figura que nos dá testemunho da invisível beleza de Deus. Tudo o que vemos está destinado a florescer um dia e está destinado a ser Glória imortal.

            O céu não está fora da nossa vida, mas o veremos, e assim como a neve derrete-se e mostra o que oculta, assim a criação visível desfar-se-á diante dos grandes esplendores que a dominam. Esse dia as nuvens desaparecerão; o sol empalidecerá diante da luz da qual ela não é mais que imagem, o Sol de justiça, que virá em forma visível, «Ele sai, qual Esposo da alcova» (Sl 19,6). Estes pensamentos devem fazer-nos dizer ardentemente: «Vem, Senhor Jesus» (Ap 22,20).


Uma competência em dar-se

Pregação no matrimônio de José Arellano e Teresa Marín

 

            Meus queridos esposos: Gostaria de tomar como tema, das poucas palavras que queria dirigir-vos agora, o desejo da felicidade cristã. Todo o cristianismo não é mais que uma mensagem de felicidade. E se recordais o sermão da montanha que juntos, sem dúvidas, lestes tantas vezes, encontrareis nele estas palavras formosíssimas de Cristo Nosso Senhor, com que o inicia. Bem-aventurados é a palavra que repete. Não se cansa o Senhor de repetir-nos nesse sermão o que Ele vem trazer para a terra: Bem-aventurança, paz, felicidade, alegria. Essa é toda a mensagem cristã! E se olhamos a vida da Igreja, que é a realização da mensagem de Cristo, não é mais do que a introdução do homem na felicidade divina. O batismo faz-nos filhos de Deus e introduz-nos na vida divina, porque faz-nos participar dessa vida de Deus; a Eucaristia, cuja festa celebramos hoje, não é mais que a participação da alma no Corpo e Sangue de Cristo para unir-nos mais intimamente com Ele; e todos os sacramentos têm esse sentido: preparar a alma para a união com Deus, fonte de toda felicidade.

            E em que consiste a felicidade, meus queridos esposos? O Senhor Jesus dá-nos a norma da felicidade cristã: A felicidade cristã consiste em dar-se. E por isso Jesus diz-nos ‘feliz é quem dá, mais feliz do que quem recebe’ (cf. At 20,35). E se olhamos para Deus, fonte de toda felicidade, Deus é quem dá. Olhemos a vida íntima da Santíssima Trindade: o Pai, que é fonte de todo ser e de toda alegria, dá o seu próprio ser ao seu Filho, gerando-o desde toda a eternidade, e o Pai e o Filho, que se conhecem, dão-se mutuamente num amor eterno, que é o Espírito Santo. Eis aqui a fonte de toda felicidade. E esse Deus riquíssimo na sua solidão, acompanhado na sua solidão, que é Trindade, todavia não se satisfaz com essa situação mútua das pessoas, e decide criar, e cria o mundo por amor. E tudo quanto vemos não é mais do que a doação de Deus, nós mesmos somos uma doação de Deus, e o mundo inteiro é uma doação que Deus nos dá.

            E esta lei da felicidade, meus queridos esposos, é a lei da alegria cristã no matrimônio, e por isso dou-vos a norma conseguinte: dai-vos, mutuamente, um ao outro. O matrimônio cristão é uma competência em dar-se.

            A felicidade tem uma só norma: Dar-se, entregar-se a si mesmo, e para esse fim em vossa vida ocorre, o que em toda vida humana ocorre, por mais bela que seja, por mais nobre e mais generosa, se alguma vez vem alguma pequena nuvem a turvar o sol do amor, que vos apresseis a ser o primeiro em dar ao outro o perdão, em sofrer pelo outro, em orar juntos, na noite, ao cair das luzes do dia, recolhidos numa oração, e os sofrimentos do dia, ponde-os aos pés de Cristo, especialmente desejando a felicidade para o ser amado.

            Meus queridos esposos, num lar cristão, num lar abençoado pela felicidade cristã, os filhos são desejados, os filhos são pedidos, os filhos são esperados e, pelos filhos, desde agora sofre-se, desde agora acumula-se para eles um tesouro, mais que de bens materiais, um tesouro de virtudes, um tesouro de graças, um tesouro de preces, para que quando eles cheguem a este mundo encontrem-se ricos, com a riqueza espiritual dos seus pais. E os filhos, por muitos que sejam os que Deus queira dar-vos, estou certo, meus queridos esposos, que não vão esgotar esse desejo de dar-vos que vós tendes.

            E mais além do vosso lar, estão aqueles que em vossa vida de solteiros tanto amastes, os pobres, os que sofrem, os que padecem; o bem comum, a pátria. Empresas todas estas que em vossa vida de casados não hão de cessar, meus queridos esposos, mas que, ao contrário, deveis ser mais fortes e mais generosos em prolongar para essas obras os vossos esforços. Não ides a estar sós, agora, para trabalhar, mas estareis acompanhados; e se a tarefa é difícil, e se a tarefa é ingrata, e em certos momentos desanimadora, tendes então uma nova força em vosso mútuo amor. Uma nova força a tereis nesses filhos, que devem vir também para sustentar-vos nessas empresas, para o bem dos outros, porque ides legar a eles essa tradição preciosa de uma vida que não se consume egoisticamente nas paredes do lar, mas que pretende unicamente dar-se como Deus. Dizia-vos no princípio, Deus se dá, Deus é doação permanente.

            Meus queridos esposos, em vossa vida de solteiros há algo que sempre vos animou, que seja o mesmo que vos anime em vossa vida de casados: Jesus, o exemplo do dar-se. Lede juntos as páginas do Evangelho, não deixeis jamais de lê-las. Oxalá que desde a vossa primeira noite de matrimônio, as leiais juntos. Essas páginas formosas, nas quais encontrareis o exemplo da vida de Deus, que tanto amou o mundo que nos deu seu Filho Unigênito (cf. Jo 3,16) e depois, esse Filho Unigênito de Deus na terra, o que fez senão dar aos homens as suas palavras, dar-lhes os seus exemplos, dar-lhes a sua vida? Quando não tinha nada mais que dar-lhes, deu-lhes a sua própria Mãe! E antes de despedir-se de nós, deixou-nos como lembrança suprema aquilo que hoje em dia celebra a Igreja: a doação do seu próprio Corpo e do seu próprio Sangue, para que seja seu próprio Corpo e seu próprio Sangue o alimento espiritual das nossas almas.

            E junto a Jesus tendes a Virgem, a doce Mãe Maria, aquela que preside este altar. O altar diante do qual viestes tantas vezes juntos para receber o Corpo eucarístico de Jesus. Ela, vossa Mãe, olha-vos desde este altar bendito, olha-vos desde o céu e deseja-vos toda classe de bênçãos para o vosso novo lar. E por isso, Teresinha, o rosário que tens em tuas mãos, que o debulhes cada noite junto com o teu marido, e amanhã junto com os vossos filhos, e oxalá com os pobres que rodeiam a vossa casa. E à Mãe do Amor formoso, à doce Virgem Maria, cada noite cinqüenta vezes digais: «Rogai Mãe, por nós, agora e na hora da nossa morte».

            E estou seguro, meus queridos esposos, que estes desejos já começam a realizar-se, porque essa felicidade cristã que se deseja  para vós, estou certo, que já inunda os vossos corações: Ela rebenta em vossas almas.

            Vivemos numa hora do mundo em que os homens parece que perderam a confiança em si mesmos, a confiança em poder ser felizes. Que eles vejam em vosso lar que a felicidade é uma realidade, que a dita é dom de Deus na terra, que a gozam as almas de boa vontade, como sois vós e como podem sê-lo todos aqueles que põem em Deus a sua felicidade: José, estou seguro, que desejas dizer à Teresa aquelas palavras daquele poeta cristão, que vos citava há um momento, dizia à sua esposa: «Vem alma virgem, à chamada amiga de uma alma de homem que te espera ansioso, porque pressente que virão contigo o pudor da virgem candorosa e o casto amor da leal esposa”.


Abnegação e alegria

Meditação de um retiro para sacerdotes em 1948

 

            Não há só que dar-se, mas dar-se com o sorriso. Não há só que deixar-se matar, mas ir ao combate cantando.

            É preciso fazer amar a virtude. Fazer com que os exemplos sejam contagiosos, de outra maneira ficam estéreis. Fazer a vida dos que nos rodeiam saborosa e agradável.

            Isto é triunfar sobre o egoísmo sutil, que uma vez expulso da trama da nossa vida, tende a refugiar-se nas pregas, isto é, na nossa sensibilidade egoísta fazendo sentir que a gente é um mártir ou pelo menos uma vítima, alçando-se sobre um pedestal e buscando ser consolado.

            Canta e avança, a abnegação total é alegria perpétua. É a quadratura do círculo. Não. Porque há um vínculo secreto entre o dom de si, por amor, e a paz da alma.

            A nossa vocação é integração total a Cristo, a Cristo ressuscitado. Em que consiste esta atitude? É difícil defini-la, como não se pode definir a beleza de uma obra de Beethoven, ou de uma Virgem de Frei Angélico. É distinta para cada um. Negativamente, é a eliminação de tudo o que choca, molesta, causa pena, inquieta aos outros, o que lhes faz a vida mais dura, mais pesada, desagrada-os…

            São Paulo: «Carregai o peso uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo» (Gl 6,2). Não diz: «imponde aos outros os vossos pesos». Faz-se mais pesada a atmosfera geral.

            O temperamento doce, alegre, ligeiramente original, simples, não forçado, alegre, amável no receber as pessoas e as coisas, contribui para a alegria da vida… Assim Santa Teresa alegrava e continuava alegrando… Algumas brincadeiras no devido tempo… O sentar-se junto a uma mesa modestamente.

            Cada um tem possibilidade de fazer algo, cada um seguindo seu caráter: uns alegres, outros artistas, outros tranqüilos e pacíficos, outros simpáticos… Cada um cultivando a sua natureza. A graça supõe a natureza.

            Se não se faz amar a virtude, ela não será buscada. Será estimada, mas não buscada. Todos desejariam estar no cume de um monte para gozar de uma bela vista, mas o que afasta dele é a dificuldade de escalar. A subida é difícil, às vezes perigosa, parece longa. Mas o alegre tira-lhe esta aspereza. É como o alpinista: dirige-se alegre e animado: consegue outros adeptos; se se dirige cansado, tremendo e queixando-se, os outros dizem: bah!, isto não é para mim!

            Um santo triste, um triste santo! «Tomais sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve» (Mt 11,29-30). Quantas vocações ao verem sorridentes os noviços!


A vocação sacerdotal, um problema de todos

Conferência para os jovens da Ação Católica

 

            O tema da vocação sacerdotal não pode ser de maior importância para a Igreja, dada a missão do sacerdote. Ao sacerdote confiou Cristo a administração dos seus sacramentos, que são na sua Igreja o meio por excelência e o caminho ordinário da efusão da Graça. A celebração da santa Missa, que é a renovação nos nossos altares do sacrifício da Cruz, o ato mais excelente que se realiza sob os céus, o ato que maior glória dá ao Pai, mais do que todos os trabalhos apostólicos, os sacrifícios, as orações… e este ato, o centro da vida cristã, só pode ser realizado pelos sacerdotes. A purificação das almas manchadas pelo pecado foi confiada ao sacerdote. Naqueles países em que o sacerdote desapareceu, a Igreja acabou por desaparecer…

            O problema da vocação sacerdotal é um problema cristão em todo o sentido da palavra, que interessa não só a alguns escolhidos, que poderiam estudar a sua vocação, mas que é um problema de todos os cristãos: problema dos pais que queiram dar educação cristã a seus filhos; problema dos jovens que necessitam um guia nos seus anos difíceis, para que os dirija nas suas crises de adolescência; problema dos pobres que precisam de um pai que se interesse pelas suas necessidades; problema dos que aspiram a formar um lar, que necessitarão de guias para as suas consciências, diretores espirituais; problema dos que não têm fé, problema que eles não percebem, mas por isso é ainda mais pavoroso, porque necessitam de alguém que, desinteressadamente, tenda-lhes a mão; problemas dos enfermos que buscarão em vão quem os alente a entrar serenos na eternidade, e quem console seus parentes e amigos. Toda a vida cristã está cheia do sacerdote, e todos teriam que interessar-se porque o seu número seja cada vez maior e, sobretudo, porque aumentem em espírito.

            Santos, mas também muitos, porque a atividade apostólica de cada homem tem um limite, e uma vez superado esse limite, a suas forças não dão para mais… e ficarão os outros sem nenhum auxílio nas suas necessidades.


Pessimistas e otimistas

Conferência para senhoras, pronunciada em Viña del Mar, em 1946

 

            Fato curioso, paradoxo cruel. Nunca como hoje o mundo manifestou tantos desejos de gozar, e nunca como hoje tinha-se visto uma dor coletiva maior. À fome natural de gozo, própria de todo homem, veio a somar-se a série de descobrimentos que oferecem fazer desta vida um paraíso: o rádio que alegra as horas de solidão; o cinema que harmoniza fantasticamente a beleza humana, o encanto da paisagem, as doçuras da música em argumentos dramáticos, que tomam todo o homem; o avião que lhe permite estar em poucas horas em Buenos Aires; em Nova York, em Londres ou em Roma… a cordilheira que vê invadida a sua solidão por milhares de turistas que saboreiam um prazer novo: a vertigem do perigo; a imprensa que penetra por todas as portas, mesmo as mais fechadas, pelo estímulo da curiosidade, pela sugestão do gráfico e da fotografia. Festas, excursões, casinos, regatas, tudo para gozar. E, todavia, fato curioso, o mundo está mais triste hoje do que nunca; foi necessário inventar técnicas médicas para curar a tristeza. Diante desta angústia contemporânea, muitas soluções pensam-se diariamente:

            Umas soluções do tipo da evasão. Em seu grau mínimo é fugir de pensar; atordoar-se… Para isso serve maravilhosamente o rádio, o carro, o cinema, o casino, o jogo, ruína da vida interior! Está-se, não me atreveria a dizer ocupado, mas sim, fazendo algo que nos permita escapar de nós mesmos, fugir dos nossos problemas, não ver as dificuldades. É a eterna política da avestruz. Os turistas que vêm a estas lindas praias, o que fazem aqui no verão senão isso? Praia, banho, banho de sol, aperitivo, almoço, jogo, terraço, casino, até que se fecham os olhos para seguir assim, não digo gozando, mas «atordoando-se». Esta política da evasão leva a alguns mais longe, à morfina, ao «ópio» que se está introduzindo, ao trago, demasiado introduzido, e inclusive ao suicídio. Nunca me esquecerei de um que me tocou presenciar em Valparaíso.

            Outros, mais pensadores, não seguem o caminho da «evasão», mas que enfrentam o problema filosoficamente e chegam a doutrinas que são a sistematização do pessimismo.

            Para ambos grupos o fundo, confessado ou não, é que a vida é triste, uma grande dor, e termina com um grande fracasso: a morte. E, no entanto, a vida não é triste, mas alegre, o mundo não é um deserto, mas um jardim; nascemos, não para sofrer, mas para gozar; o fim desta vida não é morrer, mas viver. Qual é a filosofia que nos ensina esta doutrina? O Cristianismo!!

            Há duas maneiras de considerar-se na vida: produto da matéria, evolução da matéria, filho do macaco, neto da árvore, bisneto da pedra, ou bem Filho de Deus. Isto é, produto da geração espontânea, do inorgânico, ou bem término do Amor de um Deus todo poder e toda bondade.

            Claro está que para quem se considera filho da matéria, e pura matéria, o panorama não pode ser muito consolar. A matéria não tem entranhas, carece de coração, nem sequer tem ouvidos para escutar os rogos, nem olhos para ver o pranto.

            Mas, para quem sabe que a sua vida não vem do nada, mas de Deus, a mudança é total. Eu sou a obra das mãos de Deus. Ele é o responsável da minha vida. E eu sei que Deus é Beleza, toda a beleza do universo procede dele, como da sua fonte. As flores, os campos, os céus, são belos, porque, como dizia São João da Cruz, passou por estes soutos, as suas graças derramando, e vestidos os deixou da sua formosura.

            O cristão não passa pelo mundo com os olhos fechados, mas com os olhos muito abertos, e na natureza, na música, em toda arte… goza, deleita-se, alarga o seu espírito porque sabe que tudo isso é uma pegada de Deus, que tudo isso é belo, que essas flores não se murcham… porque a sua beleza mais completa e cabal a vai encontrar no mesmo Deus.

            «Deus é amor», diz São João ao defini-lo, e nós nos confiamos ao amor de Deus (1Jo 4,8.16). Tudo o que o amor tem de belo, de terno: entre pai e filho, esposa e esposa, amigo e amiga, tudo isso o encontraremos nele, pois é amigo, esposo, mais ainda, Pai. Estamos tão acostumados a esta revelação da paternidade divina que não nos estranha. Deus, Senhor, sim, mas Pai? Pai de verdade? E de verdade, tão verdade é pai: «Que sejamos chamados filhos de Deus e nós o somos» (1Jo 3,1). Quando oreis… Meu Pai e Pai vosso! Pai que provê a roupa, o alimento, pai que nos recebe com seus braços abertos quando falhamos contra a nossa natureza de filhos e pecamos. Se tomamos esta idéia profundamente em sério, como não ser otimistas na vida?

            Dores: nem a morte mesma turva a alegria profunda do cristão. Os antigos, como a temiam! A grande derrota! A mudança, para o cristão não é a derrota, mas a vitória: o momento de ver Deus. Esta vida foi-nos dada para buscar Deus, a morte para encontrá-lo, a eternidade para possuí-lo. Chega o momento em que, depois do caminho, chega-se ao término. O filho encontra o seu Pai e joga-se em seus braços, braços que são de amor, e por isso, para nunca fechá-los, deixou-os pregados; entra no seu lado que, para significar o seu amor, ficou aberto pela lança manando dele o sangue que redime e a água que purifica (cf. Jo 19,34).

            Se a viagem parece-nos pesada, pensemos no termo que está quiçá muito perto. Na nossa viagem de Santiago para Viña, estamos quiçá chegando em Quilpué… E ao pensar que o tempo que fica é curto, apressemos o passo, façamos o bem com maior brio, façamos partícipes da nossa alegria aos nossos irmãos, porque o termo está perto. Acabar-se-á a ocasião de sofrer por Cristo, aproveitemos as últimas gotas de amargura e tomemo-las com amor.

            E assim, contentes, sempre contentes. A Igreja e os lares cristãos, devem ser centros de alegria; um cristão sempre alegre, que o santo triste é um triste santo. Jaculatórias do fundo da alma, contente, Senhor, contente. E para está-lo, dizer a Deus sempre: «Sim, Pai». Cristo é a fonte da nossa alegria. Na medida em que vivamos nele viveremos felizes.


Viver para sempre

Meditação de Semana Santa para jovens, escrita em 1946

 

            1. O homem quer viver.

            Anelo profundo do nosso espírito, o mais profundo é viver. Se alguém conheceu alguma beleza anela seguir possuindo-a. Os que se suicidam não é que odeiem a vida, mas a vida triste. Por isso a natureza resiste a morrer. Custa morrer, o homem defende-se – «não perde a esperança» –. E os que crêem que o homem morre, choram a morte, e levam luto pela morte. Porque o homem não quer morrer, mas viver.

            No entanto, diante dos nossos olhos, tudo é morte, separação e dor! É preciso ser muito jovem ou muito santo para não conhecer a dor! «Darás à luz com dor. Comerás o pão com o suor do teu rosto. Cultivarás a terra que te dará abrolhos. Terás doenças e misérias. Morrerás…». O menino nasce chorando… o homem morre com gesto de suprema dor. Doenças, quem escapa de alguma? No Chile, 400.000 tuberculosos… Os reis e os presidentes adoecem… E da morte, quem escapa?

            Visitava a fábrica Ford sob o comando de Henri Ford II, católico: seu pai acabava de morrer, em plena juventude! 300.000 operários trabalham para ele e Henri II morrerá… A sua esposa, para que não se estrague o seu vestido de noiva, foi num ônibus ao matrimônio, o vestido já se estragou, ela morrerá… Só a sua formosa alma sobreviverá!!

            Ruínas econômicas? A guerra as fez tão comuns que a ninguém impressionam… Essas cidades magníficas, glória do mundo: agora são um monte de ruínas. Este homens ricos ontem, hoje vestidos de papel… Goering, Hess e o Imperador do Japão no lado dos vencidos. Mussolini e Hitler, era ontem os amos da Europa!! Falavam, mandavam, imperavam. Hoje, quem são?

            As faculdades celebrais gastam-se, diminuem: a vista encurta-se, os ouvidos endurecem-se: não percebem as harmonias, os olhos já não se deleitam nas cores, os pés já não podem levá-lo às montanhas… as idéias obscurecem-se, e as últimas etapas da escada da vida o homem sobe-as sozinho, triste, melancólico! Depois de olhar uma vida em que teve muita dor, muitas crises, muitas desuniões, pensa-se às vezes ao fracasso. Crê-se no amor e vê-se a polícia em casa para separar os filhos; pregou-se a união e vê-se a disputa do pedaço de ouro… É isto viver? Pode por acaso satisfazer-nos uma existência assim?

