Diocese de
Évora, Algarve e Beja
Actualização
do Clero 2015
Algarve, 26 a 29 de
Janeiro de 2015
Identidade e missão do presbítero no mundo actual.
O decreto Presbyterorum Ordinis, ao referir-se à unidade de vida dos
sacerdotes, cita as seguintes palavras da Primeira Carta a Timóteo: “Medita
estas coisas; ocupa-te nelas, para que o teu aproveitamento seja manifesto a
todos. Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina. Persevera nestas coisas; porque,
fazendo isto, te salvarás, tanto a ti mesmo como aos que te ouvem” (1 Tim 4, 15-16)[1].
Na vida do sacerdote, tem uma grande importância o equilíbrio entre a sua
intimidade pessoal e as suas relações, entre o cuidado com a própria vocação e
o cuidado pastoral do povo de Deus.
Assim sendo, o termo “identidade” não poderá opor-se a “missão”,
já que a missão é parte da essência ou identidade da Igreja e dos seus
ministros. Todavia, o termo “missão” tão pouco se pode compreender separado da
identidade, porque a missão não seria autêntica, se não se traduzisse numa união
firme com o Senhor, e em atitudes práticas de comunhão com os irmãos. Uma vez
superada a oposição entre identidade e missão, logo se compreende o princípio
que afirma que no próprio é exercício do
ministério que os sacerdotes se santificam, tal como ensina o documento citado: “exercendo o
ministério do Espírito e da justiça, se forem dóceis ao Espírito de Cristo que
os vivifica e guia, são robustecidos na vida espiritual”[2].
De facto, o ministério sacerdotal apresenta sempre um
sentido “para dentro”, que no texto
da Epístola a Timóteo se exprime nesse: Tem
cuidado de ti mesmo e da doutrina; e um sentido “para fora”, vertido na singela expressão: Persevera nestas coisas. Pode observar-se que se dedica quase o
dobro das palavras ao primeiro daqueles dinamismos: uma vez assegurada uma
verdadeira atitude formativa, a acção pastoral aparecerá como um transbordar do
coração. É profundamente consolador sabermo-nos os primeiros destinatários do ensinamento, os primeiros a, como
verdadeiros discípulos, termos necessidade
aprender! É esta a alma da formação permanente, que gera aquela atitude
fundamental que dá, depois, serenidade e eficácia ao ministério sacerdotal.
Partindo daquele binómio fundamental, podemos passar a
outros vocábulos que se encontram amiúde na vida sacerdotal: vida de oração e
saída para as periferias; intimidade e dom de si; maturidade e serviço
pastoral. A caridade pastoral, alma
da vida sacerdotal, acaba sempre por se traduzir tanto na intimidade como no dom de
si. Exercemos e vivemos o amor pastoral, quando nos unimos a Deus através
da oração, quando manifestamos um amor real pelo bispo, pelos irmãos no
sacerdócio, e pelos colaboradores na acção pastoral. Por outro lado, e ao mesmo
tempo, é também com autêntico amor pastoral que saímos para ir ter com os mais
pobres e os mais pequenos, pondo-nos humildemente ao seu serviço e aprendendo
gradualmente quais são as exigências do ministério sacerdotal, que fazem de
cada um de nós um símbolo do Bom Pastor para os demais, e um sinal de unidade
de todo o Povo de deus. Trata-se, assim, de um só amor, sinal e instrumento da unidade de vida dos sacerdotes.
A fim de reflectir sobre a maturidade do sacerdote no
plano da sua própria identidade pessoal, creio ser útil recorrer ao modelo da família. A Carta a Tito
propõe como critério para a escolha dos presbíteros, que sejam casados uma só vez e que administrem bem a própria casa
(Tito 1, 6), por isso que os vínculos familiares são um ponto de referência
fundamental para quem quer que deseje exercer o ministério na casa e na família
de Deus, ou seja, na comunidade cristã. Prestemos agora atenção a estas três
palavras que exprimem, em toda a sua profundidade, a nossa identidade
sacerdotal: filiação, fraternidade e
paternidade.
Na filiação
encontra-se uma das fibras mais fundas da personalidade e da identidade do
sacerdote. Todos somos filhos e foi em torno da filiação que, no seio da
própria família, se foi estabelecendo aquele particular modo em que cada um
gere a sua personalidade. Jesus aparece-nos como o Filho amado e exprime a própria filiação com rasgos de profunda
ternura e de abandono confiado nas mãos do Pai. Jesus é e permanece Filho do
Pai, e filho de Maria, convidando os seus discípulos a uma participação na sua
própria filiação paterna e materna. O título mais honroso que exibem os
discípulos de Jesus é o de filhos de Deus
(cf. 1 Jo 3, 2). Nesta Carta, o apóstolo chama os cristãos de filhinhos. Não tanto que os esteja a
tratar como crianças, mas está sim a reconhecer em toda a sua extensão o valor
da filiação.
