
Discursos João Paulo II 1980 - Velletri, 7 de Setembro de 1980
A vós a minha saudação particularmente cordial. A vós a expressão do meu sentido afecto no Senhor.
Vindo a esta vossa Cidade, desejei ardentemente encontrar-me convosco, para manifestar-vos de modo especial o amor que sentem por vós o Papa e toda a Igreja. Gosto de ver-vos e poder-vos falar; a vossa presença traz-me conforto e alegria. Agradeço-vos. Certamente, seria belo e consolador poder-me encontrar convosco um a um; mas não é possível. Para isto vos confiou o Senhor aos vossos Sacerdotes, que devem ser os vossos guias, os vossos amigos e os vossos confidentes. Eu não posso senão ver-vos assim, todos juntos nesta assembleia tão viva e significativa, e saudar-vos de modo espiritual e comunitário. Mas sabei que o Papa vos ama, se recorda e se preocupa de vós; querer-vos-ia, a todos e sempre, bons e felizes, e por isto oferece as suas orações.
Ao mesmo tempo que vós saudais o Papa e o aclamais como vindo em nome de Cristo, também eu levanto a minha voz e brado: "Vivam os jovens, viva toda a juventude de Velletri!".
Neste dia, tão singular, desejo deixar-vos uma mensagem, que possa servir para vós e para todos quantos assomam à vida, como programa e como directriz para as vossas escolhas.
Recordai-vos, primeiramente, que fazeis parte de uma Cidade e portanto da sociedade nacional e internacional. Amai portanto esta vossa Cidade. Tornai-a cada vez mais bela, acolhedora, simpática e alegre. Empenhai-vos o mais possível em ser bons cidadãos, responsáveis, e dignos dos vossos antepassados. Não vos esqueçais daqueles que durante a Segunda Guerra Mundial morreram ou tanto houveram de sofrer pela liberdade e pela fraternidade. Contribuí, quanto vos for possível, para resolver os actuais problemas da sociedade, com o estudo, o trabalho, o respeito dos anciãos e das crianças, o amor aos que sofrem e aos doentes, o esforço pelo melhoramento em todos os sectores, e também com aquele sentimento de honestidade, rectidão e reconhecimento, que torna amável e serena a vida social. Amando concretamente a vossa Cidade, sentindo-vos células vivas e conscientes deste corpo delicado e essencial da sociedade, vós conseguis amar também verdadeiramente a Nação e a humanidade inteira.
Recordai-vos, depois, que fazeis parte de uma Igreja local, isto é, da vossa Diocese e de cada uma das vossas Paróquias, e que, mediante a Igreja local, estais inseridos na Igreja universal. A Cidade de Velletri nos tempos passados distinguiu-se pela fidelidade à religião cristã e à Igreja católica. Sede fiéis, vós também: amai a Igreja. Hoje certamente a fidelidade é mais difícil, mais heróica e custa mais: a civilização moderna é constituída par modelos de comportamento que nem sempre ou nem em tudo se ajustam à mensagem de Cristo e da Igreja; pelo contrário, às vezes atacam-na decididamente. Não vos perturbeis. Não desanimeis. A palavra de Deus permanece eternamente verdadeira; Deus é fiel (1Co 1,9). Mantende-vos firmes na fé e vigilantes (1P 5,8). Vivei o Baptismo e o Crisma com a serenidade vitoriosa daqueles que estimam os valores possuídos. Amai a vossa Igreja. Ajudai o Bispo, ajudai os Sacerdotes. Colaborai com eles para a vossa Cidade se manter sempre cristã e praticante. Manifeste-se especialmente a vossa fidelidade com a participação na Liturgia dominical e festiva: não deixeis nunca a Santa Missa e, se vos for possível, não deixeis nunca o encontro com Cristo na Comunhão eucarística. Alargai depois o vosso olhar à Igreja universal para vos poderdes comprometer também nas grandes necessidades do apostolado e do testemunho, dispostos a ouvir a voz do Senhor, se chamar à vida sacerdotal ou religiosa.
Por fim, recordai-vos que fazeis parte de uma família. Amai a vossa família. Amai os vossos pais e todos quantos vos querem bem. A família, bem o sabeis, é a expressão histórica e visível do amor de Deus, que deste modo quis tornar as pessoas capazes de amar e dar a vida, precisamente por terem sido criadas "à Sua imagem e semelhança". É triste pensar que certas ideologias querem destruir a família, espalhando a falta de amor e impelindo à contestação. E angustioso pensar que tantos jovens abandonam a própria casa, lançando os pais na amargura e no desespero. Não seja assim, não seja assim. Amai a vossa família com generosidade, com paciência e com delicadeza, suportando aquelas imperfeições, que não podem faltar em qualquer pessoa. Tomai a vossa casa um oásis de paz e de confiança; rezai com a vossa família. E preparai-vos ainda seriamente para formardes vós também uma família, amanhã: fazei que o vosso amor se mantenha sempre puro e sereno, por meio de uma amizade íntima com Jesus.
Eis, caros jovens, o que desejava sugerir-vos neste encontro a vós reservado. A Senhora das Graças, por vós especialmente venerada, vos acompagne e vos proteja: a ela oferecei os vossos corações e a vossa juventude.
Ajude-vos a minha Bênção, que afectuosamente vos concedo e de boa vontade torno extensiva a todos os que vos são caros.
Ilustres Senhores,
caríssimos Filhos!
Ao dirigir-vos a minha cordial saudação, unida ao vivo reconhecimento pelo caloroso acolhimento que me foi reservado, desejo exprimir a minha alegria por este encontro, que me permite recordar a paragem que o meu Predecessor Pio IX, de venerável memória, aqui fez por ocasião da viagem inaugural da linha ferroviária Roma-Velletri.
A visita pontifícia à cidade de Velletri deveu-se, então, precisamente a este acontecimento de notável relevância tanto tecnológica quanto social. É-me grato interpretar a presença do grande Papa neste lugar, nesta circunstância, como testemunho significativo do interesse com que a Igreja acompanha toda a descoberta do talento humano e toda a realização de autêntico progresso. A Igreja, de facto, aplica-se em apoiar e encorajar o esforço do homem na conquista do mundo segundo a missão que lhe é própria, isto é, iluminando com a luz do Evangelho toda a realidade da ordem temporal.
Assim foi, não obstante momentâneas incompreensões, no passado; assim é também hoje.
