Bento XVI Homilias 25307


Quinta-feira, 29 de Março de 2007: NA CELEBRAÇÃO DO SACRAMENTO DA PENITÊNCIA EM PREPARAÇÃO PARA A XXII JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE

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Queridos amigos!

Encontramo-nos esta tarde, nas proximidades da XXII Jornada Mundial da Juventude, que tem por tema, como sabeis, o mandamento novo que nos foi deixado por Jesus na noite em que foi traído: "Assim como Eu vos amei, vós também vos deveis amar uns aos outros" (
Jn 13,34).

Saúdo cordialmente todos vós que viestes das várias paróquias de Roma. Saúdo o Cardeal Vigário, os Bispos Auxiliares, os sacerdotes presentes, dirigindo um pensamento especial aos confessores que daqui a pouco estarão à vossa disposição. O encontro de hoje, como já antecipou a vossa porta-voz, à qual agradeço as palavras que me dirigiu em vosso nome no início da celebração, assume um profundo e alto significado. De facto, é um encontro à volta da Cruz, uma celebração da misericórdia de Deus que cada um de vós poderá experimentar no Sacramento da confissão.

No coração de cada homem, mendigo de amor, há sede de amor. O meu amado Predecessor, o Servo de Deus João Paulo II, escreveu já na sua primeira Encíclica Redemptor hominis: "O homem não pode viver sem amor. Ele permanece por si próprio um ser incompreensível, a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se não o experimenta e não o faz próprio, se não participa dele plenamente" (n. RH 10). Ainda mais, o cristão não pode viver sem amor. Aliás, se não encontra o amor verdadeiro nem sequer se pode considerar plenamente cristão, porque, como revelei na Encíclica Deus caritas est, "no início do ser cristão não está uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e com isso a orientação decisiva" (n. ). O amor de Deus por nós, que iniciou com a criação, fez-se visível no mistério da Cruz, naquela kenose de Deus, naquele esvaziamento e humilhante abaixamento do Filho de Deus que ouvimos proclamar pelo apóstolo Paulo na primeira Leitura, no magnífico hino a Cristo da Carta aos Filipenses. Sim, a Cruz revela a plenitude do amor de Deus por nós. Um amor crucificado, que não se detém no escândalo da Sexta-Feira Santa, mas culmina na alegria da Ressurreição e Ascensão ao céu e no dom do Espírito Santo, Espírito do amor por meio do qual, também esta tarde, serão perdoados os pecados e concedidos o perdão e a paz.

O amor de Deus pelo homem, que se expressa em plenitude na Cruz, é descritível com a palavra agape, ou seja, "amor oblativo que procura exclusivamente o bem do próximo", mas também com a palavra eros. De facto, enquanto é amor que oferece ao homem tudo o que Deus é, como fiz notar na Mensagem para esta Quaresma, é também um amor no qual o "próprio coração de Deus, o Omnipotente, aguarda o "sim" das suas criaturas como um jovem esposo o da sua esposa".

Infelizmente "desde as suas origens a humanidade, seduzida pelas mentiras do Maligno, fechou-se ao amor de Deus, na ilusão de uma impossível auto-suficiência (cf. Gn 3,1-7)" (Ibid.). Mas no sacrifício da Cruz Deus continua a repropor o seu amor, a sua paixão pelo homem, aquela força que, como se expressa o Pseudo-Dionísio, "não permite que o amante permaneça em si mesmo, mas estimula-o a unir-se ao amado" (De divinis nominibus, IV, 13; PG 3, 712), chegando a "mendigar" o amor da sua criatura. Esta tarde, ao aproximar-vos do Sacramento da confissão, podereis fazer a experiência do "dom gratuito que Deus nos faz da sua vida, infundida na nossa alma pelo Espírito Santo para a curar do pecado e a santificar" (CIC 1999) a fim de que, unidos a Cristo, nos tornemos novas criaturas (cf. 2Co 5,17-18).

Queridos jovens da Diocese de Roma, com o Baptismo vós já nascestes para a vida nova em virtude da graça de Deus. Mas, dado que esta vida nova não suprimiu a debilidade da natureza humana, nem a inclinação para o pecado, é-nos dada a oportunidade de nos aproximar-mos do Sacramento da confissão. Todas as vezes que o fizerdes com fé e devoção, o amor e a misericórdia de Deus movem o vosso coração, depois de um atento exame de consciência, para o ministro de Cristo. A ele, e assim ao próprio Cristo, exprimis a dor pelos pecados cometidos, com o firme propósito de não voltar a pecar no futuro e com a disponibilidade para aceitar com alegria os actos de penitência que ele vos indica para reparar o dano causado pelo pecado. Experimentar assim o "perdão dos pecados; a reconciliação com a Igreja, a recuperação, se foi perdida, do estado de graça; a remissão da pena eterna merecida por causa dos pecados mortais e, pelo menos em parte, das penas temporais que são consequência do pecado; a paz e a serenidade da consciência, e a consolação do espírito; o aumento das forças espirituais para o combate cristão de cada dia" (Compêndio do Catecismo da Igreja Católica 310). Com o lavacro penitencial deste Sacramento, somos readmitidos à plena comunhão com Deus e com a Igreja, companhia fiável porque é "sacramento universal de salvação" (Lumen gentium LG 48).

