Familiaris consortio PT 41

Um múltiplo serviço à vida

41O amor conjugal fecundo exprime-se num serviço à vida em variadas formas, sendo a geração e a educação as mais imediatas, próprias e insubstituíveis. Na realidade, cada acto de amor verdadeiro para com o homem testemunha e aperfeiçoa a fecundidade espiritual da família, porque é obediência ao profundo dinamismo interior do amor como doação de si aos outros.

Nesta perspectiva, para todos rica de valor e de empenho, saberão inspirar-se particularmente aqueles cônjuges que fazem a experiência da esterilidade física.

As famílias cristãs, que na fé reconhecem todos os homens como filhos do Pai comum dos céus, irão generosamente ao encontro dos filhos das outras famílias, sustentando-os e amando-os não como estranhos, mas como membros da única família dos filhos de Deus. Os pais cristãos terão assim oportunidade de alargar o seu amor para além dos vínculos da carne e do sangue, alimentando os laços que têm o seu fundamento no espírito e que se desenvolvem no serviço concreto aos filhos de outras famílias, muitas vezes necessitadas até das coisas mais elementares.

As famílias cristãs saberão viver uma maior disponibilidade em favor da adopção e do acolhimento de órfãos ou abandonados: enquanto estas crianças, encontrando o calor afectivo de uma família, podem fazer uma experiência da carinhosa e próvida paternidade de Deus, testemunhada pelos pais cristãos, e assim crescer com serenidade e confiança na vida, a família inteira enriquecer-se-á dos valores espirituais de uma mais ampla fraternidade.

A fecundidade das famílias deve conhecer uma sua incessante «criatividade», fruto maravilhoso do Espírito de Deus, que abre os olhos do coração à descoberta de novas necessidades e sofrimentos da nossa sociedade, e que infunde coragem para as assumir e dar-lhes resposta. Apresenta-se às famílias, neste quadro, um vastíssimo campo de acção: com efeito, ainda mais preocupante que o abandono das crianças é hoje o fenómeno da marginalização social e cultural, que duramente fere anciãos, doentes, deficientes, toxicómanos, ex-presos, etc.

Desta maneira dilata-se enormemente o horizonte da paternidade e da maternidade das famílias cristãs: o seu amor espiritualmente fecundo é desafiado por estas e tantas outras urgências do nosso tempo. Com as famílias e por meio delas, o Senhor continua a ter «compaixão» das multidões.




III - A PARTICIPAÇÃO NO DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE


A família, célula primeira e vital da sociedade

42«Pois que o Criador de todas as coisas constituiu o matrimónio princípio e fundamento da sociedade humana», a família tornou-se a «célula primeira e vital da sociedade»(105).

A família possui vínculos vitais e orgânicos com a sociedade, porque constitui o seu fundamento e alimento contínuo mediante o dever de serviço à vida: saem, de facto, da família os cidadãos e na família encontram a primeira escola daquelas virtudes sociais, que são a alma da vida e do desenvolvimento da mesma sociedade.

Assim por força da sua natureza e vocação, longe de fechar-se em si mesma, a família abre-se às outras famílias e à sociedade, assumindo a sua tarefa social.

(105) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos Leigos Apostolicam Actuositatem,
AA 11.


A vida familiar como experiência de comunhão e de participação

43A mesma experiência de comunhão e de participação, que deve caracterizar a vida quotidiana da família, representa o seu primeiro e fundamental contributo à sociedade.

As relações entre os membros da comunidade familiar são inspiradas e guiadas pela lei da «gratuidade» que, respeitando e favorecendo em todos e em cada um a dignidade pessoal como único título de valor, se torna acolhimento cordial, encontro e diálogo, disponibilidade desinteressada, serviço generoso, solidariedade profunda.

A promoção de uma autêntica e madura comunhão de pessoas na família torna-se a primeira e insubstituível escola de sociabilidade, exemplo e estímulo para as mais amplas relações comunitárias na mira do respeito, da justiça, do diálogo, do amor.