Eis o rápido pensamento que me é caro deixar-vos como recordação da minha visita, visita que incluí de boa vontade no programa de hoje, a fim de que não faltasse uma particular confirmação de estima e apreço por vós e pelo importante trabalho que desenvolveis quotidianamente.
Em testemunho destes sentimentos e com votos de todo o desejado favor celeste, concedo-vos de coração a propiciadora Bênção Apostólica, extensiva a todos os vossos colegas e às respectivas famílias.
Caríssimos Jovens
Sinto-me feliz por estar no meio de vós, caros jovens de Frascati, que pertenceis ao Grupo Catequístico Diocesano, à Acção Católica, e aos Movimentos de GEN e de Comunhão e Libertação. Reunistes-vos aqui para o colóquio agora habitual com o Papa, acompanhados por numerosos outros jovens e também em representação de muitos jovens e muitas jovens que a vós se associam colaborando no esforço de construir uma sociedade viva, porque animada pelo amor de Cristo. E é no nome e no sinal vitorioso de Cristo, que hoje dirijo a minha saudação paternal e festiva a cada um de vós, nesta praça tornada jardim de alegres esperanças.
Recebei o meu agradecimento por este encontro que, do mesmo modo que em todas as outras ocasiões, ocupa lugar central na minha visita à Comunidade eclesial de Frascati, e na hodierna circunstância é animado também pelas vossas sinceras e corajosas intervenções. Ouvi, de facto, com grande prazer as notícias que me destes sobre o vosso esforço para conhecer e tornar conhecido Cristo no ambiente que vos circunda, através de planos sempre renovados e actualizados de evangelização, projectos de novos incrementos de vida cristã nos vários estratos do conjunto social e contributos válidos de concreto testemunho de fé. Obrigado, caros jovens, por tudo o que fazeis, com intenção de oferecer a uma sociedade, por vezes aviltada e profundamente exasperada pelas suas mesmas contradições interiores, uma mensagem de alegria e de confiança. Grande missão é a vossa, que a Igreja quer manter, animar e incentivar, em nome do Evangelho que é boa nova e portanto anúncio de salvação e de incorruptível felicidade do coração.
1. A Igreja tem o mandato, confiado às débeis forças de homens muitas vezes frágeis e imperfeitos, de comunicar-vos autenticamente Cristo na Sua Palavra divina e na Sua Vida, por meio da Liturgia e dos Sacramentos, para poderdes assumir as vossas responsabilidades futuras e as vossas decisões importantes, no espírito e na atitude de Cristo. Assim sereis capazes de influir, mesmo no exercício dos vossos encargos pessoais, sobre o proceder dos outros e sobre a desejada mudança da convivência civil.
É-vos pedido que aprendais desde agora a arte, difícil e ao mesmo tempo aliciadora, de enfrentar os desafios interpostos, apresentados pelo esforço terrestre quotidiano, à luz da Cruz e da Ressurreição de Cristo, numa doação que não exclui nem sequer o sacrifício total de si mesmo, e está aberta, ao mesmo tempo e com certeza, a uma aurora luminosa de renovação; que não poderá faltar, porque a nossa é uma esperança que não nos deixa confundidos (cf. Rom Rm 5,5).
Como já disse em Outubro passado aos 20.000 jovens reunidos no Madison Square Garden, de Nova Iorque: "Quando estiverdes pasmados com o mistério de vós mesmos, olhai para Cristo que vos oferece o significado da vida. Quando procurardes saber o que significa ser uma pessoa amadurecida, olhai para Cristo que é a plenitude do ser humano. E quando procurardes imaginar qual será o vosso papel no futuro do mundo..., olhai para Cristo. Só em Cristo conseguireis a aplicação plena das vossas potencialidades quer como homens que como cidadãos" (Insegnamenti di Giovanni Paolo II, II-2, p. 567).
2. Enquanto a Igreja tem a missão de construir em vós Cristo, para conseguirdes atingir a plena maturidade do homem, n'Ele que é o Homem perfeito e ao mesmo tempo o Filho de Deus, vós, pelo vosso lado, acolhendo as Suas palavras de vida, encarnais sempre mais a fundo em vós próprios o mistério mesmo da Igreja, entrais a fazer parte dela, assumis-lhe a sorte e os destinos, e sois assim chamados a prestar um serviço à Igreja e, ao mesmo tempo, aos irmãos. Sois solicitados, das mais variadas formas, em sintonia com as propensões interiores do vosso coração, sois solicitados, dizia, a servir, na verdade e na caridade, todos os que sofrem ainda pela fraqueza e pela fadiga do longo incerto caminhar.
Recordemo-nos juntos, a este propósito, do que disse Jesus durante a última ceia, depois do lava-pés: "Se Eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, como Eu vos fiz, façais vós também" (Jn 13,14-15). E São Paulo traduz este mandamento de Cristo com as palavras: "Nós, os fortes, devemos suportar as fraquezas daqueles que o não são, e não procurar o que nos é agradável a nós próprios... Pois Cristo não procurou o que Lhe era agradável" (Rm 15, 1, 3). Caros Jovens, vós e eu, e nós todos juntos, formamos a Igreja e somos chamados a "agradar ao próximo, para seu bem e para sua edificação" (Rm 15,2), oferecendo a todos "a suprema vantagem de conhecer Jesus Cristo" (Ph 3,8), no qual só, está o verdadeiro amor do homem e a plenitude da vida.
3. E agora o meu convite a olhardes para Cristo, a fim de prestardes serviço aos irmãos, assume significado exacto que submeto à vossa reflexão: a Igreja precisa de vós.
Estais disso convencidos. A Igreja espera muito de vós; mais, ela depende do vosso empenho em testemunhar Cristo e em transmitir a outros o Evangelho. Vós que sois "Igreja" não podeis subtrair-vos a tal apelo, justificado pela vossa formação católica, apelo de colaborar com todos os meios para a difusão do Evangelho. De vós espera-se este serviço. Mas servir a Igreja quer dizer aceitar a sua constituição jerárquica e ao mesmo tempo espiritual, e portanto sentir-se parte de uma ordenada estrutura, cujo governo está confiado aos Pastores que incessantemente Cristo escolhe como Sucessores dos Apóstolos. Não pode existir serviço verdadeiro, eficaz e duradouro, sem união de propósitos e iniciativas com o Bispo diocesano, com o fim de lhe coadjuvar a obra pastoral em benefício da comunidade eclesial inteira.