Na segunda parte do mandamento novo o Senhor diz: "vós também vos deveis amar uns aos outros" (Jn 13,34). Certamente Ele espera que nos deixemos atrair pelo seu amor e que experimentemos toda a sua grandeza e beleza, mas não é suficiente! Cristo atrai-nos a si para se unir com cada um de nós, para que, por nossa vez, aprendamos a amar os irmãos com o seu próprio amor, como Ele nos amou. Hoje, como sempre, há tanta necessidade de uma renovada capacidade de amar os irmãos. Saindo desta celebração, com os corações replectos da experiência do amor de Deus, estai preparados para "ousar" o amor nas vossas famílias, nos relacionamentos com os vossos amigos e também com quem vos ofendeu. Estai preparados para incidir com um testemunho autenticamente cristão nos ambientes de estudo e de trabalho, para vos comprometer nas comunidades paroquiais, nos grupos, nos movimentos, nas associações e em todos os âmbitos da sociedade.

Vós, jovens noivos, vivei o noivado no amor verdadeiro, que requer sempre o respeito recíproco, casto e responsável. Se o Senhor chama alguns de vós, queridos jovens amigos de Roma, a uma vida de especial consagração estai prontos para responder com um "sim" generoso e sem sujeições. Doando-vos a Deus e ao irmãos, experimentareis a alegria de quem não se fecha em si mesmo num egoísmo com frequência asfixiante. Mas tudo isto, certamente, tem um preço, aquele preço que Cristo pagou primeiro e que todos os seus discípulos, mesmo se de modo muito inferior em relação ao Mestre, também devem pagar: o preço do sacrifício e da abnegação, da fidelidade e da perseverança sem os quais não há nem pode haver verdadeiro amor, plenamente livre e fonte de alegria.

Queridos jovens, o mundo espera este vosso contributo para a edificação da "civilização do amor". "O horizonte do amor é verdadeiramente infinito: é o mundo inteiro!" (Mensagem para a XXII Jornada Mundial da Juventude). Os sacerdotes que vos seguem e os vossos educadores têm a certeza de que, com a graça de Deus e com o socorro constante da sua divina misericórdia, conseguireis ser competentes na difícil tarefa para a qual o Senhor vos chama. Não desanimeis e tende sempre confiança em Cristo e na sua Igreja! O Papa está convosco e garante-vos uma recordação quotidiana na oração, confiando-vos particularmente à Virgem Maria, Mãe de misericórdia, para que vos acompanhe e vos ampare sempre. Amém!




Domingo, 1 de Abril de 2007: CELEBRAÇÃO DO DOMINGO DE RAMOSE DA PAIXÃO DO SENHOR

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Praça de São Pedro

XXII Jornada Mundial da Juventude





Queridos irmãos e irmãs!

Na procissão do Domingo de Ramos associamo-nos à multidão dos discípulos que, em festa jubilosa, acompanham o Senhor na sua entrada em Jerusalém. Como eles louvamos o Senhor em coro por todos os prodígios que vimos. Sim, também nós vimos e ainda vemos os prodígios de Cristo: como Ele leva homens e mulheres a renunciar aos confortos da própria vida e a colocar-se totalmente ao serviço dos que sofrem; como Ele dá coragem a homens e mulheres de se oporem à violência e à mentira, para dar lugar no mundo à verdade; como Ele, no segredo, induz homens e mulheres a fazer o bem ao próximo, a suscitar a reconciliação onde havia o ódio, a criar a paz onde reinava a inimizade.