Jesus sentia a necessidade de alimentar a sua filiação
com a oração. Uma oração gratuita, cuja finalidade era a de reforçar a sua união com o Pai. A filiação é o núcleo
da caridade pastoral. O amor que vem do Pai, e é por isso lhe damos o nome de “caridade”,
e se destina de modo específico ao pastor. Seguindo o modelo de Jesus, o
sacerdote terá de alimentar a sua filiação através de uma união gratuita com
Deus. Ao mesmo tempo, o sacerdote terá também de alimentar continuamente a sua
união com a Santíssima Trindade e exprimi-la através da oração, a ponto de não
se poder pensar a si mesmo no ministério sacerdotal sem essa união. A união do
sacerdote com o Pai é uma parte essencial da sua missão. Mas a união com Deus
traduz-se, na prática, na relação que se estabelece com as mediações da sua
presença. Concretamente, com a pessoa do bispo,
a quem ele reconhece como pai e a quem está necessariamente vinculado. Não é
possível pensar num ministério sacerdotal que rompa a união com o bispo, que é
pai, ou com a igreja particular, à
qual o sacerdote pertence como a uma mãe. Trata-se de uma união gratuita e
definitiva, que não está ordenada à eficácia pastoral, mas antes ao próprio ser
do sacerdote.
Jesus viveu a filiação como uma total confiança no Pai e como obediência ao seu plano de salvação.
Não faz o que quer, mas o que entende ser a vontade do Pai. Jesus viveu de tal
maneira convencido do valor da confiança e da obediência, que convida os seus
amigos íntimos a partilharem destas atitudes submetendo-se à vontade do Pai. O
decreto Presbyterorum Ordinis pede
aos sacerdotes que exponham confiadamente ao seu bispo as suas necessidades e
os seus projectos, mantendo-se sempre dispostos a obedecer-lhe: “Adiram ao seu Bispo com caridade e obediência sinceras. Esta obediência sacerdotal em
espírito de cooperação fundamenta-se na própria participação do ministério
episcopal conferida aos presbíteros pelo sacramento da Ordem e pela missão
canónica” [3]. A união com o próprio bispo é
claramente uma expressão da caridade pastoral.
É a partir da própria maturidade pessoal que os
sacerdotes precisam de aprender a viver o vínculo
filial com Deus e com o bispo. Não há-de ser um vínculo condicionado pelos
benefícios recebidos nem pela simpatia, mas antes um vínculo permanente, gratuito,
indiscutível, com origem numa convicção de fé e que, animado pelo Espírito,
assume a forma da caridade pastoral. O sacerdote tem a convicção de que é um
colaborador da ordem episcopal, independentemente das limitações humanas do
bispo, participando num único ministério e exercendo a responsabilidade da
missão canónica que lhe venha a ser confiada pelo bispo.
A fraternidade.
A partir da experiência da filiação, torna-se também possível a fraternidade.
Jesus, unido ao Pai, chama irmãos e
amigos aos discípulos, que são recebidos pelo Pai, e estabelece com eles verdadeiros e profundos vínculos de
fraternidade. Uma fraternidade sem filiação acaba numa falsa amizade; os
discípulos de Jesus são irmãos entre si na filiação, para chegarem a ser filhos
no Filho, respondendo assim à sua vocação fundamental. A distância em relação a
Deus, o totalmente distinto, é precisamente aquele espaço em que se torna
possível a fraternidade, superando as diferenças, que passam a ser relativas em
virtude da vocação comum de filhos.
Acontece o mesmo com os sacerdotes. A fraternidade entre os sacerdotes é vivida no contexto da filiação
e graças a ela, partilhando de uma ordenação comum e de uma comum missão, que
recebem do Senhor através do bispo. O decreto Presbyterorum Ordinis ladeia a fraternidade sacerdotal de um
adjectivo que a qualifica: íntima fraternidade sacramental [4].
Dizer íntima é dar‑lhe uma tal
profundidade, que a torna irrenunciável. De facto, a união amistosa e íntima
dos sacerdotes entre si é como que um sinal e um sacramento da unidade de toda
a igreja particular. Todavia, um irmão no sacerdócio não é algo de
incondicional. A amizade com os outros sacerdotes rege-se por aquela regra que
a Carta a Timóteo enunciava com esta breve fórmula: cuida da doutrina, persevera nela. Os que se
mantêm atentos a esta regra de vida, à Palavra e aos exemplos de Cristo, esses
chegarão a ser irmãos, ajudando-se
mutuamente, para serem sinal de transparência e dos critérios do Evangelho
na missão pastoral e diante dessa comunidade cristã a que haverão de
transmitir, também eles, a Palavra e os exemplos do Senhor.
