Discursos João Paulo II 1979 - Quarta-feira, 28 de Março de 1979

O espectáculo grandioso e arrebata dor desta Basílica, levantada sobre o túmulo do Príncipe dos Apóstolos e primeiro Vigário de Cristo, a qual todas as quartas-feiras volta a vibrar de alegria festiva pela vossa juvenil presença, é sempre para mim razão de conforto e de esperança, e leva-me a entabular, cada vez com nova intensidade de afecto, um diálogo simples e directo.

Sede todos bem-vindos. A cada um de vós pessoalmente, dirijo a minha saudação e o meu agradecimento e, em especial, desejo recordar a "Peregrinação juvenil" de Civita Castellana e Caprarola, presidida pelo Bispo, D. Marcello Rosina; a Peregrinação de 3.000 estudantes da Diocese de Tursi-Lagonegro, também presidida pelo Bispo, D. Vincenzo Franco; e, além disso, os 2.000 alunos e alunas dos Institutos da União Romana das Ursulinas, provenientes de várias regiões da Itália.

Caros rapazes e meninas, estamos percorrendo com intensidade de fervor o sagrado tempo quaresmal, que nos prepara para a Páscoa e nos incita a aprofundarmos e vivermos a nossa responsabilidade de cristãos, de baptizados e de membros vivos do Corpo Místico de Cristo. Nas quartas-feiras precedentes falei da nossa responsabilidade para com Deus, que podemos sintetizar na palavra "adoração", isto é, o reconhecimento de Deus na sua realidade — de Absoluto, de Criador e de Pai — mediante a oração; aludi também ao dever para connosco mesmos, o qual se resume noutra expressão estimada pela tradição eclesial: o "jejum", entendido como renúncia às coisas, com o fim de obter o domínio sobre elas, que nos disponha para o bem, nos torne aptos para o sacrifício e abertos ao amor.

Precisamente a este amor, à disponibilidade para com o próximo, para com outrem — dimensão hoje tão congenial à consciência juvenil —, desejo agora aludir, ao sujeitar à vossa atenção o terceiro exercício ascético, característico do período quaresmal, o da esmola: Arrependei-vos... e dai esmola (Cfr. Mc Mc 1,15 Lc 12,33).

Ao ouvirdes a palavra "esmola", a vossa sensibilidade de jovens amantes da justiça e desejosos duma imparcial distribuição da riqueza poderia sentir-se ferida e ofendida. Parece que posso descobrir isto em vós. Por outro lado, não julgareis ser os únicos a notar essa reacção interior; está em sintonia com a congénita fome e sede de justiça que todos os homens trazem consigo. Também os profetas do Antigo Testamento, quando dirigem ao Povo de Israel o convite para a conversão e a verdadeira religião, indicam a reparação das injustiças para com os fracos e os indefesos, como estrada real para a restauração das relações genuínas com Deus (Cfr. Is Is 58,6-7).

Todavia, a prática da esmola é recomendada em todo o Texto sagrado, tanto no Antigo como no Novo Testamento; do Pentateuco aos Livros Sapienciais, do livro dos Actos às Cartas Apostólicas. Ora, por meio dum estudo da evolução semântica da palavra, sobre a qual se formaram incrostações menos genuínas, devemos nós encontrar o significado verdadeiro de "esmola" e sobretudo a vontade e a alegria de dar esmola.

Palavra grega, "esmola" significa etimologicamente compaixão e misericórdia. Diversas circunstâncias e o influxo duma mentalidade minimizante transtornaram e profanaram em certo modo a sua primitiva significação, reduzindo-a às vezes a um acto sem espírito e sem amor.

Mas a esmola, em si mesma, é entendida, na sua essência, como atitude do homem que reconhece a necessidade dos outros, que deseja comunicar aos outros o bem próprio. Quem poderá dizer que não haverá sempre outro que tenha necessidade de auxilio, primeiramente espiritual, de apoio, de conforto, de fraternidade e de amor? O mundo é sempre demasiado pobre de amor.

Assim definida, a esmola e acto de altíssimo valor positivo, de cuja bondade não é permitido duvidar e que deve encontrar em nós uma disponibilidade que fundamentalmente vem do coração e do espírito, sem a qual não existe verdadeira conversão a Deus.