Tal obra impõe especiais escolhas prioritárias, exige coordenado desenvolvimento no tempo e no espaço, e deve ser defendida de muitas insídias. Tudo isto requer a vigilância, a defesa e o governo do Bispo, a que há-de corresponder a vossa confiada e obediente colaboração. Deveis servir a Igreja na Igreja, em comunhão de amor e disciplina com os Pastores legitimamente constituídos.
Existe depois um serviço especialíssimo, que é o prestado pelo sacerdócio ministerial, encargo sublime que assegura a continuidade entre os homens da obra redentora de Cristo. A Igreja tem necessidade de homens que assegurem aos próprios irmãos um serviço de vida, altíssimo e exaltador, o de serem depositários e administradores dos mistérios de Deus, instrumentos vivos de perdão e de graça, ministros da Palavra que salva.
Caros jovens, hoje, Jesus Cristo dirige-vos, mediante o Seu Vigário, o apelo a Segui-1'O com doação irrevocável e total para serdes Seus representantes vivos e continuadores do Seu ministério redentor entre as multidões sedentas de salvação. É apelo dirigido à vossa liberdade e à vossa generosidade. Confio seguramente que a voz de Jesus penetre o coração, se identifique com as esperanças e anime as interiores perspectivas dos mais generosos entre vós. A vossa resposta ao seu convite não é só prova de coragem humana, mas também e sobretudo fruto autêntico da eficácia da graça divina.
É, portanto, na oração, na meditação e na profunda ânsia de aderir a Cristo Senhor, que vós deveis medir-vos com tal apelo a prestar à Igreja, quando o Senhor chamar, o sublime serviço do sacerdócio ministerial.
A Virgem Santíssima, Mãe da Igreja, de quem hoje festejamos a Natividade — isto é, a aurora radiosa e prometedora da grande obra da redenção do homem — vos acompanhe no vosso reflectir, abra o vosso coração à dávida autêntica e vos dê a coragem de assumir, com resolução a alegria, responsabilidades fecundas no serviço da Igreja.
Acompanhe-vos sempre a minha afectuosa Bênção.
Venerado Irmão e caríssimos Filhos
1. Na minha recente peregrinação à terra de Abruzos tive a alegria de ajoelhar-me diante da urna que, em Aquila, conserva o corpo incorrupto de São Bernardino de Sena, o franciscano a quem a vossa Cidade se gloria de ter dado nascimento, precisamente há seis séculos, e recordei a figura e obra apostólica do vosso grande Concidadão.
Na presente circunstância, gostaria de retomar convosco o assunto então começado, com o desejo de melhor desenvolver a reflexão sobre o testemunho de fidelidade ao Evangelho, que este . insigne Santo nos deixou. Em Bernardino, está-se diante de um modelo acabado de homem, de religioso e de apóstolo, para quem a nossa época pode ainda olhar a fim de colher a indicação das oportunas soluções para os numerosos problemas que a afligem.
2. Primeiro que tudo, o homem. De mente aberta à fascinação da verdade e do bem, vivamente sensível às sugestões da beleza, Bernardino deu prova de singular riqueza de qualidades humanas, fundidas entre si num equilíbrio tão perfeito que despertavam a concorde admiração dos contemporâneos. Essa harmoniosa personalidade, por outro lado, não constituiu apenas fruto de um. feliz concurso de circunstâncias casuais. Estava na base um esforço, ascético, fundamentado numa clara visão antropológica.
O homem é imagem de Deus, proclama Bernardino seguindo a Bíblia. Como tal, deve-se conformar com Ele em todas as acções, mas sobretudo nas intenções profundas do coração (cf. S. Bernardini Senensis Opera Omnia, Quaracchi 1950-1959, vol. II, p. 300). "Deus criou todas as criaturas para o homem, e o homem para Si" repete o nosso Santo juntamente com Agostinho (cf. op. cit., p. 161). Todavia, sendo embora o mais nobre dos animais, é também o mais ingrato: "Grande é a ingratidão e a ignorância cega dos homens! Os outros animais são domesticados pelos benefícios; só os corações dos homens são endurecidos e cegados pelos benefícios de Deus" (Opera omnia, cit., vol. III, p. 347).
O homem é, por isso, criatura que, mais que as outras, tem necessidade de disciplina: "Os homens são incomparavelmente mais nobres e mais preciosos que os outros animais, mas são também os mais inclinados ao mal e mais nocivos pelos maus hábitos, e mais perturbam a paz civil; portanto com maior disciplina devem ser guardados, curados e enfreados pela justiça" (Opera omnia, cit., vol. III, p. 300). Todo o esforço humano, todavia, resultaria inútil sem o contínuo socorro da graça de Deus, "porque sem a Sua ajuda não se pode oferecer nenhuma resistência à batalha do demónio, do mundo e da carne" (cf. Prediche volgari, ed. do P. Ciro Cannarozzi, O.F.M., Firenze 1940, vol. III, p. 224).
Por sua felicidade o homem não está só nesta luta: ao lado dele está Deus, que não se cansa de oferecer-lhe o apoio da Sua mão salvadora: mão que, se às vezes fere, é todavia movida, sempre e só, pelo amor (cf. ibid ., pp. PP 242-257).
Esta, na substância, a mensagem que Bernardino propõe aos seus ouvintes, explicando o seu conteúdo segundo as exigências específicas das diversas categorias. Dirige-se aos casados, aos jovens, aos adolescentes e às crianças, aos negociantes, aos estudantes, aos governantes, aos súbditos, aos leigos e ao clero. Fala recorrendo à Sagrada Escritura, aos exemplos dos Santos, aos ditos dos poetas; teólogos e juristas, filósofos e artistas estão sempre nos seus lábios, como testemunho do longo tirocínio cultural por ele suportado em preparação para o ministério. da pregação.
3. De não menos interesse é o testemunho que Bernardino nos oferece como religioso. Aos 22 anos, depois de uma experiência de trabalho social e caritativo com poucos outros jovens senenses, durante a peste que ia despovoando a cidade, pediu para entrar entre os Frades Menores. Escolheu o grupo que estava então renovando a Ordem, no regresso à observância rígida e austera, reflorescida em Brogliano com frei Pauluccio Trinci, de Foligno, e depois com frei Giovanni de Stroncone. A sua experiência heróica de caridade entre os empestados e a natural propensão para o cargo de "agente de paz" e de exemplar guarda da castidade entre os jovens de Sena, no Estudo da cidade e na Companhia de Santa Maria da Escada, foram o melhor bilhete de apresentação para conseguir ser recebido entre os Franciscanos.
