
AUDIÊNCIAS 1979
Quarta-feira, 5 de Setembro de 1979
Em colóquio com Cristo
sobre os fundamentos da família
1. Há tempos que estão em curso os preparativos para a próxima Assembleia ordinária do Sínodo dos Bispos, que se realizará em Roma no Outono do ano que vem. O tema do Sínodo «De muneribus familiae christianae» (Deveres da família cristã) concentra a nossa atenção nessa comunidade de vida humana e cristã, que desde o princípio é fundamental. Exactamente esta expressão «desde o princípio» empregou o Senhor Jesus no diálogo sobre o matrimónio referido pelo Evangelho de São Mateus e pelo de São Marcos. Queremos perguntar-nos que significa esta palavra «princípio» exactamente nesta circunstância e, portanto, propomo-nos análise mais precisa do referido texto da Sagrada Escritura.
2. Durante a conversa com os fariseus, que o interrogavam sobre a indissolubilidade do matrimónio, duas vezes se referiu Jesus Cristo ao «princípio». O diálogo decorreu da maneira seguinte:
Alguns fariseus, para O experimentarem, aproximaram-se d'Ele e disseram-lhe: «É permitido a um homem repudiar sua mulher por qualquer motivo?». Ele respondeu: «Não lestes que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher, e disse: Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, e unir-se-á a sua mulher, e serão os dois uma só carne? Portanto, já não são dois, mas uma só carne. Pois bem, o que Deus uniu, não o separe o homem». «Por que foi então, perguntaram eles, que Moisés preceituou dar-lhe carta de divórcio ao repudiá-la?». «Por causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas ao princípio não foi assim» (Mt 19,3 ss.; cfr. também Mc 10, 2, ss.).
Cristo não aceita a discussão ao nível que os seus interlocutores procuram dar-lhe, em certo sentido não aprova a dimensão que eles se esforçam por conferir ao problema. Evita embrenhar-se nas controvérsias jurídico-casuísticas; e, em vez disso, apela duas vezes para o «princípio». Procedendo assim, faz clara referência às palavras sobre a matéria no Livro do Génesis, que também os seus interlocutores sabem de cor. Dessas palavras da revelação antiquíssima, tira Cristo a conclusão, e o diálogo termina.
3. «Princípio» significa portanto aquilo de que fala o Livro do Génesis. É portanto o Génesis 1, 27 que cita Cristo, em forma resumida: O Criador desde o princípio fê-los homem e mulher; mas o trecho originário completo soa textualmente assim: Deus criou o homem à Sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. Em seguida, o Mestre refere-se ao Génesis 2, 24: Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne. Citando estas palavras quase «in extenso», por inteiro, Cristo dá-lhes ainda mais explícito significado normativo (dado que era admissível a hipótese de no Livro do Génesis figurarem como afirmações unicamente de factos: «Deixará ... unir-se-á ... serão uma só carne»). O significado normativo determina-se uma vez que não se limita Cristo somente à citação em si, mas acrescenta: «Portanto, já não são dois, mas uma só carne. Pois bem, o que Deus uniu, não o separe o homem». Este «não o separe» é determinante. A luz desta palavra de Cristo, o Génesis 2, 24 enuncia o princípio da unidade e indissolubilidade do matrimónio como sendo o próprio conteúdo da palavra de Deus, expressa na mais antiga revelação.
4. Poder-se-ia, nesta altura, defender que o problema está terminado, que as palavras de Jesus Cristo confirmam a lei eterna, formulada e instituída por Deus «desde o princípio», desde a criação do homem. Poderia também parecer que o Mestre, ao confirmar esta lei primordial do Criador, não faz senão estabelecer exclusivamente o próprio sentido normativo dela, apelando para a autoridade mesma do primeiro Legislador. Todavia, aquela expressão significativa «desde o princípio», repetida por Cristo, leva claramente os interlocutores a reflectirem sobre o modo como no mistério da criação foi moldado o homem, precisamente como «homem e mulher», para se compreender correctamente o sentido normativo das palavras do Génesis. Ora isto não tem menor valor para os interlocutores de hoje do que teve para os de então. Portanto, no presente estudo, considerando tudo isto, devemos colocar-nos exactamente na posição dos actuais interlocutores de Cristo.