Deste modo a família, como recordaram os Padres Sinodais, constitui o lugar nativo e o instrumento mais eficaz de humanização e de personalização da sociedade. Colabora de um modo original e profundo na construção do mundo, tornando possível uma vida propriamente humana, guardando e transmitindo em particular as virtudes e «os valores». Como escreve o Concílio Vaticano II, na família «congregam-se as diferentes gerações que reciprocamente se ajudam a alcançar uma sabedoria mais plena e a conciliar os direitos pessoais com as outras exigências da vida social»(106).

Assim diante de uma sociedade que se arrisca a ser cada vez mais despersonalizada e massificada, e, portanto, desumana e desumanizante, com as resultantes negativas de tantas formas de «evasão» - como, por exemplo, o alcoolismo, a droga e o próprio terrorismo - a família possui e irradia ainda hoje energias formidáveis capazes de arrancar o homem do anonimato, de o manter consciente da sua dignidade pessoal, de o enriquecer de profunda humanidade e de o inserir activamente com a sua unicidade e irrepetibilidade no tecido da sociedade.

(106) Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes,
GS 52.


Função social e política

44A função social da família não pode certamente fechar-se na obra procriativa e educativa, ainda que nessa encontre a primeira e insubstituível forma de expressão.

As famílias, quer cada uma por si quer associadas, podem e devem portanto dedicar-se a várias obras de serviço social, especialmente em prol dos pobres, e de qualquer modo de todas aquelas pessoas e situações que a organização previdencial e assistencial das autoridades públicas não consegue atingir.

O contributo social da família tem uma originalidade própria, que pode ser conhecida melhor e mais decisivamente favorecida, sobretudo à medida que os filhos crescem, empenhando de facto o mais possível todos os membros(107).

Em particular é de realçar a importância sempre maior que na nossa sociedade assume a hospitalidade, em todas as suas formas desde o abrir as portas da própria casa e ainda mais do próprio coração aos pedidos dos irmãos, ao empenho concreto de assegurar a cada família a sua casa, como ambiente natural que a conserva e a faz crescer. Sobretudo a família cristã é chamada a escutar a recomendação do apóstolo: «Exercei a hospitalidade com solicitude»(108) e portanto a actuar, imitando o exemplo e compartilhando a caridade de Cristo, o acolhimento do irmão necessitado: «Quem der de beber a um destes pequeninos, ainda que seja somente um copo de água fresca, por ser meu discípulo, em verdade vos digo não perderá a sua recompensa»(109).

O dever social das famílias é chamado ainda a exprimir-se sob forma de intervenção política: as famílias devem com prioridade diligenciar para que as leis e as instituições do Estado não só não ofendam, mas sustentem e defendam positivamente os seus direitos e deveres. Em tal sentido as famílias devem crescer na consciência de serem «protagonistas» da chamada «política familiar» e assumir a responsabilidade de transformar a sociedade: doutra forma as famílias serão as primeiras vítimas daqueles males que se limitaram a observar com indiferença. O apelo do Concílio Vaticano II para que se supere a ética individualística tem também valor para a família como tal(110).

(107) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos Leigos Apostolicam Actuositatem,
AA 11.
(108) Rm 12,13.
(109) Mt 10,42.
(110) Cfr. Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, GS 30.


A sociedade ao serviço da família

45A íntima conexão entre a família e a sociedade, como exige a abertura e a participação da família na sociedade e no seu desenvolvimento, impõe também que a sociedade não abandone o seu dever fundamental de respeitar e de promover a família.

A família e a sociedade têm certamente uma função complementar na defesa e na promoção do bem de todos homens e de cada homem. Mas a sociedade, e mais especificamente o Estado, devem reconhecer que a família é «uma sociedade que goza de direito próprio e primordial»(111) e portanto nas suas relações com a família são gravemente obrigados ao respeito do princípio de subsidiariedade.

