Dominum et vivificantem PT 52
52 No mistério da Incarnação, a obra do Espírito, «que dá a vida», atinge o seu vértice. Não é possível dar a vida, que está em Deus de um modo pleno, senão fazendo dela a vida de um Homem, como é Cristo na sua humanidade personalizada pelo Verbo na união hipostática. Ao mesmo tempo, com o mistério da Incarnação jorra, de um modo novo, a fonte dessa vida divina na história da humanidade: o Espírito Santo. O Verbo «gerado antes de toda a criatura», torna-se «o primogénito entre muitos irmãos» 210 e torna-se assim também a cabeça do Corpo que é a Igreja — que nascerá da Cruz e será revelada no dia do Pentecostes — e, na Igreja, a cabeça da humanidade: dos homens de cada nação, de todas as raças, de todos os países e culturas, de todas as línguas e continentes, todos eles chamados à salvação. «O Verbo fez-se carne, (aquele Verbo no qual) estava a vida e a vida era a luz dos homens... A quantos o receberam deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus». 211 Mas tudo isto se realizou e se realiza incessantemente «por obra do Espírito Santo».
«Filhos de Deus» são, com efeito — como ensina o Apóstolo — «todos aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus». 212 A filiação pela adopção divina nasce nos homens sobre a base do mistério da Incarnação; e, portanto, graças a Cristo, que é o Filho eterno. Todavia, o nascer ou renascer dá-se quando Deus Pai «envia aos nossos coracões o Espírito do seu Filho». 213 É então que, na verdade, «recebemos o espírito de adopção filial, pelo qual bradamos: "Abbá, ó Pai!"». 214 Portanto, esta filiação divina, enxertada na alma humana com a graça santificante, é obra do Espírito Santo. «O próprio Espírito atesta ao nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se somos filhos, somos igualmente herdeiros: herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo». 215 A graça santificante é no homem o princípio e a fonte da vida nova: vida divina, sobrenatural.
A dádiva desta vida nova é como que a resposta definitiva de Deus ao grito do Salmista, no qual ecoa, de certo modo, a voz de todas as criaturas: «Se enviais o vosso Espírito, serão criados e renovais a face da terra». 216 Aquele que, no mistério da criação, dá ao homem e ao cosmos a vida sob as suas múltiplas formas, visíveis e invisíveis, renova-a ainda pelo mistério da Incarnação. A criação é assim completada pela Incarnação e, desde esse momento, penetrada pelas forças da Redenção, que investem a humanidade e a criação inteira. É o que nos diz São Paulo, cuja visão cósmico-teológica parece retomar os termos do antigo Salmo: a criação «aguarda ansiosamente a revelação dos filhos de Deus», 217 ou seja, daqueles que Deus, tendo-os «conhecido desde sempre», também os «predestinou para serem conformes à imagem do seu Filho». 218 Dá-se, assim, uma «adopção filial» sobrenatural dos homens, da qual é origem o Espírito Santo, Amor e Dom. Como tal Ele é dado com prodigalidade aos homens. E na superabundâcia do Dom incriado tem início, no coração de cada homem, aquele particular dom criado, mediante o qual os homens «se tornam participantes da natureza divina». 219 Deste modo, a vida humana é impregnada pela participação na vida divina e adquire também ela uma dimensão divina, sobrenatural. Tem-se assim a vida nova, pela qual, como participantes do mistério da Incarnação, «os homens ... têm acesso ao Pai no Espírito Santo». 220 Existe, pois, uma estreita dependência de causalidade entre o Espírito, que dá a vida, e a graça santificante, com aquela vitalidade sobrenatural multiforme que dela deriva no homem: entre o Espírito incriado e o espírito humano criado.