5. Durante as sucessivas reflexões das quartas-feiras, nas audiências gerais, procuraremos, como actuais interlocutores de Cristo, deter-nos demoradamente nas palavras de São Mateus (19, 3 ss.). Para responder à indicação, que encerrou Cristo nelas, procuraremos penetrar naquele «princípio», a que Ele se referiu de modo tão significativo; e assim seguiremos de longe o grande trabalho, que sobre este tema, agora precisamente, empreendem os participantes no próximo Sínodo dos Bispos. Ao lado destes, tomam parte nele numerosos grupos de pastores e até de leigos, que sentem especial responsabilidade acerca das obrigações impostas por Cristo ao matrimónio e à família cristã: as obrigações que Ele impôs sempre, e ainda impõe na nossa época, no mundo contemporâneo.
O ciclo de reflexões que iniciamos hoje, com a intenção de continuá-lo durante os seguintes encontros das quartas-feiras, tem ainda, além do mais, como finalidade, por assim dizer, acompanhar de longe os trabalhos preparatórios do Sínodo, não entrando porém directamente no seu tema, embora dirigindo a atenção para as raízes profundas de que ele brota.
Apelo pela República Dominicana
Neste momento, quero confiar-vos encarecidamente uma grave preocupação que espero terá eco em vós e em todos aqueles que me ouvem.
Da República Dominicana continuam a chegar notícias cada vez mais dramáticas sobre os efeitos devastadores do furacão "David". As vítimas humanas são já mais de mil; os prejuízos materiais são ingentes.
Caríssimos irmãos e irmãs: uma população inteira, cujos extraordinários sentimentos humanos e espirituais tive ocasião de observar durante a minha visita à América Latina, sofre agora a dor da perda de tantas vidas humanas e vê-se reduzida à extrema miséria, sem provisões, com as suas colheitas destruídas e muitas pessoas sem tecto para se abrigarem.
Perante esta situação extremamente difícil, quero fazer-me porta-voz do apelo aflitivo daqueles caríssimos filhos: peço a todos, e de modo particular aos Estados e às Organizações Internacionais, que solicitamente acudam em seu auxílio, que se mostrem generosa e fraternalmente solidários com aquele País a fim de que, superando esta desgraça, ele consiga reconstruir serenamente a normalidade da vida citadina. O Senhor abençoe todos aqueles que prestarem a sua valiosa colaboração.
* * *
Saudações
A peregrinação de Leeds, na Grã-Bretanha
Desejo especiais boas-vindas ao Bispo Moverley e a toda a peregrinação de Leeds, na feliz ocasião do centenário desta Diocese. Oxalá a vossa visita a Roma vos ajude a confirmar-vos na fé de Pedro e Paulo e a dar-vos novo vigor para a vossa vida cristã de cada dia.
Por vosso intermédio envio a minha Bênção Apostólica ao Bispo Wheeler e a todos os sacerdotes, religiosos e leigos que permaneceram no País.
Às dirigentes do Movimento
das Guias francesas
Às 350 Responsáveis do Movimento das Guias francesas, aos Capelães do Movimento, e também ao pequeno grupo de Responsáveis pelos diminuídos físicos e às estagiárias vindas de além-mar, dirijo as minhas calorosas saudações e felicitações.
A seriedade da preparação e do desenvolvimento do vosso Congresso nacional contribui para a minha alegria e esperança de Pastor universal.
As vossas pessoas e os vossos compromissos levam-me a pensar muito na juventude contemporânea, frequentemente desiludida por uma sociedade que multiplica as coisas, sem conseguir dar razões superiores de viver à geração que cresce. Oxalá o vosso Movimento original, sempre aberto ao mundo e sempre fiel a Cristo e à Sua Igreja, realize o programa que aprofundastes durante os dias do Congresso e de Roma, ou seja: o desenvolvimento pessoal mediante a relação com os outros e o serviço da sociedade! Este programa é fundamental e permanente! Estimulai e formai os jovens para as rupturas e as escolhas profundas, a fim de que se tornem responsáveis de si mesmos, e capazes de contribuir para dar de novo ao nosso mundo transtornado a sua verdadeira finalidade que é o serviço integral do homem, segundo os critérios do Evangelho! Coragem e confiança! Cristo, Redentor do homem todo e de todos os homens. está sempre convosco! No Seu nome abençoo-vos de todo o coração.