Por força de tal princípio o Estado não pode nem deve subtrair às famílias tarefas que elas podem igualmente desenvolver perfeitamente sós ou livremente associadas, mas favorecer positivamente e solicitar o mais possível a iniciativa responsável das famílias. Convencidas de que o bem da família constitui um valor indispensável e irrenunciável da comunidade civil, as autoridades públicas devem fazer o possível por assegurar às famílias todas aquelas ajudas - económicas, sociais, educativas, políticas, culturais de que têm necessidade para fazer frente de modo humano a todas as suas responsabilidades.

(111) Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a liberdade religiosa Dignitatis Humanae,
DH 5.


A carta dos direitos da família

46O ideal de uma acção recíproca de auxílio e de desenvolvimento entre a família e a sociedade encontra-se muitas vezes, e em termos bastante graves, com a realidade de uma separação, mais que de uma contraposição.

Com efeito, como continuamente denunciou o Sínodo, a situação que numerosas famílias encontram em diversos países é muito problemática, e até decididamente negativa: instituições e leis que desconhecem injustamente os direitos invioláveis da família e da mesma pessoa humana, e a sociedade, longe de se colocar ao serviço da família, agride-a com violência nos seus valores e nas suas exigências fundamentais. Assim a família que, segundo o desígno de Deus, é a célula base da sociedade, sujeito de direitos e deveres antes do Estado e de qualquer outra comunidade, encontra-se como vítima da sociedade, dos atrasos e da lentidão das suas intervenções e ainda mais das suas patentes injustiças.

Por tudo isto a Igreja defende aberta e fortemente os direitos da família contra as intoleráveis usurpações da sociedade e do Estado. De modo particular, os Padres Sinodais recordam, entre outros, os seguintes direitos da família:

- o direito de existir e progredir como família, isto é o direito de cada homem, mesmo o pobre, a fundar uma família e a ter os meios adequados para a sustentar;

- o direito de exercer as suas responsabilidades no âmbito de transmitir a vida e de educar os filhos;

- o direito à intimidade da vida conjugal e familiar;

- o direito à estabilidade do vínculo e da instituição matrimonial;

- o direito de crer e de professar a própria fé, e de a difundir;

- o direito de educar os filhos segundo as próprias tradições e valores religiosos e culturais, com os instrumentos, os meios e as instituições necessárias;

- o direito de obter a segurança física, social, política, económica, especialmente tratando-se de pobres e de enfermos;

- o direito de ter uma habitação digna a conduzir convenientemente a vida familiar;

- o direito de expressão e representação diante das autoridades públicas económicas, sociais e culturais e outras inferiores, quer directamente quer através de associações;

- o direito de criar associações com outras famílias e instituições, para um desempenho de modo adequado e solícito do próprio dever;

- o direito de proteger os menores de medicamentos prejudiciais, da pornografia, do alcoolismo, etc. mediante instituições e legislações adequadas;

- o direito à distracção honesta que favoreça também os valores da família;

- o direito das pessoas de idade a viver e morrer dignamente;

- o direito de emigrar como família para encontrar vida melhor(112).

A Santa Sé, acolhendo o pedido explícito do Sínodo, terá o cuidado de aprofundar tais sugestões, elaborando uma «Carta dos direitos da família» a propor aos ambientes e às Autoridades interessadas.

(112) Cfr. Propositio 42.




Graça e responsabilidade da família cristã

47O dever social próprio de cada família diz respeito, por um título novo e original, à família cristã, fundada sobre o sacramento do matrimónio. Assumindo a realidade humana do amor conjugal com todas as suas consequências, o sacramento habilita e empenha os cônjuges e os pais cristãos a viver a sua vocação de leigos, e por tanto a «procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus»(113).

O dever social e político reentra naquela missão real ou de serviço da qual os esposos cristãos participam pela força do sacramento do matrimónio, recebendo ao mesmo tempo um mandamento ao qual não podem subtrair-se e uma graça que os sustenta e estimula.

Em tal modo a família cristã é chamada a oferecer a todos o testemunho de uma dedicação generosa e desinteressada pelos problemas sociais, mediante a «opção preferencial» pelos pobres e marginalizados. Por isso, progredindo no caminho do Senhor mediante uma predilecção especial para com todos os pobres, deve cuidar especialmente dos esfomeados, dos indigentes, dos anciãos, dos doentes, dos drogados, dos sem família.