A fraternidade sacerdotal é uma das mais claras expressões da caridade pastoral. Os
sacerdotes amam-se com aquele amor que provém de Deus, que é profundamente
gratuito e a cada um ajuda a ser o que está chamado a ser no serviço apostólico
e na obediência ao bispo. Adquirem assim toda a sua densidade as palavras que
costumamos empregar para aludir às atitudes fraternas: co-responsabilidade,
colaboração, solidariedade, ajuda mútua…
A paternidade
é um terceiro passo que se liga aos anteriores. Será pai quem continuar a ser
filho e irmão. Apraz reparar como os Padres da Igreja e alguns hinos litúrgicos
chamam a Cristo “pai”, já que o
Senhor assumiu um função verdadeiramente paterna, gerando discípulos e
mantendo-se ao seu lado como um contínuo ponto de referência para a identidade.
Por várias vezes, se refere São Paulo a esta geração espiritual; é o caso da Carta a Filemón: “Peço-te por meu filho Onésimo, que gerei nas
minhas prisões … eu to tornei a enviar. E tu torna a recebê-lo como às minhas
entranhas … para que o retenhas para sempre, não já como servo, antes, mais do
que servo, como irmão amado” (Flm 10-16). Chama a atenção que no texto, tal
como na vida familiar, as relações de paternidade e de filiação sejam
definitivas. A definitividade é a linguagem do amor.
A paternidade exige que se dê um passo à frente em
direcção ao amor oblativo. Trata-se
de uma relação de não reciprocidade e, por isso, profundamente gratuita. Sempre
os pais providenciaram grátis, por assim dizer, e fazem-no de modo definitivo,
porque nunca se deixa de ser pai. É importante que nós sacerdotes cultivemos
estes rasgos profundos da paternidade na actividade pastoral e em toda a nossa
vida sacerdotal. Do que se trata é de uma vida de entrega e não somente de uma
mera ocupação ou de um ofício.
O sacerdote estabelece com os fiéis uma ligação paterna,
por isso lhe chamam “Padre”. E é pai no Senhor. Assim, o exercício da
paternidade do pastor supõe e exige a permanência da sua vinculação filial em relação a Deus e com quantos o representam, e
também que se conserve a vinculação
fraterna em relação àqueles com quem compartilha o dom recebido e a missão
no presbitério. Ambas as vinculações são expressão do mesmo e único amor
pastoral. Dos primeiros recebe o sacerdote o envio; com os segundos compartilha
a missão.
Fiz questão de lançar mão de alguns elementos da vida
familiar, a filiação, a fraternidade e
a paternidade, porque são pontos de referência que, na sociedade actual, têm sido postos em questão. Estamos a
evangelizar num mundo em que se dá, com frequência, uma carência das relações
familiares fundantes. Rompem-se as relações com os pais, e chega a cair no
esquecimento a própria filiação. Abundam os casos de orfandade e de filhos com
sérias dúvidas acerca da própria origem. Entre irmãos, dão-se rupturas, por
entre rivalidades e lutas pelo poder. Como é também frequente ver-se rejeitar a
geração de filhos, numa sociedade que atravessa, hoje, a dura provação da
esterilidade.
A crise da família afecta
também a comunidade cristã e os sacerdotes. Na família que é a Igreja, não
é raro deparar com o esquecimento da filiação. A ligação ao Senhor por meio da
oração é relegada com frequência para segundo ou terceiro plano, e também assim
entre os sacerdotes. A ligação filial e confiante ao bispo, também não é a
atitude mais comum entre os sacerdotes. São tristemente célebres as disputas
entre sacerdotes por títulos e privilégios, com diferendos que levam a que se
rompa a fraternidade. Quantas vezes não se dá entre os ministros ordenados uma
incapacidade para serem pais, com todas as exigências que a paternidade
implica?
Queria terminar esta primeira parte fazendo referência a
algumas expressões que o Papa Francisco utilizou ao dirigir-se aos sacerdotes.
Ser povo antes de ser
sacerdote. Nós, os sacerdotes, precisamos de experimentar o gozo de se ser povo[5].
Esta expressão tem por trás toda uma teologia do Povo de Deus, que brota do
Concílio Vaticano II e vai amadurecendo através da actividade dos pastores.