A um peregrinação da paróquia jugoslava de Póstire
na diocese de Hvar
Desejo agora dirigir uma saudação muito cordial a vós, queridos fiéis e membros do coro paroquial de Póstire, na Diocese de Hvar na Jugoslávia, que vos reunistes aqui, acompanhados por D. Arneric, Bispo de Sibenik, vosso conterrâneo, para manifestardes a vossa filial dedicacão à Cátedra de Pedro, por ocasião do 4000 aniversário da fundação da vossa Comunidade.
Agradeço-vos terdes vindo visitar o Papa, porque cada paróquia, primeira célula eclesial, deve estar intimamente unida a toda a Igreja e por conseguinte ao fundamento visível da sua unidade. De facto, como afirma o Concílio, a Paróquia "oferece um eminente exemplo de apostolado comunitário, fundindo todas as diferenças humanas... e inserindo-as na universalidade da Igreja" (Apostolicarn Actuositatem, 10). A paróquia inclui o fiel no Corpo Místico de Cristo e é a primeira família espiritual qualificada; é a primeira escola da fé, da oração e dos costumes cristãos; é ainda o primeiro campo da caridade eclesial e o primeiro órgão da acção pastoral e social.
Satisfeito por este encontro familiar, abençoo-vos com muita efusão assim como àqueles que vos são queridos e a todos os fiéis de Póstire, fazendo votos por que sejais sempre, segundo a expressão de São Cipriano, "uma fraternidade que tem uma única alma" (cfr. S. Cipriano, Epist. 11, 3; PL 4, 242B).
À peregrinação da Diocese de Ruvo e Bitonto
Desejo também reservar urna cordial saudação à peregrinação da Diocese de Ruvo e Bitonto, acompanhada pelo Administrador Apostólico, D. Aldo Garzia, Bispo de Molfetta. A todos vós dirijo a minha palavra de apreço por esta comunitária e dinâmica manifestacão de fé, e os meus votos por uma vida serena e boa, que gentilmente transmitireis também aos vossos parentes e amigos que ficaram em casa. Ao mesmo tempo, a minha propiciadora Bênção Apostólica.
Aos participantes no XXV Congresso Nacional de Actualização
para Educadores dos Surdos
Dirijo uma particular saudação aos numerosos participantes no XXV Congresso Nacional de Actualização para Educadores dos Surdos. Caríssimos, a vossa obra não é só testemunho de elevado conteúdo social, mas encerra também valor evangélico próprio, que vos faz seguir as pegadas de Jesus Cristo. Por conseguinte, ao mesmo tempo que faço votos por que também a legislação civil favoreça cada vez mais a vossa nobre missão, encorajo-vos cordialmente a prosseguirdes no caminho empreendido, e concedo de bom grado, a vós e a todos os vossos assistidos, a minha Bênção Apostólica.
A um grupo de Conselheiros Eclesiásticos da Confederação Nacional (italiana)
dos Cultivadores Directos
Saúdo também o grupo de Conselheiros Eclesiásticos da Confederação Nacional dos Cultivadores Directos, reunidos em Roma para o seu XII Congresso Nacional sobre o tema: "Os ¡ovens camponeses, a fé e a Igreja".
Regozijo-me sinceramente pelo empenho que pondes em ajudar um dos sectores mais vitais do trabalho humano. Os operários da terra precisam de vós para também haurirem no Evangelho maior conhecimento da nobreza do próprio trabalho. Abençoo-vos, pois, de coração, juntamente com todos os trabalhadores do campo a quem dedicais o vosso cuidado.
Aos Jovens
E agora desejo dirigir, como habitualmente, uma cordial palavra de saudação e de bons votos a vós, queridos rapazes, meninas e jovens, que alegrais com a vossa vibrante juventude esta magnífica Praça de São Pedro, tornada mais do que nunca encontro dos povos e auditório de todos os crentes. Agradeço-vos que tenhais vindo manifestar ao Papa e ao mundo a vossa fé e o vosso entusiasmo sincero, com que desejais viver o ideal cristão, que se encarna no amor pessoal a Cristo e à Sua Mãe Santíssima. Regozijo-me convosco, com os vossos pais e educadores, por saber-vos guiados e animados por santos propósitos para o vosso futuro. Sirva a minha Bênção especial para vos levar a traduzi-los em prática com generosidade sempre crescente.