(113) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium,
LG 31.


Para uma nova ordem internacional

48Diante da dimensão mundial que hoje caracteriza os vários problemas sociais, a família vê alargar-se de modo completamente novo o seu dever para com o desenvolvimento da sociedade: trata-se também de uma cooperação para uma nova ordem internacional, porque só na solidariedade mundial se podem enfrentar e resolver os enormes e dramáticos problemas da justiça no mundo, da liberdade dos povos, da paz da humanidade.

A comunhão espiritual das famílias cristãs, radicadas na fé e esperança comuns e vivificadas pela caridade, constitui uma energia interior que dá origem, difunde e desenvolve justiça, reconciliação, fraternidade e paz entre os homens. Como «pequena Igreja», a família cristã é chamada, à semelhança da «grande Igreja» a ser sinal de unidade para o mundo e a exercer deste modo o seu papel profético, testemunhando o Reino e a paz de Cristo, para os quais o mundo inteiro caminha.

As famílias cristãs poderão fazê-lo quer através da sua obra educativa, oferecendo aos filhos um modelo de vida fundada sobre os valores da verdade, da liberdade, da justiça e do amor, quer com um empenho activo e responsável no crescimento autenticamente humano da sociedade e das suas instituições, quer mantendo de vários modos associações que especificamente se dedicam aos problemas de ordem internacional.



IV - A PARTICIPAÇÃO NA VIDA E NA MISSÃO DA IGREJA


A família no mistério da Igreja

49Entre os deveres fundamentais da família cristã estabelece-se o dever eclesial: colocar-se ao serviço da edificação do Reino de Deus na história, mediante a participação na vida e na missão da Igreja.

Para melhor compreender os fundamentos, os conteúdos e as características de tal participação, ocorre aprofundar os vínculos múltiplos e profundos que ligam entre si a Igreja e a família cristã, e constituem esta última como «uma Igreja em miniatura» (Ecclesia domestica)(114), fazendo com que esta, a seu modo, seja imagem viva e representação histórica do próprio mistério da Igreja.

É antes de tudo a Igreja Mãe que gera, educa, edifica a família cristã, operando em seu favor a missão de salvação que recebeu do Senhor. Com o anúncio da Palavra de Deus, a Igreja revela à família cristã a sua verdadeira identidade, o que ela é e deve ser segundo o desígnio do Senhor; com a celebração dos sacramentos, a Igreja enriquece e corrobora a família cristã com a graça de Cristo em ordem à sua santificação para a glória do Pai; com a renovada proclamação do mandamento novo da caridade, a Igreja anima e guia a família cristã ao serviço do amor, a fim de que imite e reviva o mesmo amor de doação e sacrifício, que o Senhor Jesus nutre pela humanidade inteira.

Por sua vez a família cristã está inserida a tal ponto no mistério da Igreja que se torna participante, a seu modo, da missão de salvação própria da Igreja: os cônjuges e os pais cristãos, em virtude do sacramento, «têm assim, no seu estado de vida e na sua ordem, um dom próprio no Povo de Deus»(115). Por isso não só «recebem» o amor de Cristo tornando-se comunidade «salva», mas também são chamados a «transmitir» aos irmãos o mesmo amor de Cristo, tornando-se assim comunidade «salvadora». Deste modo, enquanto é fruto e sinal da fecundidade sobrenatural da Igreja, a família cristã torna-se símbolo, testemunho, participação da maternidade da Igreja(116).

(114) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium,
LG 11; Decr. sobre o apostolado dos Leigos Apostolicam Actuositatem, AA 11; João Paulo PP. II, Homilia para a abertura do VI Sínodo dos Bispos (26 de Setembro de 1980), 3: AAS 72 (1980), 1008.
(115) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, LG 11.
(116) Cfr. Ibid., LG 41.


Uma função eclesial própria e original

50A família cristã é chamada a tomar parte viva e responsável na missão da Igreja de modo próprio e original, colocando-se ao serviço da Igreja e da sociedade no seu ser e agir, enquantocomunidade íntima de vida e de amor.

