Dives in misericordia PT 14

VIII. A ORAÇÃO DA IGREJA DOS NOSSOS TEMPOS


A Igreja faz apelo à misericórdia divina

15 A Igreja proclama a verdade da misericórdia de Deus, revelada em Cristo crucificado e ressuscitado, e proclama-a de várias maneiras. Procura também praticar a misericórdia para com os homens por meio dos homens, como condição indispensável da sua solicitude por um mundo melhor e «mais humano», hoje e amanhã.

Mas, além disso, em nenhum momento e em nenhum período da história, especialmente numa época tão crítica como a nossa, pode esquecer a oração que é um grito de súplica à misericórdia de Deus, perante as múltiplas formas do mal que pesam sobre a humanidade e a ameaçam. Tal é o direito e o dever da Igreja, em Cristo Jesus: direito e dever para com Deus e para com os homens. Quanto mais a consciência humana, vítima da secularização, esquecer o próprio significado da palavra «misericórdia», e quanto mais, afastando-se de Deus, se afastar do mistério da misericórdia, tanto mais a Igreja tem o direito e o dever de apelar «com grande clamor» 135 para o Deus da misericórdia. Este «grande clamor», elevado até Deus para implorar a sua misericórdia há-de caracterizar a Igreja do nosso tempo. A mesma Igreja professa e proclama que a manifestação clara de tal misericórdia se verificou em Jesus crucificado e ressuscitado, isto é, no Mistério pascal. É este Mistério que contém em si a mais completa revelação da misericórdia, isto é, daquele amor que é mais forte do que a morte, mais poderoso do que o pecado e que todo o mal, do amor que ergue o homem das suas quedas, mesmo mais profundas, e o liberta das maiores ameaças.

O homem contemporâneo sente estas ameaças. O que se disse acima a este propósito não é mais do que simples esboço. O homem contemporâneo interroga-se com profunda ansiedade quanto à solução das terríveis tensões que se acumulam sobre o mundo e se entrecuzam nos caminhos da humanidade. Se algumas vezes o homem não tem a coragem de pronunciar a palavra «misericórdia», ou não lhe encontra equivalente na sua consciência despojada de todo o sentido religioso, ainda se torna mais necessário que a Igreja pronuncie esta palavra, não só em nome próprio, mas também em nome de todos os homens contemporâneos.

É, pois, necessário que tudo o que acabamos de dizer no presente documento, sobre a misericórdia, se transforme continuamente em fervorosa oração, num clamor a suplicar a misericórdia, segundo as necessidades do homem no mundo contemporâneo. E que este clamor esteja impregnado de toda a verdade sobre a misericórdia que tem expressão tão rica na Sagrada Escritura e na Tradição, e também na autêntica vida de fé de tantas gerações do Povo de Deus. Com este clamor apelamos, como fizeram os Autores sagrados, para o Deus que não pode desprezar nada daquilo que Ele criou 136, para o Deus que é fiel a si próprio, à sua paternidade e ao seu amor.

Como os Profetas, apelamos para o amor que tem características maternais e, à semelhança da mãe, vai acompanhando cada um dos seus filhos, cada ovelha desgarrada, ainda que houvesse milhões de extraviados, ainda que no mundo a iniquidade prevalecesse sobre a honestidade e ainda que a humanidade contemporânea merecesse pelos seus pecados um novo «dilúvio», como outrora sucedeu com a geração de Noé. Recorramos, pois, a tal amor, que permanece amor paterno, como nos foi revelado por Cristo na sua missão messiânica, e que atingiu o ponto culminante na sua Cruz, morte e ressurreição! Recorramos a Deus por meio de Cristo, lembrados das palavras do Magnificat de Maria, que proclamam a misericórdia «de geração em geração». Imploremos a misericórdia divina para a geração contemporânea! Que a Igreja, que procura, a exemplo de Maria ser em Deus, mãe dos homens, exprima nesta oração a sua solicitude maternal e o seu amor confiante, donde nasce a mais ardente necessidade da oração.