210 Rm 8,29.
211 Cf. Jn 1,14 Jn 1,4 Jn 1,12 s.
212 Cf. Rm 8,14
213 Cf. Ga 4,6 Rm 5,5 2Co 1,22.
214 Rm 8,15.
215 Rm 8,16 s.
216 Cf. Ps 104,30 [103], 30.
217 Rm 8,19.
218 Rm 8,29.
219 Cf. 2P 1,4.
220 Cf. Ep 2,18; Const. dogm. sobre a Divina Revelação Dei Verbum, DV 2.
53 Pode dizer-se que tudo isto é abrangido no âmbito do grande Jubileu, acima mencionado. Com efeito, impõe-se ir além da dimensão histórica do facto, considerado somente à superficie. É necessário chegar a atingir, no próprio conteúdo cristológico do facto, a dimensão pneumatológica, abarcando com o olhar da fé o conjunto dos dois milénios da acção do Espírito da verdade, o qual, ao longo dos séculos, indo haurir do tesouro da Redenção de Cristo, foi dando aos homens a vida nova, realizando neles «a adopção filial» no Filho unigénito e santificando-os, de tal modo que eles podem repetir com São Paulo: «Recebemos o Espírito que vem de Deus». 221
Mas ao considerar este motivo do Jubileu, não é possível limitar-se aos dois mil anos decorridos desde o nascimento de Cristo. Énecessário retroceder no tempo, abarcar toda a acção do Espírito Santo mesmo antes de Cristo, desde o princípio, em todo o mundo e, especialmente, na economia da Antiga Aliança. Esta acção, de facto, em todos os lugares e em todos os tempos, ou antes, em cada homem, desenrolou-se segundo o eterno desígnio de salvação, no qual ela anda estreitamente unida ao mistério da Incarnação e da Redenção; este mistério já tinha exercido a sua influência naqueles que acreditavam em Cristo que havia de vir. Isto é atestado, de modo particular, na Epístola aos Efésios. 222 A graça, portanto, comporta um carácter cristológico e, conjuntamente, um carácter pneumatológico, que se realiza sobretudo naqueles que expressamente aderem a Cristo: «N'Ele (em Cristo) ... fostes marcados com o selo do Espírito Santo, que fora prometido, o qual é o penhor da nossa herança, enquanto esperamos a completa redenção». 223
No entanto, sempre na perspectiva do grande Jubileu, também devemos alargar as nossas vistas para mais longe, «para o largo», conscientes de que «o vento sopra onde quer», segundo a imagem usada por Jesus no colóquio con Nicodemos. 224 O Concílio Vaticano II, centrando a atenção sobretudo no tema da Igreja, recorda-nos a acção do Espírito Santo mesmo «fora» do corpo visível da Igreja. Ele fala precisamente de «todos os homens de boa vontade, no coração dos quais invisivelmente opera a graça. Na verdade, se Cristo morreu por todos e a vocação última do homem é realmente uma só, a saber, a divina, nós devemos manter que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao mistério pascal». 225
221 Cf. 1Co 2,12.
222 Cf. Ep 1,3-14
223 Ep 1,13 s.
224 Cf. Jn 3,8.
225 Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 22; cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 16.
54 «Deus é espírito, e os seus adoradores em espírito e verdade é que devem adorá-lo». 226 Jesus pronunciou estas palavras num outro dos seus colóquios: aquele que teve com a Samaritana. O grande Jubileu, que será celebrado no final deste Milénio e no início do seguinte, deve constituir um forte apelo dirigido a todos aqueles que «adoram a Deus em espírito e verdade». Deve ser para todos uma ocasião especial para meditar no mistério de Deus uno e trino que, em si mesmo, é absolutamente transcendente em relação ao mundo, de modo especial em relação ao mundo visível; é, na realidade, Espírito absoluto: «Deus é espírito». 227 Mas, simultaneamente e de um modo admirável, não só está próximo deste mundo, mas está aí presente e, em certo sentido, imanente, compenetra-o e vivifica-o por dentro. Isto é válido, em especial, quanto ao homem: Deus está no íntimo do seu ser, como pensamento, consciência e coração; é uma realidade psicológica e ontológica que levava Santo Agostinho, ao considerá-la, a dizer de Deus: «interior intimo meo» [mais íntimo do que o meu íntimo]. 228 Estas palavras ajudam-nos a compreender melhor as que Jesus dirigiu à Samaritana: «Deus é espírito». Somente o Espírito pode ser «mais íntimo do que o meu íntimo», quer no ser quer na experiência espiritual; só o Espírito pode ser a tal ponto imanente ao homem e ao mundo, permanecendo inviolável e imutável na sua transcendência absoluta.