Se a família cristã é comunidade, cujos vínculos são renovados por Cristo mediante a fé e os sacramentos, a sua participação na missão da Igreja deve dar-se segundo uma modalidadecomunitária: conjuntamente, portanto, os cônjuges enquanto casal, os pais e os filhos enquanto família, devem viver o seu serviço à Igreja e ao mundo. Devem ser na fé «um só coração e uma só alma»(117), através do espírito apostólico comum que os anima e mediante a colaboração que os empenha nas obras de serviço à comunidade eclesial e civil.

A família cristã, pois, edifica o Reino de Deus na história mediante aquelas mesmas realidades quotidianas que dizem respeito e contradistinguem a sua condição de vida: é então no amor conjugal e familiar - vivido na sua extraordinária riqueza de valores e exigências de totalidade, unicidade, fidelidade e fecundidade(118) - que se exprime e se realiza a participação da família cristã na missão profética, sacerdotal e real de Jesus Cristo e da sua Igreja: o amor e a vida constituem portanto o núcleo da missão salvífica da família cristã na Igreja e pela Igreja

O Concílio Vaticano II recorda-o quando escreve: «Cada família comunicará generosamente com as outras as próprias riquezas espirituais. Por isso, a família cristã, nascida de um matrimónio que é imagem e participação da aliança de amor entre Cristo e a Igreja, manifestará a todos a presença viva do Salvador no mundo e a autêntica natureza da Igreja, quer por meio do amor dos esposos, quer pela sua generosa fecundidade, unidade e fidelidade, quer pela amável cooperação de todos os seus membros»(119).

Posto assim o fundamento da participação da família cristã na missão eclesial, é agora o momento de ilustrar o seu conteúdo na tríplice e unitária referencia a Jesus Cristo Profeta, Sacerdote e Rei, apresentando por isso a família cristã como 1) comunidade crente e evangelizadora, 2) comunidade em diálogo com Deus, 3) comunidade ao serviço do homem.

(117)
Ac 4,32.
(118) Cfr. Paulo PP. VI, Enc. Humanae Vitae, HV 9: AAS 60 (1968), 486 s.
(119) Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, GS 48.



1) A Família cristã, comunidade crente e evangelizadora


A fé, descoberta e admiração do desígnio de Deus sobre a família

51Partícipe da vida e da missão da Igreja, que está em religiosa escuta da Palavra de Deus e a proclama com firme confiança(120), a família cristã vive a sua tarefa profética acolhendo e anunciando a Palavra de Deus: torna-se assim, cada dia mais comunidade crente e evangelizadora.

Também aos esposos e aos pais cristãos é pedida a obediência da fé(121): são chamados a acolher a Palavra do Senhor, que a eles revela a extraordinária novidade - a Boa Nova - da sua vida conjugal e familiar, feita por Cristo santa e santificante. De facto, somente na fé eles podem descobrir e admirar com jubilosa gratidão a que dignidade Deus quis elevar o matrimónio e a família, constituindo-os sinal e lugar da aliança de amor entre Deus e os homens, entre Jesus Cristo e a Igreja sua esposa.

A preparação para o matrimónio cristão é já qualificada como um itinerário de fé: põe-se, de facto, como ocasião privilegiada para que os noivos descubram e aprofundem a fé recebida no baptismo e alimentada com a educação cristã. Desta forma reconhecem e acolhem livremente a vocação de seguir o caminho de Cristo e de se pôr ao serviço do Reino de Deus no estado matrimonial.

O momento fundamental da fé dos esposos é dado pela celebração do sacramento do matrimónio, que na sua natureza profunda é a proclamação, na Igreja, da Boa-Nova sobre o amor conjugal: é Palavra de Deus que «revela» e «cumpre» o sábio e amoroso projecto que Deus tem sobre os esposos, introduzidos na misteriosa e real participação do próprio amor de Deus pela humanidade. Se em si mesma a celebração sacramental do matrimónio é proclamação da Palavra de Deus, enquanto os noivos são a título vário protagonistas e celebrantes, deve ser uma «profissão de fé» feita dentro da Igreja e com a Igreja comunidade dos crentes.