Pelos biógrafos sabemos que principiou quase logo a dirigir os seus irmãos como Superior local e provincial, na Toscana e na Úmbria, até coroar o "serviço aos irmãos" como Vigário-Geral da Observância. Foram cerca de 300 os conventos por ele renovados ou aceitos entre os Observantes, aqui a acolá pela Itália.
Assim como na qualidade de leigo estimulara os amigos às obras de caridade e de heróica assistência social, assim também como religioso soube infundir nos Irmãos o ardor do seu zelo em seguia as pisadas do "Poverello" no caminho do radicalismo evangélico. A fascinação da sua personalidade conquistava todos os que se aproximavam dele. Quanto mais clara era a apresentação que fazia das exigências austeras da Regra, tanto maior era o fervor com que eles corriam atrás do mestre, no desejo de lhe emular as virtudes (cf. Holzapfel H., Manuale historiae OFM, Friburgi Brisgoviae, 1909, PP 81-85).
Desta sorte, o movimento da Observância, iniciado com os irmãos leigos, toma-se com São Bernardino nova força, de espiritualidade e cultura, que estimula todo o franciscanismo a vencer as fraquezas humanas, os cansaços da rotina, e lhe favorece o reflorir com abundante número de jovens estudantes universitários, empenhados no estudo da teologia, da moral, do direito, e no apostolado popular em toda a Itália. Entre estes sobressaem os amigos íntimos de Bernardino: São João de Capestrano, São Tiago da Marca, o Beato Alberto de Sarteano e outros muitos, na Úmbria, na Toscana, nas Marcas, na Itália e fora da Itália. E "bernardinos" se chamarão os Observantes de algumas regiões da Europa, como por exemplo na minha pátria, a Polónia.
4. Bernardino, homem de êxito e religioso exemplar, fica na história da cristandade sobretudo como apóstolo. Pregador itinerante, como Cristo e como os Apóstolos, fez do púlpito a sua cátedra. Foi o maior pregador popular da época, tanto que o século XV foi definido "o século de Bernardino". Em muitas partes da Itália central e setentrional surgem altares, oratórios e templos, erectos em memória das suas pregações e dos seus milagres. Admirado pelos simples como pelos doutos, pelos magistrados como pelos homens da Igreja, Bernardino foi pedido como Bispo em Sena, em Ferrara e em Urbino. Recusou sempre, para manter a liberdade de levar a sua palavra a toda a parte aonde fosse requerido, estando intimamente convencido de ter recebido de Deus a chamada a este ministério, e não a outro.
Pelo seu exemplo e pela sua palavra dita ou escrita, foi renovada a pregação italiana. Disso restam documentos nos volumes das suas "Prediche volgari", feitas em Florença e em Sena, nos esquemas de sermões latinos, que ele mesmo e os discípulos recolheram ` para serviço dos outros pregadores, nas obras de teologia moral ou ascética, redigidas para a escola e para a vida dos seus Irmãos.
5. Bernardino de Sena fica na história da pregação, da teologia e da ascética, sobretudo como apóstolo do Nome de Jesus. Impressionado pela advertência de Cristo: "E tudo quanto pedirdes em Meu nome, Eu o farei, para que o Pai seja glorificado no Filho" (Jn 14,13), não pára de fazer-se eco da mesma: pedir ao Padre em nome do Filho é reconhecer o plano de Deus, que desejou servir-se do Verbo encarnado para nos salvar. Nós podemos e devemos santificar-nos por meio da invocação do Filho, cuja mediação nos abre o caminho de acesso ao Pai. O nome de Cristo, portanto, significa misericórdia para com os pecadores, força para vencer na luta, saúde para os enfermos, alegria e exultação para quem o invoca com devoção nas várias circunstâncias da vida, glória e honra para quantos nele têm fé, conversão da tibieza em fervor da caridade, certeza de ser ouvido para quem o invoca, doçura para quem devotamente o medita, suavidade inebriante para quem na contemplação lhe penetra o mistério, fecundidade de méritos para quem é ainda peregrino, glorificação e beatitude para quem já chegou à meta, o Nome de Jesus foi a bandeira, impugnando a qual São Bernardino enfrentou as situações mais difíceis, conseguindo triunfar delas: foi nesse Nome que ele obteve a pacificação das facções rivais, o melhoramento dos costumes, o reavivamento da fé e o incremento da prática cristã.
6. Tema fundamental da pregação do nosso Santo foi também a devoção à Virgem Maria, considerada sobretudo como Mãe de Deus é Medianeira de perdão e de graça. São Bernardino medita, saboreando-as, as páginas do Evangelho que falam de Nossa Senhora, comemora-lhe as festas, comenta-lhe os títulos, ilustra-lhe os mistérios, a começar da sua Conceição imaculada até à sua gloriosa Assunção ao Céu.
Os exemplos da sua vida oferecem-lhe o ponto de partida para sempre novas aplicações morais, que propõe às várias categorias de pessoas, mas em particular aos jovens e às jovens, com tal fervor de sentimento e vigor de palavras e de imagens, que suscita a adesão entusiasta do auditório. A todos pede com insistência que recorram confiadamente à maternal intercessão de Maria, cuja palavra tanto pode sobre o coração de Deus: "Portanto rogar-lhe-emos que peça ao seu doce Filho Jesus que, pelos seus méritos, nos dê graça neste mundo, para depois no outro nos dar a glória infinita" (Prediche volgari, cit., vol. II, p. 420).
Com esta exortação apraz-me concluir a presente Mensagem, uma vez que na assídua invocação da Virgem Santa e na generosa imitação das suas virtudes reside o segredo daquela profunda renovação de mentalidade e vida, que foi o ideal seguido coro zelo infatigável pelo vosso santo Concidadão.
Ao renovar a expressão dos sentimentos de paternal afecto que sinto por essa Comunidade, na qual se acendeu há seis séculos a estrela que devia brilhar imperecível no céu da Igreja, concedo de boa vontade, a cada um dos seus membros e ao seu venerado Pastor, a minha Bênção Apostólica, propiciadora de todos os desejados dons divinos.
Do Vaticano, a 7 de Setembro do ano de 1980, segundo de Pontificado.