Mas, em Jesus Cristo, a presença divina no mundo e no homem manifestou-se de uma maneira nova e sob forma visível. N'Ele, verdadeiramente, «manifestou-se a graça». 229 O amor de Deus Pai, dom, graça infinita e princípio de vida, tornou-se patente em Cristo e, na sua humanidade, tornou-se «parte» do universo, do género humano e da história. Esta «manifestação» da graça na história do homem, mediante Jesus Cristo, realizou-se por obra do Espírito Santo, que é o princípio de toda a acção salvífica de Deus no mundo: Ele, «Deus escondido», 230 que como Amor e Dom «enche o universo». 231 Toda a vida da Igreja, tal como se irá manifestar no grande Jubileu, significa um caminhar ao encontro de Deus escondido, ao encontro do Espírito, que dá a vida.
226 Jn 4,24.
227 Ibid. Jn 4,24
228 Cf. S. AGOSTINHO, Confess. III, 6, 11: CCL 27, 33.
229 Cf. Tt 2,11.
230 Cf. Is 45,15.
231 Cf. Sg 1,7.
55 Da história da salvação resulta, infelizmente, que essa proximidade e presença de Deus ao homem e ao mundo, essa admirável «condescendência» do Espírito, depara, na nossa realidade humana, com resistência e oposição. Como são eloquentes, sob este ponto de vista as palavras proféticas daquele ancião, chamado Simeão, que, «movido pelo Espírito», veio ao Templo de Jerusalém, para anunciar, diante do recém-nascido de Belém, que «Ele é destinado a ser ocasião de queda e de ressurgimento para muitos em Israel, a ser sinal de contradição». 232 A oposição a Deus, que é Espírito invisível, nasce já, em certa medida, no plano da radical diversidade do mundo em relação a Ele; ou seja, da «visibilidade» e «materialidade» do mundo em confronto com Ele, que é «invisível» e «Espírito, no sentido absoluto»; da sua essencial e inevitável imperfeição em confronto com Ele, Ser perfeitíssimo. Mas a oposição torna-se conflito, rebelião no campo ético, por causa do pecado que se apodera do coração humano, no qual «a carne... tem desejos contrários aos do espírito e o espírito desejos contrários aos da carne». 233 O Espírito Santo deve «convencer o mundo» quanto a este pecado, como dissemos.
É São Paulo quem descreve, de modo particularmente eloquente, a tensão e a luta, que agitam o coração humano. «Eu digo-vos — lemos na Epístola aos Gálatas — : Procedei segundo o Espírito e não dareis satisfações aos desejos da carne. Pois a carne tem desejos contrários aos do espírito, e o espírito, desejos contrários aos da carne; há oposição radical entre eles; é por isso que não fazeis o que quereríeis». 234 No homem, porque é um ser composto, espírito e corpo, já existe uma certa tensão, trava-se uma certa luta de tendências entre o «espírito» e a «carne». Mas esta luta, de facto, faz parte da herança do pecado, é uma consequência do mesmo pecado e, simultaneamente, uma sua confirmação. É algo que faz parte da experiência quotidiana. Assim escreve o Apóstolo: «Ora, as obras da carne são bem conhecidas: fornicação, impureza, libertinagem... embriaguez, orgias e coisas semelhantes a estas». São os pecados que se poderiam qualificar como «carnais». Mas o Apóstolo ainda acrescenta outros: «inimizades, discórdias, ciúmes, disputas, divisões, facciosismos, invejas». 235 Tudo isto constitui «as obras da carne».