Esta profissão de fé exige o seu prolongamento no decurso da vida dos esposos e da família: Deus, que de facto, chamou os esposos «ao» matrimónio, continua a chamá-los «no» martimónio(122). Dentro e através dos factos, dos problemas, das dificuldades, dos acontecimentos da existência de todos os dias, Deus vai-lhes revelando e propondo as «exigências» concretas da sua participação no amor de Cristo pela Igreja em relação com a situação particular - familiar, social e eclesial - na qual se encontram.

A descoberta e a obediência ao desígnio de Deus devem fazer-se «conjuntamente» pela comunidade conjugal e familiar, através da mesma experiência humana do amor vivido do Espírito de Cristo entre os esposos, entre os pais e os filhos

Por isto, como a grande Igreja, assim também a pequena Igreja doméstica tem necessidade de ser contínua e intensamente evangelizada: daqui o seu dever de educação permanente na fé.

(120) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática sobre a Revelação Divina Dei Verbum,
DV 1.
(121) Cfr. Rm 16,26.
(122) Cfr. Paulo PP. VI, Enc. Humanae Vitae, HV 25: AAS 60 (1968), 498.

O ministério de evangelização da família cristã

52Na medida em que a família cristã acolhe o Evangelho e amadurece na fé torna-se comunidade evangelizadora. Escutemos de novo Paulo VI: «A família, como a Igreja, deve ser um lugar onde se transmite o Evangelho e donde o Evangelho irradia. Portanto no interior de uma família consciente desta missão, todos os componentes evangelizam e são evangelizados. Os pais não só comunicam aos filhos o Evangelho, mas podem também receber deles o mesmo Evangelho profundamente vivido. Uma tal família torna-se, então, evangelizadora de muitas outras famílias e do ambiente no qual está inserida»(123).

Como repetiu o Sínodo, retomando o meu apelo lançado em Puebla, a futura evangelização depende em grande parte da Igreja doméstica(124). Esta missão apostólica da família tem as suas raízes no baptismo e recebe da graça sacramental do matrimónio uma nova força para transmitir a fé, para santificar e transformar a sociedade actual segundo o desígnio de Deus.

A família cristã, sobretudo hoje, tem uma especial vocação para ser testemunha da aliança pascal de Cristo, mediante a irradiação constante da alegria do amor e da certeza da esperança, da qual deve tornar-se reflexo: «A família cristã proclama em alta voz as virtudes presentes do Reino de Deus e a esperança na vida bem-aventurada»(125).

A absoluta necessidade da catequese familiar surge com singular vigor em determinadas situações que infelizmente a Igreja experimenta em diversos lugares: «Onde uma legislação anti-religiosa pretende impedir até a educação na fé, onde uma incredulidade difundida ou um secularismo invasor tornam praticamente impossível um verdadeiro crescimento religioso, aquela que poderia ser chamada "Igreja doméstica" fica como único ambiente, no qual crianças e jovens podem receber uma autêntica catequese»(126).

(123) Exort. Ap. Evangelii Nuntiandi,
EN 71: AAS 68 (1976), 60 s.
(124) Cfr. Discurso à III Assembleia Geral dos Bispos da América Latina (28 de Janeiro de 1979) IV, a: AAS 71 (1979), 204.
(125) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, LG 35.
(126) João Paulo PP. II, Exort. Ap. Catechesi Tradendae, CTR 68: AAS 71 (1979), 1334.


Um serviço eclesial

53O ministério de evangelização dos pais cristãos é original e insubstituível: assume as conotações típicas da vida familiar, entrelaçada como deveria ser com o amor, com a simplicidade, com o sentido do concreto e com o testemunho do quotidiano(127).