            2. A grandeza do nosso espírito

            A nossa alma é espiritual, criada por Deus à sua imagem e semelhança. Semelhante na sua natureza e semelhante nas suas tendências: com fome irresistível de bem, de bondade, de beleza, de verdade: sempre pede mais e mais.

            Tudo aqui da terra cansa-o, não o enche. Por maior que seja o amor, sempre fica-lhe uma apetência para algo maior. É por isso que o homem é o rei da criação. Porque é o único capaz de compreender e de tender ao infinito. Viver… recordar nosso destino. O infinito. O que não tem limites em tudo o que é perfeição.

            Deus: que é belo, mais do que o sol nascente; terno, mais do que o amor de uma mãe; que é carinhoso e íntimo, mais do que o momento de amor sem limite; forte, robusto, magnífico na sua grandeza. Santo, santo, santo, sem mancha. Que posso eu sonhar no rapto mais endoidante? Isso será realidade em tudo o que tem de beleza, e muito mais… Compreensão, ternura, intimidade, companhia?… Sim, as terei e sem manchas!

            E a eternidade… não em sombra de segundos, ou anos de segundos, para sempre. Sem ocaso!! Viver a eternidade nos momentos de depressão. Isto passa… Isso não!! Isto é uma hora, aquilo eterno!!

            Olhar minha vida à luz da eternidade. Meus amores à luz da eternidade… minha profissão… o uso do meu tempo… à luz da eternidade. Os sacrifícios que Deus me peça… Minha vida de estudos, o tempo que dê às realidades tangíveis, que são sobra da realidade, diante da grande realidade, a eterna… Que tem isto a ver com a eternidade?

            A realidade à que Deus me chama, que me parece austera; a vida de oração, as mortificações, o meu apostolado, no que me rói o desalento… à luz da eternidade… O apostolado que é «almas para eternidade», almas que sejam felizes por uma eternidade, livrá-las de um incêndio. A Ação Católica… o sacerdócio… as missões… A China, o Congo… Os Padres Jesuítas no Congo, o Padre Jogues e Brébeuf no Canadá! O Padre Damian no leprosário. Toda a santidade, à luz da eternidade: isso é viver!!

            Alegria, e que feliz vive-se quando pensa-se no eterno! Ali está a minha morada… Dores? Passam, mas a eternidade permanece. Morte? Não, um até logo, sim, até o céu. Até muito presto!

            Senhor, que poucos pensam assim! Que pouco penso eu assim! E só assim se pensa em cristão, e toda outra visão da vida é pagã! Mas esta visão é impossível sem uma vida de intensa oração, sem recolhimento, sem meditação, mas qualquer sacrifício vale a pena por este tesouro. O Reino dos céus é semelhante a um homem que descobriu um tesouro, e tendo-o descoberto, vendeu tudo para comprar aquele campo! (cf. Mt 13,44). Vender tudo, É o que fizeram os santos, os mártires, é o que fazem os cristãos de verdade.

            3. O que é a vida eterna.

            A vida eterna é possuir Deus… e encher eternamente com novos e novos aspectos a minha inteligência sedenta de verdade. Não é olhar e saciar-me, mas penetrar e aprofundar um livro inesgotável, porque é infinito e a minha inteligência é finita. É uma viagem infinitamente nova e eternamente longa.

            «Hoje estarás comigo!», disse Jesus Cristo ao Ladrão (cf. Lc 23,43). Não tinha porque dizer-lhe: no paraíso, porque estar com Jesus Cristo é o Paraíso. Jesus Cristo! O coração mais nobre, o amigo por excelência, no céu,  junto a mim, será meu amigo. Viver, é viver com Ele!

            Os seres amados em Cristo, serão possuídos nele também no céu. No momento da morte, a ausência será terminada: viver, conversar, olhar-se, unir-se… sem que nada os separe, porque ambos amarão o mesmo, verão as coisas na mesma forma, não haverá o temor de uma incompreensão, e nada, nem a morte, que não existirá, nem o cansaço, nem o sono virá a perturbar este amor que será eterno!!

            Viver! Isto é viver! Senhor, que eu realize a verdade, para que chegue à tua luz! Luz indefectível, luz alegre, luz verdadeira, luz que é vida!!

            Senhor eu quero crer! Para chega a amar

            Senhor eu quero crer, para poder alcançar

            Senhor eu quero crer, porque quero viver, tua vida, contigo.

            Com Jesus Cristo meu amigo, com minha Mãe Maria,

            com meus seres queridos, com teus Anjos e Santos

            para sempre jamais. Amém. Amém. Amém.

 


Há uma maneira cristã de trabalhar

Reflexão pessoal escrita em novembro de 1947

 

            Começa por dar-te. Quem se dá, cresce. Mas não há que dar-se a qualquer um, nem por qualquer motivo, mas para o que vale verdadeiramente a pena: ao pobre na desgraça, a essa provação na miséria, à classe explorada, à verdade, à justiça, à ascensão da humanidade, à toda causa grande, ao bem comum da sua nação, do seu grupo, de toda a humanidade; a Cristo, que recapitula estas causas em si mesmo, que as contém, que as purifica, que as eleva; à Igreja, mensageira da luz, dadora de vida, libertadora; a Deus, a Deus em plenitude, sem reserva, porque é o bem supremo da pessoa, e o supremo Bem Comum. Cada vez que me dou assim, sacrificando do meu, esquecendo-me de mim, eu adquiro mais valor, um ser mais pleno.

            Olhar em grande, querer em grande, pensar em grande, realizar em grande. Ao começar um trabalho, é preciso prepará-lo pacientemente. A improvisação é normalmente desastrosa. Amar a obra bem feita, e para isso pôr todo o tempo que se necessite.

            Pensar e volta a pensar. Em cada coisa, adquirir o sentido do que é essencial. Não há tempo senão para isso. Foch dizia: «Quando um homem de qualidades medianas concentra as suas energias num único fim, deve alcançá-lo». A vida é demasiado curta, para perder o tempo em intrigas. Muitos buscam não a verdade, nem o bem, mas o êxito.

            Com freqüência, ensina-se aos homens a não fazerem, a não se comprometerem, a não se aventurarem. É precisamente o revés da vida. Cada um dispõe só de um certo potencial de combate. Não desprezá-lo em escaramuças.

            É preciso embarcar-se: não se sabe que barcos encontrarei no caminho, que tempestades ocorrerão… Uma vez tomadas as precauções, embarcar-se! Amar o combate, considerá-lo como normal! Não se estranhar, aceitá-lo, mostrar-se valente, não perder o domínio de si; jamais faltar à verdade e à justiça. As armas do cristianismo não são as armas do mundo. Amar o combate, não por si mesmo, mas pelo amor do bem, pelo amor dos irmãos que é preciso libertar.

            É preciso preservar. Muitos ficam gastados depois das primeiras batalhas. Saber que as idéias caminham lentamente. Muitos imaginam-se que, porque encontraram alguma verdade, isto vai arrebatar os espíritos. Irritam-se com os atrasos, com as resistências. Estas resistências são normais: provêm da apatia, ou da diferente cultura, ou do ambiente. Cada um parte do que é, do que recebeu.

            Não se espantar nem se irritar com a oposição, ela é normal e, com freqüência, é justa. Antes alegremo-nos que nos resistam e que sejamos discutidos. Assim a nossa missão penetra mais profundamente, retifica-se e anima.

            Eles me dirão: «A sua obra está em crise». Mas, amigo, uma obra que caminha, tem sempre coisas que não caminham. Uma obra que vive está sempre em crise.

            Permanecer puro, ser puro, buscar unicamente a verdade, o bem, a justiça. Ser simples, e comprometer-se em permanecer simples. Crer todavia no ideal, na justiça, na verdade, no bem, em que há bondade nos corações humanos. Crer nos meios pobres. Combater com boa fé a batalha contra os poderosos. Não buscar enganar, nem aceitar meios que corrompam.

            Quando o obstáculo é a oposição dos homens, a melhor tática, com freqüência, é continuar seu caminho, sem cuidar-se desta oposição. Perde-se um tempo precioso em polêmicas, quando só conta a construção. Se a oposição vem dos homens de boa vontade, dos «santos», dos superiores, verificar a minha orientação e se estou caminhando com a Igreja.

            Lembra-te: «vai-se longe, depois que se está afadigado». A grande ascética é não pôr-se a recolher flores no caminho. O sofrimento, a cruz é sobretudo permanecer no combate que se começou a combater. Isto é o que mais configura com Cristo.

            Há quem quer desenvolver-se, mas sem dor. Não compreendeu ainda o que é crer… Quer desenvolver-se pelo canto, pelo estudo, pelo prazer, e não pela fome, a angústia, o fracasso, e o duro esforço de cada dia, nem pela impotência aceita, que nos ensina a unir-nos ao poder de Deus; nem pelo abandono dos próprios planos, que nos faz encontrar os planos de Deus. A dor é benfeitora porque ensina-me as minhas limitações, purifica-me, faz-me estender-me na cruz de Cristo, obriga-me a volver-me para Deus.

            Num grupo realista de apóstolos, frases como estas ouvem-se freqüentemente: «Depois de um penhasco, outro…». 90% de fracasso, alegrar-se, apesar de tudo!! Começar por acusar-te a ti mesmo. O fracasso constrói. Alegria, paz, nenhuma preocupação… e viva, e sempre viva! Assim é a vida… e a vida é bela!!! Não dramatizar. Não gritar. Não se indignar. Não se irritar. Não deixar de rir, e dar ânimo aos outros. Continuar sempre. Não se faz nada num mês: depois de dez anos é enorme o que se fez. Cada gota conta.

            Dar-me sem contar, sem enganar, em plenitude, a Deus e aos meus irmãos, e Deus tomar-me-á sob a sua proteção. Ele tomar-me-á e passarei ileso no meio de inumeráveis dificuldades. Ele conduzir-me-á ao seu trabalho, ao que conta. Ele encarregar-se-á de limpar-me, de aperfeiçoar-me e colocar-me-á em contato com os que o buscam e aos quais Ele mesmo anima. Quando Ele pega alguém, não o solta facilmente.

            Para este otimismo, nada como a visão de fé. A fé é uma luz que invade. Enquanto mais se vive, maior é a sua luz. Ela penetra tudo e faz que vejamos tudo em função do essencial, do intemporal. Quem a segue, jamais caminha nas trevas. Tem solução para todos os problemas, e graças a ela, no meio do combate, quando já não se pode mais pela pressão , como a rolha da garrafa de champanhe salta, escapa para o alto, une-se a Cristo e nele encontra a paz. A fé faz-nos ver que cada gota conta, que o bem é contagioso, que a verdade triunfa.


Trabalhar ao ritmo de Deus

Reflexão pessoal escrita em novembro de 1947

 

            Quando um homem afasta-se dos caminhos trilhados, ataca os males estabelecidos, fala de revolução, crêem que ele é louco. Como se o testemunho do Evangelho não fosse loucura, como se o cristão não fosse capaz de um grande esforço construtor, como se não fôssemos fortes na nossa fraqueza (cf. 2Cor 12,9). Falta-nos muitos loucos destes, fortes, constantes, animados por uma fé invencível.

            Um apostolado organizado requer em primeiro lugar um homem entregue a Deus, uma alma apostólica, completamente ganhada pelo desejo de comunicar Deus, de fazer conhecer Cristo; almas capazes de abnegação, de esquecimento de si mesmas, com espírito de conquista. A organização racional do apostolado exige, precisamente, que o supra-racional esteja em primeiro lugar. Que seja um santo! Em definitiva, não vai a apoiar-se sobre os meios da sua ação humana, mas sobre Deus. O demais virá depois: que trabalhe não como guerrilheiro, mas como membro do Corpo Místico, em união com todos os outros, aproveitando-se de todos os meios para que Cristo possa crescer nos outros, mas que por primeiro a chama esteja muito viva nele.

            É impossível um santo se não é um homem; não digo um gênio, mas um homem completo dentro das suas próprias dimensões. Há tão poucos homens completos. Os professores preocupamo-nos tão pouco de formá-los; e poucos tomam a sério chegar a sê-lo.

            O homem tem dentro de si a sua luz e a sua força. Não é o eco de um livro, a cópia de um outro, o escravo de um grupo. Julga as coisas mesmas; quer, espontaneamente, não por força, submete-se sem esforço ao real, ao objeto, e ninguém é mais livre do que ele. Se se caminha mais devagar que os acontecimentos; se se vê as coisas mais pequeninas do que são; se se prescinde dos meios indispensáveis, fracassa-se. E não pode ser-nos indiferente fracassar, porque o meu fracasso o é para a Igreja e para a humanidade. Deus não me fez para que busque o fracasso. Quando esgotei todos os meios, então tenho direito a consolar-me e a apelar à resignação. Muitos trabalham para ocupar-se; poucos para construir; satisfazem-se porque fizeram um esforço. Isso não basta. É preciso amar eficazmente.

            O equilíbrio é um elemento preciso para um trabalho racional. Vale mais um homem equilibrado que um gênio sem ele, pelo menos para o trabalho de cada dia. Equilíbrio não quer dizer, de nenhuma maneira, um bom conjunto de qualidades medíocres, trata-se de um crescimento harmônico que pode ser próprio do homem genial, ou uma saúde enfermiça, ou uma especialização muito avançada. Não se trata de destruir a convergência com os poderes que se tem, mas de superá-las por uma adesão mais firme à verdade, de contemplar-se em Deus pelo amor.

            A moral cristã permite harmonizar tudo, hierarquizar tudo, por mais inteligente, ardente e vigorosa que a pessoa seja. A humildade vem a temperar o êxito; a prudência freia a precipitação; a misericórdia dulcifica a autoridade; a equidade tempera a justiça; a fé supre as deficiências da razão; a esperança mantém as razões para viver; a caridade sincera impede o ensimesmar-se; a insatisfação do amor humano deixa sempre lugar para o amor fraternal de Cristo; a evasão estéril está substituída pela aspiração de Deus, carregada de oração e de insaciável desejo. O homem não se pode equilibrar senão por um dinamismo, por uma aspiração aos mais altos valores dos quais ele é capaz.

            O ritmo cotidiano deve harmonizar-se entre repouso, trabalho difícil, trabalho fácil, comidas, descansos. É bom recordar que em muitos casos descansa-se de um trabalho passando a outro trabalho, não ao ócio.

            A que passo caminhar? Uma vez que se tomaram as precauções necessárias para salvaguardar o equilíbrio, é preciso dar-se sem medir-se, para obter o máximo de eficácia, para suprimir, na medida do possível, as causas da dor humana.

            Trabalha-se assim no limite das suas forças, mas encontra-se, na totalidade da sua doação e na intensidade do seu esforço, uma energia como inesgotável. Os que se dão incompletamente são logo gastados, qualquer esforço cansa-os. Os que se deram completamente, mantêm-se na linha sob o impulso da sua vitalidade profunda.

            Contudo, não se deve exagerar e dissipar as suas forças com um excesso de tensão conquistadora. O homem generoso tende a caminhar demasiado depressa: quereria instaurar o bem e pulverizar a injustiça, mas há uma inércia dos homens e das coisas com a qual tem que contar. Misticamente trata-se de caminhar com o passo de Deus, de ocupar o seu lugar justo no plano de Deus. Todo esforço que vá mais longe é inútil, mais ainda, nocivo. À atividade substituirá o ativismo que sobe como o champanhe, que pretende objetos inalcançáveis, tira todo o tempo para a contemplação; deixa o homem de ser dono da sua vida.

            Ao partir na vida do espírito, adquire-se uma atitude de tensão extrema, que nega todo descanso. Mas como nem o corpo nem a alma estão feitos para isto, vem logo o desequilíbrio, a ruptura. Há, pois, que deter-se humildemente no caminho, descansar sob as árvores e recrear-se com o panorama, poderíamos dizer, pôr uma zona de fantasia na vida.

            O perigo do excesso de ação é a compensação. Um homem esgotado busca facilmente a compreensão. Este momento é tanto mais perigoso, quanto mais perdeu-se uma parte do controle de si mesmo, o corpo está cansado, os nervos agitados, a vontade vacilante. As maiores besteiras são possíveis nestes momentos. Então, deve-se simplesmente diminuir: voltar a encontrar a calma entre amigos bondosos, recitar maquinalmente o seu rosário e cochilar docemente em Deus.


A multiplicação dos pães

Meditação de um retiro sobre a doação e a cooperação

 

            Introdução

            A pusilanimidade é a grande dificuldade no plano de cooperação. Pensamos. «eu não valho nada», e vem o desalento: «É o mesmo que atue ou que não atue! Os nossos poderes de ação são tão estreitos. Vale a pena o meu modesto trabalho? O que significa a minha abstenção? Se eu não me sacrifico, nada se muda! Não faço falta a ninguém… Uma vocação mais ou menos?». Quantas vocações perdidas. É o conselho do diabo, que tem parte de verdade. É preciso encarar a dificuldade.

            A solução

            5.000 homens, mais as mulheres e os meninos, já 3 dias famintos… Comida? Necessitam-se 200 denários: o ordenado de um ano de um operário e, no deserto! «Diz-lhes que vão embora!». Mas André, atentamente, diz: «há cinco pães e 2 peixes, mas, para que servirá esta miséria!». É o nosso mesmo problema: a desproporção.

            E que pães! De cevada, duros como pedras (os judeus comiam o pão de trigo). E que peixes! De lago, brandos, pequenos, levados num saco por um rapaz, já três dias, com esse calor e com esse aperto… isso sim que era pouca coisa!

            Despreza o Senhor essa oblação? Não, com a sua bênção alimenta todos e sobra. Nem sequer despreza as sobras: 12 cestos, dos peixes sobraram cabeças e espinhas, e até isso Ele estima.

            O rapaz consentiu em dar a Cristo o seu pobre dom, ignorando que ia alimentar todas essa multidão. Ele creu perder seu bem, mas achou-o sobrado, e cooperou ao bem dos outros.

            Eu… como estes peixes (menos que estes pães) machucados, quiçá descompostos, mas nas mãos de Cristo a minha ação pode ter alcance divino.

            Lembre-se de Inácio, Agostinho, Camilo de Lellis, Talbot, ruins pecadores que foram convertidos em alimentos para milhares, e que seguirão alimentando-se deles.

            A minha ação, e desejos podem ter alcance divino e posso mudar a face da terra. Não o saberei, os peixes tampouco o souberam. Posso muito se estou com Cristo; posso muito se coopero com Cristo…


Sacerdote do Senhor

Carta de outubro de 1933, depois de ter sido ordenado sacerdote

 

            Já sou sacerdote do Senhor! Bem compreenderá a minha felicidade imensa e com toda sinceridade posso dizer-lhe que sou plenamente feliz. Deus concedeu-me a grande graça de viver contente em todas as casas por onde passei e com todos os companheiros que tive. E considero isto uma grande graça. Mas agora, ao receber para sempre a ordenação sacerdotal, a minha alegria chega ao seu cúmulo. Agora já não desejo mais que exercer o meu ministério sacerdotal com a maior plenitude possível de vida interior e de atividade exterior compatível com a primeira.

            O segredo desta adaptação e do êxito, está na devoção ao Sagrado Coração de Jesus, isto é, o Amor transbordante de Nosso Senhor, o Amor que Jesus, como Deus e como homem, tem por nós e que resplandece em toda a sua vida. Se pudéssemos realizar na vida esta idéia: o que pensa disto o Coração de Jesus, o que sente de tal coisa…? E procurássemos pensar e sentir como Ele, como engrandecer-se-ia o nosso coração e transformar-se-ia a nossa vida! Pequenezes e misérias que cometemos e que vemos que se cometem ao nosso lado desapareceriam, e nas nossas comunidades reinaria uma felicidade sobrenatural e também natural, maior compreensão, um respeito maior de cada um dos nossos irmãos, pois até o último merece que nos perturbemos por ele, e que o tenhamos na devida conta. Esta é uma idéia que me vem com freqüência e que a penso muito, porque desejaria realizá-la cada vez mais.

            Eu creio que a devoção ao Sagrado Coração devemos vivê-la em base a uma caridade sem limites, que faça com que os nossos irmãos sintam-se bem em companhia dos seus irmãos e que os leigos sintam-se movidos não pelas nossas palavras, que na maior parte das vezes deixá-los-á frios, mas pela nossa vida de caridade humano-divina para com eles. Mas, esta caridade dever ser também humana, se quer ser divina. Neste ambiente de ceticismo, que reina agora, eu não creio que exista outro meios, humanamente falando, de pregar Jesus Cristo entre os que não crêem senão este: o do exemplo de uma caridade como a de Cristo.

            Adeus, meu querido irmão Sérgio. Não me esqueça diante do Senhor.

            Alberto Hurtado C. s.j.


O dever da Caridade

Meditação pregada pelo rádio, aos 04 de abril de 1944

 

            Se bem que devemos olhar para o céu para adorar o Pai, para receber a sua inspiração, para fortalecer-nos para nossos trabalhos e sacrifícios, esse gesto não pode ser o único gesto da nossa vida. É importantíssimo, e sem ele não há ação válida, mas deve completar-se com outro gesto, também profundamente evangélico. Com uma olhada cheia de amor e de interesse para esta terra, para esta terra tão cheia de valor e de sentido, que cativou o amor de Deus Eterno, atraindo-o para ela, para redimi-la e santificá-la com os seus ensinamentos, os seus exemplos, as suas dores e a sua morte.