Agradeço-vos esta vossa visita. Pensava-se em poder encontrar-vos na vossa Catedral ou no vosso Seminário, mas por motivos organizativos decidiu-se fazer-vas vir aqui a Castel Gandolfo. Espero que haja uma outra ocasião para que eu possa ir à vossa Catedral, assim como fui visitar a Catedral de Velletri e a de Frascati para me encontrar com a Igreja tusculana.
O nosso amadíssimo Bispo, D. Gaetano Bonicelli, acenava àquela rocha de que fala Jesus; deve-se pensar naquela rocha que é a Igreja na sua realidade particular. Uma rocha que consiste em participar nas missões de Cristo: profética, sacerdotal e régia. Daqui cresce a Igreja, cresce o Povo de Deus, cresce o Reino de Deus. Esta rocha invisível que é Cristo, porque é Ele que nos faz participar na sua missão. E a Igreja de Albano é uma realidade concreta, uma "participante" na missão de Cristo, com todo o Povo de Deus, com toda a sua realidade humana e cristã, e sobretudo com o seu clero. Os sacerdotes são sempre a expressão mais perfeita da missão da Igreja, do espírito que os impulsiona a entrar nesta missão.
E os sacerdotes estão também ligados aos Apóstolos, aos seus sucessores para dar a esta missão uma consistência, urna unidade visível, uma unidade jerárquica, mas sobretudo uma unidade apostólica, uma unidade "viva e vivificante".
O augúrio que desejo formular-vos é de que possais ser assim. Augúrio que expresso ao presbitério da Diocese de Albano e ao seu Seminário, isto é, ao futuro do presbitério desta Diocese.
Venerados e caros Irmãos
Tenho sincero gosto em poder receber hoje, num encontro cordial, os participantes no VIII Congresso Tomista Internacional celebrado por ocasião do centenário da Encíclica «Aeterni Patris» de Leão XIII e também da fundação, por obra do mesmo Sumo Pontífice, da «Pontifícia Academia Romana de São Tomás de Aquino».
Saúdo com afecto todos os presentes e, em particular, o venerado Irmão Cardeal Luigi Ciappi, Presidente da Academia, e Monsenhor António Piolanti, Vice-Presidente.
1. Com a celebração do VIII Congresso Tomista Internacional, organizado pela «Pontifícia Academia Romana de São Tomás de Aquino e de Religião Católica», concluem-se as manifestações comemorativas do centenário da Encíclica «Aeterni Patris», publicada a 4 de Agosto de 1879, e da fundação da mesma Academia, realizada a 13 de Outubro de 1879, obra do grande pontífice Leão XIII.
Desde a primeira reunião — na Universidade de São Tomás de Aquino, em Novembro do ano passado — até hoje as celebrações multiplicaram-se na Europa e noutros continentes. Estas conclusivas tornadas académicas, que viram ilustres e qualificados professores reunirem-se em Roma, de todas as partes do mundo, em nome do Papa Leão XIII e de São Tomás de Aquino, puderam ao mesmo tempo fazer o balanço tanto das celebrações realizadas no ano passado como das do centenário da Encíclica.
Desde os inícios do meu Pontificado não deixei passar ocasião propícia sem recordar a excelsa figura de São Tomás, como, por exemplo, na minha visita à Pontifícia Universidade «Angelicum» e ao Institut Catholique de Paris, na alocução à UNESCO e, de modo explícito ou implícito, nos meus encontros com os Superiores, professores e alunos das Pontifícias Universidades Gregoriana e Lateranense.
2. Os cem anos da Encíclica «Aeterni Patris» não passaram em vão nem esse célebre Documento do Magistério pontifício perdeu a sua actualidade. A Encíclica baseia-se num princípio fundamental, que lhe confere profunda unidade orgânica interior. E o princípio da harmonia entre as verdades da razão e as da fé. Isto é o que tinha sumamente a peito Leão XIII. Tal princípio, sempre a manifestar-se e actual, durante estes cem anos fez notáveis progressos. Basta ter conta na coerência do Magistério da Igreja desde o Papa Leão XIII até Paulo VI e naquilo que maturou no Concílio Vaticano II, especialmente nos documentos «Optatam Totius, Gravissimum Educationis e Gaudium et Spes».
À luz do Concílio Vaticano II vemos, talvez melhor que há um século, a unidade e a continuidade entre o autêntico humanismo e o autêntico Cristianismo, entre a razão e a fé, graças às directrizes da «Aeterni Patris» de Leão XIII, que com tal documento, que tinha como subtítulo «De philosophia christiana... ad mentem sancti Thomae... in scholis catholicis in staurandis», manifestava a consciência de terem chegado uma crise, uma ruptura e um conflito ou, pelo menos, um ofuscamento acerca da relação entre a razão e a fé. No interior da cultura do século XIX podem-se de facto reconhecer duas atitudes extremas: o racionalismo (a razão sem a fé) e o fideísmo (a fé sem a razão). A cultura cristã movia-se entre estes dois extremos, pendendo para uma parte ou para outra. O Concílio Vaticano I tinha já dito a sua palavra a propósito. Era agora o tempo de imprimir novo curso aos estudos no interior da Igreja. Leão XIII aplicou-se, com clarividência, a esta tarefa, representando - e este é o sentido de instaurare - o pensamento perene da Igreja, na límpida e profunda metodologia do Doutor Angélico.
O dualismo que punha em oposição a razão e a fé, bem longe de ser moderno, constituía a retomada doutrina medieval da «dupla verdade», que ameaçava de dentro «a unidade íntima do homem-cristão» (cf. Paulo VI, Lumen Ecclesiae, 12). Tinham sido os grandes Doutores Escolásticos do século X111 quem colocara de novo no bom caminho a cultura cristã. Como afirmava Paulo VI, «em realizara obra que marca o cume do pensamento cristão medieval, São Tomás não esteve só. Primeiro e depois dele muitos outros ilustres doutores trabalharam com o mesmo fim: entre eles merecem ser recordados São Boaventura e Santo Alberto Magno, Alexandre d'Halès e Duns Scoto. Mas sem dúvida São Tomás, por disposição da divina Providência, atingiu o cume de toda a teologia e filosofia 'escolástica', como se lhe costuma chamar, e fixou na Igreja o eixo central a cuja volta, então e em seguida, se pôde desenvolver o pensamento cristão em seguro progresso» (Lumen Ecclesiae, 13).