A procissão é antes de tudo um testemunho jubiloso que prestamos a Jesus Cristo, no qual se tornou visível para nós o Rosto de Deus e graças ao qual o coração de Deus está aberto a todos nós. No Evangelho de Lucas a narração do início do cortejo nas proximidades de Jerusalém é composta em parte literalmente segundo o modelo do rito da coroação com o qual, segundo o Primeiro Livro dos Reis, Salomão foi revestido como herdeiro da realeza de David (cf.
1R 1,33-35). Assim a procissão dos Ramos é também uma procissão de Cristo Rei: nós professamos a realeza de Jesus Cristo, reconhecemos Jesus como o Filho de David, o verdadeiro Salomão o Rei da paz e da justiça. Reconhecê-l'O como Rei significa: aceitá-l'O como Aquele que nos indica o caminho, no qual temos confiança e que seguimos. Significa aceitar dia após dia a sua palavra como critério válido para a nossa vida. Significa ver n'Ele a autoridade à qual nos submetemos. Submetemo-nos a Ele, porque a sua autoridade é a autoridade da verdade.

A procissão dos Ramos é como aquela vez para os discípulos antes de tudo expressão de alegria, porque podemos conhecer Jesus, porque Ele nos concede ser seus amigos e porque nos deu a chave da vida. Esta alegria, que está no início, é contudo também expressão do nosso "sim" a Jesus e da nossa disponibilidade a ir com Ele aonde quer que nos leve. A exortação que estava hoje no início da nossa liturgia interpreta portanto justamente a procissão também como representação simbólica do que chamamos "seguimento de Cristo": "Pedimos a graça de o seguir", dissemos. A expressão "seguimento de Cristo" é uma descrição de toda a existência cristã em geral. Em que consiste? O que significa concretamente "seguir Cristo?".

No início, com os primeiros discípulos, o sentido era muito simples e imediato: significava que estas pessoas tinham decidido abandonar a sua profissão, os seus negócios, toda a sua vida para andar com Jesus. Significava empreender uma nova profissão: a de discípulos. O conteúdo fundamental desta profissão era andar com o mestre, confiar-se totalmente à sua guia. Assim, o seguimento era uma coisa exterior e, ao mesmo tempo, muito interior. O aspecto exterior era o caminhar atrás de Jesus nas suas peregrinações através da Palestina; o interior era a nova orientação da existência, que já não tinha o seu ponto de referência nos negócios, na profissão que dava de que viver, na vontade pessoal, mas que se abandonava totalmente à vontade do Outro. Estar à sua disposição já se tinha tornado a razão de vida. A que renúncia do que era próprio isto obrigasse, que dissuasão de si mesmos, podemos reconhecê-lo de modo bastante claro em algumas cenas dos Evangelhos.

Mas evidencia-se com isto o que significa para nós o seguimento e qual é a sua verdadeira essência para nós: trata-se de uma mudança interior da existência. Exige que eu deixe de me fechar no meu eu, considerando a minha auto-realização a razão principal da minha vida. Exige que eu me dedique livremente a Outro pela verdade, pelo amor, por Deus que, em Jesus Cristo, me precede e me indica o caminho. Trata-se da decisão fundamental de não considerar a utilidade e o lucro, a carreira e o sucesso como finalidade última da minha vida, mas de reconhecer ao contrário como critérios autênticos a verdade e o amor. Trata-se de escolher entre viver só para mim mesmo ou doar-me pela coisa maior. E consideremos bem que verdade e amor não são valores abstractos; em Jesus Cristo eles tornaram-se pessoa. Ao segui-l'O entro ao serviço da verdade e do amor. Perdendo-me reencontro-me.

Voltemos à liturgia e à procissão dos Ramos. Nela a liturgia prevê como canto o Salmo 24 [23], que era também em Israel um canto processional usado para a subida ao monte do templo. O Salmo interpreta a subida interior da qual a subida exterior é imagem e nos explica assim mais uma vez o que significa subir com Cristo. "Quem subirá o monte do Senhor?", pergunta o Salmo, e indica duas condições fundamentais. Os que sobem e desejam chegar deveras ao cimo, chegar à altura verdadeira, devem ser pessoas que se interrogam sobre Deus. Pessoas que perscrutam à sua volta para procurar Deus, para procurar o seu rosto. Queridos jovens amigos como é importante hoje precisamente isto: não se deixar simplesmente levar aqui e ali na vida; não se contentar com o que todos pensam, dizem e fazem. Perscrutar Deus e procurar Deus. Não deixar que a pergunta sobre Deus se dissolva nas nossas almas. O desejo do que é maior. O desejo de O conhecer conhecer o seu Rosto...

A outra condição muito concreta para a subida é esta: pode estar no lugar santo "quem tem mãos inocentes e coração puro". Mãos inocentes mãos que não são usadas para actos de violência. São mãos que não estão sujas pela corrupção, com subornos. Coração puro quando é puro um coração? É puro um coração que não finge e não se mancha com mentiras nem hipocrisia. Um coração que permanece transparente como água nascente, porque não conhece a falsidade. É puro um coração que não se aliena com o inebriamento do prazer; um coração cujo amor é verdadeiro e não apenas paixão de um momento. Mãos inocentes e coração puro: se nós caminhamos com Jesus, subimos e encontramos as purificações que nos conduzirão verdadeiramente àquela altura para a qual o homem é destinado: a amizade com o próprio Deus.