            Todo o esplendor do qual se enriquece o céu, fabrica-se na terra. O céu é o celeiro do Pai, mas o mais formoso celeiro do mundo não acrescentou jamais um só grão às espigas, nem uma só espiga ao semeado. O trigo só cresce no barro desta terra.

            A devoção ao Coração de Cristo e ao coração de Maria têm esse sentido profundo: recordar aos homens entristecidos do mundo moderno, que por cima das suas dores tem um Deus que os ama, tem um Deus que é amor (cr. 1Jo 4,8), um Deus que quando quis escolher um símbolo para representar a mensagem mais sentida da sua alma, escolheu o Coração porque simboliza o amor, o amor por eles, os homens desta terra. Um amor que não é vão sentimentalismo, mas um sacrifício robusto, duro, que não se deteve diante dos espinhos, dos açoites, e da cruz. E junto a esse Coração, recorda-nos também que há um outro coração que nos ama, o Coração da sua Mãe, e Mãe nossa, que nos aceitou como filhos quando o seu Coração estava ao ponto de partir-se de dor junto à Cruz, ao ver como sofria o Coração de Jesus, seu Filho, por nós os homens desta terra, redimida pela dor de um Deus feito homem, que quis associar à sua redenção a dor da sua Mãe e dos seus fiéis. A mensagem de amor de Jesus e de Maria, urge o nosso amor.

            Com esta intenção convido-vos, amados em Cristo, a recolher-vos uns instantes em atitude de oração. Se têm diante dos seus olhos o santo crucifixo ou a imagem do Coração de Jesus e do Coração de Maria, compreenderão, nesse símbolo, toda a urgência deste chamado à caridade, ao amor, ao interesse pelos nossos irmãos desta terra, que constitui o preceito fundamental da vida cristã.

            Esta lição constitui o núcleo da pregação cristã. «Aquele que não ama, não conheceu a Deus», diz São João. «Se alguém disser: “amo a Deus”, mas odeia o seu irmão, é um mentiroso. Se alguém, possuindo os bens deste mundo, vê o seu irmão na necessidade e lhe fecha o coração, como permanecerá nele o amor de Deus?» (cf. 1Jo 4,18;4,20;3,17).

            E os ensinamentos dos Pontífices, se há algo que recordem com insistência extraordinária, é esta primazia da caridade na vida cristã. O primeiro Papa, São Pedro, na primeira Encíclica, que dirigira à nascente cristandade, deixou-nos este ensinamento: «Sede perseverantes na oração, mas, acima de tudo, praticai continuamente entre vós a caridade» (cf. 1Pd 4,7-8).

            Leão XIII, na Rerum novarum, dizia-nos: «É de uma abundante efusão de caridade, da que se tem que esperar a salvação, falamos da caridade cristã, que resume todo o Evangelho»; e continua: «que os ministros sagrados apliquem-se, sobre todas as coisas, a alimentar em si mesmos e fazer nascer nos outros a caridade» (nº 41).

            Irmãos em Cristo. Lembrem-se que, ainda mais valiosa do que a honestidade e a piedade, é a generosidade. Recordem que não cumpriram o dever se podem dizer somente: não fiz mal a ninguém, pois estão obrigados a fazer perpetuamente boas ações. Está muito bem não fazer o mal, mas está muito mal não fazer o bem.

            Ódio e matança é o que se lê nas páginas da imprensa cotidiana; ódio é o que envenena o ambiente que se respira. A tremenda dor da guerra da Europa e Ásia, como pode deixar-nos indiferentes? Somos solidários de infinidade de homens, mulheres e meninos que sofrem como quem sabe nunca sofreu-se sobre a terra, já que a todos os continentes chegam as repercussões do grande drama europeu. Que tenho a que ver com o sangue do meu irmão? Afirmava cinicamente Caim (cf. Gn 4,9), e algo semelhante parecem pensar alguns homens que se desinteressam da imensa dor moderna. Estes valores são nossos, não podemos desinteressar-nos deles.

            São tão numerosos estes meninos de todas as raças do mundo que são capazes, com a graça de Deus, de chegarem a ser discípulos prediletos de Cristo, mas que não encontraram o apóstolo que lhes mostre o Mestre. Não posso desinteressar-me deles… São meus irmãos da terra, destinados a ser irmãos de Cristo. Os pescadores e lavradores, os mercadores nos seus toldos da China, os pescadores de pérolas que descem no oceano, os mineiros do carvão que se encurvam nas veias da terra, os trabalhadores do salitre, os do cobre, os operários dos altos fornos que têm aspirações grandes e dores imensas que suportar, a sua própria e a dos seus lares. Cristo diz-me que não amo bastante, que não sou bastante irmão de todos os que sofrem, que as suas dores não chegam bastante no fundo da minha alma, e quisera, Senhor, estar atormentado pela fome e sede de justiça que me tortura para desejar para eles todo o bem que apeteço para mim.

            São tão numerosos os que te buscam às apalpadelas, Senhor, longe da luz verdadeira… São mais de um bilhão os que não conhecem ainda quem é Caminho, Verdade e Vida (Jo 14,6). Quantas dores não encontram consolo em suas almas, porque não conhecem quem lhes ensinou a sofrer com resignação, com sentido de solidariedade e de redenção social.

            E se sem olhar tão longe, damos uma olhada na nossa querida terra chilena, quantos irmãos nossos encontramos nela que reclamam a nossa compreensão, a nossa justiça e a nossa caridade! A doutrina de Cristo não é pregada em grandes extensões da nação chilena, os pampas estão quase sem sacerdotes; paróquias sem pároco, quantos jovens, se pensassem nesta realidade, sentiriam arder um novo desejo nas suas almas e compreenderiam que há uma causa grande pela qual oferecerem as suas vidas. Senhor, dá-nos esse amor, o único que pode salvar-nos!


Minha vida, pois, um disparo para a eternidade

Reflexão pessoal sobre a visão de eternidade

 

            Pedimos heroísmo aos cristãos, e tanto heroísmo! Em que se baseia esta exigência? Na visão de eternidade da vida. Alguém é santo ou burguês, segundo compreenda ou não esta visão de eternidade. O burguês é o instalado neste mundo, para quem a sua vida está só aqui. Olha tudo em função do prazer. A vida para ele é um limão que se deve espremer até a última gota; uma ponta de cigarro que se fuma com fruição, sem pensar que logo ficará reduzido a uma ponta; uma árvore cujas flores é preciso cortar logo… Burguesa é a mentalidade oposta em tudo ao cristianismo: é resolver os problemas com só o critério de tempo. Aproveita o dia! Goza, goza.

            O mundo do sensível acentua essa sede de gozo, oferecendo-nos atrativa em tudo o que nos rodeia: o cinema, o grande pregador do materialismo e da vida fácil; a propaganda do prazer e do luxo que cobre os muros e vai pelas ondas: tudo prega-nos o materialismo. E não é raro que nós caiamos também nesse materialismo prático. Daqui que o mundo moderno move-se e agita-se, mas perdeu o sentido do divino. Despertemos em nós esse sentido do divino que se fundará num conhecimento exato das minhas relações com Deus.

            Deus! Como dilata-se a alma ao pôr-se a meditar estas verdades, as maiores de todas! É como quando alguém se põe a olhar o céu estrelado numa noite serena. A razão leva-nos a Deus. Tudo fala-nos dele: a ordem, a metafísica, o acordo dos sábios, os santos e os místicos. Ele é aquele que é: «Eu sou aquele que é».

            A natureza de Deus: Santo, Santo, Santo; harmonia, ordem, beleza, amor. Deus é Amor; Onipotente; Eterno. Pensemos quando o mundo não existia… Imaginemos o acordo divino para criar… O primeiro brotar da matéria. A evolução dos mundos. Os astros que rebentam. Os milhões de anos. «E Deus na sua eternidade». Tudo depende de Deus! E, portanto, a adoração é a conseqüência mais lógica da minha dependência total!

            A oração, que às vezes parece-nos inútil, que grande aparece quando se pensa que é falar e ser ouvido por quem fez tudo! A Deus não custou nada criar o mundo, o que lhe custará arrumá-lo? O que lhe custará resolver um problema qualquer? Tanto mais porque nos ama: deu-nos seu Filho! (Jo 3,16). Às vezes um desalento porque não compreendo Deus, mas, como espero compreendê-lo, eu que nem compreendo as suas obras? Conseqüência: muito mais orar que mover-me. Além de que no mover-me há tanto perigo de ativismo humano.

            E eu? Diante da minha eternidade. Eu, um disparo na eternidade. Depois de mim, a eternidade. O meu existir um suspiro entre duas eternidades. Bondade infinita de Deus comigo. Ele pensou em mim há mais de centenas de milhares de anos. Começou, se pudesse, a pensar em mim, e continuou pensando, sem poder-me apartar da sua mente, como se eu não mais existisse. Se um amigo me dissesse: os onze anos que estiveste ausente, cada dia pensei em ti, como agradeceríamos tal fidelidade! E Deus, toda uma eternidade!

            A minha vida, um disparo para a eternidade! Não me apegar aqui, mas, através de tudo olhar para a vida vindoura. Que todas as criaturas sejam transparentes e deixem-me sempre ver a Deus e a eternidade. Na hora em que se façam opacas torno-me terreno e estou perdido.

            Depois de mim a eternidade. Para lá vou e muito presto. Quando a gente pensa que muito cedo terminará o presente, a gente tira uma conclusão: ser cidadãos do céu, não do solo.

            No momento da morte, «o que está escondido aparecerá»; todo o mal e todo o bem, todas as graças recebidas. «O que direi, então?». Isto apresentar-se-á muito cedo. Ao refletir no meu final, no meu destino eterno, não posso senão pensar… Qual é o meu fim? Adquirir riquezas? Não. Quantos não poderiam alcançar o seu fim! Alcançar compreensão dos seres que me rodeiam? Em guardá-los junto a mim?… Tudo isto é digno de respeito, mas não é o meu fim. O fim da minha vida é Deus e nada mais do que Deus, e ser feliz em Deus. Para este fim deu-me inteligência e vontade, e, sobretudo, liberdade.

            A norma que me pôs foi a santidade que consiste em que conheça a Deus. Preocupo-me de conhecê-lo? Cultivo meu espírito? Como rezo? Louvores, Salmos, Glória ao Pai? Servi-lo as 24 horas do dia, sem aposentadoria, com alegria e generosidade. E logo, salvar a alma (EE 23).

            «Desde os dias de João Batista até agora, o Reino dos Céus sofre violência… e os violentos se apoderam dele» (Mt 11,12). «Estreita, porém, é a porta, e apertado o caminho que conduz à Vida. E poucos são os que o encontram» (Mt 7,14). «Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo» (Mc 8,34). Salvai a alma! Dizem-nos os santos: a terra passa, mas o céu não; os condenados: estes fogos jamais se apagam!

            Viver, pois, em visão de eternidade! Quanto importa refrescar este conceito de eternidade que nos há de consolar tanto. A guerra, as dores, tudo passa. E logo? Nada te turbe, nada te espante, Deus não se muda! E depois da breve vida de hoje, a eterna. Filhinhos meus! Não vos perturbeis. Na casa do meu Pai há muitas moradas (cf. Jo 14,2). O ensinamento de Cristo está cheio da idéia de eternidade.

            Conseqüência da minha visão de eternidade: recordar-me freqüentemente. «Somos cidadãos do céu» (Fl 3,20). «Onde está o nosso tesouro, ali está o nosso coração» (cf. Mt 6,21). Alegrar-me em ter que ir para lá. Não temo a morte porque é o momento de ver a Deus. Sei que os meus males têm termo e que as minhas aspirações conseguirão o seu objeto.

            Daqui, generosidade, desapego, heroísmo. Tudo tem prêmio. O que é que alenta as irmãzinhas dos pobres? O céu. O monge que tinha uma janela pequenina aberta para o céu. Nas suas tristezas, olhava por ela e confortava-se.

            Daqui a íntima compreensão de que nada há maior do que tratar com Deus, que Deus é a grande realidade, em cuja comparação as outras realidades não merecem tal nome. Quem trata com Deus, trata com a autêntica, grande realidade. Daqui o santo, o pacificado, o sereno, o alegre, ilumina a sua vida com a lembrança do céu!


Adoração e serviço

Carta a um amigo, de 24 de junho de 1948

 

            Morto de vergonha estou pelo mal que comportei contigo, mas tu conheces de sobra a minha vida, e sabes as mil e uma atividades em que me vejo envolvido e que me deixam impossibilitado para poder escrever-te uma longa e noticiosa carta.

            Alegro-me, na alma, pelas notícias que me dás da tua vida, dos teus trabalhos, e das tuas atividades; sobretudo da contemplação à que Deus te vai levando.

            Cada dia estou mais persuadido que o caminho iniciado é o único sólido para uma influência cristã. O esquecimento de Deus, tão característico do nosso século, creio que é o erro mais grave, muito mais grave ainda do que o esquecimento do social.

            O nosso século é eminentemente «o século do homem». Buscando as virtudes ativas, perdemos o sentido do sacrifício e da resignação; todavia, este tem um valor eterno que nada poderá substituir.

            Oxalá, pois, meu querido amigo, que te empapes de calma, de adoração. Esta última palavrinha é a que mais quero recalcar-te: adoração. Tratar de palpar a imensa grandeza de Deus, algo do que se vê no Antigo Testamento e que uma explicação excessivamente adocicada faz-nos esquecer às vezes. É absolutamente necessário fazer amizade com Cristo, no sentido de uma fraternidade com Ele, mas que nada nos faça esquecer a distância infinita que nos separa; que se Ele nos chama seus filhos não é porque tenhamos direito, mas por um gesto da sua infinita bondade.

            Recomendo-te muito que saboreies orações da Santa Missa, a Seqüência de Pentecostes e outras deste estilo. Oxalá chegues a conaturalizar-te com a vida litúrgica no seu sentido mais pleno, com o canto dos salmos, com a adoração eucarística. O que mais te desejo – to repito uma e mil vezes – é que voltes com muito espírito de adoração, com muita paz interior, com uma grande disposição a ser um instrumento de Cristo. Nisto está a santidade. Nenhuma definição tão formosa de oração encontrei como a do Pe. Charles: «Orar é conformar os nossos quereres com o querer divino, tal como Ele se manifesta nas suas obras».

            Todos estas minhas atividades aumentam-se agora com o projeto de habitações de emergência que começa a caminhar, como linha anexa ao Lar de Cristo. O bom espírito dos colaboradores é magnífico e creio que esta idéia será realidade formosíssima no final do ano. Pensamos construir povoados de emergência para a gente mais pobre. Primeiro serão a eles arrendados e logo começarão a amortizar as cotas até cobrir o valor de uma das casas.

            Por outro lado, e para os menos pobres, pensamos construir casinhas que desde o primeiro momento serão dos seus possuidores. Eles contribuirão com pequenas cotas e o resto será amortizado segundo as suas possibilidades.

            Deus nos dê homens de vida interior que os encarem com serenidade e com verdadeira justiça. Saúda-te com todo carinho, teu afetuosíssimo amigo,

            Alberto Hurtado C. s.j.


O homem de ação

Reflexão pessoal escrita em novembro de 1947

 

            I. Virtudes do homem de ação

            É preciso chegar à lealdade total. A uma absoluta transparência, a viver de tal maneira que nada na minha conduta rechace o exame dos homens, que tudo possa ser examinado. Uma consciência que aspira a esta retidão sente em si mesma os menores desvios e os deplora: concentra-se em si mesma, humilha-se, acha a paz.

            Devo considerar-me sempre servidor de uma grande obra. E, porque o meu papel é o de servidor, não rechaçar as tarefas humildes, as ocupações modestas de administração, até as de limpeza… Muitos aspiram ao tempo tranqüilo para pensar, para ler, para preparar coisas grandes, mas há tarefas que todos rechaçam, que estas sejam de preferência as minhas. Tudo deve ser realizado se a obra deve ser feita. O que importa é fá-lo com imenso amor. As nossas ações valem em função do peso de amor que pomos nelas.

            A humildade consiste em pôr-se no seu verdadeiro lugar. Diante dos homens, não em pensar que sou o último deles, porque não o creio; diante de Deus, em reconhecer continuamente a minha dependência absoluta a respeito dele, e que todas as minhas superioridades diante dos outros provêm dele.

            Pôr-se em plena disponibilidade diante do seu plano, diante da sua obra que é preciso realizar. A minha atitude diante de Deus não é a de desaparecer, mas a de oferecer-me com plenitude para uma colaboração total.

            Humildade é, portanto, pôr-se em seu lugar, tomar todo o seu lugar, reconhecer-se tão inteligente, tão virtuoso, tão hábil como cada um crê sê-lo; dar-se conta das superioridades que cada um crê ter, mas sabendo-se em absoluta dependência diante de Deus, e que tudo recebeu para o bem comum. Esse é grande princípio: Toda superioridade é para o bem comum (Santo Tomás).

            Não sou eu quem conta, é a obra. Não me achatar. Caminhar com o passo de Deus. Não correr mais do que Deus. Fundir a minha vontade de homem com a vontade de Deus. Perder-me nele. Tudo o que eu agrego de puramente meu, está demais; melhor, é nada. Não esperar reconhecimento, mas alegrar-se e agradecer os que vêm. Não se humilhar diante dos fracassos; olhar o que permanece por fazer, e saber que amanhã haverá um novo golpe, e tudo isto com alegria.

            Munificência, magnificência, magnanimidade, três palavras quase desconhecidas no nosso tempo. A munificência e a magnificência não temem o gasto para realizar algo grande e belo. Pensa em outra coisas que em inverter e encher os bolsos dos seus partidários. O magnânimo pensa e realiza em forma digna da humanidade: não se empequenita. Hoje necessita-se tanto, porque no mundo moderno tudo está ligado. Quem não pensa em grande, em função de todos os homens, está perdido de antemão. Alguns te dirão: «Cuidado com o orgulho!… por que pensar tão grande?». Mas não há perigo: quanto maior é a tarefa, tanto menor a gente se sente. Vale mais ter a humildade de empreender grandes tarefas com perigo de fracassar, do que o orgulho de querer ter êxito, empequenitando-se.

            Grandeza e recompensa do militante no grande combate que liberta: ultrapassar sempre mais no amor… O êxito? Abandoná-lo a Deus!

 

            II. Pecados de um homem de ação

            Crer-se indispensável a Deus. Não rezar bastante. Perder o contato com Deus. Andar demasiado depressa. Querer ir mais rápido do que Deus. Pactuar, ainda que seja ligeiramente, com o mal para ter êxito.

            Não dar-se por inteiro. Preferir-se à Igreja. Estimar-se mais do que a obra que se deve realizar, ou buscar-se na ação. Trabalhar para si mesmo. Buscar a sua glória. Orgulhar-se. Deixar-se abater pelo fracasso. Ainda pior, atemorizar-se diante das dificuldades.

            Empreender demasiado. Ceder aos seus impulsos naturais, às suas pressas inconsideradas ou orgulhosas. Cessar de controlar-se. Afastar-se dos seus princípios.

            Trabalhar para fazer apologética e não por amor. Fazer do apostolado um negócio, ainda que seja espiritual.

            Não se esforçar por ter uma visão a mais ampla possível. Não retroceder para ver o conjunto. Não ter conta do contexto do problema.

            Trabalhar sem método. Improvisar por princípio. Não previr. Não acabar.

            Racionalizar com excesso. Ser titubeante, ou afogar-se nos detalhes. Querer sempre ter razão. Mandar tudo. Não ser disciplinado.

            Evadir-se das tarefas pequenas. Sacrificar um outro pelos meus planos. Não respeitar os outros; não lhes deixar iniciativas; não lhes dar responsabilidades. Ser duro para os seus associados e para os seus chefes. Desprezar os pequeninos, os humildes e os menos dotados. Não ter gratidão.

            Ser sectário. Não ser acolhedor. Não amar seus inimigos.

            Considerar todos os que se opõem a mim como se fossem meus inimigos. Não aceitar com gosto a contradição. Ser demolidor por uma crítica injusta ou vã.

            Estar habitualmente triste ou de mal humor. Deixar-se afogar pelas preocupações do dinheiro.

            Não dormir bastante, nem comer o suficiente. Não guardar, por imprudência e sem razão verdadeira, a plenitude das suas forças e graças físicas.

            Deixar-se tomar por compensações sentimentais, preguiça, ilusões. Não cortar a sua vida com períodos de calma, seus dias, suas semanas, seus anos…


Regras para sentir com a Igreja

Comentário a um escrito de Santo Inácio de Loyola

 

            Regras para estar sempre com a Igreja, no espírito da Igreja militante. Não podemos colaborar se não temos o espírito da Igreja militante. A nossa primeira idéia é buscar inimigos para combater com eles… é bastante ordinária…

            Santo Inácio diz: Louvar as longas orações, os jejuns, as ordens religiosas, a teologia escolástica… Louvar, louvar. Não se trata de vendar-se os olhos e dizer amém a todos!! Porém, o pressuposto profundo está um pouco escondido. Há um pensamento esplêndido, às vezes esquecido: tenho que louvar do profundo do meu coração o que legitimamente não faço. Não medir o Espírito divino pelos meus prejuízos!!