Aos Doentes
Caríssimos Doentes, aqui presentes ou internados nos hospitais, sabeis quanto me sinto particularmente afeiçoado a vós e penso continuamente em vós na oração e de modo especial na celebração da Santa Missa. Vós sois os predilectos do Papa. E, por vosso Lado, fazei que o vosso leito de sofrimento se torne um altar, no qual vos ofereçais em completa doação a Deus, para sua maior glória e pela redenção do mundo. E a recompensa divina não faltará, mas pelo contrário, será grande no Céu; isto peço ao Senhor para vós, ao mesmo tempo que com muita efusão vos concedo a minha particular Bênção Apostólica.
Aos jovens Casais
Ainda uma saudação de bons votos aos jovens Casais que tomam parte nesta Audiência. Caríssimos Casais, dais início à vossa nova vida com a Bênção do Papa, depois da de Deus no altar. Tende sempre diante da vossa consciência o sentido cristão da missão para a qual fostes chamados com o sacramento do matrimónio. Levai nela a límpida e plena força do amor abençoado, que, como diz Santo Agostinho, "é tanto mais forte quanto mais santo" (Ep 127,9). E nunca, nunca, venham a apagar o fogo, que acabastes de acender, cálculos egoístas. Com estes fervorosos votos, abençoo-vos no nome do Senhor.
Ao Povo dos Estados Unidos da América
Estou contente por ter a oportunidade, que me é oferecida pela televisão americana, de vos dizer com quanto prazer aguardo a minha visita ao vosso país.
A mensagem que quero levar é mensagem de esperança e de paz, mensagem de amor fraternal. Desejo manifestar a todos os Americanos — Católicos, Protestantes e Judeus; pessoas de todas as Igrejas; e todos os homens e mulheres de boa vontade — o meu afecto, respeito e estima. Peço-vos a todos que rezeis a fim de que eu possa cumprir a minha missão de serviço.
Irei, de modo particular, como servo do Evangelho de Cristo, em visita pastoral à Igreja Católica dos Estados Unidos, para proclamar a mensagem da palavra de Deus que eleva e cura. Peço especialmente aos meus irmãos católicos que nestes dias anteriores à minha visita. abram de par em par os corações à acção purificadora do Espírito Santo. É necessário, acima de tudo, uma preparação espiritual. Assim, quando eu for, poderemos celebrar convenientemente, juntos, a nossa união no amor de Deus, no amor de Nosso Senhor Jesus Cristo!
Quarta-feira, 12 de Setembro de 1979
Na primeira narrativa da criação
encontra-se a definição objectiva do homem
1. Na quarta-feira passada iniciámos o ciclo de reflexões sobre a resposta dada por Cristo Senhor aos seus interlocutores acerca da pergunta sobre a unidade e indissolubilidade do matrimónio. Os interlocutores fariseus, como recordamos, apelaram para a lei de Moisés; Cristo, pelo contrário, referiu-se ao «princípio», citando as palavras do Génesis.
O «princípio», neste caso, diz respeito àquilo de que trata uma das primeiras páginas do Livro do Génesis. Se queremos fazer uma análise desta realidade, devemos sem dúvida referir-nos primeiramente ao texto. De facto, as palavras pronunciadas por Cristo na conversa com os fariseus, que nos conservaram o capítulo 19 de Mateus e o capítulo 10 de Marcos, constituem uma passagem que por sua vez se enquadra num contexto bem definido, sem o qual não podem ser nem entendidas nem exactamente interpretadas: Não lestes que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher ...!(Mt 19,4), e faz referência à chamada primeira narrativa da criação do homem, inserida no ciclo dos sete dias da criação do mundo (Gn 1, 1-2, 4. ). Pelo contrário, o contexto mais próximo das outras palavras de Cristo, tiradas de Génesis 2, 24, é a chamada segunda narrativa da criação do homem (Gn 2,5-25), mas indirectamente é todo o terceiro capítulo do Génesis. A segunda narrativa da criação do homem forma unidade conceitual e estilística com a descrição da inocência original, da felicidade do homem e também da sua primeira queda. Dada a especificidade do conteúdo expresso nas palavras de Cristo, tomadas de Génesis 2, 24, poder-se-ia também incluir no contexto pelo menos a primeira frase do capítulo quarto do Génesis, que trata da concepção e do nascimento do homem por parte dos pais terrestres. Assim pretende-mos fazer na presente análise.