Está nisto a motivação de preferência dada pela Igreja ao método e à doutrina do Doutor Angélico. Longe de preferência exclusiva, trata-se de referência exemplar, que permitiu a Leão XIII declará-lo. «Inter Scholasticos Doctores, omnium princeps et magister» (Aeterni Patris, 13). E tal é verdadeiramente São Tomás de Aquino, não só pela sua plenitude, pelo equilíbrio, pela profundidade e pela limpidez do estilo, mas ainda mais pelo vivíssimo sentido de fidelidade à verdade, que podem também dizer-se realismo.Fidelidade à voz das coisas criadas, para construir o edifício da filosofia; fidelidade à voz da Igreja, para construir o edifício da teologia.
3. No saber filosófico, antes de escutar o que dizem os sábios da humanidade, segundo o parecer do Aquinate é preciso escutar e interrogar as coisas. «Tunc homo creaturas interrogat, quando eas diligenter considerat; sed tune interrogata respondent » (Super Job, XII, lect. 1). A verdadeira filosofia deve reflectir fielmente a ordem das coisas mesmas, doutra maneira acaba por reduzir-se a arbitrária opinião subjectiva. «Ordo principalius invenitur in ipsis rebus et ex eis derivatur ad cognitionem nostram» (S. Theol., II-IIae, q. 26, a 1, ad 2). A filosofia não consiste num sistema subjetivamente construído segundo o parecer do filósofo, mas deve ser a fiel reflexão da ordem das coisas na mente humana.
Neste sentido São Tomás pode considerar-se autêntico pioneiro do moderno realismo científico, que leva as coisas a falarem mediante a experiência empírica, embora o interesse delas se limite a fazê-las falar do ponto de vista filosófico. Melhor, é caso de nos perguntarmos se não é precisamente o realismo filosófico que, historicamente, estimula o realismo das ciências empíricas em todos os seus sectores.
Este realismo, longe de excluir o sentido histórico, cria as bases para a historicidade do saber, sem o fazer decair na frágil contingência do historicismo, hoje muito difundido. Por isso, depois de dar a precedência à voz das coisas, São Tomás coloca-se em respeitosa escuta de tudo quanto disseram e dizem os filósofos, para dar disso uma valorização, colocando-se em confronto com a realidade concreta. «Ut videatur quid veritatis sit in singulis opinionibus et in quo deficiant. Omnes enfim opiniones secundum quid aliquid verum dicunt» (I Dist. 23. q. 1, a 3). É impossível o conhecer humano e as opiniões dos homens estarem completamente privadas de qualquer verdade. É um princípio que São Tomás vai buscar a Santo Agostinho e faz próprio: «Nulla est falsa doctrina quae non vera falsis intermisceat» (S. Theol. I-IIae, q. 102, a 5, ad 4) «Impossibile est aliquam cognitionem esse totaliter falsam, sine aliqua veritate» (S. Theol. II-IIae, q. 172, a 6; cf. também S. Theol. I, q. 11 a 2, ad 1).
Esta presença de verdade, mesmo que seja parcial e imperfeita e às vezes contorcida, é ponte, que une cada homem aos outros homens e torna possível o entendimento, quando há boa vontade.
Com esta visão, São Tomás de Aquino sempre prestou respeitosos ouvidos a todos os autores, mesmo quando não podia partilhar-lhes inteiramente as opiniões; mesmo quando se tratava de autores pré-cristãos ou não cristãos, como por exemplo os árabes, comentadores dos filósofos gregos. Daqui o seu convite a aproximarmo-nos com humano optimismo até mesmo dos primeiros filósofos gregos, cuja linguagem não é sempre clara e precisa, procurando ele passar além da expressão linguística, ainda rudimentar, para perscrutar-lhe as intenções profundas e o espírito, não reparando «ad ea quae exterius ex eorum verbis apparet», mas à «intentio» (De Coelo et mundo, I II, lect. 2, n. 552), que os guia e anima. Quando depois se trata de grandes Padres e Doutores da Igreja, então procura sempre encontrar o acordo, mais na plenitude da verdade que possuem como cristãos, que no seu modo, aparentemente diverso do seu, com que se exprimem. E sabido como, por exemplo, procura atenuar e quase fazer desaparecer toda a divergência de Santo Agostinho, contanto que se use o justo método: «profundius intentionem Augustini scrutari» (De sprit. creaturis, a 10 ad. 8).
Aliás, a base da sua atitude, compreensiva para com todos, sem deixar de ser francamente crítico, todas as vezes que sentia devê-lo ser—e foi-o corajosamente em muitos casos — está na concepção mesma da verdade. «Licet sint multae veritates participatae, est una sapientia absoluta supra omnia elevata, scilicet sapientia divina, per cuius participationem omnes sapientes sunt sapientes» ( Super Job, I, lect. 1, n. 33). Esta suprema sabedoria, que brilha na criação, não encontra sempre a mente humana disposta para a receber por muitas razões. «Licet enim aliquae mentes sint tenebrosae, id est sapida et lucida sapientia privatae, nulla tamen adeo tenebrosa est quin aliquid divinae lucis participet... quia omne verum, a quocumque dicatur, a Spiritu Sanctu est »(Ibid., lect. 3, n. 103). Daqui a esperança de conversão para cada homem, embora intelectual e moralmente transviado.
Este método realista e histórico fez de São Tomás não só o «Doctor Communis Ecclesiae», como lhe chama Paulo VI, na sua bela carta «Lumem Ecclesiae», mas o «Doctor Humanitatis», porque sempre pronto e disponível a receber os valores humanos de todas as culturas. Com bom direito pode o Angélico afirmar: «Veritas in seipsa fortis est et nulla impugnatione convellitur» (Contra Gentiles, III, c. 10, n. 3460 b). A verdade, como Jesus Cristo, pode ser renegada, perseguida, combatida, ferida, martirizada e crucificada; mas sempre vive e ressurge e não pode nunca ser extirpada do coração humano. São Tomás colocou toda a força do seu génio ao serviço exclusivo da verdade, atrás da qual parece ambicionar desaparecer quase por temer perturbar-lhe o fulgor para que ela, e não ele, brilhe em toda a sua luminosidade.
4. À fidelidade à voz das coisas em filosofia corresponde, segundo São Tomás, a fidelidade à voz de Deus, transmitida pela Igreja em teologia. E sua norma, de que nunca se apartou, o princípio «Magis standum est auctoritati Eclesiae... quam cuiuscumque Doctoris» (S. Theol. IIae, q. 10, a 12). A verdade, proposta pela autoridade da Igreja assistida pelo Espírito Santo é portanto a medida de verdade, que exprimem todos os teólogos e doutores passados, presentes e futuros. Aqui a autoridade da doutrina do Aquinate resolve-se e refunde-se na autoridade da Doutrina da Igreja. Eis porque o propôs a Igreja como exemplar modelo da investigação teológica.