O Salmo 24 [23] que fala da subida que termina com a liturgia de entrada diante do pórtico do templo: "Levantai, ó portas, os vossos frontais, levantai-vos, portas antigas, e entre o rei da glória".

Na antiga liturgia do Domingo de Ramos o sacerdote, ao chegar diante da igreja, batia com força com a haste da cruz da procissão na porta ainda fechada, que após este bater se abria. Era uma bonita imagem para o mistério do próprio Jesus Cristo que, com o madeiro da cruz, com a força do seu amor que se doa, bateu do lado do mundo à porta de Deus; do lado de um mundo que não conseguia encontrar o acesso para Deus. Com a Cruz Jesus abriu de par em par a porta de Deus, a porta entre Deus e os homens. Agora ela está aberta. Mas também do outro lado o Senhor bate com a sua cruz: bate às portas do mundo, às portas dos nossos corações, que assim com frequência e em tão grande número estão fechadas para Deus. E fala-nos mais ou menos assim: se as provas que Deus na criação te dá da sua existência não conseguem fazer com que te abras a Ele; se a palavra da Escritura e a mensagem da Igreja te deixam indiferente então olha para mim, para o Deus que por ti se fez sofredor, que pessoalmente sofre contigo vê que eu sofro por amor a ti e abre-te a mim, teu Senhor e teu Deus.

Eis o apelo que neste momento deixamos penetrar no nosso coração. O Senhor nos ajude a abrir a porta do coração, a porta do mundo, para que Ele, o Deus vivente, possa no seu Filho entrar neste nosso tempo, alcançar a nossa vida. Amém.




Segunda-feira, 2 de Abril de 2007: CONCELEBRAÇÃO EM SUFRÁGIO PELO SEU PREDECESSOR JOÃO PAULO II NO SEGUNDO ANIVERSÁRIO DA MORTE

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Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Estimados irmãos e irmãs!

Há dois anos, um pouco depois desta hora, partia deste mundo para a casa do Pai o amado Papa João Paulo II. Com a presente celebração queremos antes de tudo renovar a Deus a nossa acção de graças por no-lo ter concedido por 27 anos como pai e guia segura na fé, zeloso pastor e corajoso profeta de esperança, testemunha incansável e apaixonado servidor do amor de Deus. Ao mesmo tempo, oferecemos o Sacrifício eucarístico em sufrágio da sua alma eleita, na recordação indelével da grande devoção com que ele celebrava os santos Mistérios e adorava o Sacramento do altar, centro da sua vida e da sua incansável missão apostólica.

Desejo expressar o meu reconhecimento a todos vós, que quisestes participar nesta Santa Missa. Dirijo uma saudação particular ao Cardeal Stanislaw Dziwisz, Arcebispo de Cracóvia, imaginando os sentimentos que se juntam neste momento no seu coração. Saúdo os outros Cardeais, os Bispos, os sacerdotes, os religiosos e as religiosas presentes; os peregrinos que vieram propositadamente da Polónia; os numerosos jovens que o Papa João Paulo II amava com singular paixão, e os numerosos fiéis que de todas as partes da Itália e do mundo marcaram encontro hoje aqui, na Praça de São Pedro.

O segundo aniversário do piedoso falecimento deste amado Pontífice celebra-se num contexto muito propício para o recolhimento e para a oração: de facto, entrámos ontem, com o Domingo de Ramos, na Semana Santa, e a Liturgia faz-nos reviver os últimos dias da vida terrena do Senhor Jesus. Hoje leva-nos a Betânia, onde, precisamente "seis dias antes da Páscoa" como escreve o evangelista João Lázaro, Marta e Maria ofereceram uma ceia ao Mestre. A narração evangélica confere um clima pascal intenso para a nossa meditação: a ceia de Betânia é prelúdio para a morte de Jesus, no sinal da unção que Maria fez em homenagem ao Mestre e que Ele aceitou em previsão da sua sepultura (cf.
Jn 12,7). Mas é também anúncio da ressurreição, mediante a própria presença do redivivo Lázaro, testemunho eloquente do poder de Cristo sobre a morte. Além da plenitude do significado pascal, a narração da ceia de Betânia tem em si uma ressonância pungente, repleta de afecto e devoção; um misto de alegria e de sofrimento: alegria jubilosa pela visita de Jesus e dos seus discípulos, pela ressurreição de Lázaro, pela Páscoa já próxima; profunda amargura porque aquela Páscoa podia ser a última, como faziam temer as conspirações dos Judeus que desejavam a morte de Jesus e as ameaças contra o próprio Lázaro do qual se projectava a eliminação.