            A mente da Igreja é a largura de espírito. Se legitimamente eles o fazem, eu legitimamente não o faço. A idéia central é que, na Igreja, para manifestar a sua riqueza divina, há muitos modos: «Na casa de meu Pai há muitas moradas» (Jo 14,2). A vida da Igreja é uma sinfonia. Cada instrumento tem o dever de louvar os outros, mas não de imitá-los. O tambor não imita a flauta, mas não a censura… É um pouco ridículo, mas tem o seu papel. E os outros instrumentos, podem zombar-se do bombo? Não, porque não são bombo. É como o arco-íris… O vermelho, pode censurar o amarelo? Cada um tem o seu papel. Que bem quadra isto dentro do Espírito do Corpo Místico.

            Logo, não encerrar a Igreja dentro do meu espírito, do meu espírito de raça, da minha classe, da minha nação. A Igreja é ampla. Os hereges, sob o pretexto de liberdade estreitaram a mente humana. Nós com nossos prejuízos burgueses, teríamos acabado com as glórias da Igreja.

            No século IV, disseram alguns: «Queremos servir a Deus do nosso modo. Vamos construir uma coluna e encima da coluna uma plataforma pequena… bastante alta para ficar fora do alcance das mãos, e não tanto que não possamos falar-lhes… A caridade dos fiéis nos dará alimento, oraremos!». Nós, o que teríamos feito? Teríamos dito: «Estes são doidos… Por que não fazem como todos?». Mas o homem não é nenhum louco. A Igreja não lançou nenhuma maldição, deu-lhes uma grande bênção! Vocês podem fá-lo, mas não obriguem os outros. Vocês na sua coluna, mas o bispo pode ir sentar-se no seu trono e os fiéis dormirem na sua cama. De todo o mundo Romano vinham para vê-los, ajustavam os vícios, pregavam. São Simão Estilita, e com ele outros. Vou louvar os monges estilitas, mas não vou viver numa coluna.

            Outro grupo raro declara: «Nós vamos ao deserto, aos ângulos mais longínquos para toda a vida. Vamos lutar contra o diabo, a jejuar e a orar… a viver numa rocha». E nós? Com o nosso bom sentido burguês barato, diríamos: «Fiquem na cidade. Façam como todo mundo. Abram um armazém; lutem com o diabo na cidade». Mas a Igreja tem para eles uma imensa bênção. Não lutem demasiado entre si! E não obriguem aos outros a ir para o deserto; o que vocês legitimamente fazem, outros não o fazem!! Nós hoje, despedaçados pelo louco ritmo da vida moderna, recordamos os Anacoretas com um pouco de saudade.

            Chega o tempo das Cruzadas. A grande ameaça contra o Islão. Chegam uns religiosos bem curiosos. Para nós, o que é um religioso? Manso, com as mãos nas mangas, modesto, ouve confissões de beatas, com barrete? Estes não têm barrete, mas casco, e têm espada no lugar do Rosário… Religiosos guerreiros. Faziam os três votos de religiosos para combaterem melhor. Faziam um quarto voto: o dos templários, voto solene: «não retroceder a ponta da sua lança, quanto sós tinham que enfrentar três inimigos». Era o quarto voto. A Igreja aprovou-o. Logo, todos têm que combater e ser mata-mouros? Era o quarto voto. O que eles legitimamente fazem; nós não.

            Vêm outros, tímidos, humildes, mendigos:

            Um pouco de ouro e de prata, mas ouro é melhor…

            O que vão fazer com o ouro dos cristãos?

            Levá-los aos Mouros!

            Vão enriquecer os Mouros? O tesouro da cristandade que se vai?

            Na cristandade não há melhor tesouro que a liberdade dos cristãos.

            Os religiosos da Mercê, um voto: ficar com os reféns para conseguir a liberdade dos fiéis! A Igreja abençoou os militares e a Mercê.

            O que teríamos feito nós com São Francisco de Assis? Teríamo-lo preso como louco! Não é de louco desnudar-se totalmente no armazém do seu pai para provar que nada é necessário? Não era de louco cortar os cabelos de Santa Clara sem a permissão de ninguém? O que teríamos feito nós? No armazém, o bispo jogou-lhe o seu manto, símbolo da Igreja que o aceita.

            Vêm os Cartuxos, que não falam até a morte. Se o superior manda-o pregar, pode dizer: Não, é contra a Regra! «Absurdo –diríamos–, depois de 7 anos… a pregar!». A Igreja manteve a liberdade dos Cartuxos: querem manter-se em silêncio, podem fá-lo! E vêm os Frades Pregadores, os Dominicanos: e a Igreja dá a sua bênção aos pregadores.

            São Francisco de Assis: uma idéia: construir um templo com quatro paredes, sem janelas, um pilar, um teto, um altar, duas velas e um crucifixo. Ah não! –diríamos–, isso é um galpão… Vamos pendurar uns quadros… vamos pôr bancos e almofadas… Nada!, diz São Francisco. Grande bênção à sua Igreja e fabulosas indulgências. É a lembrança do Presépio de Belém.

            Nos primeiros tempos dos Jesuítas, estes constróem duas igrejas: o Gesù e Santo Inácio. O Gesù, com colunas torneadas, ouro e lazuritas… tardaram 20 anos pintando a abóbada: nuvens, santos e bem-aventurados. E Santo Inácio, com anjos bochechudos e barrigudos… O altar até o teto, com Moisés e Abraão bem barbudos. Nós diríamos: «isso é demasiado, falta de gosto, de moderação». E a Igreja abençoou o Gesù e Santo Inácio. Não é o presépio, é a glória tumultuosa da Ressurreição.

            Na Igreja pode-se rezar de todos os modos: oração vocal, meditação, contemplação, até com os pés (isto é, em peregrinação). Os hereges, ao contrário: fora lâmpada, fora imagens, fora medalhas… Todos os desastres da Igreja vêm desta estreiteza de espírito! O clero secular contra o regular, e ordem contra ordem! Para pensar de acordo com a Igreja é preciso ter o critério do Espírito Santo que é amplo.

            No Congo, podemos pintar Anjos negros? Claro! E Nossa Senhora negra e Jesus negro? Sim! Este Jesus chinês… que admirável! Nosso Senhor, nos limites do seu corpo mortal, não podia manifestar todas a sua riqueza divina. Para o Congo, um padre comprou quadros impressos na França. Mostra o inferno, e os negros estão entusiasmados: não havia nenhum negro, só brancos! Nenhum negro no inferno!

            Este é um pensamento genial de Santo Inácio, exposto simplesmente: louvar, louvar, louvar. Louvemos tudo o que se faz na Igreja sob a bênção do Espírito Santo. Quando a Igreja mantém uma liberdade, louvemo-la!


Te Deum

Discurso de ação de graças pela Pátria, setembro de 1948

 

            A ti, ó Deus, te louvamos!, entoamos como um hino de ação de graças ao Criador pelos benefícios recebidos pela nossa Pátria neste novo aniversário de vida independente.

            Como não se elevar até o céu numa fervorosa ação de graças Àquele de quem descende todo dom ao contemplar a nossa formosa terra (cf. Tg 1,16), a mais bela do universo, as nossas montanhas austeras que convidam à seriedade da vida, os nossos campos férteis, o nosso céu azul que convida à oração, a alma dos nossos irmãos chilenos inteligente, esforçada, valente, franca, leal!

            Como não se elevar até o céu, ao recordar a nossa história carregada de bênçãos do céu que nos fizeram uma nação digna e respeitável! Como não agradecer a Deus também aquilo que talvez puderam alguns lamentar como uma desgraça: a resistência da nossa terra a entregar as suas riquezas! No norte, o salitre no meio do deserto; no centro, a agricultura entre ásperas montanhas que tem sido necessário às vezes perfurar para fazer chegar a água para o cultivo; no sul, os bosques virgens que tiveram que cair para deixar lugar às vias de comunicação, para robustecer as terras; no sul, em terras inclementes, varridas pelos ventos, pastam os nossos gados; debaixo do mar, jaz o nosso carvão; e ainda lá, no último confim do globo, nas neves eternas, há riquezas que podem trazer bem-estar ao homem, confiadas por Deus ao Chile, e ali montam guarda, junto ao Pavilhão nacional, um grupo de nossos compatriotas que preparam uma nova página da nossa história.

            Uma Nação, mais que a sua terra, as suas cordilheiras, os seus mares, mais que a sua língua, ou as suas tradições, é uma missão que cumprir. E Deus confiou ao Chile essa missão de esforço generoso, o seu espírito de empresa e de aventura, esse respeito do homem, da sua dignidade, encarnado nas nossas leis e instituições democráticas.

            Esforço e aventura que levou o Chile até a colaborar na libertação das nações vizinhas, até realizar façanhas militares que pareciam impossíveis, até arrancar os segredos do deserto e da cordilheira. E todas estas conquistas consumadas por um espírito jurídico de respeito ao homem que se traduziu em instituições, em leis civis e sociais, ao mesmo tempo modelo na América e no mundo. Como não dar graças a Deus por tantos benefícios?

            Mas o A ti, ó Deus, te louvamos!, entoado, tem também outro sentido: mistura de dor arrependida pela tarefa não cumprida, a Pátria eleva a sua voz pedindo o auxílio do céu para cumprir a missão confiada, para ser fiel a essa missão que Deus quis estampar na austeridade das nossas montanhas e campos.

            A austeridade primitiva desaparece: o dinheiro trouxe febre de gozo e de prazer. O espírito de aventura, das grandes aventuras nacionais, enfraquece-se cada vez mais, uma luta da burocracia sucede à luta contra a natureza. A fraternidade humana, que esteve tão presente na mente dos nossos libertadores ao acordar como uma das suas primeiras medidas a libertação da escravidão, sofre hoje atrozes violações ao presenciar como ainda hoje milhares e milhares de irmãos são analfabetas, carecem de toda educação técnica, desempossados de toda propriedade, habitando em choças indignas de seres humanos, sem esperança alguma de poderem legar aos seus filhos uma herança de cultura e de bens materiais que lhes permitam uma vida melhor; os dons que Deus deu para a riqueza e a alegria da vida são usados para o vício; as leis sociais bem inspiradas, mas são quase ineficazes; a insegurança social ameaça pavorosamente o operário, o funcionário, o idoso.

            O Chile tem uma missão na América e no mundo: missão de esforço, de austeridade, de fraternidade democrática, inspirada no espírito do Evangelho. E essa missão se vê ameaçada por todas as forças da vida cômoda e indolente, da preguiça e apatia, do egoísmo.

            A missão do Chile queremos cumpri-la, sacrificar-nos-emos por ela. Os nossos Pais deram-nos uma Pátria livre, a nós toca-nos fá-la grande, bela, humana, fraternal. Se eles foram grandes no campo de batalha, a nós toca-nos sê-lo no esforço construtor.

            Mas esta missão deixou de cumprir-se porque as energias espirituais enfraqueceram-se, porque as virtudes cristãs decaíram, porque a Religião de Jesus Cristo, na qual foi batizada a nossa Pátria e cada um de nós, não é conservada, porque a juventude, consumida nos prazeres, já não tem generosidade para abraçar a vida dura do sacerdócio, do ensino e da ação social. É necessário, mais do que tudo, produzir um reflorescimento de todas as energias morais da Nação: devolver à Nação o sentido de responsabilidade, de fraternidade, de sacrifício, que se enfraquecem na medida em que se enfraquece a sua fé em Deus, em Cristo, no espírito do Evangelho.

            E estas idéias com que alegria cada um pode pronunciá-las em Chillán, na Pátria de O’Higgins, aquele homem cheio de valores morais porque cheio de fé, este mesmo foi o espírito de Prat, o mais valente chileno e o mais fervoroso cristão com o escapulário da Virgem no pescoço; o espírito de cada um dos nossos grandes Pais da Pátria e o espírito dos nossos humildes e valentes soldados, o espírito das nossas mães e das nossas avós que nos formaram no respeito de Deus, no amor de Cristo e de sua Mãe, e na austeridade, no esforço e na caridade fraterna.

            A ti, ó Deus, te louvamos!, dissemos e A ti, ó Deus, te louvamos!, temos que repetir em cada instante, pedindo ao céu que Deus siga protegendo a Pátria querida, abençoando seus governantes e esforçando o seu Povo para sermos fiéis à missão que Ele nos confiou.


Comprometer-se no temporal para dar testemunho de Cristo

Carta desde Paris a uma colaboradora, de 19 de dezembro de 1947

 

            Graças a Deus que termina um ano mais de vida bem empregada, pode a senhora dizer ao Senhor com toda sinceridade e humildade. Foi uma graça dele chamá-la a seu serviço, como chamou-a para a vida, mas não seria honrado se não reconhecesse esta graça. Ao olhar para atrás o caminho percorrido, não só insista nas deficiências e imperfeições, mas também no que Ele permitiu-lhe fazer, e no motivo para o qual consagrou a sua vida: buscá-lo nos seus próximos, servi-lo e amá-lo nos outros começando pela sua filhinha, a lembrança sempre querida do seu esposo, a sua família, e logo os seus pobres, aqueles nos quais a fé no-lo mostra sempre presente.

            Quanto mais penso nesta pobre Europa depois da guerra, amargurada, empobrecida, desalentada para o trabalho, pelo menos em alguns países, mais claramente vejo a nossa missão de católicos: dar testemunho de Cristo neste mundo triste, testemunho da nossa alegria que se funda na nossa fé nele, na bondade do Pai dos céus; testemunho de uma inquebrantável esperança e de uma profunda caridade. Isto e nada mais: mas é bastante para salvar o mundo. Estou lendo uma formosa Carta pastoral do Cardeal de Paris: Auge ou caída da Igreja, e a sua lição, repetida até o cansaço, é que o católico tem a missão de «encarnar-se, comprometer-se no temporal para dar testemunho de Cristo». A gente ouve estas palavras até o cansaço: são o programa para os tempos atuais.

            Felizmente, a obra em que a senhora está comprometida, a isso tende. Digo-lhe isto para convidá-la a olhar também desde um ponto de vista não só imediatamente humanitário, mas sob o ponto de vista do sentir íntimo da Igreja, esta obra que responde tanto ao que o mundo necessita. Por isso, apesar das dificuldades, cansaços, repugnâncias, pequenez própria, adiante, com a graça de Deus!

            Parece-me muito bem o que estão fazendo para tornar agradável o Lar: quanto mais atraente, melhor. Oxalá que tudo isto leve os operários a um sentimento cada vez mais profundo do respeito que se devem a si mesmos, ao ver o respeito com o qual são tratados.

            Saudações à sua família.

            Alberto Hurtado C. s.s.


Nos dias de abandono

Reflexão pessoal escrita em novembro de 1947

 

            Estou só. Bem só esta vez, entre os outros. Ninguém me compreende. Os melhores amigos manifestaram a sua oposição. Puseram-se cara a cara comigo. Todos os planos estão em perigo. Tudo se vê escuro.

            Estou só. Inteiramente só. A porta acaba de fechar-se depois da última conversa dolorosa. O último amigo partiu, depois de ter posto brutalmente o seu eu, contra mim.

            E, todavia, seria necessário para realizar a empresa começada, que todos os amigos estivéssemos juntos, todos juntos em comunhão. Avançava-se apenas, o naufrágio em cada momento parecia iminente.

            Estou só. Bem só. E eis aqui que Deus entra, e aperta a alma, levanta-a, confirma-a, consola-a e enche-a. Já não estou só. E os outros voltarão também, sem muito tardar, e não abandonarão o trabalho rude, o barco não naufragará. Vamos ao trabalho, docemente, às cartas, à leitura, a corrigir, a escrever. A vida, todavia, é bela e Deus está ali.

            Nestes momentos, arrumas o teu quarto.

            O teu quarto é um deserto. Entre o pavimento, o céu e os quatro muros, não há mais que tu e Deus. A natureza, que entra pela janela, não perturba o teu colóquio, ela o facilita. O mundo não conta para ti; fecha-lhe a porta, com chave, por uma hora. Recolhe-te e escuta. Deus está aqui. Espera-te e fala-te.

            É teu Deus, grande, formoso, que te conforta, que te ilumina, que te faz entender que te ama. Está disposto a dar-se a ti, se tu queres dar-te a ti mesmo. Acolhe-o, não o rechaces. Não fujas dele, está ali. Espera-te e fala-te.

            É a hora que Ele escolhera, para encontrar-te. Não vai embora. Escuta bem. Tu necessitas dele, e Ele também necessita de ti para a sua obra, para fazer por meio de ti o bem aos teus irmãos. Ele vai entregar-se a ti generosamente, de coração a coração nesta solidão.

            Em certos momentos o teu deserto é o teu quarto, mas de Deus necessitas sempre. Como recolher-te em intimidade com Ele, como os apóstolos aos quais convidou ao deserto para dar-lhes mais intimidade?

            O teu deserto, é a vontade de nunca trair; é o teu recolhimento em Deus; é a tua esperança indefectível. O teu deserto, não necessitas buscá-lo longe dos homens; tu o achas em todas as partes se voas para Deus; tanto no ônibus, como na praça, como diante da imensa assembléia que espera a tua palavra. O teu deserto, é a tua separação do pecado; a tua fidelidade ao teu destino, à tua fé, ao teu amor.


A minha vida é uma Missa prolongada

Meditação sobre a Sagrada Eucaristia

 

            I. A Eucaristia como sacrifício

            O sacrifício eucarístico é a renovação do sacrifício da cruz. Como na cruz todos estávamos incorporados em Cristo; de igual maneira no sacrifício eucarístico, todos somos imolados em Cristo e com Cristo.

            De duas maneiras pode fazer-se esta atualização. A primeira é oferecer, como nossa, ao Pai celestial, a imolação de Jesus Cristo, pelo mesmo fato que também é a nossa imolação. A segunda maneira, mais prática, consiste em aduzir ao sacrifício eucarístico as nossas próprias imolações pessoais, oferecendo os nossos trabalhos e dificuldades, sacrificando as nossas más inclinações, crucificando com Cristo o nosso homem velho. Com isto, ao participar pessoalmente do estado de vítima de Jesus Cristo, transformamo-nos na Vítima divina. Como o pão se transubstancia realmente no corpo de Cristo, assim todos os fiéis nos transubstanciamos espiritualmente com Jesus Cristo Vítima. Com isto, as nossas imolações pessoais são elevadas a serem imolações eucarísticas de Jesus Cristo, quem, como Cabeça, assume e faz próprias as imolações dos seus membros.

            Que horizontes abrem-se aqui à vida cristã! A Missa centro de todo o dia e de toda a vida. Com o olhar posto no sacrifício eucarístico, ir sempre entesourando sacrifícios que consumar e oferecer na Missa.

            A minha Missa é a minha vida, e a minha vida é uma Missa prolongada!

 

            II. A Eucaristia é centro da vida cristã

            Pela Eucaristia temos a Igreja e pela Igreja chegamos a Deus. Cada homem salvar-se-á não por si mesmo, não pelos seus próprios méritos, mas pela sociedade na qual vive, pela Igreja, fonte de todos os seus bens. Até a Eucaristia, a Igreja da terra estaria sem Cristo. A razão e os sentidos nada vêem na Eucaristia, senão pão e vinho, mas a fé garante-nos a infalível certeza da revelação divina; as palavras de Jesus são claras: «Este é o meu Corpo, este é o meu Sangue» e a Igreja entende-as ao pé da letra e não como puros símbolos. Com toda a nossa mente, com todas as nossas forças, os católicos cremos, que «o corpo, o sangue e a divindade do Verbo Encarnado» estão real e verdadeiramente presentes no altar em virtude da onipotência de Deus.

            O Cristo Eucarístico identifica-se com o Cristo da história e o da eternidade. Não há dois Cristos, mas um só. Nós possuímos na Hóstia o Cristo do sermão da montanha, o Cristo da Madalena, aquele que descansa junto ao poço de Jacó com a samaritana, o Cristo do Tabor e de Getsêmani, o Cristo ressuscitado dentre os mortos e sentado à direita do Pai. Não há um Cristo que possui a Igreja da terra e outro que contemplam os bem-aventurados no céu: uma só Igreja, um só Cristo!

            Esta maravilhosa presença de Cristo no meio de nós, deveria revolucionar a nossa vida. Não temos nada que invejar aos apóstolos e aos discípulos de Jesus que iam com Ele na Judéia e na Galiléia. Todavia, está aqui conosco. Em cada cidade, em cada povoação, em cada um de nossos templos; visita-nos nas nossas casas, leva-o o sacerdote sobre o seu peito, recebemo-lo cada vez que nos aproximamos do sacramento do Altar.

            Uma alma permanece superficial até que não sofreu. No mistério de Cristo existem profundidades divinas onde não penetram por afinidade senão as almas crucificadas. A autêntica santidade consuma-se sempre na cruz. Quem quer comungar com proveito, que ofereça cada manhã uma gota do seu próprio sangue para o cálice da redenção.