2. Do ponto de vista da crítica bíblica, urge recordar que a primeira narrativa da criação do homem é cronologicamente posterior à segunda. A origem desta última é muito mais remota. Este texto mais antigo define-se como «javista», porque para nomear a Deus serve-se do termo «Javé». É difícil não se ficar impressionado com que a imagem de Deus nele apresentada encerre traços antropomórficos bastante marcados [entre outros, lemos nele que ... o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida (Gn 2,7)]. Em confronto com esta descrição, a primeira narrativa, isto é, exactamente a considerada cronologicamente como mais recente, é muito mais amadurecida quer no que diz respeito à imagem de Deus, quer na formulação das verdades essenciais sobre o homem. Provém da tradição sacerdotal e ao mesmo tempo «eloísta»: de «Eloim», termo por ela usado para denominar Deus.
3. Dado que nesta narrativa a criação do ser inteligente como homem e mulher, a que se refere Jesus na sua resposta segundo (Mt 19), está inserida no ritmo dos sete dias da criação do mundo, poder-se-lhe-ia atribuir sobretudo carácter cosmológico; o homem é criado na terra juntamente com o mundo visível. Ao mesmo tempo, porém, o Criador ordena-lhe que subjugue e domine a terra (Cfr. Gén Gn 1,28) : ele é portanto colocado acima do mundo. Embora o homem esteja tão intimamente ligado ao mundo visível, a narrativa bíblica não fala todavia da sua semelhança com o resto das criaturas, mas somente com Deus [Deus criou o homem à Sua imagem, criou-o à imagem de Deus ... (Gn 1,27) ]. No ciclo dos sete dias da criação manifesta-se evidentemente uma gradualidade nítida(1); o homem, pelo contrário, não é criado segundo uma sucessão natural, mas o Criador parece deter-se antes de o chamar à existência, como se tornasse a entrar em si mesmo, para tomar decisão: Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança ... (Gn 1,26)
4. O nível daquela primeira narrativa da criação do homem, embora cronologicamente posterior, é sobretudo de carácter teológico. Indica-o principalmente a definição do homem baseada na sua relação com Deus («à imagem de Deus o criou»), o que encerra ao mesmo tempo a afirmação da impossibilidade absoluta de reduzir o homem ao «mundo». Já à luz das primeiras frases da Bíblia, não pode o homem ser compreendido, nem explicado até ao fundo, com as categorias deduzidas do «mundo», isto é, do conjunto visível dos corpos. Apesar de também o homem ser corpo. (Gn 1,27) verifica que esta verdade essencial acerca do homem se refere tanto ao homem como à mulher: Deus criou o homem à sua imagem ... criou-os homem e mulher (2). É preciso reconhecer que a primeira narrativa é concisa, livre de qualquer vestígio de subjectivismo: contém só o facto objectivo e define a realidade objectiva, quer ao falar da criação humana, do homem e da mulher, à imagem de Deus, quer ao acrescentar pouco depois as palavras da primeira bênção: «Abençoando-os, Deus disse-lhes: crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra» (Gn 1,28).
5. A primeira narrativa da criação do homem, que, segundo verificamos, é de índole teológica, encerra em si abundante conteúdo metafísico. Não se esqueça que precisamente este texto do Livro do Génesis se tornou a fonte das inspirações mais profundas para os pensadores que têm procurado compreender o «ser» e o «existir». (Talvez só o capítulo terceiro do Livro do Éxodo se possa comparar ao presente texto) (3). Não obstante algumas expressões particularizadas e plásticas do trecho, o homem é nele definido primeiramente nas dimensões do ser e do existir («esse»). É definido de modo mais metafísico que físico. Ao mistério da sua criação («à imagem de Deus os criou») corresponde a perspectiva da procriação («sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra»), a perspectiva daquele suceder-se no mundo e no tempo, daquele «fieri» que está necessariamente ligado à situação metafísica da criação: do ser contingente (contingens). Precisamente nesse contexto metafísico da descrição de Génesis 1, é necessário entender a entidade do bem, isto é, o aspecto do valor. De facto, este aspecto repete-se no ritmo de quase todos os dias da criação e atinge o auge depois da criação do homem: Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa (Gn 1,31). Por este motivo é lícito dizer com certeza que o primeiro capítulo do Génesis formou um ponto inexpugnável de referência e a base sólida para uma metafísica e também para uma antropologia e uma ética, segundo a qual «ens et bonum convertuntur». Sem dúvida, tudo isto tem significado próprio, também para a teologia e sobretudo para a teologia do corpo.