Há um gesto, nesta perícope evangélica, para o qual é chamada a nossa atenção, e que ainda hoje fala de modo singular aos nossos corações: Maria de Betânia a um certo ponto, "tomando uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço, ungiu os pés de Jesus" (Jn 12,3). Trata-se de um daqueles pormenores da vida de Jesus que São João recolheu na memória do seu coração e que contém uma inexaurível carga expressiva. Ele fala do amor a Cristo, um amor superabundante, magnânimo, como aquele perfume "muito precioso" derramado sobre os seus pés. Um acontecimento que escandalizou sintomaticamente Judas Iscariotes: a lógica do amor confronta-se com a do proveito.

Para nós, reunidos em oração na recordação do meu venerado Predecessor, o gesto da unção de Maria de Betânia é rico de ecos e de sugestões espirituais. Evoca o testemunho luminoso que João Paulo II ofereceu de um amor a Cristo sem reservas e sem se poupar. O "perfume" do seu amor "encheu toda a casa" (cf. Jn 12,3), isto é, toda a Igreja. Sem dúvida, quem beneficiou dele fomos nós que lhe estivemos próximos, e por isto agradecemos a Deus, mas dele puderam gozar também todos os que o conheceram de longe, porque o amor do Papa Wojtyla por Cristo superabundou, poderíamos dizer, em todas as regiões do mundo, porque era muito forte e intenso. A estima, o respeito e o afecto que crentes e não-crentes lhe manifestaram por ocasião da sua morte não é porventura um testemunho eloquente? Escreve Santo Agostinho, comentando este trecho do Evangelho de João: "A casa encheu-se de perfume; isto é, o mundo encheu-se da boa fama. O perfume agradável é a boa fama... O nome do Senhor é louvado por merecimento dos bons cristãos" (In Io. evang. tr. 50, 7). É verdade: o intenso e frutuoso ministério pastoral, e ainda mais o calvário da agonia e a morte serena do nosso amado Papa, fizeram conhecer aos homens do nosso tempo que Jesus Cristo era verdadeiramente o seu "tudo".

A fecundidade deste testemunho, nós sabemo-lo, depende da Cruz. Na vida de Karol Wojtyla a palavra "cruz" não foi apenas uma palavra. Desde a infância e a juventude ele conheceu o sofrimento e a morte. Como sacerdote e como Bispo, e sobretudo como Sumo Pontífice, levou muito seriamente a chamada de Cristo ressuscitado a Simão Pedro, nas margens do lago da Galileia: "Segue-Me... Tu, segue-Me" (Jn 21,19 Jn 21,22). Especialmente com o lento, mas implacável, progredir da doença, que pouco a pouco o despojou de tudo, a sua existência fez-se totalmente uma oferenda a Cristo, anúncio vivente da sua paixão, na esperança repleta de fé da ressurreição.

O seu pontificado desenvolveu-se no sinal da "prodigalidade", do despender-se generoso sem hesitações. O que o movia a não ser o amor místico por Cristo, por Aquele que, a 16 de Outubro de 1978, o fizera chamar, com as palavras do cerimonial: "Magister adest et vocat te O Mestre está aqui e chama-te"? A 2 de Abril de 2005, o Mestre voltou, desta vez sem intermediários, para o chamar e levar para casa,paraacasa do Pai. E ele, mais uma vez, respondeu imediatamente com o seu coração intrépido, e murmurou: "Deixai-me ir com o Senhor" (cf. S. Dziwisz, Una vita con Karol, p. 223).

Desde há muito tempo ele preparava-se para este encontro com Jesus, como documentam as diversas redacções do seu testamento. Durante as longas pausas na Capela particular falava com Ele, abandonando-se totalmente à sua vontade, e confiava-se a Maria, repetindo o Totus tuus.

Como o seu divino Mestre, ele viveu a sua agonia em oração. Durante o último dia de vida, vigília do Domingo da Divina Misericórdia, pediu que lhe fosse lido precisamente o Evangelho de João. Com a ajuda das pessoas que o assistiam, quis participar em todas as orações quotidianas e na Liturgia das Horas, fazer a adoração e a meditação. Morreu rezando. Verdadeiramente, adormeceu no Senhor.