Elevemos as nossas súplicas, guiados pela fé, pela esperança e pela caridade, que Cristo implantou nos nossos corações. Esta atitude é, ao mesmo tempo, amor para com Deus, que o homem contemporâneo por vezes afastou tanto de si, que O considera um estranho e de várias maneiras O proclama «supérfluo». É, ainda, amor para com Deus, em relação ao Qual sentimos profundamente quanto o homem contemporâneo O ofende e O rejeita; e por isso estamos prontos para clamar com Cristo na cruz: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» 137. Tal atitude é também amor para com os homens, para com todos os homens, sem excepção e sem qualquer discriminação: sem diferenças de raça, de cultura, de língua, de concepção do mundo e sem distinção entre amigos e inimigos. Tal é o amor para com todos os homens, que deseja todo o bem verdadeiro a cada um deles, e a toda comunidade humana, a cada família, nação, grupo social, aos jovens, aos adultos, aos pais, anciãos e doentes, enfim, amor para com todos sem excepção. Tal é o amor, esta viva solicitude para garantir a cada um todo o bem autêntico e afastar e esconjurar todo o mal.

Se alguns contemporâneos não compartilharem comigo a fé e a esperança que me impelem, como servo de Cristo e ministro dos mistérios de Deus 138, a implorar nesta hora da história a misericórdia do mesmo Deus para a humanidade, que esses procurem ao menos compreender o motivo desta solicitude. Ela é ditada pelo amor para com o homem, para com tudo o que é humano e que, segundo a intuição de grande parte dos nossos contemporâneos, está ameaçado por perigo imenso. O mistério de Cristo que, revelando-nos a alta vocação do homem, me levou a pôr em evidência na Encíclica Redemptor Hominis a incomparável dignidade do mesmo homem, obriga-me igualmente a proclamar a misericórdia, como amor misericordioso de Deus, manifestado no mistério de Cristo. Impele-me ainda a recorrer à misericórdia e a implorá-la, nesta fase difícil e crítica da história da Igreja e do mundo, ao aproximarmo-nos do final do segundo Milénio.

Em nome de Jesus Cristo crucificado e ressucitado, e no espírito da sua missão messiânica que continua presente na história da humanidade, elevemos as nossas vozes e supliquemos que nesta fase da história, se manifeste uma vez mais o Amor que está no Pai e que, por obra do Filho e do Espírito Santo, tal Amor manifeste no nosso mundo contemporâneo a sua presença, mais forte do que o mal, e o pecado e a morte. Pedimos isto por intercessão d'Aquela que não cessa de proclamar «a misericórdia, de geração em geração»; e também pela intercessão daqueles em que já se realizaram até ao fim as palavras do Sermão da Montanha, «Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» 139.

Prosseguindo na grande tarefa de dar cumprimento ao Concílio Vaticano II, no qual podemos justamente descobrir nova fase da auto-realização da Igreja — na medida adaptada à época que nos coube viver — a própria Igreja deve ser constantemente guiada pela plena consciência de que não lhe é permitido, em hipótese alguma, esmorecer nesta tarefa e fechar-se sobre si mesma. A sua razão de ser, efectivamente, é revelar Deus, isto é, o Pai, que nos permite «vê-l'O», em Cristo 140. Por mais forte que possa ser a resistência da história humana, por mais marcante que se apresente a heterogeneidade da civilização contemporânea e, enfim, por maior que possa ser a negação de Deus no mundo humano, ainda maior deve ser, apesar de tudo, a nossa aproximação de tal mistério que, oculto desde toda a eternidade em Deus, foi depois, no tempo, realmente comunicado ao homem por meio Jesus Cristo.

Com a minha Bênção Apostólica!

Dado em Roma, junto de São Pedro, aos trinta dias do mês de Novembro, Primeiro Domingo do Advento, do ano de 1980, terceiro do meu Pontificado.


135 Cf,
He 5,7
136 Cf. Sg 11,24 Ps 145,9(144),9; Gn 1,31
137 Lc 23,34
138 Cf. 1Co 4,1
139 Mt 5,7
140 Cf. Jn 14,9




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