6. Nesta altura interrompemos as nossas considerações. Daqui a uma semana ocupar-nos-emos da segunda narrativa da criação, isto é, daquilo que, segundo os biblistas, é cronologicamente mais antigo. A expressão «teologia do corpo», usada recentemente, merece explicação mais exacta, mas deixamo-la para outro encontro. Devemos primeiro procurar aprofundar aquela passagem do Livro do Génesis a que se referiu Cristo.
(1) Falando da matéria não vivificada, o autor bíblico usa diferentes predicados, como «separou», «chamou», «fez» e «pôs». Pelo contrário, falando dos seres dotados de vida, usa os termos «criou» e «abençoou». Deus ordena-lhes: «Sede fecundos e multiplicai-vos». Esta ordem refere-se tanto aos animais como ao homem, indicando que a corporalidade lhes é comum (cfr. Gén Gn 1,22 Gén Gn 1,28).
Todavia a criação do homem distingue-se essencialmente, na descrição bíblica, das obras precedentes de Deus. Não só é precedida por uma introdução solene, como se se tratasse duma deliberação de Deus antes deste acto importante, mas sobretudo é posta em relevo a excepcional dignidade do homem pela «semelhança» com Deus, de quem é a imagem.
Criando a matéria não vivificada. Deus «separava»; aos animais ordena que sejam fecundos e se multipliquem, mas a diferença de sexo é sublinhada apenas a respeito do homem («macho e fêmea os criou») abençoando ao mesmo tempo a fecundidade deles, isto é, o vínculo das pessoas (Gn 1,27-28).
(2) O texto original diz: «Deus criou o homem (ha-adam — substantivo colectivo: a «humanidade»?); à sua semelhança; à imagem de Deus o criou; macho (zakar - masculino) e fêmea (unegebah - feminino) os criou» (Gn 1,27).
(3) «Haec subtimis ventas»: «Eu sou Aquele que sou» (Ex 3,14) constitui objecto de reflexão para muitos filósofos, a começar por Santo Agostinho, que julgava ter Platão conhecido este texto, tão próximo ele lhe parecia das concepções do filósofo grego. A doutrina augustiniana da divina «essentialitas» exerceu, por meio de Santo Anselmo, influxo profundo na teologia de Ricardo de S. Vítor, de Alexandre d'Halès e de S. Boaventura.
«Pour passer de cette interprétation philosophique du texte de 1'Exode à celle qu'allait proposer saint Thomas il fallait nécessairement franchir Ia distance qui separe 'l'être de 1'essence' de 'l'être de 1'existence'. Les preuves thomistes de 1'existence de Dieu 1'ont franchie».
Diversa é a posição do Mestre Eckart, que, baseado neste texto, atribui a Deus a «puritas essendi»: «est aliquid altius ente ...»; (cfr. E. Gilson, Le Thomisme, Paris 1944, Vrin, págs. 122-127; E. Gilson, History of Christian Philosophy in the Middle Ages, London 1955, Sheed and Ward, pág. 810).
Saudações
À Liga Missionária dos Estudantes
Dirijo-vos uma saudação particularmente afectuosa, queridos jovens da Liga Missionária dos Estudantes que vos reunistes em Roma para uma pausa de reflexão sobre o tema "A liberdade dos filhos de Deus", haurindo ensinamentos e estímulo nas experiências de libertação cristã felizmente realizadas em várias regiões do mundo.