Mesmo que não disponhamos de riquezas e de capacidades concretas para valer às necessidades do próximo, não podemos sentir-nos dispensados de abrir o ânimo às suas carências e de alivia-las na medida do possível. Recordai-vos do óbolo da viúva, que lançou no tesouro do templo só duas moedazinhas, mas juntamente o seu grande amor: Ela, na sua indigência, deitou tudo o que tinha para viver (Lc 21,4).

Caríssimos, o assunto encanta, levar-nos-ia longe; deixo à vossa reflexão continuá-lo. No vosso caminho para a alegria pascal acompanhem-vos o meu afecto, a minha benevolência e a minha bênção.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO


DA FUNDAÇÃO «PRO ORIENTE»


29 de Março de 1979

: Eminência,
Excelência Senhoras e Senhores

Por um insondável desígnio da Providência divina, a visita que, como delegação do Conselho de Administração da Fundação ecuménica «Pro Oriente», vós já desejáveis fazer, o ano passado, acompanhados do vosso Fundador e dos Presidentes ao Papa João Paulo I, só hoje a podeis efectuar ao seu sucessor. Recebo-vos pois pessoalmente — e ao mesmo tempo em vez do meu inesquecível predecessor — com a maior alegria, desejando-vos as mais cordiais boas vindas.

Correspondendo ao seu nome «Pro Oriente», desde há 15 anos que se empenha num diálogo com as Igrejas ortodoxas e, nestes últimos anos, mais especificamente, num diálogo com as Igrejas orientais primitivas. Como acentuei brevemente na minha primeira Encíclica «a verdadeira actividade ecuménica comporta abertura, aproximação, disponibilidade para o diálogo de busca em comum da verdade no pleno sentido evangélico e cristão» (Encíclica Redemptor hominis RH 6). Para este fim concorreram de maneira frutuosa os numerosos encontros, os colóquios, as sessões de estudo e as publicações; graças a todo isto, vós contribuistes, ao nível de contactos pessoais e de pesquisas metodológicas qualificadas, para um melhor conhecimento recíproco, e um mais profundo conhecimento dos progressos e da tradição histórica das Igrejas particulares do Ocidente e do Oriente e para um reconhecimento mais consciente da sua já muito rica herança comum. Vós podeis desde já considerar retrospectivamente, com alegria e satisfação, os preciosos resultados concretos já obtidos.

A instituição da Fundação ecuménica «Pro Oriente» foi igualmente, naquela época, uma generosa e ao mesmo tempo pertinente resposta da Igreja local de Viena às directrizes ecuménicas próprias do Concílio Vaticano II. De facto, no seu Decreto sobre o Ecumenismo, o Concílio exorta todos, mas especialmente aqueles que pretendem trabalhar para o restabelecimento da desejada e plena comunhão entre as Igrejas Orientais e a Igreja católica, a Rue tenham na devida consideração esta condição especial do nascimento e crescimento das Igrejas do Oriente, e a natureza das relações existentes entre elas e a Sé Romana antes da separação, e formem um juizo equânime de todas estas coisas. Se tudo isto for cuidadosamente observado, muito contribuirá para o desejado diálogo (Decreto sobre o Ecumenismo Unitatis Redintegratio UR 14).

Ao agradecer-vos, em nome de Nosso Senhor e da Igreja, o fecundo trabalho ecuménico realizado até ao presente pela vossa Fundação «Pro Oriente», exorto-vos a prosseguirdes com não menos fervor os vossos futuros esforços. Oxalá possais haurir, da viagem que agora estais a realizar a Roma e a Istambul, novas forças e renovada coragem.

Por vosso intermédio, venerável Senhor Cardeal, desejaria transmitir a certeza dos meus respeitosos sentimentos e a minha saudação fraterna no Senhor, a Sua Santidade o Patriarca Ecuménico Demétrios I com quem vos encontrareis brevemente.