A família deve formar os filhos para a vida, de modo que cada um realize plenamente o seu dever segundo a vocação recebida de Deus. De facto, a família que está aberta aos valores do transcendente, que serve os irmãos na alegria, que realiza com generosa fidelidade os seus deveres e tem consciência da sua participação quotidiana no mistério da Cruz gloriosa de Cristo, torna-se o primeiro e o melhor seminário da vocação à vida consagrada ao Reino de Deus.

O ministério de evangelização e de catequese dos pais deve acompanhar também a vida dos filhos nos anos da adolescência e da juventude, quando estes, como muitas vezes acontece, contestam ou mesmo rejeitam a fé cristã recebida nos primeiros anos da vida. Como na Igreja a obra de evangelização nunca se separa do sofrimento do apóstolo, assim na família cristã os pais devem enfrentar com coragem e com grande serenidade de animo as dificuldades que o seu ministério de evangelização algumas vezes encontra nos próprios filhos.

Não se deverá esquecer que o serviço dos cônjuges e pais cristãos a favor do Evangelho é essencialmente um serviço eclesial, isto é, reentra no contexto da Igreja inteira, qual comunidade evangelizada e evangelizadora. Enquanto radicado e derivado da única missão da Igreja e enquanto ordenado à edificação do único Corpo de Cristo(128), o ministério de evangelização e de catequese da Igreja doméstica deve permanecer em comunhão intima e deve harmonizar-se responsavelmente com todos os outros serviços de evangelização e de catequese presentes e operantes na comunidade eclesial, quer diocesana quer paroquial.

(127) Cfr. Ibid.,
CTR 36: l.c., 1308.
(128) Cfr. 1Co 12,4-6 Ep 4,12 s.


Pregar o Evangelho a toda a criatura

54A universalidade sem fronteiras é o horizonte próprio da evangelização, animada interiormente pelo impulso missionário: é de facto a resposta explicita e inequívoca ao mandato de Cristo: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a criatura»(129).

Também a fé e a missão evangelizadora da família cristã prosseguem este alento missionário católico. O sacramento do matrimónio que retoma e volta a propor o dever, radicado no baptismo e na confirmação, de defender e difundir a fé(130), constitui os cônjuges e os pais cristãos testemunhas de Cristo «até aos confins do mundo»(131), verdadeiros e próprios «missionários» do amor e da vida.

Uma certa forma de actividade missionária pode desenvolver-se já na mesma família. Isto acontece quando algum dos seus membros não tem fé ou não a pratica com coerência. Em tal caso, os familiares devem oferecer-lhe um testemunho de vida de fé que o estimule e encoraje no caminho para a plena adesão a Cristo Salvador(132).

Animada já interiormente pelo espírito missionário, a Igreja doméstica é chamada a ser um sinal luminoso da presença de Cristo e do seu amor mesmo para os «afastados», para as famílias que ainda não crêem e para aquelas que já não vivem em coerência com a fé recebida: é chamada «com o seu exemplo e com o seu testemunho» a iluminar «aqueles que procuram a verdade»(133).

Como já no início do cristianismo Áquila e Priscila se apresentavam como casal missionário(134), assim hoje a Igreja testemunha a sua incessante novidade e rejuvenescimento com a presença de cônjuges e de famílias cristãs que, ao menos durante um certo período de tempo, estão nas terras de missão a anunciar o Evangelho, servindo o homem com o amor de Jesus Cristo.

As famílias cristãs dão um contributo particular à causa missionária da Igreja cultivando as vocações missionárias nos seus filhos e filhas(135) e, de uma forma mais generalizada, com uma obra educativa que vai «dispondo os filhos, desde a infância para conhecerem o amor de Deus por todos os homens»(136).

(129)
Mc 16,15.
(130) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, LG 11.
(131) Ac 1,8.
(132) Cfr. 1P 3,1 s.
(133) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, LG 35; Decr. sobre o apostolado dos Leigos Apostolicam Actuositatem, AA 11.
(134) Cfr. Ac 18 Rm 16,3s.
(135) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a atividade missionária da Igreja Ad Gentes, AGD 39.
(136) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos Leigos Apostolicam Actuositatem, AA 30.