A estas obras, porém, que são indubitavelmente más, São Paulo contrapõe «o fruto do Espírito», que é «caridade, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão e temperança». 236 Do contexto, resulta com clareza que, para o Apóstolo, não se trata de discriminar e condenar o corpo que, juntamente com a alma espiritual, constitui a natureza do homem e a sua subjectividade pessoal. Ele quis tratar sobretudo, das obras, ou melhor, das disposições estáveis — virtudes e vícios — moralmente boas ou más, que são fruto de submissão (no primeiro caso) ou, pelo contrário, de resistência (no segundo caso) à acção salvífica do Espírito Santo. Por isso o Apóstolo escreve: «Se, portanto, vivemos pelo espírito, caminhemos também segundo o espírito». 237 E numa outra passagem: «De facto, os que vivem segundo a carne ocupam-se das coisas da carne; ao contrário, os que vivem segundo o espírito ocupam-se das coisas do espírito». «Vós, porém ... viveis segundo o espírito se é que o Espírito de Deus habita em vós». 238 A contraposição que São Paulo estabelece entre a vida «segundo o espírito» e a vida «segundo a carne» dá origem a uma ulterior contraposição: entre a «vida» e a «morte». «Os desejos da carne levam à morte, enquanto que os desejos do Espírito levam à vida e à paz». Daqui a advertência: «Se viverdes segundo a carne, por certo morrereis; mas, se pelo Espírito fizerdes morrer as obras do corpo, vivereis». 239
Se pensarmos bem, estamos perante uma exortação a viver na verdade, ou seja, segundo os ditames da consciência recta; e, ao mesmo tempo, trata-se de uma profissão de fé no Espírito da verdade, Aquele que dá a vida. O corpo, efectivamente, «está morto por causa da pecado, mas o espírito vive por causa da justificação»; «portanto... somos devedores, mas não para com a carne para vivermos segundo a carne». 240 Nós somos devedores sobretudo para com Cristo, que no mistério pascal operou a nossa justificação, obtendo-nos o Espírito Santo. «Na verdade, fomos comprados por um alto preço». 241
Nos textos de São Paulo sobrepõem-se e compenetram-se reciprocamente a dimensão ontológica (a carne e o espírito), a dimensão ética (o bem e o mal moral) e a dimensão pneumatológica (a acção do Espírito Santo na ordem da graça). As suas palavras (especialmente nas Epístolas aos Rom e aos Gal.) levam-nos a conhecer e a sentir ao vivo o vigor daquela tensão e daquela luta, que se trava no homem, entre a abertura à acção do Espírito Santo e a resistência e oposição a Ele, ao seu dom salvífico. Os termos ou pólos em contraposição, aqui são: da parte do homem, as suas limitações e pecaminosidade, pontos nevrálgicos da sua realidade psicológica e ética; e, da parte de Deus, o mistério do Dom, o incessante doar-se da vida divina no Espírito Santo. A quem caberá a vitória? Aquele que souber acolher o Dom.
232 Lc 2,27-34.
233 Ga 5,17.
234 Ga 5,16 s.
235 Cf. Ga 5,19-21.
236 Ga 5,22 s.
237 Ga 5,25.
238 Cf. Rm 8,5 Rm 8,9.
239 Rm 8,6 Rm 8,13.
240 Rm 8,10 Rm 8,12.
241 Cf. 1Co 6,20.
56 Infelizmente, a resistência ao Espírito Santo, que São Paulo sublinha, na dimensão interior e subjectiva, como tensão, luta e rebelião que acontece no coração humano, assume, nas várias épocas da história e, especialmente, na época moderna, a sua dimensão exterior, concretizada no conteúdo da cultura e da civilização, como sistema filosófico, como ideologia e como programa de acção e de formação dos comportamentos humanos. Esta dimensão exterior encontra a sua expressão mais importante no materialismo, tanto na sua forma teórica — enquanto sistema de pensamento — como na sua forma prática, enquanto método de leitura e de avaliação dos factos e, ainda, como programa dos comportamentos correspondentes. O sistema que mais desenvolveu esta forma de pensamento, de ideologia e de práxis, e que o levou às extremas consequências no plano da acção foi o materialismo dialéctico e histórico, ainda hoje reconhecido como substancia vital do marxismo.