Ao dirigir-vos os meus melhores votos por uma frutuosa permanência e por uma feliz viagem, dou-vos a todos, muito cordialmente, a minha Bênção Apostólica.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À «EUROPEAN PHYSICAL SOCIETY»


30 de Março de 1979



Desejo começar exprimindo a minha gratidão a vós, Professor, por esta iniciativa de me visitardes hoje; não posso exprimir quanto estou agradecido por tal iniciativa e por esta vossa presença; é para mim a continuação das experiências que fiz já, quando estava ainda na Polónia, em Cracóvia; era para mim então coisa habitual encontrar-me com os cientistas, especialmente com os físicos, para diversos colóquios. Assim o dia de hoje, com o nosso encontro, é para mim uma primeira promessa de que tal modo de proceder e estes encontros terão o seu futuro; não ficarão a pertencer só ao meu passado, terão um futuro noutro plano. Estou, além disso, muito agradecido por tudo o que dissestes, e eu penso que tudo isso foi sobretudo o assunto essencial do nosso encontro. O que posso dizer eu agora, será sobretudo alguma alusão, alguma referência. Na verdade, tendo a felicidade de encontrar-me hoje convosco, pensei que não estava preparado.

Queria estar mais preparado, mas disse a mim mesmo: andemos como estão as coisas, como elas estão é preciso dar um passo, fazer uma jornada; depois talvez nos preparemos juntos, em futuros encontros. Mas devo dizer que as coisas que exprimistes são verdadeiramente essenciais para o conteúdo deste nosso encontro, porque são os problemas fundamentais, os problemas da natureza mesma da ciência, e depois os problemas da relação da ciência com a fé, com a religião; trata-se de problemas que não são unicamente problemas digamos internos, da ciência, mas sim problemas daquele que é o sujeito, o portador e o autor da ciência, daquele que com a ciência cria a si mesmo um ambiente seu, cria depois um cosmos seu, um cosmos humano com os problemas do homem. E assim são essenciais todas as outras coisas que exprimistes; mas especialmente me agradou que tivésseis dito que o esforço criador da ciência será talvez mais feliz que o esforço que fazem outros — como, por exemplo, os políticos — que não souberam reconstituir a unidade da Europa, do nosso continente, enquanto por vosso turno vós, os cientistas, estais convencidos de a poder conseguir. Assim, eu estou com os cientistas, estou convosco.

Permiti-me, Professor, que eu faça agora mudança de língua. Quero daqui por diante expressar-me em francês, pois será porventura mais fácil, para todos os participantes, que eu traduza assim os meus sentimentos e depois também algumas ideias.

Senhoras e Senhores, tenho o gosto de saudar em vós um grupo de sábios ilustres, membros da Sociedade europeia para a Física, presidida pelo Professor Antonino Zichichi. O encontro desta manhã é-me especialmente agradável. Na verdade, se a minha formação pessoal foi sobretudo e continua a ser humanista (tenho de dizer que muito pouco conheço a vossa matéria), sendo orientada depois para questões filosóficas, teológicas e morais, as vossas preocupações não me são contudo estranhas. Era mesmo um tanto inesperado, mas eu era sempre bem recebido, pelos físicos — pelas pessoas, pelos professores que representam a vossa profissão e especialização; e sabendo bem pouco dos vossos problemas e da vossa ciência, sentia-me bem ao lado deles.

Pudemos e soubemos compreender-nos. Em Cracóvia procurei, e sempre reconheci muito frutuosos, os contactos com o mundo da ciência e particularmente com os especialistas em ciências físicas. Mostra isto o valor que atribuo ao instante actual, que evoca tantos outros encontros, em particular talvez os que se deram com o «Club-Roma». Os resultados dos trabalhos deste Club são bem conhecidos entre nós, na Polónia. As circunstâncias actuais não permitem dar ao encontro de hoje esse aspecto de intercâmbio pessoal que eu tanto apreciava. Mas vai tratar-se de imprimir talvez mais, no futuro, aos nossos encontros, tal aspecto de intercâmbio.