Também em teologia prefere o Aquinate, portanto à voz dos Doutores e à própria voz, a da Igreja universal, como que antecipando o que diz o Vaticano II: «A totalidade dos fiéis, que receberam a unção do Espírito Santo, não pode enganar-se na fé» (Lumen Gentium LG 12); «Quando o Romano Pontífice, ou o corpo episcopal com ele, define alguma verdade, propõe-na segundo a Revelação, à qual todos se devem conformar» (Lumen Gentium LG 25).
Não é possível enumerar todos os motivos que levaram o Magistério a escolher como guia seguro, nas disciplinas teológicas e filosóficas, São Tomás de Aquino; mas um sem dúvida é o seguinte: ter colocado os princípios de valor universal, que regem a relação entre razão e fé. A fé contém de modo superior, diverso e eminente, os valores da sabedoria humana, por isso é impossível que a razão possa discordar da fé e, se discorda, é necessário rever e reconsiderar as conclusões da filosofia. Neste sentido a mesma fé torna-se precioso auxílio para a filosofia.
Continua sempre a valer a recomendação de Leão XIII: «Quapropter qui philosophiae studium cum obsequio fidei christianae coniungunt, ii optime philosophantur: quandoquidem divinarum veritatum splendor, animo exceptus, ipsam iuvat inteligentiam; cui non modo nihil de dignitate detrahit, sed nobilitatis, acuminis, firmitatis plurimum addit» (Aeterni Patris, 13).
A verdade filosófica e a teológica convergem na única verdade. A verdade da razão sobe das criaturas a Deus; a verdade da fé desce directamente de Deus ao homem. Mas esta diversidade de método e de origem não destrói a sua fundamental unicidade, porque idêntico é o Autor quer da verdade que se manifesta através da criação, quer da verdade que é comunicada pessoalmente ao homem através da sua Palavra. Investigação filosófica e investigação teológica são duas diversas direcções de marcha da única verdade, destinadas a encontrarem-se, no mesmo caminho, para se ajudarem. Assim a razão iluminada, robustecida e garantida pela fé torna-se fiel companheira da própria fé e a fé alarga imensamente o horizonte limitado da razão humana. Sobre este ponto São Tomás é verdadeiramente Mestre iluminante: «Quia vero naturalis ratio per creaturas in Dei cognitionem ascendit; fidei vero in nos, e converso, divina revelatione descendit, est autem eadem via ascensus et descensus, oportet eadem via procedere in his quae supra rationem credentur, qua in superioribus processum est circa ea quae ratione investigantur de Deo» (Contra Gentes, IV, 1, n. 3349).
A diferença do método e dos instrumentos de investigação diversifica bastante o saber filosófico do teológico. Mesmo a melhor filosofia, a de estilo tomista, que Paulo VI tão bem definiu como «filosofia natural da mente humana», dócil para escutar e fiel em exprimir a verdade das coisas, é sempre condicionada pelos limites da inteligência e da linguagem humana. Por isso o Angélico não hesita em afirmar: «Locus ab auctoritate quae fundatur super ratione humana est infirmissimus» (S. Theol. I, q. 1, a 8, ad 2). Qualquer filosofia, enquanto é produto do homem, tem os limites do homem. Pelo contrário, «locus ad auctoritate quae fundatur super revelatione divina est efficacissimus» (Ibid.). A autoridade divina é absoluta, por isso a fé goza da firmeza e da segurança do próprio Deus; a ciência humana tem sempre a debilidade do homem, na medida em que se funda no homem. Todavia, também na filosofia há alguma coisa absolutamente verdadeira, indefectível e necessária, como são os princípios primeiros, fundamento de todo o conhecimento.
A verdadeira filosofia eleva o homem a Deus como a Revelação aproxima Deus do homem. Para Santo Agostinho «verus philosophus est amator Dei» (S. Augustinus, De Civ. Dei, VIII, 1; PL. 41, 225). São Tomás, fazendo-se dele eco, diz, com outras palavras, a mesma coisa: «Fere totius philosophiae consideratio ad Dei cognitionem ordinatur» (Contra Gentiles, I, c. 4; n. 23). «Sapientia est veritatem praecipue de primo principio meditari» (Contra Gentiles, I, c. I, n. 6). Amor da verdade e amor do bem, quando são autênticos, estão sempre juntos. Para destruir a ideia, por alguns proposta, de ser Santo Tomás um frio intelectualista, está o facto de o Angélico resolver o conhecimento mesmo em amor da verdade, quando põe como princípio de todo o conhecer «verum est bonum intellectus» (Ethic.I, lect. 12, n.139; cf. também Ethic. VI, n. 1134; S. Theol. I, q. 5, a 1, ad 4; I-IIae, q. 8, a I). Portanto a inteligência é feita para a verdade e ama-a como seu bem conatural. E como a inteligência não se sacia de nenhuma verdade parcial conquistada, mas tende sempre para mais além, a inteligência tende para além de toda a verdade particular e alarga-se naturalmente para a Verdade Total e Absoluta que, em concreto, não pode ser senão Deus.
O desejo da verdade transfigura-se em natural desejo de Deus e encontra-se esclarecido só à luz de Cristo, a Verdade feita Pessoa.
Assim toda a filosofia e a teologia de São Tomás não estão situadas fora, mas dentro do célebre aforismo: «fecisti nos ad te; et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te» (S. Augustinus, Conf I, 1). E quando São Tomás passa, da natural tendência do homem para a verdade e o bem, para a ordem da graça e da redenção transforma-se - não menos que Santo Agostinho, São Boaventura e São Bernardo - em cantor do primado da caridade: «Charitas est mater et radix omnium virtutum in quantum est omnium virtutum forma» (S. Theol. I IIae,62,a.4; cf. também I-IIae q. 65, a.2; I-IIae, q. 65. a. 3; I-IIae, q. 68 a. 5).
5. Há ainda outros motivos que tornam actual São Tomás: o seu altíssimo sentido do homem, «tam nobilis creatura» (Contra Gentiles, IV, I n. 3337). Que ideia tinha ele desta «nobilis creatura», imagem de Deus, é fácil conclui-lo todas as vezes que ele se aplica a falar da Encarnação e da Redenção. Desde a sua primeira obra juvenil, o Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, no prólogo ao Terceiro livro, no qual se aplica a tratar da Encarnação do Verbo, não hesita em comparar o homem ao «mar», na medida em que ele recolhe, unifica e eleva em si todo o mundo infra-humano, como o mar recolhe todas as águas dos rios que a ele vão ter.