Por princípio e de facto, o materialismo exclui radicalmente a presença e a acção de Deus, que é espírito, no mundo e, sobretudo, no homem, pela razão fundamental de que não aceita a sua existência, sendo em si mesmo e no seu programa um sistema ateu. O ateismo é fenómeno impressionante do nosso tempo, ao qual o Concilio Vaticano II dedicou algumas páginas significativas. 242 Embora não se possa falar do ateismo, de modo unívoco, nem se possa reduzi-lo exclusivamente à filosofia materialista — dado que existem várias espécies de ateismo e talvez se possa afirmar que, com frequência, se usa a palavra num sentido equívoco — o certo é que um verdadeiro materialismo, no sentido próprio do termo tem um carácter ateu, quando é entendido como teoria explicativa da realidade e assumido como princípio-chave da acção pessoal e social. O horizonte dos valores e dos fins do agir, que o materialismo determina, está estreitamente ligado com a interpretação de toda a realidade como «matéria». Se, por vezes, também fala do «Espírito» e das «questões do espírito», no campo, por exemplo da cultura ou da moral, fá-lo apenas enquanto considera certos factos como derivados (epifenómenos) da matéria, a qual, segundo este sistema é a única e exclusiva forma do ser. Daqui se segue que, segundo esta interpretação, a religião só pode ser entendida como uma espécie de «ilusão idealista», que deve ser combatida dos modos e com os métodos mais apropriados, conforme os lugares e as circunstancias históricas, para eliminá-la da sociedade e do próprio coração do homem.
Pode dizer-se, portanto, que o materialismo é o desenvolvimento sistemático e coerente da «resistência» e oposição denunciadas por São Paulo quando escreve: «A carne ... tem desejos contrários aos do espirito». Esta realidade conflitual, no entanto, é recíproca, como põe em realce o mesmo Apóstolo, na segunda parte do seu aforismo: «o espírito tem desejos contrários aos da carne». Quem quiser viver segundo o Espírito , na aceitação e correspondência à sua acção salvifica, não pode deixar de rejeitar as tendências e pretensões, internas e externas, da «carne», também na sua expressão ideológica e histórica de «materialismo» anti-religioso. Sobre este pano de fundo, tão característico do nosso tempo, devem ser postos em evidência os «desejos do espírito» na preparação para o grande Jubileu, como apelos que ecoam na noite de um novo período de advento, no termo do qual, como há dois mil anos, «todo o homem verá a salvação de Deus». 243 Está nisto uma possibilidade e uma esperança, que a Igreja confia aos homens de hoje. Ela sabe que o encontro ou o choque entre os «desejos contrários ao espírito» — que caracterizam tantos aspectos da civilização contemporânea, especialmente em alguns dos seus ambientes - e os «desejos contrários aos da carne» — com o facto de Deus se ter tornado próximo de nós, com a sua Incarnação e com a comunicação sempre nova de si mesmo no Espírito Santo — podem apresentar, em muitos casos, um carácter dramático e virem a redundar, talvez, em novas derrotas humanas. Mas a Igreja acredita firmemente que, da parte de Deus, haverá sempre um comunicar-se salvífico, uma vinda salvífica e, se for o caso, um salvífico «convencer quanto ao pecado», por obra do Espírito.
242 Cf. Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 19 GS 20 GS 21.
243 Lc 3,6; cf. Is 40,5.
57 Na contraposição paulina do «espírito» e da «carne» encontra-se inscrita também a contraposição da «vida» à «morte». Trata-se de um grave problema, acerca do qual é necessário dizer, de imediato, que o materialismo, como sistema de pensamento, em todas as suas versões, significa a aceitação da morte como termo definitivo da existência humana. Tudo o que é material é corruptível e, por isso, o corpo humano (enquanto «animal») é mortal. Se o homem, na sua essência, é simplesmente «carne», então a morte permanece para ele uma fronteira e um termo intransponível. Compreende-se assim como se possa dizer que a vida humana é exclusivamente um «existir para morrer».