Os problemas que vos propusestes, durante este encontro internacional, são de grande importância e de grande actualidade, pois talvez venham a constituir um ponto de referência para o desenvolvimento da física moderna. Aplicastes-vos, de facto, a tratar problemas científicos muito actuais, que vão desde as altíssimas energias para o estudo dos fenómenos subnucleares até à fusão nuclear, dos rádio-interferómetros astrofísicos até à luz dos sincrotões. Desculpai-me se eu pronuncio estas palavras e não sou capaz de dar uma significação assimilada a todas estas expressões, a esta terminologia. Mas é também, julgo eu, a nossa situação de todos quando vivemos neste mundo tão especializado; perde-se a facilidade de falar todas as línguas possíveis, não somente as línguas em sentido linguístico, mas também as línguas no sentido científico. Graças ao conhecimento das línguas clássicas (grego, latim), compreende-se um pouco o que querem dizer essas palavras, mas a significação real, a correspondência com a realidade determinada por tal terminologia, sois vós sem dúvida que a deveis trazer. Aliás a vossa Sociedade, que abrange vários milhares de físicos pertencentes a 28 nações da Europa, constitui igualmente um apelo à unidade cultural de toda a comunidade dos países europeus.

Não tenho intenção de vos apresentar hoje um discurso profundo, apenas algumas observações sobre o problema, sempre novo e actual, da posição recíproca do saber científico e da Fé. Vós sois, primeiro que tudo, investigadores; devo dizer que é uma palavra que muito especialmente me agrada: Investigadores! Convém salientar esta característica da vossa actividade e animar a justa liberdade da vossa investigação no seu objecto e método próprios segundo «a legítima autonomia da cultura e especialmente da ciência», recordada pelo Concílio Vaticano II (Constituição pastoral Gaudium et Spes GS 59). Devo dizer que este parágrafo da Gaudium et Spes é para mim verdadeiramente importante. A ciência em si mesma é boa, por ser conhecimento do mundo que é bom, criado e visto pelo Criador com satisfação, como diz o livro do Génesis: Deus viu caie toda a sua obra era boa (Gn 1,31). Gosto muito do capítulo primeiro do Génesis. O pecado original não alterou completamente essa bondade primitiva. O conhecimento humano do mundo é maneira de participar na ciência do Criador. Constitui portanto um primeiro grau da semelhança do homem com Deus, acto de respeito para com Ele, porque tudo quanto nós descobrimos presta homenagem à verdade primeira.

O sábio descobre as energias ainda desconhecidas do universo e coloca-as ao serviço do homem. Pelo seu trabalho, deve portanto fazer crescer ao mesmo tempo o homem e a natureza. Deve humanizar mais o homem, respeitando e aperfeiçoando a natureza. O universo tem harmonia em todas as suas partes, e cada desequilíbrio ecológico traz consigo um prejuízo para o homem. O sábio não tratará portanto a natureza como escrava mas, inspirando-se talvez no Cântico das criaturas de São Francisco de Assis, considerá-la-á antes como irmã, chamada a cooperar com ele para abrir caminhos novos ao progresso da humanidade.

Este caminho não pode contudo ser percorrido sem o concurso da técnica e da tecnologia, que tornam eficaz a investigação científica. Permiti que me refira à minha recente encíclica Redemptor hominis,, em que recordei a necessidade duma regra moral e da ética, que permitam ao homem aproveitar as aplicações práticas da investigação científica, encíclica em que falei da questão fundamental da inquietação profunda do homem contemporâneo: 'Este progresso de que é autor e fautor o homem, torna acaso a vida humana sobre a terra, em todos os seus aspectos, mais humana'? Torna-a mais digna do homem?'» (Encíclica Redemptor hominis, RH 35).

Não há dúvida que, sob muitos aspectos, o progresso técnico, nascido dos descobrimentos científicos, ajuda o homem a resolver problemas gravíssimos como o da alimentação, da energia e da luta contra certas doenças, mais que nunca espalhadas pelos países do Terceiro Mundo. Há também esses grandes projectos europeus de que tratou o vosso seminário internacional, que não podem ser resolvidos sem a investigação científica e técnica. Mas é também verdade que o homem é vítima, hoje, dum grande medo, considerando-se ameaçado por aquilo mesmo que fabrica, pelos resultados do seu trabalho e pelo uso dos seus artefactos. Para impedir que a ciência e a técnica fiquem sujeitas à prepotência de poderes tirânicos, tanto políticos como económicos, e para ordenar positivamente ciência e técnica em benefício do homem, é preciso, como se costuma dizer, um suplemento de alma, um sopro novo do espírito, uma fidelidade às normas morais que regem a vida do homem.