Trata-se da capacidade de caminhar com todos os membros da Igreja, conhecendo
bem as suas alegrias e as suas esperanças, os seus sofrimentos e as suas
angústias. O verdadeiro pastor não se põe acima das ovelhas como se fosse de
outra classe social, fazendo-se antes um com elas, a fim de seguir o exemplo de
Cristo, que não encareceu a sua condição divina, admitindo antes rebaixar-se a
si mesmo. Quem é povo assume o risco de experimentar o sofrimento redentor do
Bom Pastor. Esta configuração sacerdotal exige a configuração com o Servo e
Pastor. Será que nós sacerdotes experimentamos o gozo de se ser povo, de
caminhar com o povo, de sentir com a Igreja, Povo de Deus? Ou, em vez disso,
pomo-nos imediata e automaticamente num podium
de superioridade, deixando à distância o Povo de Deus?
Ser homem de fé. Antes de falar da
espiritualidade sacerdotal, é necessário que nós, os sacerdotes, tenhamos uma
sã personalidade cristã. É como pessoas de fé que nos apresentamos diante da
comunidade, e é nesta qualidade que somos enviados a essa mesma comunidade.
Quando tomamos posse de uma paróquia, pede-se-nos que façamos publicamente
profissão de fé, pois é este um requisito fundamental para se ser pastor do
povo de Deus. Somos enviados a anunciar o Senhor, para alimentar e confirmar a
fé dos féis. Este aspecto, que é próprio de quem crê, exige, não apenas uma ortodoxia, mas também uma ortopraxis, quer dizer, um comportamento
que seja manifestação autêntica e estável da própria fé. Como falte este
sentido de fé, logo subentram as figuras cinzentas do burocrata e do
carreirista, tão frontalmente denunciadas pelo Papa Francisco. Algo de
semelhante acontece também nos ambientes sacerdotais. Quando os sacerdotes
estão dotados de uma clara consistência vocacional, as suas conversas e os seus
juízos passam a ser reflexo dos valores sacerdotais, mas quando isso não
acontece, cria-se um ambiente sacerdotal opaco e mundano, profundamente
contrário à dinâmica da fé e à entrega apostólica.
Capaz de discernimento
espiritual. O sacerdote é homem de oração, que fala pessoalmente com Deus, que
conhece o Evangelho e contempla o rosto de Cristo. A consequência é deixar-se
guiar pelo Espírito Santo, para assim tomar as decisões mais adequadas, não
apenas para si mesmo, mas em prol do bem da comunidade. A este comportamento,
guiado pelo sentido da fé e pela participação comunitária, chama-se discernimento espiritual. O verdadeiro
pastor não é um funcionário ou um empregado; ele é um representante do Senhor
da messe. Ora, o discernimento espiritual não é coisa que se improvise. É algo
que se consegue através de um contínuo exercício, orante e comunitário. Como
também não pode ser realizado friamente, já que deverá tocar em profundidade a
pessoa que discerne, transformando-a em testemunha e modelo para toda a
comunidade.
Presbítero em “saída”. O Papa Francisco gosta de
descrever a Igreja como uma mãe de coração aberto[6],
sempre disposta a acolher a todos, especialmente os que sofrem, os que se
afastaram ou os mais pobres, tanto em sentido material como espiritual. É em
todos estes que ela pensa em primeiro lugar, porque Jesus não foi enviado para
os sãos, mas veio como médico para os que estão enfermos e necessitados (cf. Mt
11, 17). O sacerdote ensina à comunidade este caminho de “saída” a partir do
próprio exemplo de vida, e a todos convida a participarem do dinamismo
espiritual que serve de fundamento a este “sair”.
Ficam,
assim, esboçados, alguns traços do rosto sacerdotal de que necessitamos hoje:
um homem de fé, que tem alegria em ser povo, que é capaz de discernimento
espiritual, e que se dispõe a sair.
X Jorge Carlos Patrón Wong
Arzobispo-Obispo emérito de Papantla
Secretario para los
Seminarios
[1] Conc. Ecum. Vaticano II, decreto Presbyterorum Ordinis,
n. 13.
[2] Conc. Ecum. Vaticano II, decreto Presbyterorum Ordinis,
n. 12.
[3] Conc. Ecum. Vaticano II, Decreto Presbyterorum
Ordinis, n. 7.
[4] Conc. Ecum. Vaticano II,
decreto Presbyterorum Ordinis, n.
8.
[5] Francisco, Exortação Apostólica Evangelii gaudium, nn. 268-274.
[6] Francisco, Exortação Apostólica Evangelii gaudium, nn. 46-49.