Deve acrescentar-se que, no horizonte da civilização contemporânea — especialmente onde ela se apresenta mais desenvolvida, no sentido técnico-científico — os vestígios e os sinais de morte tornaram-se particularmente presentes e frequentes. Basta pensar na corrida aos armamentos e no perigo que ela comporta de uma autodestruição nuclear. Por outro lado, para todos se tem tornado cada vez mais manifesta a grave situação de vastas regiões do nosso planeta, marcadas pela indigência e pela fome, que são portadoras de morte. Não se trata só de problemas meramente económicos; mas também e, acima de tudo, de problemas éticos. E no entanto, no horizonte da nossa época, adensam-se «sinais de morte» ainda mais sombrios: difundiu-se o costume — que em algumas partes corre o risco de se tornar como que uma instituição — de tirar a vida a seres humanos ainda antes do seu nascimento, ou antes de atingirem o termo natural da morte. E mais ainda: apesar de tantos esforços nobres em favor da paz, deflagraram e prosseguem novas guerras, que privam da vida ou da saúde centenas de milhares de seres humanos. E como não recordar os atentados à vida humana por parte do terrorismo organizado, até mesmo em escala internacional?
E isto, infelizmente, é só um esboço parcial e incompleto do quadro de morte que está em vias de composição na nossa época, ao mesmo tempo que nos vamos aproximando cada vez mais do final do segundo Milénio cristão. Mas das tintas sombrias da civilização materialista e, em particular, dos «sinais de morte» que se multiplicam no quadro sociológico-histórico, em que ela se desenvolveu, não se ergue, porventura, uma nova invocação, mais ou menos consciente, ao Espírito que dá a vida? Em todo o caso, mesmo independentemente da amplitude das esperanças ou dos desesperos humanos, bem como das ilusões ou dos logros derivados do desenvolvimento dos sistemas materialistas de pensamento e de vida, permanece a certeza cristã de que o Espírito sopra onde quer, de que nós possuímos «as primícias do Espírito» e de que, por consequência, poderemos ter de sujeitar-nos aos sofrimentos do tempo que passa, mas «gememos em nós mesmos aguardando... a redenção do nosso corpo». 244 ou seja, de todo o nosso ser humano, que é corporal e espiritual. Sim, gememos, mas numa expectativa carregada de esperança indefectível, porque Deus, que é Espírito, se aproximou precisamente deste ser humano. Deus Pai enviou «o próprio Filho em carne semelhante à carne pecadora e, para expiar o pecado, condenou o pecado na carne». 245 No ponto culminante do mistério pascal, o Filho de Deus, feito homem e crucificado pelos pecados do mundo, apresentou-se no meio dos Apóstolos, após a Ressurreição, soprou sobre eles e disse: «Recebei o Espírito Santo». Este «sopro» continua sempre. E assim «o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza». 246
244 Cf. Rm 8,23.
245 Rm 8,3.
246 Rm 8,26.
58 O mistério da Ressurreição e do Pentecostes é anunciado e vivido pela Igreja, herdeira e continuadora do testemunho dos Apóstolos acerca da Ressurreição de Jesus Cristo. Ela é a testemunha permanente desta vitória sobre a morte, que revelou o poder do Espírito Santo e determinou a sua nova vinda, a sua nova presença nos homens e no mundo. Com efeito, na Ressurreição de Cristo, o Espírito Santo-Paráclito revelou-se sobretudo como aquele que dá a vida: «Aquele que ressuscitou Cristo dos mortos vivificará também os vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito, que habita em vós». 247 Em nome da Ressurreição de Cristo, a Igreja anuncia a vida, que se manifestou para além das fronteiras da morte, a vida que é mais forte que a morte. Ao mesmo tempo, ela anuncia aquele que dá esta vida: o Espírito vivificante; anuncia-o e coopera com ele para dar a vida. Na verdade, «embora o... corpo esteja morto por causa do pecado.... o espírito está vivo por causa da justificação», 248 operada por Cristo Crucificado e Ressuscitado. Em nome da Ressurreição de Cristo, a Igreja põe-se ao serviço da vida que provém do próprio Deus, em estreita união com o Espírito e em humilde cooperação com Ele.