Abençoe e conforte o Senhor, o vosso compromisso, abrindo-vos para a dimensão missionária da Igreja, que anuncia a todos a libertação, a qual "é libertação sobretudo do pecado e do Maligno" (Evangelii Nuntiandi EN 9); é ao mesmo tempo serviço à justiça, como diz São Paulo: "libertos do pecado tornastes-vos servos da justiça" (Rm 6,18); e está radicada de modo fundamental na nossa realidade de filhos, amados pelo Pai celeste, destinados precisamente à "liberdade da glória dos filhos de Deus" (Rm 8,21).
Acompanho-vos com a minha especial Bênção Apostólica.
Aos Membros das Associações e Movimentos Marianos da Itália
Desejo dirigir uma cordial saudação aos Dirigentes e aos Membros das várias Associações e Movimentos Marianos da Itália, que se encontram em Roma para celebrar solenemente o vigésimo aniversário da Consagração ao Coração Imaculado de Maria, realizada pelo Episcopado italiano a 13 de Setembro de 1959, em Catânia, no encerramento do XVI Congresso Eucarístico Nacional.
Exprimo-vos, caríssimos Irmãos e Irmãs, o meu vivo apreço pela vossa peregrinação, sinal de profunda devoção a Nossa Senhora. Também eu, sábado passado, em Loreto, não só recordei o gesto que, há vinte anos, realizaram os Pastores da Igreja italiana, mas de todo o coração quis repeti-lo.
Faço votos, portanto, por que a renovação da consagração a Maria Santíssima produza copiosos frutos espirituais nas consciências pessoais e nas comunidades eclesiais; crescente fervor de vida cristã; assídua prática dos sacramentos da Eucaristia e da Penitência; caridade generosa e activa para com os irmãos, especialmente para com os mais necessitados, e um empenho constante no apostolado.
Com estes votos concedo-vos de coração a minha Bênção Apostólica.
A um grupo de peregrinos da Diocese de Foligno (Itália)
Saúdo calorosamente os numerosos jovens da Diocese de Foligno, que participam nos "Giochi dell'Amicizia", e os seus Responsáveis e acompanhadores.
Caríssimos Filhos, estou contente por terdes vindo fazer-me uma visita. Sabei que o Papa vos quer sempre todos sãos, alegres e generosos, como certamente os "Giochi dell'Amicizia" procuram ensinar-vos. Um grupo de jovens, que actuam na serenidade e na concórdia, é, dalgum modo, sinal de uma mais vasta harmonia, que todos os homens deveriam empenhar-se em construir e reforçar cada vez mais.
Com estes votos, abençoo a todos de coração, a vós e aos que vos são queridos.
Às Delegadas da Associação Católica das Mulheres da Alemanha
Uma saudação particular às Delegadas, aqui presentes, da Associação Católica das Mulheres da Alemanha, acompanhadas pelo Bispo Auxiliar, D. Augustin Frotz, e à grande peregrinação da. comunidade diocesana feminina da Diocese de Paderborn. Exorto-vos vivamente a cumprirdes na vossa vida a missão da mulher na Igreja e a dar-lhe impulso. Oxalá esta visita a Roma reforce a vossa fé e garanta o vosso amor a Cristo e à Igreja.
Saúdo também cordialmente as peregrinações de Ratisbona e da Editora Paulina de Tréveris. Nas minhas orações tenho sempre presente as vossas intenções e peço para vós e para todos os que vos são queridos a bênção e a protecção divinas.
Aos Jovens
Saúdo e abençoo todos os .jovens aqui presentes. Meus queridos, exorto-vos paternalmente a que manifesteis, também na vida espiritual e no empenho quotidiano do testemunho cristão, o vigor da vossa idade e a generosidade do vosso entusiasmo. Sois vós quem torna a Igreja jovem, mesmo depois de dois mil anos de história. O importante é que mantenhais sempre intacta a vossa fidelidade a Cristo e ao Seu Evangelho, especialmente nos momentos que requerem decisão e dedicação, e que façais do amor pelos outros a grande norma da vida. Só então podereis experimentar o poder benéfico do Senhor e também medir o grau da vossa maturidade baptismal.