            III. A Eucaristia e as aspirações do homem

            A grande obra de Cristo, que veio a realizar ao descer a este mundo, foi a redenção da humanidade. E esta redenção em forma concreta se fez mediante um sacrifício. Toda a vida do Cristo histórico é um sacrifício e uma preparação para a culminação deste sacrifício pela sua imolação cruenta no Calvário. Toda a vida do Cristo místico não pode ser outra que a do Cristo histórico e há de tender também para o sacrifício, para renovar esse grande momento da história da humanidade que foi a primeira Missa, celebrada durante vinte horas, iniciada no Cenáculo e culminada no Calvário.

            Toda santidade vem do sacrifício do Calvário, ele é quem nos abre as portas de todos os bens sobrenaturais. Todas as aspirações mais sublimes do homem, todas elas, encontram-se realizadas na Eucaristia:

            1. A felicidade: o homem quer a felicidade e a felicidade é a posse de Deus. Na Eucaristia, Deus se nos dá, sem reserva, sem medida; e ao desaparecer os acidentes eucarísticos deixa-nos na alma a Trindade Santa, prêmio prometido só aos que comam o seu Corpo e bebam o seu Sangue.

            2. Ser como Deus: o homem sempre aspirou a ser como Deus, a transformar-se em Deus, a sublime aspiração que o persegue desde o Paraíso. E na Eucaristia essa mudança se produz: o homem transforma-se em Deus, é assimilado pela divindade que o possui; pode com toda verdade dizer como São Paulo: «Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20).

            3. Fazer coisas grandes: o homem quer fazer coisas grandes pela humanidade; mas, onde fará coisas maiores que se unindo a Cristo na Eucaristia? Oferecendo a Missa salva a humanidade e glorifica a Deus Pai no ato mais sublime que pode fazer. O sacerdote e os fiéis são um com Cristo, «por Cristo, com Ele e nele», oferecemos e oferecemo-nos ao Pai.

            4. União de caridade: na Missa, também a nossa união de caridade realiza-se no grau mais íntimo. A prece de Cristo «Pai, que sejam um… que sejam consumados na unidade» (Jo 17,22-23), realiza-se no sacrifício eucarístico.

            Ó, se fôssemos à Missa para renovar o drama sagrado, a oferecer-nos no ofertório com o pão e o vinho que vão ser transformados em Cristo pedindo a nossa transformação! A consagração seria o elemento central da nossa vida cristã. Tendo a consciência de que já não somos nós, mas que atrás das nossas aparências humanas vive Cristo e quer atuar Cristo…

            E a comunhão, essa doação de Cristo a nós, que exige de nós gratidão profunda, traria consigo uma doação total de nós a Cristo, que assim se deu, e a nossos irmãos, como Cristo deu-se a nós.

            Não vamos à comunhão como a um prêmio, não vamos a uma visita de etiqueta, vamos buscar Cristo para «por Cristo, com Ele e nele»  realizar os nossos mandamentos grandes, as nossas aspirações fundamentais, as grandes obras de caridade… Depois da comunhão ficar fiéis à grande transformação que se apoderou de nós. Viver o nosso dia como Cristo, ser Cristo para nós e para os outros. Isso é comungar!


A nossa imitação de Cristo

Conferência para alunos e professores da Universidade Católica em 1940

 

            Toda a nossa santificação consiste em conhecer Cristo e imitar Cristo. Todo o evangelho e todos os santos estão cheios deste ideal, que é o ideal cristão por excelência. Viver em Cristo; transformar-se em Cristo… São Paulo: «Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo Crucificado» (1Cor 2,2)… «Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20)… A tarefa de todos os santos é realizar na medida das suas forças, segundo a doação da graça, diferente em cada um, o ideal paulino de viver a graça de Cristo. Imitar Cristo, meditar a sua vida, conhecer os seus exemplos… O mais popular livro da Igreja, depois do Evangelho, é o da «Imitação de Cristo», mas, de quantas diferentes maneiras compreendeu-se a imitação de Cristo!

            I. Maneiras erradas de imitar o Cristo

            1. Para uns, a imitação de Cristo reduz-se a um estudo histórico de Jesus. Vão buscar o Cristo histórico e ficam nele. Estudam-no. Lêem o Evangelho, investigam a cronologia, informam-se dos costumes do povo judeu… E seu estudo, mais bem científico que espiritual, é frio e inerte. A imitação de Cristo para eles reduzia-se a uma cópia literal da vida de Cristo. Mas não é isto. Não: «O espírito vivifica; a letra mata» (2Cor 3,6).

            2. Para outros, a imitação de Cristo é mais bem um assunto especulativo. Vêem em Jesus como o grande legislador; quem soluciona todos os problemas humanos, o sociólogo por excelência; o artista que se compraz na natureza, que se recreia com os pequeninos… Para alguns é um artista, um filósofo, um reformador, um sociólogo, e eles o contemplam, o admiram, mas não mudam a sua vida diante dele. Cristo permanece só na sua inteligência e na sua sensibilidade, mas não transcendeu a sua mesma vida.

            3. Outro grupo de pessoas crêem de imitar Cristo preocupando-se, no extremo oposto, unicamente da observância dos seus mandamentos, sendo fiéis observadores das leis divinas e eclesiásticas. Escrupulosos na prática dos jejuns e abstinências. Contemplam a vida de Cristo como um prolongado dever, e nossa vida como um dever que prolonga o de Cristo. Às leis dadas por Cristo eles agregam outras, para completar os silêncios, de modo que toda a vida é um caminho dever, um regulamento de perfeição, desconhecedor em absoluto da liberdade de espírito.

            O foco da sua atenção não é Cristo, mas o pecado. O sacramento essencial na Igreja não é a Eucaristia, nem o batismo, mas a confissão. A única preocupação é fugir do pecado. E imitar Cristo para eles é fugir dos maus pensamentos, evitar todo perigo, limitar a liberdade de todo mundo e suspeitar más intenções em qualquer acontecimento da vida. Não; não é esta a imitação de Cristo que propomos. Esta poderia ser a atitude dos fariseus, não a de Cristo.

            4. Para outros, a imitação de Cristo é um grande ativismo apostólico, uma multiplicação de esforços de orientação de apostolado, um mover-se continuamente em criar obras e mais obras, em multiplicar reuniões e associações. Alguns situam o triunfo do catolicismo unicamente em atitudes políticas. Para outros, o essencial é uma grande procissão de archotes, um encontro monstruoso, a fundação de um jornal… E não digo que isto é mal, que isto não se deve fazer. Tudo é necessário, mas não é isto o essencial do catolicismo.

            II. Verdadeira solução

            A nossa religião não consiste, como em primeiro elemento, numa reconstrução do Cristo histórico; nem em uma pura metafísica ou sociologia ou política; nem numa só luta fria e estéril contra o pecado; nem primordialmente na atitude de conquista. A nossa imitação de Cristo não consiste tampouco em fazer o que Cristo fez, a nossa civilização e condições de vida são tão diferentes!

            A nossa imitação de Cristo consiste em viver a vida de Cristo, em ter essa atitude interior e exterior que em tudo se conforma à de Cristo, em fazer o que Cristo faria se estivesse no meu lugar.

            O primeiro necessário para imitar Cristo é assimilar-se a Ele pela graça, que é a participação da vida divina. E daqui, antes de tudo, aprecia o batismo, que introduz, e a Eucaristia que alimenta esta vida e que dá Cristo, e se a perde, a penitência para recuperar esta vida…

            E logo que possua essa vida, procura atuá-la continuamente em todas as circunstâncias da sua vida pela prática de todas as virtudes que Cristo praticou, em particular pela caridade, a virtude mais amada por Cristo.

            A encarnação histórica necessariamente restringiu Cristo e a sua vida divino-humana a um quadro limitado pelo tempo e pelo espaço. A encarnação mística, que é o corpo de Cristo, a Igreja, tira essa restrição e amplia-a a todos os tempos e espaços onde há um batizado. A vida divina aparece em todo o mundo. O Cristo histórico foi judeu e viveu na Palestina, no tempo do Império Romano. O Cristo místico é chileno do século XX, alemão, francês e africano… É professor e comerciante, é engenheiro, advogado ou operário, preso e monarca… É todo cristão que vive na graça de Deus e que aspira a integrar a sua vida nas normas da vida de Cristo nas suas secretas aspirações. E que aspira sempre a isto: a fazer o que faz, como Cristo o faria no seu lugar. A ensinar a engenharia, como Cristo a ensinaria, o direito…, a fazer uma operação com a delicadeza de Cristo…, a tratar os seus alunos com a força suave, amorosa e respeitosa de Cristo, a interessar-se por eles como Cristo se interessaria se estivem no seu lugar. A viajar como viajaria Cristo, a orar como oraria Cristo, a comportar-se na política, na economia, na sua vida de lar como comportar-se-ia Cristo.

            Isto supõe um conhecimento dos evangelhos e da tradição da Igreja, uma luta contra o pecado, traz consigo uma metafísica, uma estética, uma sociologia, um espírito ardente de conquista… Mas não se compendia neles o primordial. Se humanamente fracassa, se o êxito não coroa o seu apostolado, não por isso se impacienta. A única derrota consiste em deixar de ser Cristo pela apostasia ou pelo pecado.

            Este é o catolicismo de um Francisco de Assis, Inácio, Xavier, e de tantos jovens e não jovens que vivem a sua vida cotidiana de casados, de professores, de solteiros, de estudantes, de religiosos, que participam no esporte e na política como esse critério de ser Cristo. Estes são os faróis que convertem as almas, e que salvam as nações.


A missão do apóstolo

Meditação pregada em 1941, para sacerdotes vinculados à Ação Católica

 

            A grandeza da obra apostólica. O apostolado é a iluminação das almas. Deus, que poderia iluminá-las por si mesmo, vale-se de nós para isto. A Boa Nova, o Evangelho, que trouxe Cristo ao mundo, é a reconciliação das almas com o seu Pai. Esta Boa Nova pregada e aplicada é o apostolado.

            A doutrina de São Paulo é muito clara: Jesus morreu por todos, pelos judeus e pelos gentios. Pagou a dívida de todos eles e remiu-os todos, sem excepção. Mas, além deste princípio deve-se ter em conta outro, que supõe a solidariedade apostólica. A salvação tem sido feito possível por Cristo, o resgate sobreabundante, infinito, está pagado, mas não basta isso para conseguir a salvação: a salvação não se realiza automaticamente. Cristo dá-nos a possibilidade da salvação, adquiriu-nos o direito de poder incorporar-nos à sua morte e ressurreição, mas para que esta incorporação realize-se de fato, requer-se, normalmente falando, a colaboração de outros homens: os apóstolos. Esta colaboração humana, esta cooperação do apóstolo ao plano de Deus que São Paulo chama «cooperadores de Deus» (1Cor 3,9), é o fundamento da vida apostólica.

            A missão do apóstolo pode-se comparar à daquele que, numa cidade sitiada pelo inimigo e a ponto de que seus habitantes pereçam de sede, encontra-se dono da vida ou da morte dos seus habitantes, pois ele conhece uma corrente de águas subterrâneas que pode salvar seus irmãos; é necessário um esforço para colocá-la em descoberto. Se ele se recusa a este esforço, perecerão os seus companheiros. Negar-se-á ao sacrifício?

            Podemos comparar a sua missão àquela de quem vê uma torrente larga, profunda e suja, que flui com ímpeto para nós. Retumba a avalancha, rugem os abismos, encrespam-se as ondas. Sobre as ondas milhares de desgraçados lançam gritos de socorro: gritam, nadam desesperadamente, surgem e levantam-se, para voltarem a afundar-se, e logo desaparecem. São irmãos nossos. Outros gritam-nos: – Salva-me! Quem de nós poderia passear tranqüilamente pela margem? – Na água os barcos, empunhar os remos e salvar estas vida que perecem! – Procurem sustentar-se um pouco! –lhes gritaríamos –, já vamos, já estamos. Dá-me a mão e salvar-te-ei… E que alegria a daquele homem que consagra a sua vida a tão humanitária missão! A mais humanitária, a mais bela, a mais urgente.

            A imensa responsabilidade dos cristãos, tão pouco meditada e, todavia, tão formidável. O cristianismo resume-se numa lei de caridade, a Deus e ao próximo, o resto é acessório ou está contido nestes dois preceitos, e, todavia, estes preceitos fundamentais são os mais facilmente esquecidos. Do cristão depende a vida de inumeráveis almas, da sua pregação e sobretudo da sua vida. O que ele seja, isso serão aqueles que o Senhor confiou aos seus cuidados. Está ainda recente a valente comparação do Santo Cura d’Ars: «Um sacerdote santo, uma boa paróquia; um bom sacerdote, paróquia tíbia; sacerdote tíbio, como será a paróquia?». E Santo Agostinho, aos que lastimosamente lamentavam a corrupção dos tempos, sem fazer outra coisa para corrigi-los, dizia-lhes: «Vós dizeis que os tempos são maus, sede vós melhores e os tempos serão melhores: vós sois o tempo». Os apóstolos podem dizer como ninguém: nós somos o tempo. O que sejamos nós isso será a cristandade da nossa época.

            Horrível responsabilidade! Ao apóstolo tocará revelar na sua carne mortal a vida do seu Mestre para a salvação das almas... Dessa revelação, quantos destinos há pendentes com projeções de eternidade!

            Dos apóstolos depende que a guerra ao pecado seja dirigida com intensidade e que se hoje há vício, amanhã reine a virtude; que os jovens que hoje se esgotam com a impureza, renasçam para uma vida digna; que os lares desunidos voltem a unir-se, que os ricos tratem com justiça e caridade os pobres.

            Junto ao apóstolo brotam as obras de bem. As lágrimas enxugam-se e consolam-se tantas dores. Que vida, mesmo humanamente considerada, pode ser mais bela do que a vida do apóstolo! Que consolos tão profundos e puros como os que ele experimenta!

            As projeções do apostolado são imensamente maiores se consideramos a sua perspectiva de eternidade. As almas que se agitam e clamam nas praças e nas ruas têm um destino eterno: são trens sem freios arrojados para a eternidade. De mim pode depender que esses trens encontrem uma via preparada com destino ao céu ou que os deixe correr pela pendente cujo termo é o inferno. Poderei permanecer inativo quando a minha ação ou inação tem um alcance eterno para tantas almas?

            «A caridade de Cristo nos compele» dizia São Paulo (2Cor 5,14). A salvação depende, até onde podemos coligi-lo, na sua última aplicação concreta, da ação do apóstolo. De nós, pois, dependerá que o Sangue de Cristo seja aproveitado por aqueles por quem Cristo derramou-o. O Redentor pode, por caminhos desconhecidos para nós, atuar diretamente no fundo das consciências, mas, até onde podemos penetrar nos segredos divinos, lecionados pelas palavras da Sagrada Escritura, da Tradição e da liturgia da Igreja, se há imposto a Si mesmo o caminho de trabalhar em colaboração conosco, e de condicionar a distribuição generosa dos seus dons à nossa ajuda humana. Se lhe negamos o pão, não desce Cristo na Eucaristia; se lhe negamos os nossos lábios, tampouco se transubstancia, nem perdoa os pecados; se lhe negamos a água, não descende ao peito do menino chamado a ser tabernáculo; se lhe negamos o nosso trabalho, os pecadores não se fazem justos; e os moribundos, onde irão ao morrer no seu pecado porque não houve quem lhes mostrasse o caminho do céu?…

            Se queremos, pois, que o amor de Jesus não permaneça estéril, não vivamos para nós mesmos, mas para Ele  (cf. 2Cor 5,15). Assim cumpriremos o desejo fundamental do Coração de Cristo: obedeceremos ao mandamento do seu amor.

            Não vivamos para nós mesmos, mas para Ele. Nisto consiste a abnegação radical tão pregada por Santo Inácio. Quem vive já não viva, pois, para si; isto é, façamos nossos, em toda a medida do possível, mediante a pureza do coração, a oração e o trabalho, os sentimentos de Jesus: a sua paciência, o seu zelo, o seu amor, o seu interesse pelas almas. «Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20).

            Assim cumpriremos o desejo fundamental do Coração de Cristo: Venha a nós o vosso Reino… «Ora, a vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo» (Jo 17,3). «Eu vim para que tenham a vida, e a tenham em abundância» (Jo 10,10).

            A dar essa vida, a fazer conhecer Cristo, a acelerar a hora do seu Reino está chamado o apóstolo! A Rainha dos Apóstolos interceda para que todos os membros da Ação Católica sejam apóstolos de verdade!


Apressadamente…

Meditação de retiro sobre a visita de Maria à Santa Isabel

 

            O Anjo anuncia à Maria a notícia de Isabel, e Maria levanta-se para ajudar o próximo. Logo que é concebido o Verbo de Deus, Maria levanta-se, faz os preparativos para a viagem e põe-se em caminho apressadamente para ajudar o próximo.

            Maria compreendeu a sua solicitude de cristã. Ela é a primeira que foi incorporada a Cristo e compreende imediatamente a lição da Encarnação: não é digno da Mãe de Deus aferrar-se às prerrogativas da sua maternidade para gozar a doçura da contemplação, mas que deve comunicar Cristo. O seu papel é o de comunicar Jesus aos outros. Sacrifica não os bens espirituais, mas sim os gozos sensíveis: o que ocorre tantas vezes na nossa vida: celebrar a Missa num galpão, com cachorros, galos, cabras… Muito bem, se se trata de comunicar Cristo, condenação do egoísmo espiritual que recusa de sacrificar os consolos quando o bem dos outros o pede.

            Caridade real: levanta-se e vai, e faz a servente por três meses. Caridade real, ativa, que não consiste em puro sentimentalismo… disposta a prestar serviços reais e que para isto molesta-se e sacrifica-se.

            Serviços difíceis. A Virgem de 15 anos, levando o fruto bendito, parte para essa montanha íngreme, na qual situa Nosso Senhor a cena do Samaritano com o ferido, meio morto pelos bandidos. Escusas?! Quatro dias de viagem!! Através de caminhos pouco seguros. As dificuldades não detêm a sua caridade. Além disso, não lhe pediram nada. Bastaria esperar. Ninguém se estranharia. Assim raciocina o nosso egoísmo quando se trata de prestar serviços.

            Parte imediatamente: não espera que lhe avisem. Logo que recebe a visita do Anjo, sem esperar que lhe avisem. Ela, a Mãe de Deus, dá o primeiro passo! Que sincera é Maria nas suas resoluções! Disse: «Eis aqui a Escrava do Senhor», e realiza-o; recebe o aviso do Anjo, e parte. Este adiantar-se nos favores, duplica-os. Humilha tanto o pedir. Evitemo-lo e sobretudo o prestar favores de maneira brusca, que faz mais dano do que bem.

            Como a Santíssima Virgem, que parece não se dar conta que se sacrifica. Sem ostentação, sem recalcar o serviço, sem que depois de cinco minutos já o saiba toda a comunidade, e quiçá toda a cidade. Mais bem, como se eu fosse o beneficiado! Essa é caridade, essa é a que ganha os corações! Um serviço prestado de mau humor, é desperdiçado: «Deus ama a quem dá com alegria!» (2Cor 9,7). Quem doa com prontidão, doa duas vezes! É o grande segredo do fervor: a pressa e o entusiasmo para fazer o bem.

            Não nos refugiemos detrás da nossa dignidade, esperando que os outros dêem o primeiro passo. A verdadeira caridade não pensa senão na possibilidade de fazer o serviço, como a verdadeira humildade não considera aquilo pelo que somos superiores, mas pelo que somos inferiores. «Cada um considerando o outro como mais digno de estima»  (Rm 12,10). Os religiosos imperfeitos têm caridade mesquinha. Dão o menos possível, pensam, discutem, regateiam, olham o relógio… O gesto cristão é amplo, belo, heróico, total. Doa-se sem medida e sem esperança de retorno.


O êxito dos fracassos

Meditação de retiro sobre a ressurreição do Senhor

 

            Nem tudo é Sexta-feira Santa. Ressuscitou Cristo, minha esperança! «Eu sou a Ressurreição» (Jo 11,25). Está o Domingo, e esta idéia deve dominar-nos. No meio das dores e das provas… otimismo, confiança e alegria. Sempre alegres: porque Cristo ressuscitou vencendo a morte e está sentado à direita do Pai. E é Cristo, meu bem, quem ressuscitou. Ele, meu Pai, meu Amigo, já não morre. Que glória! Assim também eu ressuscitarei «em Cristo Jesus…» e atrás destes dias de nuvarrões verei Cristo.

            Porque cada dia que passo estou mais perto de Cristo. As cãs… O céu está muito perto. Quando este fraco laço acabe de romper-se… «desejo morrer e estar com Cristo» (Fl 1,23). Porque Cristo triunfou e a Igreja triunfará. A pedra do sepulcro e os guardas creram tê-lo pisoteado. Assim sucederá também com a nossa obra cristã. Triunfará! Não são os maiores apóstolos os de mais fachada; nem os melhores êxitos os de mais aparência. Na ação cristã há o êxito dos fracassos! Os triunfos tardios! No mundo do invisível, o que em aparência não serve, é o que mais serve. Um fracasso completo, aceito de boa vontade, tem mais êxito sobrenatural que todos os triunfos.