Aos homens de ciência das diversas disciplinas — em particular a vós, físicos, que descobristes energias dum alcance imenso -toca utilizardes todo o vosso prestígio para que as consequências científicas se sujeitem às normas morais, em vista da protecção e do progresso da vida humana.

Uma comunidade científica como a vossa, que abrange sábios de todos os países da Europa e de todas as convicções religiosas, pode cooperar de maneira especial na causa da paz: a ciência transpõe de facto as fronteiras políticas, como acabais de dizer, e exige, hoje sobretudo, uma colaboração de carácter mundial. Oferece aos especialistas um lugar ideal de encontros e intercâmbios amigáveis, que ajudam a servir a paz.

Num conceito cada vez mais elevado da ciência, em que é posto ao serviço da humanidade, numa perspectiva ética, o conhecimento, ides vós permitir-me que apresente à vossa reflexão um novo grau de ascese espiritual.

Há um laço entre a fé e a ciência, como também vos foi dado afirmar. O Magistério da Igreja sempre o declarou e um dos fundadores da ciência moderna, Galileu, escrevia que «a Sagrada Escritura e a Natureza procedem, uma e outra, do Verbo divino: uma, como sendo ditada pelo Espírito Santo, e a outra como executora fidelíssima das obras de Deus». Assim escrevia na sua carta de 1613 a B. Castelli (Edizione nazionale delle Opere di Galileo, vol. V, pág. 282) .

Se a investigação científica proceder segundo métodos de rigor absoluto e se mantiver fiel ao seu objecto próprio, e se a Escritura for lida segunda as esclarecidas directrizes da Igreja, dadas na Constituição conciliar Dei Verbum que são as directrizes, digamos, últimas — havia anteriormente outras semelhantes —, não poderá haver oposição entre a fé e a ciência. Nos casos em que a história assinala tal oposição, esta deriva sempre de posições erróneas postas claramente de parte pelo Concílio ao deplorar «certas atitudes de espírito que não faltaram entre os mesmos cristãos, por não conhecerem suficientemente a legítima autonomia da ciência e que, pelas disputas e controvérsias a que deram origem, levaram muitos espíritos a pensar que a fé e a ciência eram incompatíveis» (Constituição pastoral Gaudium et Spes GS 36, parágrafo 2).

Quando os cientistas avançam com humildade na investigação dos segredos da natureza, condu-los a mão de Deus até aos ápices do espírito, como notava o meu predecessor o Papa Pio XI no Motu proprio, ao instituir a Academia Pontifícia das Ciências. Os cientistas chamados a fazerem parte dela, notava Pio XI «não hesitaram em declarar, e com razão, que a ciência, seja no ramo em que for, abre e consolida o caminho que leva à fé cristã».

A Fé não oferece recursos à investigação científica como tal, mas anima o cientista a continuar a sua investigação, sabendo que na natureza encontra a presença do Criador. Alguns dentre vós seguem este caminho. Todos concentrais as vossas forças intelectuais, cada um na sua especialidade, descobrindo dia após dia com a alegria de conhecer, as possibilidades indefinidas que a investigação fundamental abre ao homem e as questões tremendas que lhe apresenta ao mesmo tempo, mesmo às vezes para o seu futuro.

Gostaria que nos fosse possível continuarmos este contacto daqui por diante, encontrando a ocasião e as modalidades duma troca indirecta — as minhas ocupações, como as vossas, não dão ensejo a outra possibilidade —, troca que me permita conhecer melhor as vossas preocupações e o que vós gostaríeis de ouvir do Papa. Julgo que ficam nisto algumas observações em certo modo preliminares. Desejo, Senhoras e Senhores, que a bênção do Todo-Poderoso desça sobre os vossos trabalhos e as vossas pessoas, e vos dê o reconforto de contribuir para o verdadeiro progresso da humanidade, para a saúde dos corpos e dos espíritos, para a solidariedade e a paz entre os Povos. Obrigado.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS JOVENS DE «COMUNHÃO E LIBERTAÇÃO»


31 de Março de 1979



Caríssimos
Sede bem vindos.