Aos Doentes
Aos Doentes dirijo uma saudação muito particular. Vós sois o tesouro escondido da Igreja, não só porque dais motivo a muitas pessoas para exercerem uma caridade genuína e salutar, mas sobretudo porque os vossos sofrimentos podem tornar-se uma reserva fecunda de vida e de eficácia apostólica para o bem de todos. Tende, por conseguinte, a suprema preocupação de vos conformardes plenamente a Cristo, de modo que participeis também na sua potência salvífica. E sabei que o Papa reza por vós, de coração vos abençoa e a todos os que vos assistem.
Aos jovens Casais
Também os Casais merecem uma saudação só para si, unida a cordiais votos de felicidade no Senhor. Procurai fazer de toda a vossa vida um sacramento, isto é, um sinal evidente do amor recíproco e total de Cristo e da Igreja. E recordai-vos sempre que não existe pleno amor se não for acompanhado pela fidelidade, pelo acordo, pela generosidade e também pela paciência. Nestas condições vereis como é verdadeiramente belo viverdes juntos, vós e os vossos filhos, como parte da maior comunidade eclesial. A minha Bênção vos acompanhe.
Quarta-feira, 19 de Setembro de 1979
Na segunda narrativa da criação
encontra-se a definição subjectiva do homem
1. Referindo-nos às palavras de Cristo sobre o tema do matrimónio, em que Ele apela para o «princípio», dirigimos a nossa atenção, há uma semana, para a primeira narrativa da criação do homem no Livro do Génesis (Gn 1) Hoje passaremos à segunda que, sendo Deus nela chamado «Javé», é muitas vezes denominada «javista».
A segunda narrativa da criação do homem (ligada à apresentação tanto da inocência e felicidade original como da primeira queda) tem, por sua natureza, carácter diverso. Embora não querendo antecipar as particularidades desta narrativa — porque nos convirá apelar para elas nas outras análises — devemos reconhecer que todo o texto, ao formular a verdade sobre o homem, nos maravilha com a sua profundidade típica, diversa da do primeiro capítulo do Génesis. Pode-se dizer que é profundidade, de natureza sobretudo subjectiva, e portanto, em certo sentido, psicológica. O capítulo 2.° do Génesis constitui, em certo modo, a mais antiga descrição e registo da auto-compreensão do homem e, juntamente com o capítulo 3°, é o primeiro testemunho da consciência humana. Com aprofundada reflexão sobre este texto — por meio de toda a forma arcaica da narração, que manifesta o seu primitivo carácter mítico(1) — encontramos nele «in nucleo» quase todos os elementos da análise do homem, aos quais é sensível a antropologia filosófica moderna e sobretudo contemporânea. Poder-se-ia dizer que Génesis 2 apresenta a criação do homem especialmente no aspecto da sua subjectividade. Confrontando entre si ambas as narrativas, chegamos à convicção que esta subjectividade corresponde à realidade objectiva do homem, criado «à imagem de Deus». E também este facto é— doutro modo —importante para a teologia do corpo, como veremos nas análises seguintes.
2. É significativo, na sua resposta aos fariseus em que apela para o «princípio», indicar Cristo primeiramente a criação do homem com referência a Gén. 1, 27: O Criador no princípio criou-os homem e mulher; só em seguida cita o texto de Génesis 2, 24. As palavras, que directamente descrevem a unidade e indissolubilidade do matrimónio, encontram-se no contexto imediato da segunda narrativa da criação, cuja passagem característica é a criação separada da mulher (Cfr. Gén Gn 2,18-23), ao passo que a narrativa da criação do primeiro homem (macho) se encontra em Génesis 1, 5-7. A este primeiro ser humano chama a Bíblia «homem» ('adam), ao passo que, desde o momento da criação da primeira mulher, começa a chamar-lhe «macho», 'is, em relação com 'issâh («fêmea», porque foi tirada do macho, 'is) (2). E é também significativo que, referindo-se a Génesis 2, 24, Cristo não só liga o «princípio» com o mistério da criação, mas também nos conduz, por assim dizer, ao confim entre a primitiva inocência do homem e o pecado original. A segunda narrativa da criação do homem foi fixada no Livro do Génesis exactamente em tal contexto. Nele lemos, primeiro que tudo: Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Ao vê-la, o homem exclamou: «esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem» (Gn 2,22-23). Por este motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher; e os dois serão uma só carne (Gn 2,24).
AUDIÊNCIAS 1979