2) A família cristã, comunidade em diálogo com Deus


O santuá\br\Bio doméstico da Igreja

55O anúncio do Evangelho e a sua aceitação pela fé atingem a plenitude na celebração sacramental. A Igreja, comunidade crente e evangelizadora, é também povo sacerdotal, revestido de dignidade e participante do poder de Cristo Sumo Sacerdote da Nova e Eterna Aliança(137).

A família cristã também está inserida na Igreja, povo sacerdotal: mediante o sacramento do matrimónio, no qual está radicada e do qual se alimenta, é continuamente vivificada pelo Senhor Jesus, e por Ele chamada e empenhada no diálogo com Deus mediante a vida sacramental, o oferecimento da própria existência e a oração.

É este o múnus sacerdotal que a família cristã pode e deve exercitar em comunhão íntima com toda a Igreja, através das realidades quotidianas da vida conjugal e familiar: em tal sentido a família cristã échamada a santificar-se e a santificar a comunidade cristã e o mundo.

(137) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium,
LG 10.


O matrimónio, sacramento de santificação mútua e acto de culto

56O sacramento do matrimónio, que retoma e especifica a graça santificante do baptismo, é a fonte própria e o meio original de santificação para os cônjuges. Em virtude do mistério da morte e ressurreição de Cristo, dentro do qual se insere novamente o matrimónio cristão, o amor conjugal é purificado e santificado: «O Senhor dignou-se sanar, aperfeiçoar e elevar este amor com um dom especial de graça e caridade»(138).

O dom de Jesus Cristo não se esgota na celebração do matrimónio, mas acompanha os cônjuges ao longo de toda a existência. O Concílio Vaticano II recorda-o explicitamente, quando diz que Jesus Cristo «permanece com eles, para que, assim como Ele amou a Igreja e se entregou por ela, de igual modo os cônjuges, dando-se um ao outro, se amem com perpétua fidelidade... Por este motivo, os esposos cristãos são fortalecidos e como que consagrados em ordem aos deveres do seu estado por meio de um sacramento especial; cumprindo, graças à energia deste, a própria missão conjugal e familiar, penetrados do espírito de Cristo que impregna toda a sua vida de fé, esperança e caridade, avançam sempre mais na própria perfeição e mútua santificação e cooperam assim juntos para a glória de Deus»(139).

A vocação universal à santidade é dirigida também aos cónjuges e aos pais cristãos: é especificada para eles pela celebração do sacramento e traduzida concretamente nas realidades próprias da existência conjugal e familiar(140). Nascem daqui a graça e a exigência de uma autêntica e profundoespiritualidade conjugal e familiar, que se inspire nos motivos da criação, da aliança, da cruz, da ressurreição e do sinal, sobre cujos temas se deteve várias vezes o Sínodo.

O matrimónio cristão, como todos os sacramentos que «estão ordenados à santificação dos homens, à edificação do Corpo de Cristo, e enfim, a prestar culto a Deus»(141), é em si mesmo um acto litúrgico de louvor a Deus em Jesus Cristo e na Igreja: celebrando-o, os cônjuges cristãos professam a sua gratidão a Deus pelo dom sublime que lhes foi dado de poder reviver na sua existência conjugal e familiar o mesmo amor de Deus pelos homens e de Cristo pela Igreja sua esposa.

E como do sacramento derivam para os cônjuges o dom e a obrigação de viver no quotidiano a santificação recebida, assim do mesmo sacramento dimanam a graça e o empenho moral de transformar toda a sua vida num contínuo «sacrifício espiritual»(142). Ainda aos esposos e aos pais cristãos, particularmente para aquelas realidades terrenas e temporais que os caracterizam, se aplicam as palavras do Concílio: «E deste modo, os leigos, agindo em toda a parte santamente, como adoradores, consagram a Deus o próprio mundo»(143).

(138) Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes,
GS 49.
(139) Ibid., GS 48.
(140) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, LG 41.
(141) Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, SC 59.
(142) Cfr. 1P 2,5; Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, LG 34.
(143) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, LG 34.



Familiaris consortio PT 41