Este entusiasmo espontâneo e festivo, ao acolherdes a minha chegada a esta sala, é testemunho de afecto sincero, e também expressão bem clara da fé profunda que tendes no ministério eclesial que me foi confiado por Cristo.

A vossa presença hoje é grande alegria para mim. E não posso dizer que seja a primeira vez que nos encontramos; não sei já quantas vezes nos encontrámos antes. Recordo-me de todos aqueles encontros na Polónia. E devo dizer que tais encontros produziram os seus frutos, de tal modo que hoje, ao entrar nesta sala, eu não sabia quem é que aqui se encontrava. É juventude italiana, ou polaca? — perguntava-me eu.

Tantos encontros! Recordo perfeitamente o de Kroscienko, e, depois, também o de Cracóvia.

Mas agora deve antes falar-se da vossa peregrinação. Sempre julguei ser um peregrino bastante fiel, fiel a Czestochowa e a Jasna Gora, mas agora encontrei aqui pessoas que fizeram, por duas vezes, a peregrinação a pé de Varsóvia a Czestochowa. Mas eu apenas a fiz uma vez e não de Varsóvia, mas de Cracóvia que é mais curta caminhada. E assim, peregrinais muitas vezes à Polónia. Ides a Kroscienko, andais por todo o lado durante o verão, quando se fazem os chamados oásis, assembleias, exercícios espirituais dos jovens da Polónia. Ides voluntariamente e passais com os de lá esses dias. Ides, depois, participar na peregrinação de Varsóvia a Czestochowa, a uma distância, se me não engano, de 250 quilómetros, e por uma estrada não muito fácil.

No último ano, o número dos participantes italianos foi o mais elevado e penso que, entre esses peregrinos, a maioria era constituída por jovens do vosso Movimento.

Recordo-me que uma vez — é bom que eu recorde ... e agora leio —; uma vez — mas será a última recordação por agora — recordo-me que, depois daquela peregrinação de Varsóvia a Czestochowa, chegou um grupo, grupo italiano, que entrou na minha Capela em Cracóvia, na casa arquiepiscopal, a cantar em polaco. Eu não pude discernir perfeitamente: são os de «Comunhão e Libertação» ou são os do nosso Movimento para a Igreja viva? Não é realmente a primeira vez que nos encontramos.

Digo-vos que é para mim uma alegria imensa econtrarmo-nos hoje, e espero que tal alegria, que uma alegria semelhante, nos acompanhe sempre.

Desejo manifestar-vos o conforto e a satisfação que me traz este encontro convosco. Repetidas vezes tenho tido ocasião de testemunhar a confiança que tenho no seu entusiasmo generoso por todas as causas nobres e grandes, pela sua disponibilidade pronta e desinteressada para o sacrifício em defesa dos ideais em que acreditam. Renovo hoje, perante vós, o testemunho dessa confiança, perante vós que acreditais em Cristo, em quem está a verdadeira esperança do mundo, porque é Ele a luz verdadeira, a que ilumina todos os homens (Jn 1,9). Vós propusestes-vos levar para qualquer ambiente — em que a Providência vos fez viver, servir e amar — a mensagem renovadora da fé, porque estais convencidos que é possível encontrar no Evangelho a resposta adequada a todas as perguntas que atormentam o homem. A vossa proposta teve apoios, se bem que entre lutas e oposições, e sei que também sofrestes.

Então, entre contrastes e oposições, vistes convergir para vós e colocarem-se ao vosso lado outros jovens, a quem o vosso exemplo fez descobrir novos horizontes de auto-realização e de alegria.

Pudestes assim ver com os vossos próprios olhos quanto precisa o mundo de Cristo. É importante continuardes, com coragem humilde, a anunciar a sua palavra salvadora. Só dela pode vir, de facto, a verdadeira libertação do homem. São João escreveu de modo incisivo: O Verbo deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus (Jn 1,12). É em Cristo, portanto, que se coloca a nascente da força que transforma interiormente o homem, o princípio da vida nova que não fenece nem passa, mas perdura para a vida eterna (Cfr. Jo Jn 4,14).