            Semear sem preocupar-se do que sairá. Não se cansar de semear. Dar graças a Deus pelos frutos apostólicos dos meus fracassos. Quando Cristo falou ao jovem rico do Evangelho, fracassou, mas, quantos escutaram a lição; e diante da Eucaristia, fugiram, mas quantos vieram depois! Trabalharás! O teu zelo parecerá morto, mas quantos viverão graças a ti!

            Nosso Senhor depois da Ressurreição não se contentou com gozar da sua própria felicidade. Como a alegria do professor é o conhecimento dos seus alunos… a sua esperança não é completa até que todos aprendem; como o Capitão do barco não tem a sua esperança completa até que se salve o último… Seria péssimo se se contentasse com a sua própria salvação!

            Todo o céu é a grande esperança dirigida para a terra. Santo Inácio tem grande esperança em nós e não a colmará senão quando o último jesuíta tenha entrado. A esperança é o laço que une o céu e a terra. Não imaginemos o céu com poltronas tranqüilas. São Pedro está olhando o Vaticano todo o dia. A terra é o jornal do céu. Por isso podemos gritar: Ei!, salva-nos que perecemos! Lembra-te que é a tua obra que arde. Ei!, santos, olhem a sua obra! Rezem por nós! A Igreja o faz em forma imperativa!

            O céu, todavia, não está acabado: falta parte da Igreja. E quando chega um pobre homem coberto do pó da terra, a alegria que haverá no céu! O Senhor o diz: haverá mais alegria no céu… (Lc 15,7).

            Todo o céu interessando-se pela terra! E por isso Nosso Senhor aparece à sua Mãe… Interessa-se por tudo, até pela pesca dos apóstolos; do que eles comem: Tendes algo para comer? Comeu e distribuiu os pedaços (cf. Jo 21,1-14). Para mostrar-nos que mais do que a sua própria felicidade eterna, interessa-lhe a sua obra na terra.


Tremenda responsabilidade

Meditação de retiro sobre o dever missionário dos fiéis

            Temos uma responsabilidade: missionar o mundo desde a colina da ascensão. Temos a responsabilidade do mundo inteiro. Nosso Senhor não vai fazer nada senão por nós, não vai falar senão por nós. Temos a responsabilidade do crescimento da Igreja. Geograficamente é demasiado pequena… é como um menino que tem todos os seus órgãos, mas tem que crescer… A Igreja deve crescer como o menino, por todo o seu corpo: pés, mãos e cabeça; ouve pelos ouvidos, vê pelos olhos… mas deve crescer por todo o corpo. A Igreja, todavia, não alcançou o seu tamanho normal. Logo todos, todos os seus membros, devem contribuir para o crescimento: para que cresça por todos os seus órgãos. Se o crescimento é para alguns membros e não para outros, é anormal, uma enfermidade e a morte.

            Pelo nosso batismo somos membros da Igreja; pela nossa oração estamos a serviço da Igreja. Temos que interessar-nos pelas missões que têm por objeto salvar as almas e fazer crescer a Igreja. Está estabelecida hoje a Igreja em todo o mundo? A gente diz que se interessa pelas missões e, o que dão? O seu pensamento, quase nunca; os seus desejos, poucas vezes… papéis velhos, os refugos da casa. Dos 300.000 sacerdotes; 20.000 sacerdotes nas missões, e destes, 13.000 cuidam dos católicos… Só um punhado de sacerdotes e de freiras para estender o Reino de Cristo.

            Dizem: A caridade começa pela casa!! Quem disse isto? Cristo, os Padres da Igreja? Não. É a teoria do egoísmo. Egoísmo e caridade começam da mesma maneira? Não. A caridade começa desde o primeiro momento com todos: ama, desde o princípio, todos. Começa desde o primeiro momento a prestar serviço aos mais próximos. A tática do Espírito Santo é como a das aranhas: começa pelas pontas que estão mais longe e termina pelo centro. São Paulo tinha muito que fazer em Jerusalém… mas se vai até a Espanha, queria dar uma volta pelo mundo então conhecido.

            São poucos os que têm essa responsabilidade tremenda. O que fiz eu para fazer crescer a Igreja? Desculpas? Não temos tempo para ocupar-nos disso! Com os nossos desejos, orações, padecimentos, influência, podemos muito. Conservar na nossa alma esse grande desejo e não ficar no raquitismo espiritual.

            O trabalho é interminável, 400 milhões de chineses… 375 milhões de hindus… tarefas desmedidas!! Primeiro, não se trata de converter todos os chineses: mas de estabelecer a Igreja. Com 25 milhões de chineses funda-se a Igreja chinesa. Como os Estados Unidos, há 27 entre 120 milhões. Acabaram-se as missões, e eles se fazem missionários.

            Há momentos críticos na Providência divina: desarraigar um grande eucalipto é quase impossível, mas há um momento em que um menino, com uma corda, pode determinar o lado da caída. Índia, depois da guerra; China que estão buscando seu caminho. Neste momento o influxo de orações, desejos, influências pode determinar o rumo por séculos e séculos.

            Mas, para as missões não há pessoal… –Assuma a responsabilidade e virão vocações! Não lhe faltarão! Comece: mande 4 para a África, já chegará pessoal! O primeiro é um ato de fé. Em muitas das nossas províncias fazemos bem nos colégios, mas quando não temos mais que colégios, a província torna-se um pouco burguesa… Nas, quando há missões, muda.

O que podemos fazer? Conhecer as nossas próprias missões! Quando alguém apaixona-se pelas missões, aprende muito. Toda nossa oração: que venha a nós o Reino de Deus. Os nossos sacrifícios, o nosso apoio e a nossa influência.


A missão social do universitário

Meditação na festa do Sagrado Coração, pronunciada na Universidade Católica, aos 5 de junho de 1945

 

            Meus queridos universitários

            Ao tratar estas matérias experimenta-se uma certa apreensão e desconfiança instintiva e assim a gente trema, não diante do temor das críticas de um e de outro lado, pois sabe que diga o que diga não escapará delas, mas porque tendo a missão de ensinar teme que lhe falte o valor para dizer a verdade toda inteira, coisa às vezes tão difícil, ou bem, não saiba manter-se no justo equilíbrio e ponto médio onde encontra-se a virtude. Mas, apesar destes perigos, decidi aceitar este tema por três motivos:

            1º Porque parece-me sumamente adequado para este retiro de preparação para a festa do Sagrado Coração de Jesus, a festa do amor; e o dever social do universitário não é senão a tradução concreta para a sua vida de estudante, hoje, e de futuro profissional, amanhã, dos ensinamentos de Cristo sobre a dignidade de nossas pessoas e sobre o mandamento novo, o seu mandamento característico, o do amor.

            2º Em segundo lugar, pela urgência ardente dos Papas a nós os sacerdotes para que exponhamos claramente e sem vacilações este tema.

            3º E, finalmente, uma terceira razão desprende-se do vosso caráter de universitários: calar sobre este tema diante de outros auditórios seria grave, mas, diante de vós seria gravíssimo e criminal, já que vós sois os construtores dessa sociedade nova, vós sereis os guias intelectuais do País. As profissões, que formam a estrutura da vida nacional, serão o que sejais vós, e vós atuareis em grande parte segundo a luz que tenhais dos problemas, e a vossa conduta social estará em grande parte condicionada pela vossa formação social.

            E sem mais preâmbulos entro em matéria. O primeiro problema é certamente o da vida interior, dali e só dali deve vir a solução, a força, o dinamismo necessário para enfrentar os grandes sacrifícios: o mundo não será devolvido a Cristo por cruzados que só levam a cruz impressa na sua couraça. A exigência da nossa vida interior longe de excluir, urge uma atitude social fundada precisamente nesses mesmos princípios que fundamentam a nossa vida interior. Não poderíamos chegar a ser cristãos integrais se dando-nos por contentes com uma certa fidelidade de práticas, uma certa serenidade de alma, e uma certa ordem puramente interior, desinteressássemo-nos do bem comum; se professando da boca para fora uma religião que coloca no cume da sua moral as virtudes de justiça e caridade, não nos perguntássemos constantemente quais são as exigências que elas nos impõem na nossa vida social onde essas virtudes encontram naturalmente o seu emprego.

            O católico há de ser como ninguém amigo da ordem, mas a ordem não é a imobilidade imposta de fora, mas o equilíbrio interior que se realiza para o cumprimento da justiça e da caridade. Não basta que tenha uma aparente tranqüilidade pela pressão de forças insuperáveis; é necessário que cada um ocupe o lugar que lhe corresponde conforme a sua natureza humana, que participe dos trabalhos, mas também das satisfações, como convém a irmãos, filhos do mesmo Pai. O católico rechaça igualmente a imobilidade na desordem e a desordem no movimento, porque ambos rompem o equilíbrio interior da justiça e da caridade.

            O fiel, se quer sê-lo no pleno sentido da palavra, é um perpétuo inconformista, que alimenta a sua fome e sede de justiça na palavra de Cristo, e que busca o caminho de saciar essas paixões devoradoras nos ensinamentos da Igreja que não é mais que Cristo prolongado e vivendo entre nós.

            A documentação Pontifícia sobre a Ação Social é imensa. À luz destes ensinamentos podemos, pois, caminhar tranqüilos. Sua Santidade Pio XI dizia com pena que os católicos do mundo inteiro bastante instruídos, em geral, a respeito dos seus deveres individuais ignoram, na sua grande maioria, os seus deveres sociais. Nós, pelo menos, não deixemos de ouvir a voz dos nossos Pontífices tão claramente exposta em matéria social.

            Motivos que urgem a ação social. Antes de mais nada, estimula-nos a mobilizar todas as nossas forças em favor da solução social o conjunto de interesses gravíssimos que está em jogo. Trata-se nada menos que da vida de tantos dos nossos irmãos. Recordemos que a mortalidade infantil; os desocupados que não têm um teto que possam chamar lar, e andam errantes pelos parques, acocoram-se nas portas das casas no inverno e… são nossos irmãos! A desnutrição que vai afetando a nossa raça. O alcoolismo que arruina tantos lares, material e moralmente; as enfermidades sociais; a falta de instrução; os lares dissoltos; o problema do alojamento: o frio! Uma olhada rápida a um mundo de problemas, cuja magnitude desconcerta e cuja importância é transcendental para inumeráveis irmãos nossos.

            A ordem social atual não responde ao plano da Providência. A vida religiosa em cada um dos meios sociais está dificultada atualmente pelo problema do excesso ou da falta de meios de vida. Deus quis, ao criar-nos, que nos santificássemos. Este foi o motivo que explica a criação: ter santos no mundo; ter filhos d’Ele nos quais se manifestassem os esplendores da sua graça. Pois bem, como santificar-se no ambiente atual se não se realiza uma profunda reforma social?

            Aqui conviria insinuar a primeira conclusão prática para o universitário católico. Cada um deve conhecer o problema social geral, as Doutrinas Sociais que se disputam no mundo, sobretudo sobre a Doutrina, a doutrina da Igreja; deve conhecer a realidade chilena e deve ter uma preocupação especial por estudar a sua carreira em função dos problemas sociais próprios do seu ambiente profissional. Círculos de estudos sociais especializados por carreira, para realizar o ideal de Pio XII, elemento substancial da ordem nova: a elevação do proletariado. Este estudo da nossa doutrina social deve despertar em nós, antes de mais nada, um sentido social profundo, e antes de mais nada o inconformismo diante do mal, o que Jules Simon denominou admiravelmente o sentido do escândalo.


A chamada de Cristo

Meditação do Reino, do retiro da Semana Santa para jovens de 1946

 

            Cristo veio a este mundo não para fazer uma obra sozinho, mas conosco, com todos nós, para ser a cabeça de um grande corpo cujas células vivas, livres, ativas, somos nós. Todos somos chamados a estar incorporados n’Ele, esse é o grau básico da vida cristã… Mas para outros tem chamados mais altos: a entregar-se a Ele; a ser só para Ele; a fá-lo norma da sua inteligência, a considerá-lo, em cada uma das suas ações, a segui-lo nas suas empresas, mais ainda, a fazer da sua vida a empresa de Cristo!! Para o marinheiro, a sua vida é o mar; para o soldado, o exército; para a enfermeira, o hospital; para o agricultor, o campo; para a alma generosa, a sua vida é a empresa de Cristo!!

            Isto é o chamamento de Cristo: Quererias consagrar-me a tua vida? Não é problema de pecado! É problema de consagração! Para que? À santidade pessoal e ao apostolado. Santidade pessoal que deve ir calcada pela santidade de Cristo.

            Se Ele te chamasse, o que farias?… Gostaria que o pensasses profundamente, porque isto é o essencial dos retiros espirituais. Os retiros são uma chamada profunda à generosidade. Não se movem por temor, não se trata de assustar! Recordam os mandamentos, porque não podem senão recordá-los. Os mandamentos são a base, o alicerce para toda construção, porque são a vontade de Deus obrigatória… Mas, não são mais do que os alicerces, e não se vive nos alicerces, não há formosura nos alicerces… Os retiros são para almas que queiram subir, e quanto mais acima, melhor; são para aqueles que entenderam o que significa Amar, e que o cristianismo é amor, que o mandamento grande por excelência é o amor.

            A prova da fé é o amor, amor heróico, e o heroísmo não é obrigatório. O sacerdócio, as missões, as obras de caridade não são matéria de obrigações, de pecado, são absolutamente necessárias para a Igreja e são obra da generosidade. O dia que não haja sacerdotes, não haverá sacramentos, e o sacerdócio não é obrigatório; o dia em que não haja missionários, não avançará a fé, e as missões não são obrigatórias; o dia em que não haja quem cuide dos leprosos e dos pobres não haverá o testemunho distintivo de Cristo, e essas obras não são obrigatórias… O dia em que não haja santos, não haverá Igreja e a santidade não é obrigatória. Que grande é esta idéia! A Igreja não vive do cumprimento do dever, mas da generosidade dos seus fiéis!

            Se Ele te chamasse, que lhe dirias? Em que disposição estás? Pede, roga de estar na melhor das hipóteses!!! Santo Inácio pede a quem entre nos Exercícios: Grande ânimo e liberalidade para com Deus Nosso Senhor! Querer ser seduzido e entregar-se inteiros!!

            Senhor, se no nosso atribulado século XX, que vem saindo desta horrenda carnificina: campos de concentração, deportações, bombardeamentos, que trabalhou afanosamente para matar com armas mil vezes piores, que se despedaçam por possuir mais, por mais negócios, mais confortos, mais honras, menos dor; se neste mundo do século XX, uma geração compreendesse a sua missão e quisesse dar testemunho do Cristo em que crê, não só com gritos que nada significam de Cristo vence, Cristo reina, Cristo impera… Onde?, senão na oferenda humilde, silenciosa das suas vidas, para fá-lo reinar pelos caminhos em que Cristo quer reinar: na sua pobreza, mansidão, humilhação, nas suas dores, na sua oração, na sua caridade humilde e abnegada!!

            Se Cristo encontrasse essa geração! Se Cristo encontrasse um… quererias ser tu?, o mais humilde. O mais inútil aos olhos do mundo, pode ser o mais útil aos olhos de Deus… Eu, Senhor, não valo nada… mas confuso, com temor e tremor, eu te ofereço o meu próprio coração. O Senhor entrou em Jerusalém no dia do seu triunfo sobre um asno, e segue fiel a essa prática, entra nas almas dos asnos de boa vontade, pobres, mansos, humildes. Queres ser o asno de Cristo? Cristo não me quer enganar, indica-me precisamente a o que fazer… É difícil, bem difícil. É preciso lutar contra as paixões próprias, que apetecem o contrário do seu programa. Não estarão mortas de uma vez para sempre, mas que terão que ir morrendo cada dia!

            É preciso lutar contra o ambiente: amigos, família, mundo atrações… tudo parecerá levantar-se escandalizado diante de quem pretenda, com tal exemplo, por mais modestamente que se dê, assinalar o seu erro. Se me amam quererão dar-me o que chamam bens!, e livrar-me das exagerações ridículas, passadas de moda, «que fazem mais mal do que bem…». Para que estas exagerações? Por que não fazer como todos? Lutar contra os escândalos… lutar contra os desalentos da empresa, o cansaço da idade, a secura do espírito, o tédio, a fadiga, a monotonia… Sim, é preciso lutar, mas ali estou Eu. Tende confiança em Mim, Eu venci o mundo. O meu jugo é suave e o meu fardo é leve… Vinde a mim os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso… Se alguém tem sede, venha a mim e beba. De seu seio jorrarão rios de água viva!! (Jo 16,33; Mt 11,30.28; Jo 7,37-38).

            Preciso de ti… Não te obrigo, mas necessito de ti para realizar os meus planos de amor. Se tu não vens, uma obra ficará sem ser feita, que tu, só tu podes realizar. Ninguém pode tomar essa obra, porque cada um tem a sua parte de bem que realizar. Olha o mundo; os campos como amarelam, quanta fome, quanta sede no mundo. Olha como procuram a mim, inclusive quando me perseguem… Há uma fome ardente, atormentadora de justiça, de honradez, de respeito pela pessoa; uma vontade resoluta a fazer saltar o mundo desde que terminem as explorações vergonhosas; há gentes, entre os que se chamam meus inimigos, que praticam por ódio o que ensino por amor… Há uma fome em muitos de Religião, de espírito, de confiança de sentido da vida.

            Difícil? Sim! O mundo não o compreenderá… burlar-se-á… Dirá: exagerações! Que ficou louco! De Jesus se disse que estava louco, vestiram-no de louco, acusaram-no de endemoniado… e finalmente crucificaram-no. E se Cristo viesse hoje à terra, horror me dá pensá-lo, não seria crucificado mas seria fuzilado. Se viesse ao Chile… levantar-se-ia um sedição contra Ele. De quem? O que se diria contra ele na imprensa, nas Cátedras? Quem falaria? Deus queira que nós não formássemos parte do coro dos seus acusadores, nem dos que o fuzilaram. Difícil? Sim! Mas aqui, só aqui, reside a vida.

            Na grande obra de Cristo todos temos um lugar; distinto para cada um, mas um lugar no plano da santidade. Na corrente da graça que Deus destina à bondade. E estou chamado a ser um elo! Posso sê-lo, posso rechaçar, o que farei? A resposta: propor-me este programa a fundo e responder com seriedade!

            A resposta dos jovens

            Muitos não terão o valor de propô-lo a si mesmo. Será superior às suas forças, mas, se pensassem nas forças de Cristo? Se pensassem que com Cristo, eles também poderiam ser santos. Que não se refugiem na covardia do puro dever!

            Outros darão a esmola de algo. É algo!! Pior seria nada. Mas não é isso o que Cristo pede! Não há que oferecer outra coisa, insistindo que é boa, quando Cristo pede outra melhor: a vontade de Deus única e só.

            Os tesouros são os generosos, os que se entregam e fingem, e para estarem seguros de fazerem a vontade do Senhor, «atuando contra a sua sensibilidade» abraçam o mais difícil em espírito, pedem-no, suplicam-no que lhes seja concedido… e só deixarão aquelas doações se o Senhor mostra-lhes o seu caminho em terreno mais suave. Mas, da própria parte, isso escolhem!


            Maria, modelo de cooperação

            Meditação de retiro sobre a devoção à Nossa Senhora

            A devoção á Nossa Senhora é um elemento essencial na vida cristã. A alma cristã está cheia desta devoção. Em países de missão, o Islão que avança, vê-se detido por Maria. Essas religiosas indígenas, todas com títulos de Maria, Capelas, Rosário, Escapulário, Templos, Peregrinações, Grutas.

1. Em que se funda a devoção à Maria

            É uma lástima que preguem só esta devoção poética: Palma de Cades, Rosa de Jericó, destacando unicamente a sus formosura. O verdadeiro fundamento não o descobre o homem raciocinando mas orando sob a inspiração do Espírito Santo. Na nossa oração achamos tão natural o privilégio de Maria antes de todo mérito seu. Se vê na celebração do dia 8 de dezembro. O povo que ora o intui. Em Lovaina, no 50º aniversário da Imaculada Conceição, havia iluminação até nas casas mais modestas. Um menino é interrogado: Na festa de Nossa Senhora, tu tens inveja? – Ninguém tem inveja da Mãe.

            2. A graça de Maria funciona!

            A graça de Maria é graça funcional. Toda graça é funcional: em proveito de todos os outros, justos e pecadores. Não se trata de honras, mas de funções. A função de Maria é ser Mãe de Deus, e a sua graça é para nós o que funda a nossa esperança, já que a preferida de Deus é a minha Mãe.

            A graça funcional de Maria persiste: quando Deus elegeu uma pessoa para uma função, não muda o seu parecer. São José, patrono da Sagrada Família, a Sagrada Família cresceu e é a Igreja, logo José, patrono da Igreja. Maria estava no cuidado doméstico da Sagrada Família… Esta cresce, e está no cuidado doméstico da Igreja: «Assim como quando vivia Jesus ia a senhora, Ó Mãe, com o cântaro sobre a cabeça a apanhar água da fonte, venha agora a tomar água da graça e traga-a, por favor, para nós que tanto necessitamos».