"...E a casa encheu-se com o cheiro do perfume" (Jn 12,3). Voltemos a esta anotação, tão sugestiva, do evangelista João. O perfume da fé, da esperança e da caridade do Papa encheu a sua casa, encheu a Praça de São Pedro, encheu a Igreja e propagou-se no mundo inteiro. O que aconteceu depois da sua morte foi, para quem crê, efeito daquele "perfume" que alcançou todos, próximos e distantes, e os atraiu para um homem que Deus tinha progressivamente conformado com o seu Cristo. Por isso podemos dedicar-lhe as palavras do primeiro Poema do Servo do Senhor, que ouvimos na primeira Leitura: "Eis o Meu servo que eu amparo / o meu eleito, no qual a Minha alma se deleita; / fiz repousar sobre ele o meu espírito, para que leve às nações a verdadeira justiça..." (Is 42,1). "Servo de Deus": ele o foi e assim o chamamos agora na Igreja, enquanto progride rapidamente o seu processo de beatificação, do qual foi encerrada precisamente esta manhã o inquérito diocesano sobre a vida, as virtudes e a fama de santidade. "Servo de Deus": um título particularmente apropriado para ele. O Senhor chamou-o ao seu serviço pelo caminho do sacerdócio e abriu-lhe pouco a pouco horizontes cada vez mais amplos: da sua Diocese até à Igreja universal. Esta dimensão de universalidade chegou à máxima expansão no momento da sua morte, acontecimento que o mundo inteiro viveu com uma participação jamais vista na história.

Queridos irmãos e irmãs, o Salmo responsorial colocou nos nossos lábios palavras repletas de confiança. Na comunhão dos santos, temos a impressão de ouvir da viva voz do amado João Paulo II, que da casa do Pai disto temos a certeza não deixa de acompanhar o caminho da Igreja: "Espera no Senhor; sê forte e corajoso no teu coração. Espera no Senhor" (Ps 26,14). Sim, que o nosso coração se fortaleça, queridos irmãos e irmãs, e arda de esperança! Com este convite no coração prossigamos a Celebração eucarística, olhando já para a luz da ressurreição de Cristo, que resplandecerá na Vigília pascal depois da dramática escuridão da Sexta-Feira Santa. O Totus tuus do amado Pontífice nos estimule a segui-lo pelo caminho da doação de nós próprios a Cristo por intercessão de Maria, e no-la obtenha precisamente Ela, a Virgem Maria, enquanto confiamos nas suas mãos maternas este nosso pai, irmão e amigo para que em Deus repouse e rejubile na paz.

Amém.





Quinta-feira Santa 5 de Abril de 2007: SANTA MISSA CRISMAL

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Basílica Vaticana




Queridos irmãos e irmãs!

O escritor russo Leon Tolstoi descreve numa pequena narração acerca de um soberano que pediu aos seus sacerdotes e sábios que lhe mostrassem Deus para que o pudesse ver. Os sábios não foram capazes de satisfazer este desejo. Então um pastor, que estava precisamente a regressar do campo, ofereceu-se para assumir a tarefa dos sacerdotes e dos sábios. O rei aprendeu dele que os seus olhos não eram suficientes para ver Deus. Mas então ele quis pelo menos saber o que fazia Deus. "Para poder responder a esta sua pergunta disse o pastor ao soberano devemos trocar a roupa". Com hesitação, mas estimulado pela curiosidade pela informação esperada, o soberano anuiu; entregou a sua roupa real ao pastor e fez-se vestir com o hábito simples do homem pobre. E eis que chega a resposta: "É isto que Deus faz". De facto, o Filho de Deus Deus verdadeiro de Deus verdadeiro deixou o seu esplendor divino: "...despojou-se de si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens; aparecendo com a forma humana, humilhou-se a si mesmo... até à morte de cruz" (cf.
Ph 2,6 ss.). Deus realizou como dizem os Padres o sacrum commercium, o intercâmbio sagrado: assumiu o que era nosso, para que pudéssemos receber o que era seu, tornar-nos semelhantes a Deus.

São Paulo, para o que aconteceu no Baptismo, usa explicitamente a imagem da veste: "todos os que fostes baptizados em Cristo, vos revestistes de Cristo" (Ga 3,27). Eis quanto se cumpre no Baptismo: nós revestimo-nos de Cristo, Ele doa-nos as suas vestes e elas não são algo externo.

Significa que entramos numa comunhão existencial com Ele, que o seu e o nosso ser confluem, se compenetram reciprocamente. "Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim" assim descreve Paulo na Carta aos Gálatas (Ga 2,2) o acontecimento do seu baptismo. Cristo vestiu as nossas vestes: o sofrimento e a alegria de ser homem, a fome, a sede, o cansaço, as esperanças e as desilusões, o receio da morte, todas as nossas angústias até à morte. E deu-nos as suas "vestes".