Só no encontro com Ele pode encontrar, por isso, satisfação a inquietação em que — como anotava na minha recente Encíclica — «bate e pulsa o que há de mais profundamente humano: a procura da verdade, a insaciável necessidade do bem, a fome da liberdade, a nostalgia do belo, a voz da consciência» (Carta Encíclica Redemptor hominis RH 18). É lógico portanto que «a Igreja, procurando olhar o homem quase com os próprios olhos de Cristo, tome cada vez mais consciência de que é guarda de um grande tesouro, que lhe não é lícito dissipar» 'Cfr. ibid..

Em tal tomada de consciência, e nos deveres que dela derivam, é chamado a participar todo o cristão. Portanto, também vós, jovens, caríssimos jovens, que no próprio nome que escolhestes para designar o vosso movimento «Comunhão e Libertação» mostrastes estar bem conscientes das ânsias mais profundas do homem moderno. (Devo dizer que me agrada muito esse vosso nome, e por muitos motivos: por um motivo teológico e por um motivo, eu diria, eclesiológico. Tal nome aproxima-se muito da eclesiologia do Vaticano II. Depois agrada-me pela perspectiva que nos abre: a perspectiva pessoal, interior, e a perspectiva social: Comunhão e libertação. Pela sua actualidade, é este um dever da Igreja hoje: dever que se exprime precisamente no nome «Comunhão e Libertação»). A libertação por que o mundo aspira — raciocinastes — é Cristo; Cristo vive na Igreja; a verdadeira libertação do homem dá-se, portanto, na experiência da comunhão eclesial; edificar esta comunhão é, por isso, o contributo essencial que os cristãos podem dar à libertação de todos.

É intuição profundamente verdadeira: não posso deixar de vos exortar a que tireis dela, com coerência, todas as consequências lógicas. A Igreja é essencialmente mistério de comunhão: eu diria que é um convite à comunhão, à vida na comunhão. Na comunhão, digamos, vertical e na comunhão horizontal; na comunhão com o próprio Deus, com Cristo; e na comunhão com os outros. É a comunhão que explica uma plena realização de pessoa a pessoa. A Igreja é essencialmente mistério de comunhão: comunhão íntima e sempre renovada com a própria fonte da vida que é a Santíssima Trindade; comunhão de vida, de amor, de imitação e de seguimento de Cristo, Redentor do homem, que se une intimamente com Deus. Daqui brota a operante e autêntica comunhão de amor de nós uns para com os outros, por força da nossa semelhança ontológica com Ele.

Convite à comunhão. Vivei com ímpeto generoso as exigências que nascem de tal realidade. Procurai por isso, construir unidade nos pensamentos, nos sentimentos e nas iniciativas à volta dos vossos párocos e, com eles, à volta do Bispo que é «o princípio visível e o fundamento de unidade na Igreja particular» (Cfr. Const. Dogm. Lumen Gentium LG 23). Mediante a comunhão com o vosso Bispo, podeis ter a certeza de estar em comunhão com o Papa, com toda a Igreja; de estar em comunhão com o Papa que vos ama, que tem confiança em vós e que muito espera da vossa acção ao serviço da Igreja e de tantos irmãos a quem ainda Cristo não chegou com a luz da sua mensagem.

Entre os critérios de autenticidade que o meu grande predecessor Paulo VI atribuía aos movimentos eclesiais, na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, há um que merece ser meditado atentamente: as «comunidades de base», dizia Paulo VI, serão «lugar de evangelização» e «esperança para a Igreja» se permanecerem «firmemente ligadas à Igreja local em que se inserem, e à Igreja universal, evitando assim o perigo de se isolarem em si mesmas, e depois de se crerem a única autêntica Igreja de Cristo, e por consequência, de anatematizarem as outras comunidades eclesiais» (Evangelii Nuntiandi EN 58).

São palavras ditadas por uma vasta experiência pastoral, e vós estais em condições de apreciar toda a sua profundidade. Habituai-vos a confrontar com elas todas as vossas iniciativas concretas: desta constante obrigação de confronto depende a eficácia apostólica da vossa actividade, que será assim expressão autêntica da missão salvadora da Igreja no mundo.