            3. Modelo de cooperação

            Maria, como Mãe, não quer condecorações nem honras, mas prestar serviços. E Jesus não vai não ouvir as suas súplicas, Ele, que mandou obedecer o pai e a mãe. O seu primeiro imenso serviço foi o «Faça-se em mim segundo a tua palavra»… e o «Eis aqui a escrava o Senhor» (Lc 1, 38), Deus fez depender a sua obra do «Sim» de Maria. Sem burlar, prestou, e segue prestando serviços: isto enche a alma de uma santa alegria e faz com que os filhos que adoram o Filho, não possam separá-lo da Mãe.


Sejamos cristãos, isto é, amemos os nossos irmãos

Conferência sobre a orientação fundamental do catolicismo

 

            «Sejamos cristãos, isto é, amemos os nossos irmãos». Neste pensamento lapidário, resume o grande Bossuet a sua concepção da moral cristã. Pouco antes dissera: «quem renuncia à caridade fraterna, renuncia à fé, abjura do cristianismo, afasta-se da escola de Jesus Cristo, isto é, da sua Igreja».

            Esta é a Mensagem de Cristo: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lc 10,27). A mensagem de Jesus foi compreendida em toda a sua força pelos seus colaboradores mais imediatos, os apóstolos: «Quem não ama seu irmão não nasceu de Deus» (1Jo 2,1). «Se alguém disser: “amo a Deus”, mas odeia o seu irmão, é um mentiroso» (1Jo 4,20). «Se alguém, possuindo os bens deste mundo, vê o seu irmão na necessidade e lhe fecha o coração, como permanecerá nele o amor de Deus?» (1Jo 3,17). Com que insistência inculca João esta idéia que é puro egoísmo pretender comprazer a Deus enquanto despreocupa-se do seu próximo.

            Depois de recorrer tão rapidamente alguns textos escolhidos por acaso, não podemos deixar de concluir que não pode pretender chamar-se cristão quem fecha o seu coração ao próximo. Engana-se se quem pretende ser cristão vai com freqüência ao templo mas não à favela cortiço para aliviar as misérias dos pobres. Engana-se quem pensa com freqüência no céu, mas se esquece das misérias da terra em que vive. Não menos se enganam os jovens e adultos que se crêem bons porque não aceitam pensamentos grosseiros, mas que são incapazes de sacrificar-se pelos seus próximos. Um coração cristão tem que fechar-se aos maus pensamentos, mas também abrir-se aos pensamentos que são de caridade.

            A primeira encíclica dirigida ao mundo cristão por São Pedro encerra um elogio tal da caridade que a coloca acima de todas as virtudes, inclusive da oração: «Levai, pois, uma vida de autodomínio e de sobriedade, dedicada à oração. Acima de tudo, cultivai, com todo o ardor, o amor mútuo» (1Pd 4,7-8).

            Com maior cuidado que a pupila dos olhos deve ser olhada a caridade. A menor tibieza ou desvio voluntário para com um irmão, deliberadamente admitidos serão um estorvo mais ou menos grave à nossa união com Cristo. Ao comungar recebemos o Corpo físico de Cristo, Nosso Senhor, e não podemos, portanto, na nossa ação de graças rechaçar o seu Corpo Místico. É impossível que Cristo desça até nós com a sua graça e seja um princípio de união se guardamos ressentimento com algum dos seus membros.

            Este amor ao próximo é fonte para nós dos maiores méritos que podemos alcançar porque é ele que oferece os maiores obstáculos. Amar a Deus em si mesmo é mais perfeito, mas, mais fácil; por outro lado, amar ao próximo, duro de caráter, desagradável, teimoso, egoísta, pede à alma uma grande generosidade para não desmaiar.

            Este amor, já que todos formamos um só Corpo, há de ser universal, sem excluir ninguém, pois Cristo morreu por todos e todos estão chamados a formar parte do seu Reino. Portanto, também os pecadores devem ser objeto do nosso amor dado que podem voltar a ser membros do Corpo Místico de Cristo: que para eles se estenda, portanto, também o nosso carinho, a nossa delicadeza, o nosso desejo de fazer-lhes o bem, e que ao odiar o pecado não odiemos o pecador.

            O amor ao próximo há de ser todo sobrenatural, isto é, amá-lo com o olhar posto em Deus, para alcançá-lo ou conservar-lhe a graça que o leva à bem-aventurança. Amar é querer bem, como diz Santo Tomás, e todo bem está subordinado ao bem supremo, por isso é tão nobre a ação de consagrar uma vida para conseguir para os outros os bens sobrenaturais que são os supremos valores da vida. Mas há também outras necessidades para ajudar: um pobre que precisa de pão, um enfermo que requer remédios, um triste que pede consolo, uma injustiça que pede reparação… e, sobretudo, os bens positivos que dever ser divididos, pois, ainda que não haja nenhuma dor que estancar há sempre uma capacidade de bem para receber.

            A lei da caridade não é para nós lei morta, tem um modelo vivo que nos deu exemplo dela desde o primeiro ato da sua existência até a sua morte e continua dando-nos provas do seu amor na sua vida gloriosa: ele é Jesus Cristo. São Pedro, que viveu com Jesus três anos, resume-nos a sua vida dizendo que passou pelo mundo fazendo o bem.

            Junto a estes grandes sinais de amor, mostra-nos a sua caridade com os leprosos que sarou, com os mortos que ressuscitou, com os adolorados aos quais aliviou. Consola Marta e Maria, na pena da morte do seu irmão, até bramar a sua dor, compadece-se da vergonha dos jovens esposos e para dissipá-la mudou a água em vinho; enfim, não teve dor que encontrasse no seu caminho que não aliviasse. Para nós o preceito de amar é recordar a palavra de Jesus: «Amai-vos uns aos outros como eu vos amei» (Jo 13,34). Como amou-nos Jesus!

            Os verdadeiros cristãos, desde o princípio, compreenderam maravilhosamente o preceito do Senhor. Na esperança destes prodigiosos cristão é onde deve-se buscar a força para retemperar o nosso dever de amar, apesar dos ódios maciços como cordilheiras que nos cercam hoje por todas as partes.

            Ao olhar esta terra, que é nossa, que nos destinou o Redentor; ao olhar os males do momento, o preceito de Cristo exige uma imperiosa necessidade: amemo-nos mutuamente. O sinal do cristão não é a espada, símbolo da força; nem a balança, símbolo da justiça; mas a cruz, símbolo do amor. Ser cristão significa amar os nossos irmãos como Cristo os amou.


«Já não pertenceis a vós mesmos»

Meditação de retiro sobre a generosidade apostólica

            I. O Apóstolo já não se pertence

            «Já não pertenceis a vós mesmos» (cf. 1Cor 6,19-20). O apóstolo já não se pertence mais. Vendeu-se, entregou-se ao seu Mestre. Para ele vive, para ele trabalha, por ele sofre. O ponto de vista do Mestre vem a ser o importante. As minhas preocupações, os meus interesses deixam lugar aos interesses do Mestre.

            Que trabalho escolher? Não o que o gosto, o capricho, a utilidade ou a comodidade indiquem-me, mas aquele no qual possa servir melhor. O serviço mais urgente, o mais útil, o mais considerável, o mais universal. O do Mestre!

            Com que atitude? Trabalha-se tanto, se gosta como se desgosta, a mim e aos outros. É o serviço de Vossa Majestade. Deve-se prosseguir, estender-se, abandonar-se, mas não por ambição humana, necessidade de ação, ou conquista de influência, mas porque é a obra do Mestre. Fazer o que Ele faria.

            A esta obra subordina-se tudo, inclusive a saúde, a alegria espiritual, o repouso e o triunfo. Segundo o de São Paulo: «Sinto-me num dilema: o meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa. Convencido disso sei que ficarei e continuarei com todos vós» (Fl 1,23-25).

            É um trabalho amoroso, não de escravo. Não se queixa, mas que se alegra em dar-se, como a mãe pelo seu filho enfermo. É um dom total à obra do Mestre que se abraça com carinho, de maneira que chega a ser mais sacrifício não se sacrificar: Ama a sua dor.

            II. A Paz apostólica

            O mundo procura dar-nos a paz pela ausência de todos os males sensíveis e a reunião de todos os prazeres. A paz que Jesus promete aos seus discípulos é distinta. Funda-se não na ausência de todo sofrimento e de toda preocupação, mas na ausência de toda divisão interior profunda; fundamenta-se não na ausência de todo sofrimento e de toda preocupação, mas na ausência de toda divisão interior profunda; fundamenta-se na unidade da nossa atitude para com Deus, para conosco e para com os outros.

            Esta é a paz no trabalho-sem-descanso: Meu pai trabalha sem descanso. Eu também trabalharei (cf. Jo 5,17). O verdadeiro trabalho de Deus, que consiste em dar a vida e conservá-la, atrair cada ser para o seu próprio bem, não cessa, nem pode cessar. Assim, os que verdadeiramente estão associados ao trabalho divino não podem descansar jamais, porque nada é servil neste trabalho. Um apóstolo trabalha quando dorme, quando descansa, quando se distrai… Tudo isso é santo, é apostolado, é colaboração para o plano divino.

            A paz cristã está fundada sobre esta unificação de todas as nossas potências de trabalho e de resistência, de todos os nossos desejos e ambições… Aquele que em princípio está assim unificado e que pouco a pouco leva à prática esta unificação, este tem a paz.

            III. O zelo de Paulo

            O apóstolo é um mártir ou permanece estéril. Procurar ao pregar o zelo, a abnegação, o heroísmo, que sejam virtudes cristãs que nasçam do exemplo e doutrina de Cristo. O zelo das almas é uma paixão ardente. Fundamenta-se no amor; é o seu aspecto conquistador e agressivo, e quando toca-se o ser amado, toca-se a ele mesmo. Assim Paulo: «fui crucificado junto com Cristo» (Gl 2,19), fica furioso quando toca-se a fé dos seus Gálatas… porque ele está identificado com Cristo: tocar essa fé é tocar ele mesmo. «Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim» (Gl 2,20). Não se toca Cristo, senão passando por Paulo.


O Corpo Místico: distribuição e uso da riqueza

Conferência pronunciada na Bolívia, em janeiro de 1950, diante dos dirigentes do Apostolado Econômico-Social

 

            A espiritualidade cristã, no nosso século, caracteriza-se por um desejo ardente de voltar às fontes, de ser cada dia mais genuinamente evangélica, mais simples e mais unificada em redor da severa mensagem de Jesus. A espiritualidade contemporânea caracteriza-se também pela irradiação dos seus princípios sobrenaturais a todos os aspectos da vida, de modo que a fé repercute e eleva não só as atividades chamadas religiosas, mas também as chamadas profanas. Por ter redescoberto, ou pelo menos por ter acentuado com força extraordinária a mensagem gozosa da nossa incorporação a Cristo com a conseguinte divinização da nossa vida e de todas as suas ações, nada é profano mas profundamente religioso na vida do cristão.

            Assim, ao buscar Cristo é necessário buscá-lo completo. Basta ser homem para poder ser membro do Corpo Místico de Cristo, isto é, para poder ser Cristo (cf. 1Co 12,12-27). Quem aceita a encarnação deve aceitá-la com todas as suas conseqüências, e estender o seu dom não só a Jesus Cristo, mas também ao seu Corpo Místico. E este é um dos pontos mais importantes da vida espiritual: desamparar o menor dos nossos irmãos é desamparar Cristo em pessoa. Tocar um dos homens é tocar Cristo. Por isto disse-nos Cristo que todo o bem e o mal que fizéssemos ao mais pequenino dos seus irmãos a eles o fazíamos (cf. Mt 25). O núcleo fundamental da revelação de Jesus, «a boa nova», é pois a nossa união, a de todos os homens, com Cristo. Logo, não amar aos que pertencem a Cristo, é não aceitar e não amar o próprio Cristo.

            Que outra coisa senão isto significa a pergunta de Jesus a Paulo quando dirige-se a Damasco perseguindo os cristãos: «Saul, Saul, por que me persegues…?». Não diz a voz por que persegues os meus discípulos?, mas «por que me persegues? Eu sou Jesus a quem persegues» (At 9,4-5).

            Cristo se fez nosso próximo, ou melhor, o nosso próximo é Cristo que se nos apresenta sob uma ou outra forma: preso nos encarcerados; ferido num hospital; mendigo na rua; dormindo, com a forma de um pobre, debaixo das pontes de um rio. Pela fé devemos ver nos pobres Cristo, e se não o vemos é porque a nossa fé é tíbia e o nosso amor imperfeito. Por isso São João nos diz: Se não amamos o próximo, a quem vemos, como poderemos amar a Deus a quem não vemos?

            A comunhão dos santos, dogma básico da nossa fé, é uma das primeiras realidades que se desprende da doutrina do Corpo Místico: todos os homens somos solidários. Todos recebemos a Redenção de Cristo, os seus frutos maravilhosos, a participação dos méritos de Maria nossa Mãe e de todos os santos, palavra esta última que com toda a verdade pode aplicar-se a todos os cristãos em graça de Deus. A comunhão dos santos faz-nos compreender que há entre nós, os que formamos a «família de Deus», vínculos muito mais íntimos que os da camaradagem, da amizade, dos laços de família. A fé ensina-nos que os homens somos um em Cristo, participantes de todos os bens e sofrendo as conseqüências, pelo menos negativamente, de todos os nossos males.

            Soluções ao problema da injusta distribuição dos bens. O primeiro princípio de solução reside na nossa fé: devemos crer na dignidade do homem e na sua elevação à ordem sobrenatural. É um fato triste, mas creio que temos que afirmá-lo por mais doloroso que seja: a fé na dignidade dos nossos irmãos, que temos a maior partes dos católicos, não passa de uma aceitação intelectual do princípio, mas que não se traduz na nossa conduta prática diante dos que sofrem e que, muito menos, causa-nos dor na alma diante da injustiça da qual são vítimas. Sofremos diante da dor dos membros da nossa família, mas sofremos por acaso diante da dor dos mineiros tratados como animais de carga, diante do sofrimento de milhares e milhares de seres que, como pequenos animais, dormem jogados na rua, expostos às inclemências do tempo? Sofremos por acaso diante destes milhares de desempregados que se transladam de lugar em lugar sem ter outra fortuna que um pequeno saco nas costas onde levam toda a sua riqueza? Rompe-nos a alma, enferma-nos a enfermidade destes milhões de desnutridos, de tuberculosos, focos permanentes de contágio porque não há nem sequer um hospital que os receba?

            Não é, pelo contrário, a cômoda palavra «exageração», «prudência», «paciência», «resignação», a primeira que vem a seus lábios? Enquanto os católicos não tenhamos tomado a sério o dogma do Corpo Místico de Cristo que nos faz ver o Salvador em cada um dos nossos irmãos, ainda no mais doente, no mais rude mineiro que masca coca, no trabalhador que jaz ébrio, estendido física e moralmente pela sua ignorância, enquanto não vejamos neles Cristo nosso problema não tem solução.

            É necessária a cooperação inteligente dos técnicos que estudem o conjunto econômico-social do momento que vive o país e proponha medidas eficazes. Chegou a hora em que a nossa ação econômico-social deve cessar de contentar-se com repetir consignas gerais tiradas das encíclicas dos Pontífices e propor soluções bem estudadas de aplicação imediata no campo econômico-social. Tenho a íntima convicção de que se os católicos propõem um plano bem estudado que mire ao bem comum, encontrará o apoio de boas vontades que existem em todos os campos e converter-se-á este plano em realidade.

            Para terminar, façamos nosso o pensamento de Pio XII, na sua mensagem de Natal de 1939, quando diz que «as regras, mesmo as melhores que possam estabelecer-se, jamais serão perfeitas e estarão condenadas ao fracasso se os que governam os destinos dos povos e os mesmos povos não se impregnam de um espírito de boa vontade, de fome e sede de justiça e de amor universal, que é o objetivo final do idealismo cristão». Esta fome e sede de justiça em nenhuma outra realidade pode estimular-se mais do que na consideração do fato básico da nossa fé: pela Redenção todos somos um em Cristo; Ele vive nos nossos irmãos. O amor que devemos a Ele façamo-lo prático naqueles que o representam. «Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes» (Mt 25,40).


Reação cristã diante da angústia

Reflexão pessoal escrita em novembro de 1947

 

            A alma que se purificou no amor com freqüência é atormentada pela angústia. Não a angústia da sua própria sorte: tem demasiado amor, espera profundamente, como para deter-se na consideração dos seus próprios males. Ela se sabe pequena e fraca, mas buscada por Deus e amada por Ele…

            É a miséria do mundo que a angustia. A loucura dos homens, a sua ignorância, as suas ambições, as suas covardias, o egoísmo dos povos, o egoísmo das classes, a obstinação da burguesia que não compreende, a sua mediocridade moral, o chamado ardente e puro das massas, a vista tão curta, às vezes o ódio dos seus chefes. O esquecimento da justiça. A imensidade de favelas e pocilgas. Os salários insuficientes ou mal utilizados. O alcoolismo, a tuberculose, a sífilis, a promiscuidade, o ar impuro. O espetáculo banal, o espetáculo carnal, tantos bares, tantos cafés duvidosos, tanta necessidade de esquecimento, tanta evasão, tanto desperdício das formas da vida. Tanta mediocridade nos ricos como nos pobres. Uma humanidade louca, que se aturde com música barata e que logo se desanima.

            A alma sente-se assustada por uma grande angústia. A miséria do mundo, que foi viver na sua alma, tortura a alma. O coração está quase estourando. Já não pode mais. As entranhas apertam-se, a angústia sobe do coração e estreitam a garganta.

            O que fazer, Senhor? É preciso declarar-se impotente, aceitar a derrota, gritar: salve-se quem puder? Deve-se afastar deste arroio malcheiroso? É preciso escapar deste delírio?

            Não. Todos estes homens são meus irmãos queridos, todos sem exceção alguma. Esperam que se os ilumine. Necessitam da Boa Nova. Estão dispostos a receberem a comunicação do Espírito, desde que lhes seja comunicada; desde que haja alguém que esteja perto deles, muito perto para compreendê-los e fá-los caminhar; desde que haja alguém que, antes de mais nada, ame apaixonadamente a verdade e a justiça, e que as viva intensamente.

            Desde que haja alguém que seja capaz de libertá-los, de ajudá-los a descobrir a sua própria riqueza, a que está no seu interior, na luz verdadeira, na alegria fraternal, no desejo profundo de Deus.

            Desde que quem queira ajudá-los tenha refletido bastante para captar todo o universo no seu olhar, o universo que busca Deus, o universo que leva o homem para fá-lo chegar a Deus, mediante a ajuda mútua dos irmãos, feitos para se amarem, para cooperarem na repartição eqüitativa das cargas e dos frutos; mediante a análise da realidade sobre a qual se deve atuar, pela previsão dos êxitos e das derrotas, pela intervenção inteligente, pela sabedoria política enfim reconquistada, pela adesão a toda verdade; pela adesão a Cristo na fé. Pela esperança. Pelo dom pleno de mim mesmo a Deus e à humanidade, e de todos aqueles aos quais vou levar a mensagem e acender a chama da verdade e do amor.


A Mãe de todos

Pregação pronunciada no Mês de Maria de 1950

 

            Acontece uma coisa verdadeiramente animadora no mundo e, sobretudo, no Chile: como uma segunda primavera além do material da natureza, uma primavera espiritual, durante o Mês de Maria. Tudo muda de aspecto, as Igrejas enchem-se, neste mês, de gente que chega de não se sabe de onde, homens de trabalho, soldados, mulheres de luta, não só a gente desempregada. E isto quatro ou cinco vezes por dia, em todos os tempos.

            Por que a Santíssima Virgem tem esta influência nas nossas almas? Que atração exercita em nós? Primeiro uma influência intuitiva, sentimental, emotiva, porque, como se disse, se ela não tivesse sido criada por Deus, o homem teria tido que inventá-la, é uma necessidade psicológica do coração humano. No fundo, Maria representa a aspiração de tudo o que de maior tem a nossa alma. A mãe é a necessidade mais primordial e mais absoluta da alma, e quando a perdemos, ou sabemos que vamos perdê-la, precisamos de algo do Céu que nos envolva com a sua ternura.

            Ela não é divina, é inteiramente da nossa terra, como nós, plenamente humana: fazia os ofícios de qualquer mãe, mas sentindo-a tão totalmente nossa, reconhecemo-la como trono da divindade.

            Que difícil é repassar tão rapidamente os privilégios dogmáticos de Maria! Mas a alma intui que como o coração do jovem de 20 anos necessita de uma moça que complete a sua vida, a humanidade necessita desta Mãe terna, Virgem pura, ser humano cheio de divindade, que recebeu de Deus, em Maria. Mesmo os que não sabem teologia ficam absortos quando vêem o que é.