Em razão precisamente desse serviço o homem torna-se de maneira sempre nova o «caminho da Igreja», como já tive ocasião de dizer na Encíclica sobre Cristo Redentor 249 e repito agora nesta sobre o Espírito Santo. A Igreja, unida ao Espírito Santo, está cônscia, mais do que ninguém, do homem interior, dos traços que no homem são mais profundos e essenciais, porque espirituais e incorruptíveis. É a este nível que o Espírito enxerta a «raiz da imortalidade», 250 da qual desponta a vida nova, ou seja, a vida do homem em Deus, que, como fruto da divina autocomunicação salvífica no Espírito Santo, só pode desenvolver-se e consolidar-se sob a acção do mesmo Espírito. Por isso, o Apóstolo dirige-se a Deus em favor dos fiéis, a quem declara: «Do bro os joelhos diante do Pai ... que Ele vos conceda... que sejais poderosamente corroborados, pelo seu Espírito, na vitalidade do homem interior». 251
Sob a influência do Espírito Santo, este homem interior, quer dizer «espiritual», amadurece e fortalece-se. Graças à comunicação divina, o espírito humano que «conhece os segredos do homem» encontra-se com o «Espírito que perscruta as profundezas do próprio Deus». 252 E neste Espírito, que é o Dom eterno, Deus uno e trino abre-se ao homem, ao espírito humano. O sopro recôndito do Espírito divino faz com que o espírito humano, por sua vez se abra, diante de Deus que se abre para ele, com desígnio salvífico e santificante. Pelo dom da graça, que vem do Espírito Santo, o homem entra «numa vida nova», é introduzido na realidade sobrenatural da própria vida divina e torna-se «habitação do Espírito Santo», «templo vivo de Deus». 253 Com efeito, pelo Espírito Santo, o Pai e o Filho vêm a ele e fazem nele a sua morada. 254 Na comunhão de graça com a Santíssíma Trindade dilata-se «o espaço vital» do homem, elevado ao nível sobrenatural da vida divina. O homem vive em Deus e de Deus, vive «segundo o Espírito» e «ocupa-se das coisas do Espírito».
247 Rm 8,11.
248 Rm 8,10.
249 Cf. Enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), n. RH 14: AAS 71 (1979), PP. 284 S.
250 Cf. Sg 15,3.
251 Cf. Ep 3,14-16.
252 Cf. 1Co 2,10 s.
253 Cf. Rm 8,9 1Co 6,19.
254 Cf. Jn 14,23; S. IRENEU, Adversus haereses V, 6, 1: SC 153, PP. 72-80; S. HILÁRIO, De Trinitate, VIII, 19. 21: PL 10, 250. 252; S. AMBRÓSIO, De Espiritu Sancto, I, 6, 8: PL 16, 752 s.; S. AGOSTINHO, Enarr.in Ps. XLIX, 2: CCL 38, 575 s. S. CIRILO DE ALEXANDRIA, In Joannis Evangelium, lib. I; II: PG 73, 154-158; 246; lib. IX: PG 74, 262; S. ATANÁSIO, Oratio III contra Arianos, 24: PG 26, 347 S.; Epist. I ad Serapionem, 24: PG 26, 586 s.- DIDIMO DE ALEXANDRIA, De Trinitate II, 6-7: PG 39, 523-530; S. JOÃO CRISÓSTOMO, In epist. ad Romanos homilia XIII, 8: PG 60, 519; S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theol. I 43,1 I 43,3-6.
59 A íntima relação com Deus, no Espírito Santo, faz com que o homem também se compreenda de uma maneira nova a si mesmo a à sua própria humanidade. É realizada, assim, plenamente, aquela imagem e semelhança de Deus, que o homem é desde o princípio. 255 Esta verdade íntima do homem deve ser continuamente redescoberta à luz de Cristo, que é o protótipo da relação com Deus; e, na mesma verdade, deve ser igualmente redescoberta a razão de o homem não poder «encontrar-se plenamente a não ser no dom sincero de si mesmo», ao conviver com os outros homens, como escreve o Concílio Vaticano II; isso acontece justamente por motivo da semelhança com Deus, a qual «torna manifesto que o homem, é a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma», com a sua dignidade de pessoa, mas também com a sua abertura à integração e à comunhão com os outros. 256 O conhecimento efectivo e a realização plena desta verdade do ser dão-se só por obra do Espírito Santo. O homem aprende esta verdade de Jesus Cristo e põe-na em prática na própria vida por obra do Espírito Santo, que Ele nos deu.