O que na Carta aos Gálatas expõe como simples "facto" do baptismo o dom do novo ser Paulo no-lo apresenta na Carta aos Efésios como uma tarefa permanente: deveis "despojar-vos do homem velho, no que diz respeito ao vosso passado... [Deveis] revestir-vos do homem novo, criado em conformidade com Deus na justiça e na santidade verdadeiras. Por isso, posta de parte a mentira, cada qual diga a verdade ao seu próximo pois nós somos membros uns dos outros. Se vos irardes não pequeis..." (Ep 4,22-26).

Esta teologia do Baptismo volta de maneira nova e com insistência nova na Ordenação sacerdotal. Como no Baptismo é doado um "intercâmbio de vestes", um intercâmbio do destino, uma nova comunhão existencial com Cristo, assim também no sacerdócio se tem um intercâmbio: na administração dos Sacramentos, o sacerdote age e fala agora "in persona Christi". Nos sagrados mistérios ele não se representa a si mesmo e não fala expressando-se a si mesmo, mas fala pelo Outro por Cristo. Assim nos Sacramentos torna-se visível de modo dramático o que significa em geral ser sacerdote; o que expressamos com o nosso "Adsum estou pronto", durante a consagração sacerdotal: eu estou aqui para que possas dispor de mim. Pomo-nos à disposição d'Aquele que "morreu por todos, para que, os que vivem, não vivam mais para si mesmos... (2Co 5,15). Por-nos à disposição de Cristo significa que nos deixamos atrair para dentro do seu "por todos": estando com Ele podemos ser verdadeiramente "para todos".

In persona Christi no momento da Ordenação sacerdotal, a Igreja tornou-nos visível e alcançável esta realidade das "vestes novas" também externamente mediante o facto de termos sido revestidos com os paramentos litúrgicos. Neste gesto exterior ela deseja tornar-nos evidente o acontecimento interior e a tarefa que nos vem dele: revestir-nos de Cristo, entregar-nos a Ele como Ele se doou a nós. Este evento, o "revestir-se de Cristo", é representado sempre de novo em cada Santa Missa mediante o revestir-nos dos paramentos litúrgicos. Vesti-los deve significar para nós mais que um facto exterior: é entrar sempre de novo no "sim" do nosso encargo naquele "já não sou eu" do baptismo que a Ordenação sacerdotal nos dá de modo novo e ao mesmo tempo nos pede. O facto de estarmos no altar, vestidos com os paramentos litúrgicos, deve tornar claramente visível aos presentes e a nós próprios que estamos ali "na pessoa do Outro". As vestes sacerdotais, assim como se desenvolveram ao longo do tempo, são uma profunda expressão simbólica do que significa o sacerdócio. Portanto, queridos irmãos, gostaria de explicar nesta Quinta-Feira Santa a essência do ministério sacerdotal interpretando os paramentos litúrgicos que, precisamente, por seu lado pretendem ilustrar o que significa "revestir-se de Cristo", falar e agir in persona Christi.

Revestir-se com as vestes sacerdotais outrora acompanhava-se com as orações que nos ajudam a compreender melhor cada um dos elementos do ministério sacerdotal. Começamos com o amicto.

No passado e nas ordens monásticas ainda hoje ele era colocado primeiro sobre a cabeça, como uma espécie de capucho, tornando-se assim um símbolo da disciplina dos sentidos e do pensamento necessário para uma justa celebração da Santa Missa. Os pensamentos não devem vaguear aqui e ali por detrás das preocupações e das expectativas da vida quotidiana; os sentidos não devem ser atraídos pelo que ali, no interior da Igreja, casualmente os olhos e os ouvidos gostariam de captar. O meu coração deve abrir-se docilmente à palavra de Deus e estar recolhido na oração da Igreja, para que o meu pensamento receba a sua orientação das palavras do anúncio e da oração. E o olhar do meu coração deve estar dirigido para o Senhor que está no meio de nós: eis o que significa ars celebrandi o justo modo de celebrar. Se eu estou com o Senhor, então com o meu ouvir, falar e agir atraio também o povo dentro da comunhão com Ele.

Os textos da oração que a alva e a estola interpretam estão ambas na mesma direcção. Evocam a veste dominical que o pai ofereceu ao filho pródigo quando regressou a casa esfarrapado e sujo.