            Na nossa época de problemas tremendos, temos que voltar a cristianizar o mundo: há milhões de homens sob o domínio do ateísmo, ao ponto de entrar na guerra atômica, neste momento difícil parece-me que Maria vem de novo a multiplicar os seus chamados. Ela aparece em Lourdes a Bernadete: Eu sou a Imaculada Conceição, e faz brotar uma fonte onde centenas de enfermos recuperaram a saúde, e que tem sido reproduzida em todas as cidades, até nas populações marginais. No México, se disse: não fez nada parecido em nenhuma outra parte do mundo. Ali Nossa Senhora de Guadalupe apareceu ao índio Juan Diego, e quando ele lhe respondeu: «Minha menina, não vão acreditar», no poncho do índio ela deixou cair, em pleno inverno, uma chuva de rosas vermelhas para que as levasse ao arcebispo. Ela apareceu com aspectos de indiazinha, porque vinha em defesa dos índios.

            Pensei tantas vezes, quando vejo o Mês de Maria cheio de gente, e o dia da Procissão de Nossa Senhora do Carmo, essa gente fomenta de verdade, qual é o nosso dever diante dela? Primeiro dar exemplo de integridade de vida cristã, não nos acomodar ao mundo mas que este se acomode à Maria. Nas conversações, caridade: que as nossas palavras sejam bondosas, ternas e carinhosas. O mundo gosta de pândega, nada mais que diversão, nós não seremos obstáculo, mas poremos a nota de austeridade e trabalho. Não podemos ser seus devotos e faltar à caridade, não fazendo nada para solucionar a miséria humana.

            Estes dias tocou-me viver afogado na miséria, assediado pelo miserável que não tem nada, absolutamente nada. Aonde vai hoje o homem que tenha fome e não tenha o que comer? Ontem uma mulher jovem, decentemente vestida, dizia-me: «Padre, não jejuei esta manhã, pediram-me o quarto, tenho cinco filhos, aonde vou?…». Um pobre, preso por desocupado, a sociedade não lhe dá teto nem trabalho e encerra-o por ir vagando. Estamos empapados numa miséria que chegou ao último extremo. Conheço gente que passa três ou quatro dias sem comer.

            A nossa devoção à Virgem, não deveria levar-nos a perguntar como podemos solucionar este problema? Nossa devoção vazia e piedade estéril, em vão a vossa Mãe aparece aos pobres se vós não dais caridade. A primeira manifestação de amor que seja caridade em palavra, juízos, desprendimento, em obras de justiça. O mundo tem seus olhos postos sobre nós. Lembremo-nos que somos cristãos e que o mundo nos olha. Temo que a nossa piedade seja em grande parte só sentimental, promessas vãs, e não a misericórdia de Cristo. Caridade em honra da Virgem Santíssima. Vós funcionárias públicas, vais ao topo da vossa caridade? Tão «passivos» somos os católicos, tão adormentados, tão pouco inquietos pela solidariedade social. Todas dificuldades, tropeços, escândalos… Oxalá que a nossa devoção à Virgem traga-nos ternura de olhar para o Céu e trabalhar na terra para que haja caridade e amor. Deus queira levar-nos ao Céu por meio dela, a Mensageira do Pai, a Mãe de todos, especialmente dos que sofrem.


Uma espiritualidade sã

Reflexão pessoal escrita em novembro de 1947

 

            Aqueles que se preocupam da vida espiritual não são muitos; e, desgraçadamente, entre estes nem todos vão pelo caminho seguro. Quantos, durante dezenas de anos, fazem meditação e leitura sem tirar grande proveito! Quantos, mais preocupados em seguir um método que o Espírito Santo! Quantos querem imitar literalmente as práticas de tal ou qual santo! Quantos aspiram a estados extraordinários, ao maravilhoso, às graças sensíveis! Quantos esquecem que formam parte de uma humanidade dolorida e fabricam-se uma religião egoísta que não se lembra dos seus irmãos! Quantos lêem e relêem os manuais, ou buscam receitas, sem conhecerem o Evangelho, sem recordarem-se de São Paulo!

            Para outros, a vida espiritual confunde-se com os exercícios de piedade: leitura espiritual, oração, exames. A vida ativa vem a ser um emplastro  que se agrega, mas não uma prolongação, ou uma preparação da sua vida interior. As preocupações da sua vida ordinária, as dificuldades que têm que vencer, o seu dever de estado, são deixados fora da oração: parece-lhes indigno misturar Deus a essas banalidades.

            Assim chegam a forjar-se uma vida espiritual complicada e artificial. Em lugar de buscar a Deus nas circunstâncias em que nos pôs, nas necessidades profundas da minha pessoa, nas circunstâncias do meu ambiente temporal e local, preferimos atuar como homens abstratos. Deus e a vida real não aparecem jamais no mesmo campo de pensamento e de amor. Lutam para manter em si um sentimentalismo afetivo de orientação divina, para manter, com esforço, o olhar fixo em Deus, para sublimar-se intensamente; ou então contentam-se com as fórmulas açucaradas de livros chamados de piedade. Isto faz pensar na afirmação de Pascal: o homem não é nem anjo nem besta, mas quem quer ser como anjo, obra como besta.

            Uma coisa mais grave: sacerdotes, homens de estudo, que trabalham materiais sobrenaturais, pregadores que preparam as suas pregações a manhã… não terão sequer a idéia de introduzir estas matérias na sua vida de oração.

            Leigos que dirigem obras de ação proibir-se-ão de pensar nestas matérias durante a sua oração. Homens que passam o seu dia sobre as misérias do próximo, para socorrê-la, afastarão a lembrança dos pobres, enquanto assistem a missa. Apóstolos carregados de responsabilidades com miras ao Reino de Deus, considerarão quase uma falta o ver-se acompanhados pelas suas preocupações e as suas inquietações .

            Como se toda a nossa vida não devesse ser orientada para Deus, como se pensar em todas as coisas por Deus não fosse já pensar em Deus; ou como se pudéssemos libertar-nos, segundo o nosso arbítrio, das preocupações que Deus mesmo nos pôs. É tão fácil, por outro lado, tão indispensável, elevar-se a Deus, perder-se nele, partindo da nossa miséria, dos nossos fracassos, dos nossos grandes desejos. Por que, pois, jogá-los fora de nós, em lugar de servir-nos deles como de um trampolim? Com simplicidade, pois, arrojar a ponte da fé, da esperança, do amor, entre a nossa alma e Deus.

            Uma espiritualidade sã dá aos métodos espirituais a sua importância relativa, mas não a exagerada que alguns lhe atribuem. Uma espiritualidade sã é a que se acomoda às individualidades e respeita as personalidades. Adapta-se aos temperamentos, às educações, culturas, experiências, meios, estados, circunstâncias, generosidades… Toma cada um como ele é, em plena vida humana, em plena tentação, em pleno trabalho, em pleno dever. O Espírito que sopra sempre, sem que se saiba de onde vem e para onde vai (cf. Jo 3,8), serve-se de cada um para os seus fins divinos, mas respeitando o desenvolvimento pessoal na construção da grande obra coletiva que é a Igreja. Todos servem nesta caminhada da humanidade para Deus; todos encontram trabalho na construção da Igreja; o trabalho de cada um, o querido por Deus, será o que a cada um se revelará pelas circunstâncias em que Deus o colocará, e pela luz que a ele dará em cada momento. A única espiritualidade que nos convém é a que nos introduz no plano divino, segundo as minhas dimensões, para realizar esse plano em obediência total.

            Todo método demasiado rígido, toda dimensão demasiado definitiva, toda substituição da letra ao espírito, todo esquecimento das nossas realidades individuais, não conseguem senão diminuir o ímpeto da nossa caminhada para Deus.

            Serão, pois, métodos falsos todos os que sejam impostos com uniformidade; todos os que pretendam dirigir-nos para Deus fazendo-nos esquecer nossos irmãos; todos os que nos façam fechar os olhos sobre o universo, em lugar de ensinar-nos a abri-los para elevar tudo ao Criador de todo ser; todos os que nos façam egoístas e nos façam recolher-nos dentro de nós mesmos; todos os que pretendam enquadrar a nossa vida desde fora, sem penetrá-la interiormente para transformá-la; todos os que dêem ao homem a vantagem sobre Deus.

            Ao comparar o Evangelho com a vida da maior parte de nós, os cristãos, sente-se um mal-estar… A maior parte de nós esqueceu que somos o sal da terra, a luz sobre o candelabro, o levedo da massa… (cf. Mt 5,13-15). O sopro do Espírito não anima muitos cristãos; um espírito de mediocridade consume-nos. Há entre nós ativos, e mais que ativos, mais ainda, agitados, mas as causas que nos consumem não são a causa do cristianismo.

            Depois de olhar e voltar a olhar-se a si mesmo e o que se encontra em redor de si, pego o Evangelho, vou a São Paulo, e ali encontro um dinamismo todo fogo, todo vida, conquistador; um cristianismo verdadeiro que toma o homem todo, retifica toda a vida, esgota toda atividade. É como um rio de lava ardendo, incandescente, que sai do fundo mesmo da religião.

            A entrega ao Criador! Em todo caminho espiritual reto, está sempre no princípio o dom de si mesmo. Se multiplicamos as leituras, as orações, os exames, mas sem chegar ao dom de si mesmo, é sinal de que nos perdemos… Antes que toda prática, que todo método, que todo exercício, impõe-se um oferecimento generoso e universal de todo nosso ser, do nosso ter e possuir… Neste oferecimento pleno de si mesmo, ato do espírito e da vontade, que nos leva na fé e no amor ao contato com Deus, reside o segredo de todo progresso.


Fundamento do amor ao próximo

Discurso a 10.000 jovens da Ação Católica, em 1943

 

            Gostaria de aproveitar destes breves momentos, meus queridos jovens, para indicar-lhes o fundamento mais íntimo da nossa responsabilidade, que é o nosso caráter de católicos. Os jovens têm que se preocupar dos seus irmãos, da sua Pátria (que é o grupo de irmãos unidos pelos vínculos de sangue, língua, terra), porque ser católicos eqüivale a ser sociais. Não por medo de perder algo, não por temor de perseguições, não por anti-alguns, senão que, porque vocês são católicos devem ser sociais, isto é, sentir em vocês a dor humana e procurar solucioná-la.

            Um cristão sem preocupação intensa de amar, é como um agricultor despreocupado da terra, um marinheiro desinteressado do mar, um músico que não cuida da harmonia. Sim, o cristianismo é a religião do amor! Como dizia um poeta. E já o dissera Cristo Nosso Senhor: O primeiro mandamento da lei é amará ao Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua mente, com todas as tuas forças; e acrescenta imediatamente: e o segundo é semelhante ao primeiro, é amarás o teu próximo como a ti mesmo pelo amor de Deus (cf. Mt 22,37-39). Momentos antes de partir, a última lição que nos explicou, foi a repetição da primeira que nos deu sem palavras: Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei (Jo 3,23). São João, na sua epístola, resume-nos os dois mandamentos em um: Este é o seu mandamento: crer no nome do seu Filho Jesus Cristo e amar-nos uns aos outros (1Jo 3,23). E São Paulo não teme tampouco fazer igual resumem: Não devais nada a ninguém, a nãos ser o amor mútuo, pois quem ama o outro cumpriu a Lei. De fato, os preceitos: não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e todos os outros se resumem nesta sentença: amarás o teu próximo como a ti mesmo (Rm 13,8-9).

            Neste amor aos nossos irmãos, que nos exige o Mestre, precedeu-nos ele mesmo. Por amor criou-nos; caídos em culpa, por amor, o Filho de Deus se fez homem, para fazer-nos filhos de Deus (o que a muitos, ainda agora, parece-lhes uma imensa loucura). O Verbo, ao encarnar-se, uniu-se misticamente a toda a natureza humana.

            É necessário, pois, aceitar a Encarnação com todas as suas conseqüências, estendendo o dom do nosso amor não só a Jesus Cristo, mas também a todo o seu Corpo místico. E este é um ponto básico do cristianismo: desamparar o menor dos nossos irmãos é desamparar o mesmo Cristo; aliviar qualquer um deles é aliviar Cristo em pessoa. Quando ferem uns dos meus membros, ferem a mim; do mesmo modo tocar um dos homens é tocar o mesmo Cristo. Por isto disse-nos Cristo que todo o bem e todo o mal que fizéssemos ao menor dos homens a Ele o fazíamos.

            Cristo se fez nosso próximo, ou melhor, o nosso próximo é Cristo que se apresenta sob tal ou qual forma: paciente nos enfermos, necessitado nos indigentes, prisioneiro nos encarcerados, triste nos que choram. Se não o vemos é porque a nossa fé é tíbia. Mas separar o próximo de Cristo é separar a luz da luz. Quem ama Cristo está obrigado a amar o próximo com todo o seu coração, com toda a sua mente, com todas as suas forças. Em Cristo todos somos um. Nele não deve haver nem pobres nem ricos, nem judeus nem gentios, afirmação categórica superior ao «Proletários do mundo uni-vos», ou ao grito da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. O nosso grito é: Proletários e não proletários, homens todos da terra, ingleses e alemães; italianos, norte-americanos, judeus, japoneses, chilenos e peruanos, reconheçamos que somos um em Cristo e que nos devemos não o ódio, mas o amor que o próprio corpo tem a si mesmo. Que se acabem na família cristã os ódios, prejuízos e lutas, e que suceda um imenso amor fundado na grande virtude da justiça, da justiça primeiro, da justiça em seguida, logo ainda da justiça, e, superadas as asperidades do direito, por uma imensa efusão de caridade.

            Mas esta compreensão terá sido cancelada da alma dos cristãos? Por que nos reprovam que não praticamos a doutrina do Mestre, que temos magníficas encíclicas, mas não as realizamos? Sem poder senão roçar este tema, atrever-me-ia a dizer o seguinte: porque o cristianismo de muitos de nós é superficial. Estamos no século dos recordes, não de sabedoria, não de bondade, mas de ligeireza e superficialidade. Esta superficialidade ataca a formação cristã séria e profunda sem a qual não há abnegação. Como alguém vai se sacrificar se não vê o porquê do seu sacrifício? Se queremos, pois, um cristianismo de caridade, o único cristianismo autêntico, mais formação, mais formação séria impõe-se.

            Os cristãos deste século não são menos bons do que os de outros séculos, e em alguns aspectos superiores, tanto mais quando as perseguições mundanas vão separando o trigo da cizânia ainda antes do Juízo, mas o mal endêmico, não só deles, mas deles, menos que de outros, é o da superficialidade, o de uma horrível superficialidade. Sem formação sobrenatural, por que vou negar-me o bem do qual desfruto comodamente, quando a vida é curta? Ao contrário, quando há fé, o gesto cristão é o gesto amplo que começa por olhar a justiça, toda a justiça, e todavia supera-a uma imensa caridade.

            E logo, jovens católicos, não posso silenciá-lo: neste momento falta formação, porque faltam sacerdotes. A crise mais profunda, a mais trágica nas suas conseqüências é a falta de sacerdotes que partam o pão da verdade para os pequeninos, que alentem os tristes, que dêem um sentido de esperança, de força, de alegria, a esta vida. Vocês, 10.000 jovens que aqui estão, a quem vi com tão indizíveis trabalhos preparar esta reunião, vocês jovens e famílias católicas que me escutam, sintam nos seus corações a responsabilidade das almas, a responsabilidade do porvir da nossa Pátria. Se não há sacerdotes, não há sacramentos, se não há sacramentos, não há graça, se não há graça, não há céu, e, ainda nesta vida, o ódio será a amargura de um amor que não pôde orientar-se, porque faltou o ministro do amor que é o sacerdote. Que os nossos jovens, conscientes da sua fé, que é generosidade, conscientes do seu amor a Cristo e aos seus irmãos, não titubeiem em dizer sim ao Senhor.

            E como cada momento tem a sua característica ideológica, é sumamente consolador recordar o específico do nosso tempo: o despertar mais vivo da nossa consciência social, as aplicações da nossa fé aos problemas do momento, agora mais angustiosos que nunca. Deus e Pátria; Cruz e bandeira, jamais tinham estado tão presentes como agora no espírito dos nossos jovens. A caridade de Cristo urge-nos a trabalhar com toda a alma, porque cada dia o Chile seja mais profundamente de Cristo, porque Cristo o quer, e o Chile o necessita. E nós, Cristãos, outros Cristos, demos nosso trabalho abnegado. Que desde Arica a Magallanes, a juventude católica, estimulada pela responsabilidade das luzes recebidas, seja testemunha vivente de Cristo. E o Chile, ao ver o ardor dessa caridade, reconhecerá a fé católica, a Mãe que com tantas dores gerou-o e o fez grande, e dirá ao Mestre: Ó Cristo, tu és o Filho de Deus vivo, tu és a ressurreição e a Vida!


Última mensagem aos amigos do Lar de Cristo

Carta ditada na Clínica da Universidade Católica, quatro dias antes de morrer, em agosto de 1952

 

            Ao dar a minha última saudação de Natal, gostaria de agradecer todos os amigos conhecidos e desconhecidos que, de muito longe às vezes, ajudaram esta obra de simples caridade de Evangelho, que é o Lar de Cristo.

            Ao partir, voltando para o meu Pai Deus, permito-me de confiar-lhes um último anelo: que se trabalhe por criar um clima de verdadeiro amor e respeito pelo pobre, porque o pobre é Cristo. «Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes» (Mt 25,40).

            O Lar de Cristo, fiel ao seu ideal de buscar os mais pobres e abandonados para enchê-los de amor fraterno, tem continuado com as suas Hospedarias de homens e mulheres, para que aqueles que não têm onde acorrer, encontrem uma mão amiga que os receba.

            Os meninos vagabundos, recolhidos um por um nas frias noites de inverno, encheram a capacidade do Lar. 5.000 vagabundeiam por Santiago… Se pudéssemos recolhê-los todos… e dar-lhes educação…! Para isso, um novo pavilhão está construindo-se com capacidade para 150 meninos, o qual lhes oferecerá as comodidades necessárias para um trabalho educacional sério.

            As Oficinas de carpintaria, de encanamento, de lataria, ensinam um ofício a estes filhos do Lar de Cristo. Novas oficinas, se Deus quiser, de mecânica, imprensa, encadernação, ampararão o trabalho dos atuais.

            As meninas vagabundas, ontem inexistentes, são hoje uma triste realidade. Existem 400 fichadas pelos Carabineiros. Quantas mais existem que, envolvidas na miséria e na dor, vão caindo física e moralmente! Um lar será aberto em breve para elas.

            A Casa de Educação Familiar, do Lar de Cristo, a qual está já terminada, as capacitará para os seus deveres de mãe e esposa com os seus cursos de cozinha, lavagem de roupa, costura, puericultura, etc., prestando esta mesma Casa um serviço a todo o bairro.

            Os idosos terão também o seu Lar, isto é, o afeto e o carinho que não lhes pode brindar um asilo. Para eles quereríamos que a tarde das suas vidas seja menos dura e triste. Não haverá corações generosos que nos ajudem a realizar este anelo?

            À medida que apareçam as necessidades e as dores dos pobres, que o Lar de Cristo, que é o conjunto anônimo de chilenos de coração generoso, busquem como ajudá-los como se ajudaria o Mestre.

            Ao desejar-lhes, a todos e a cada um em particular, um feliz Natal, confio-vos, em nome de Deus, aos pobrezinhos.

            Alberto Hurtado Cruchaga, s.j., Capelão.


Siglas das fontes dos textos escolhidos

DE                   Un disparo para la eternidad

CI                    Cartas e Informes del Padre Hurtado S.J.

BD                   La búsqueda de Dios


Apresentação

Breve biografia do Padre Alberto Hurtado Cruchaga, s.j.

            Nascimento e infância

            «Não podia ver a dor sem querer remediá-la»

            Discernimento vocacional

            Estudante jesuíta

            Sacerdote de Cristo

            Apóstolo entre os jovens

            O Lar de Cristo

            Apostolado social

            Últimos anos de apostolado

            Enfermidade e morte

 

Páginas escolhidas dos escritos do Pe. Alberto Hurtado, s.j.

            A quem amar?

            O Rumo da vida

            A busca de Deus

            Jesus recebe os pecadores

            O Sangue do Amor

            Visão de eternidade

            Como encher a minha vida?

            Sempre em contato com Deus

            Um testemunho

            «Vocês são a luz do mundo»

            A morte

            Uma competência em dar-se

            Abnegação e alegria

            A vocação sacerdotal, um problema de todos

            Pessimistas e otimistas

            Viver para sempre

            Há uma maneira cristã de trabalhar

            Trabalhar no ritmo de Deus

            A multiplicação dos pães

            Sacerdote do Senhor!

            O dever da Caridade

            A minha vida, pois, um disparo para a eternidade

            Adoração e serviço

            O homem de ação

            Regras para sentir com a Igreja

            Te Deum

            Comprometer-se no temporal para dar testemunho de Cristo

            Nos dias de abandono

            A minha vida é uma Missa prolongada

            A nossa imitação de Cristo

            A missão do apóstolo

            Com grande pressa…

            O êxito dos fracassos

            Tremenda responsabilidade

            A missão social do universitário

            O chamado de Cristo

            Maria, modelo de cooperação

            Sejamos cristãos, isto é, amemos os nossos irmãos

            «Já não sois vossos»

            O Corpo Místico: distribuição e uso da riqueza

            Reação cristã diante da angústia

            A Mãe de todos

            Uma espiritualidade sã

            Fundamento do amor ao próximo

            Última mensagem aos amigos do lar de Cristo

            Siglas das fontes dos textos escolhidos