No mesmo prólogo define o homem como o horizonte da criação, na qual se unem o céu e a terra; como vínculo do tempo e da eternidade; como síntese da criação. O seu vivíssimo sentido do homem nunca falta em todas suas obras. Nos últimos tempos da sua vida, iniciando o tratado da Encarnação na Terceira Parte da Summa Thelogica, Santo Agostinho, afirma que apenas assumindo a natureza humana, podia o Verbo mostrar «quanta sit dignitas humanae naturae ne eam inquinemus peccando »(S. Theol. III, q. 1, a. 2). E logo a seguir acrescenta: encarnando e assumindo a natureza humana Deus pôde mostrar «quam excelsum locum inter creaturas habeat humana natura» (Ibid.).
6. Nos encontros do vosso Congresso foi observado, além do mais, que os princípios da filosofia e da teologia de São Tomás não tiveram talvez, no sector moral, uma valorização como a exigem os tempos e como é possível deduzi-la dos grandes princípios postos pelo Aquinate, que devem ligar-se solidamente com as bases metafísicas, para maior organicidade e vigor. No sector social mais se fez, mas há ainda muito espaço para encher, para vir ao encontro dos problemas mais vivos e urgentes do homem de hoje.
Pode ser este um programa que empregue a Pontifícia Academia Romana de São Tomás de Aquino no futuro imediato, mantendo o olhar atento aos sinais dos tempos, às exigências de maior organicidade e penetração, segundo as directrizes do Vaticano II (cf. Optatam Totius OT 16 Gravissimum Educationis GE 10), e das correntes de pensamento do mundo contemporâneo, em não poucos aspectos, diversas das dos tempos de São Tomás e também do período em que foi publicada por Leão XIII a Encíclica «Aeterni Patris».
São Tomás marcou um caminho, que pode e deve ser levado avante e actualizado, sem lhe trair o espírito e os princípios fundamentais, mas tendo também conta das conquistas científicas modernas. O verdadeiro progresso da ciência não pode nunca contradizer a filosofia, como a filosofia não pode nunca contradizer a fé. Os novos contributos científicos podem ter função catártica e liberalizadora diante dos limites impostos à investigação filosófica pelo atraso medieval, para não dizer pela não existência de uma ciência como nós hoje possuímos. A luz não pode ser obscurecida , mas só reforçada pela luz. A ciência e a filosofia podem e devem mutuamente colaborar, contanto que uma e outra se mantenham fiéis ao próprio método. A filosofia pode iluminar a ciência e libertá-la dos seus limites, como, por sua vez, a ciência pode projectar nova luz sobre a filosofia e abrir-lhe novos caminhos. E este o ensinamento do Mestre de Aquino, mas primeiro ainda é a Palavra da Verdade mesma, Jesus Cristo, que nos assegura: «Veritas liberabit vos» (Jn 8,32).
7. Como é sabido, Leão XIII, rico de sabedoria e de experiência pastoral, não se contentou com publicar directrizes teóricas. Exortou os Bispos a criarem academias e centros de estudos tomistas, e começou por dar exemplo, instituindo, aqui em Roma, a «Pontifícia Academia de São Tomás de Aquino» a que foi depois unida, em 1934, a mais antiga «Academia de Religião católica». O Congresso, que se realizou estes dias, tinha também a finalidade de celebrar o centenário da vossa mesma Academia. E com muita razão, porque a ela pertenceram, como Presidentes ou como Sócios, ilustres Personagens, insignes Cardeais, muitos dos melhores Engenhos, e Mestres das ciências sagradas de Roma e do mundo. Academia, que foi sempre especialmente querida a todos os meus Predecessores até Paulo VI, que a recebeu não menos de duas vezes em audiência, por ocasião dos precedentes Congressos, pronunciando discursos e dando directrizes memoráveis.
Não se podem passar em silêncio as principais características, que permitiram à vossa Academia manter-se fiel aos encargos que os Sumos Pontífices lhe foram confiando: a sua católica universalidade, graças à qual sempre teve, entre os seus sócios, personalidades residentes em Roma e fora de Roma — como não recordar Jacques Maritain e Étienne Gilson? —; membros do clero diocesano e religiosos de todas as Ordens e Congregações; a sua prontidão no estudo dos problemas contemporâneos, constituídos objectos de análise, à luz da doutrina da Igreja: «Ecclesiae Doctorum, praesertim Sancti Tomae vestigia premendo» (Gravissimum Educationis GE 10), quase preludiando o Concílio Vaticano II.
O testemunho mais convincente são as obras da Academia: os numerosos ciclos de conferências, as publicações, os Congressos periódicos queridos pelo Papa Pio XI e realizados com exemplar pontualidade e aproveitamento dos estudos católicos.
Nem posso deixar de recordar, entre os alunos que obtiveram o doutoramento na Pontifícia Academia Romana de São Tomás de Aquino, dois meus ilustres predecessores: Pio XI e Paulo VI.
Venerados e caros Irmãos!
O Concílio Vaticano II, que deu novo impulso aos estudos católicos com os seus decretos sobre a formação sacerdotal e sobre a educação católica, sob o patrocínio do Mestre São Tomás (S. Thoma magistro: cf. Optatam Totius OT 16), sirva de estímulo e auspício para uma renovada vida e para abundantes frutos, no próximo futuro, para o bem da Igreja.
Ao mesmo tempo que vos expresso a minha mais viva complacência pelo Congresso Tomista Internacional, que nestes dias prestou verdadeiramente notável contributo científico quer pela qualificação dos participantes e relatores, quer pela cuidadosa focagem dos vários problemas históricos e filosóficos, exorto-vos a continuar, com grande empenho e seriedade, a realizar as finalidades da vossa Academia; seja centro vivo, latejante e moderno, em que o método e a doutrina do Aquinate sejam postos em permanente contacto e sereno diálogo com os complexos fermentos da cultura contemporânea, na qual vivemos e estamos mergulhados.
Com tais votos, renovo-vos a minha sincera benevolência e concedo-vos do coração a minha Benção Apostólica.
Discursos João Paulo II 1980 - Velletri, 7 de Setembro de 1980