Disse que esse nome «Comunhão e Libertação», nos abre uma perspectiva interior e, ao mesmo tempo, social. Interior, porque nos faz viver em comunhão com os outros, com os que nos estão mais próximos; faz-nos procurar esta comunhão no nosso caminho pessoal, na amizade, no amor, no matrimónio e na família. Depois, nos diferentes ambientes: é muito importante manter o nível de comunhão nas relações inter-humanas e interpessoais. Nível de comunhão nas relações entre os homens, entre as pessoas. Tal nível permite-nos criar uma libertação autêntica, porque o homem liberta-se na comunhão com os outros, não no isolamento; não individualmente, mas com os outros, através dos outros, pelos outros. É este o sentido pleno da comunhão, de que brota a libertação. E a libertação, como eu disse num discurso de quarta-feira nesta sala, a libertação comporta diversos significados. Muito depende do ambiente cultural e social: libertação quer dizer diferentes coisas. Uma coisa é na América Latina, outra é na Itália, outra na Europa toda, uma coisa é na Europa ocidental, outra na Europa oriental, outra ainda nos países africanos, etc. Deve procurar-se a encarnação da libertação que é justa em referência ao contexto particular em que vivemos. Porém, a libertação consegue-se sempre na comunhão e através da comunhão.

Caríssimos, ao concluir este encontro e estas palavras — sei que se não tocaram todos os assuntos possíveis; tocaram-se, direi, apenas os pontos mais essenciais: o significado do vosso nome; mas esperamos que apareçam outras ocasiões para avançarmos e aprofundarmos; não se pode dizer tudo de uma vez; é melhor que os ouvintes fiquem com um pouco de fome ... Ora bem, ao concluir este encontro, desejo deixar-vos um lema: com a Igreja caminhai confiantes para o homem. Na Encíclica eu indiquei precisamente o homem como a principal estrada sobre que deve caminhar a Igreja «porque o homem — cada homem sem nenhuma excepção — foi redimido por Cristo, liberto por Cristo, porque Cristo está dalgum modo unido ao homem — a cada homem, sem excepção alguma—, mesmo quando o homem não tenha disso consciência» (Carta Encíclica Redemptor hominis RH 14). Alimente-se o vosso testemunho cristão de tal certeza, e colha dela em cada dia novo impulso e novo rigor.

Façamos agora um pequeno intervalo para dar a Bênção. Estou seguro que se não deve dizer nada mais, mas acolher tão somente esta Bênção e deixar que a oiçam os nossos corações. Mas antes da Bênção, quero ainda digir-me ao vosso Padre Espiritual. E quero dirigir-me também ao vosso Presidente que me falou no início, que me acompanhou na entrada e me ofereceu também aquele quadro brasileiro. Estou-vos agradecido pela vossa oferta, e estou agradecido ao artista, ao pintor; estou imensamente agradecido ao pintor que o fez. E agora podemos rezar, dar a Bênção. Depois, vir-nos-ão algumas ideias e algumas palavras.

[...] (seguiu-se a oração).

Agora algumas palavras que nos ocorreram durante a oração. Primeira palavra: quero agradecer-vos o facto de me terdes acompanhado logo no início do Pontificado — viestes logo no primeiro dia, trazendo também uma inscrição em polaco. Mas eu pensei imediatamente: não são da Polónia os que a trazem, porque — vou explicar-vos porquê — porque havia um engano, um erro ortográfico. Esta a primeira palavra que nos veio durante a oração.

A segunda: sendo assim, estando as coisas como estão, deve-mos cantar agora «Otojes gen» Devemos cantar todos juntos, porque é verdade o que esta canção exprime.

[ ... ] (seguiu-se a canção).

Há ainda uma ideia, uma palavra. Porque é que eu vos deixo assim um pouco esfomeados, não tocando todos os assuntos? Porque previ encontrar-me na próxima semana, quinta-feira, com os estudantes de Roma para uma assembleia pascal. O Cardeal Vigário disse: Páscoa com os estudantes. Sendo assim, não devo dizer-vos hoje demasiado, para deixar um pouco para dizer na próxima semana. Basta, então.




Discursos João Paulo II 1979 - Quarta-feira, 28 de Março de 1979