Neste caminho — no caminho de um am adurecimento interior assim, que inclui a descoberta plena do sentido da humanidade — Deus torna-se íntimo ao homem e penetra, cada vez mais profundamente, em todo o mundo humano. Deus uno e trino, que «existe» em si mesmo como realidade transcendente de Dom interpessoal, ao comunicar-se no Espírito Santo como dom ao homem, transforma o mundo humano, a partir de dentro, a partir do interior dos corações e das consciências. Neste caminho, o mundo, participante do Dom divino, torna-se — como ensina o Concílio — «cada vez mais humano, cada vez mais profundamente humano», 257 ao mesmo tempo que, nele, vai amadurecendo, através dos corações e das consciências dos homens, o Reino no qual Deus será definitivamente «tudo em todos», 258 como Dom e como Amor. Dom e Amor: é esta a eterna potência do abrir-se de Deus uno e trino ao homem e ao mundo, no Espírito Santo.
Na perspectiva do ano 2000 depois do nascimento de Cristo, importa conseguir que um número cada vez maior de homens «possam encontrar-se plenamente... através do dom sincero de si». Trata-se, pois, de fazer com que, sob a acção do Espírito-Paráclito, se realize, no nosso mundo, um processo de verdadeiro amadurecimento na humanidade, na vida individual e na vida comunitária; foi em ordem a isso que o próprio Jesus, «quando pedia ao Pai "que todos sejam um, como eu e tu somos um" (Jn 17,21-22) ... nos sugeriu que existe uma certa semelhança entre a união das pessoas divinas e a união dos filhos de Deus na verdade e na carídade». 259 O Concílio insiste nesta verdade sobre o homem; e a Igreja vê nela uma indicação particularmente vigorosa e determinante das próprias tarefas apostólicas. Sendo o homem, de facto, «o caminho da Igreja», este caminho passa através de todo o mistério de Cristo, modelo divino do homem. Neste caminho, o Espírito Santo, consolidando em cada um de nós «o homem interior», faz com que o homem cada vez mais «se encontre plenamente através do dom sincero de si». Pode afirmar-se que nestas palavras da Constituição pastoral do Concílio está resumida toda a antropologia cristã: a teoria e a prática fundamentadas no Evangelho, onde o homem, descobrindo em si mesmo a pertença a Cristo e, n'Ele, a própria elevação à dignidade de «filho de Deus», compreende melhor também a sua dignidade de homem, precisamente porque é o sujeito da aproximação e da presença de Deus, o sujeito da condescendência divina, na qual está incluída a perspectiva e até mesmo a própria raiz da glorificação definitiva. Então pode repetir-se, com verdade, que é «glória de Deus o homem que vive, mas a vida do homem é a visão de Deus»: 260 o homem, ao viver uma vida divina, é a glória de Deus; e o dispensador escondido desta vida e desta glória é o Espírito Santo. Ele — afirma o grande Basílio — «simples na sua essência, mas manifestando multiformemente a sua virtude... difunde-se, sem sofrer diminuição alguma, e está presente a cada um daqueles que o podem receber, como se existisse só ele, ao mesmo tempo que infunde em todos a graça em plenitude». 261
255 Cf. Gn 1,26 s.; S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theol. I 93,4 I 93,5 I 93,8.
256 Cf . Const. past sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 24; cf. também n. GS 25.
257 Cf. Ibid., GS 38 GS 40.
258 Cf. 1Co 15,28.
259 Cf. Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 24.
260 Cf. S. IRENEU, Adversus haereses, IV, 20, 7: SC 100/2, p. 648.
261 S. BASÍLIO, De Spiritu Sancto, IX, 22: PG 32, 110.
Dominum et vivificantem PT 52