Quando nos aproximamos da liturgia para agir na pessoa de Cristo todos nos apercebemos de quanto estamos longe d'Ele; quanta sujeira existe na nossa vida. Só Ele nos pode dar a veste dominical, tornar-nos dignos de presidir à sua mesa, de estar ao seu serviço. Assim, as orações recordam também as palavras do Apocalipse segundo as quais as vestes dos 144.000 eleitos não eram dignas de Deus por seu mérito. O Apocalipse comenta que eles tinham lavado as suas vestes no sangue do Cordeiro e que deste modo elas estavam brancas como a luz (cf. Ap 7,14). Já quando era pequeno, perguntei: mas quando se lava uma coisa no sangue, certamente não fica branca! A resposta é: o "sangue do Cordeiro" é o amor de Cristo crucificado. É este amor que torna brancas as nossas vestes sujas; que torna fidedigno e iluminado o nosso espírito obscurecido; que apesar de todas as nossas trevas, nos transforma a nós próprios em "luz no Senhor". Ao vestir a alva deveríamos recordar-nos: Ele sofreu também por mim. E só porque o seu amor é maior do que todos os meus pecados, posso representá-lo e ser testemunha da sua luz.

Mas com a veste de luz que o Senhor nos doou no Baptismo e, de modo novo, na Ordenação sacerdotal, podemos pensar também na veste nupcial, da qual Ele nos fala na parábola do banquete de Deus. Nas homilias de São Gregório Magno encontrei a este propósito uma reflexão digna de realce. Gregório distingue entre a versão de Lucas da parábola e a de Mateus. Ele está convicto de que a parábola de Lucas fala do banquete nupcial escatológico, enquanto segundo ele a versão transmitida por Mateus trataria a antecipação deste banquete nupcial na liturgia e na vida da Igreja. Em Mateus e só em Mateus de facto o rei vai à sala apinhada para ver os seus hóspedes. E eis que nesta multidão encontra também um hóspede sem hábito nupcial, que depois é posto fora, nas trevas. Então Gregório pergunta: "Mas que espécie de hábito era o que ele não tinha?

Todos os que estão reunidos na Igreja receberam o hábito novo do baptismo e da fé; caso contrário não estariam na Igreja. Portanto, o que falta ainda? Que hábito nupcial deve ainda ser acrescentado?". O Papa responde: "A veste do amor". E infelizmente, entre os seus hóspedes aos quais tinha oferecido o hábito novo, a veste branca da vida nova, o rei encontra alguns que não vestem o hábito cor de púrpura do dúplice amor para com Deus e para com o próximo. "Em que condição nos queremos aproximar da festa do céu, se não vestimos o hábito nupcial isto é, o amor, o único que nos pode tornar livres?", pergunta o Papa. Uma pessoa sem amor é escura dentro. As trevas externas, de que fala o Evangelho, são apenas o reflexo da cegueia interior do coração (cf. Hom. 38, 8-13).

Agora que nos preparamos para a celebração da Santa Missa, deveríamos perguntar-nos se vestimos este hábito do amor. Pedimos ao Senhor que afaste qualquer hostilidade do nosso coração, que nos tire qualquer sentido de auto-suficiência e que nos revista verdadeiramente com as vestes do amor, para que sejamos pessoas luminosas e não pertencentes às trevas.

Por fim, mais uma breve palavra em relação à casula. A oração tradicional quando se veste a casula vê representado nela o jugo do Senhor que a nós sacerdotes foi imposto. E recorda a palavra de Jesus que nos convida a carregar o seu jugo e a aprender d'Ele, que é "manso e humilde de coração" (Mt 11,29). Carregar o jugo do Senhor significa antes de tudo: aprender d'Ele. Estar sempre dispostos a ir à sua escola. D'Ele devemos aprender a mansidão e a humildade a humildade de Deus que se mostra no seu ser homem. São Gregório Nazianzeno certa vez perguntou-se porque é que Deus se quis fazer homem. A parte mais importante e para mim mais comovedora da sua resposta é: "Deus queria dar-se conta do que significa para nós a obediência e queria medir tudo com base no próprio sofrimento, esta invenção do seu amor por nós. Deste modo, Ele pode conhecer directamente em si mesmo o que nós experimentamos quanto nos é exigido, quanta indulgência merecemos calculando com base no seu sofrimento a nossa debilidade" (Discurso 30; Disc. teol. IV, 6). Às vezes gostaríamos de dizer a Jesus: Senhor, o teu jugo não é minimamente leve. Aliás, é tremendamente pesado neste mundo. Mas olhando depois para Ele que carregou tudo que em si sentiu a obediência, a debilidade, o sofrimento, toda a escuridão, então estas nossas lamentações dissipam-se. O seu jugo é o de amar com Ele. Quanto mais amarmos, e com Ele nos tornarmos pessoas que amam, tanto mais leve se tornará para nós o seu jugo aparentemente pesado.

Peçamos-lhe que nos ajude a tornarmo-nos com Ele pessoas que amam, para assim conhecermos cada vez mais como é bom carregar o seu jugo. Amém.





Bento XVI Homilias 25307