AUDIÊNCIAS 1981 - AUDIÊNCIA GERAL


PAPA JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 4 de Março de 1981




Viagem Apostólica ao Extremo Oriente

1. A quarta-feira de Cinzas — a hodierna quarta-feira — constitui o início da Quaresma. Nós, impondo na fronte as Cinzas em conformidade com tradição antiquíssima, desejamos manifestar não só a transitoriedade do mundo visível e a lei da morte, à qual neste mundo está sujeito também o homem, mas, ao mesmo tempo, desejamos manifestar a nossa prontidão em participar no mistério pascal de Cristo, que leva à vitória sobre o pecado e sobre a morte. A liturgia das Cinzas — a que preside o Bispo de Roma, conforme a tradição na Igreja estacional de Santa Sabina no Aventino — é o primeiro chamamento para a conversão dos corações e para a entrada no caminho da Quaresma (jejum de 40 dias), dentro do espírito da Igreja. Escutando a sua voz, não tomeis duros os vossos corações, mas dia após dia tomai-os mais sensíveis à voz do Senhor Crucificado.

2. Neste dia, no limiar da Quaresma, desejo dar conta daquele particular serviço pastoral do Bispo de Roma, que foi, na segunda metade do mês passado, a viagem ao Extremo Oriente, iniciada a 16 e terminada a 27 de Fevereiro. O motivo principal da viagem foi o pedido do Arcebispo de Manila, Cardeal Jaime L. Sin, que me apresentou logo no princípio do meu serviço na Sé Romana, de elevar pela primeira vez aos altares um filho da Igreja nas Filipinas, em relação com o quarto centenário da existência e da actividade da Sé Episcopal de Manila. Este primeiro Beato da terra filipina, que obteve a glorificação, foi Lourenço Ruiz, leigo e pai de família. Juntamente com outro grupo de missionários, composto por eclesiásticos e leigos, homens e mulheres, pertencentes pela maior parte à Ordem dos Dominicanos, e provenientes da Espanha, da França, da Itália e até do Japão, Lourenço Ruiz sofreu o martírio pela fé em Cristo, no ano de 1637.

3. Assim pois, o motivo directo da minha viagem esteve principalmente ligado com o facto do martírio, de que um dos participantes foi um filho da Igreja nas Filipinas; mas o facto mesmo realizou-se no Japão, em datas que se seguiram com pouca distância, em 1633, em 1634 e em 1637.

Quis dirigir-me ao Extremo Oriente, às Filipinas e ao Japão, para prestar homenagem aos mártires da fé, tanto aos vindos da velha Europa, como também aos indígenas. A Igreja que se desenvolveu, a partir da Cruz de Cristo no Calvário, em todos os séculos e em diversos lugares, atinge a maturidade mediante o testemunho da cruz, mediante o martírio pela fé, aceito — conscientemente, deliberadamente e com amor — pelos confessores de Cristo: "Ninguém tem amor maior que este: dar a vida pelos próprios amigos" (Jn 15,13).

A Igreja no Extremo Oriente passou, no decurso dos séculos, através do testemunho da Cruz, cresceu sobre o fundamento do sangue do martírio, que derramaram quer os missionários provenientes da Europa, quer os confessores de Cristo daquelas terras, atingindo depressa a maturação da maior prova do amor. Este fundamento foi já abundantemente lançado nos diversos países da Ásia e do Extremo Oriente.

4. E, por isto mesmo, se as proporções quantitativas nos levam a olhar para as Igrejas locais do Extremo Oriente e do Continente Asiático, ainda como ilhazinhas no mar das outras religiões, das tradições e das culturas, todavia, ao mesmo tempo, as profundidades do fundamento, lançado mediante o martírio de tantos cristãos, permite-nos ver nelas o cristianismo preparado já desde os fundamentos e maduro por causa do testemunho da Cruz de Cristo.

O meu pensamento e o meu coração dirigiram-se, durante os dias passados, de modo particular para este testemunho e para este fundamento, não só para onde directamente realizava a minha peregrinação, mas também para todos os territórios do gigantesco Continente e dos vastos arquipélagos que o circundam. E se a história de dois milénios parece dar talvez maior testemunho das dificuldades de um encontro recíproco entre o cristianismo e as tradições religiosas da Ásia e do Extremo Oriente, todavia a eloquência deste fundamento não pode ficar sem eco.

Hoje, depois do Concílio Vaticano II olhamos para tudo isto com esperança ainda maior, tendo diante dos olhos a Declaração sobre as relações da Igreja Católica com as Religiões não cristãs. Julgamos profundamente que Deus no Seu amor paternal quer "que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade" (1Tm 2,4). Olhamos com respeito para qualquer emanação daquelas verdades, que se manifestam também fora do cristianismo. Ao mesmo tempo, não cessamos de pedir e actuar nesta direcção, para que a todos os povos se revele a plenitude do divino mistério da salvação, que está em Cristo Jesus. Nisto se encontra precisamente a missão da Igreja, que ela realiza continuamente "em qualquer ocasião oportuna e inoportuna" (2Tm 4,2), alegrando-se também com a alegria daquele rebanhozinho, porque ao Pai aprouve dar-lhe o Seu reino (cf. Lc Lc 12,32).

5. Esta alegria foi partilhada também pelos meus Irmãos e Irmãs, que encontrei no decurso da minha viagem. Já no primeiro dia, em Karachi — cidade de mais de três milhões de habitantes, situada no Paquistão — mais de 100 mil cristãos se apertavam em redor dos seus Bispos, com o Cardeal Joseph Cordeiro, Arcebispo de Karachi, à frente.

6. Das Filipinas é difícil dizer quanto baste e seria necessário dizer muito, mesmo que não fosse senão porque me foi concedido deter-me lá mais longamente. Todavia difícil seria contentarmo-nos só com o papel de um correspondente ou de um cronista. As Filipinas são o país do Extremo Oriente, em que a Igreja Católica lançou mais profundamente raízes e, para mais dizer, identificou-se com a sociedade aborígena e elaborou muitas formas, quer tradicionais quer modernas, do apostolado e da pastoral. Como exemplo das formas tradicionais podem-se recordar as várias maneiras da chamada "religiosidade popular", nas quais parece participar também a parte culta daquela sociedade. As formas modernas — particularmente as Universidades Católicas e também as escolas — começaram a trabalhar há alguns séculos (basta recordar a Universidade dos Padres Dominicanos) e continuam a desenvolver-se; o mesmo vale no que diz respeito à obra caritativa.

Mas, precisamente relacionado com esta situação bem privilegiada da Igreja nas Filipinas, impõe-se também o pensamento sobre os deveres particulares, que esta Igreja deve impor-se no campo da Evangelização do Extremo Oriente; e muito é preciso pedir que ela descubra estas tarefas e se torne capaz de enfrentá-las.

7. A breve visita na ilha Guam, no meio do arquipélago das Marianas, permite pensar com alegria nos resultados notáveis da evangelização naquela região do Pacífico e fazer votos por que "a palavra do Senhor seja anunciada às ilhas mais afastadas" (cf. Jer Jr 31,10).

8. Particular eloquência teve a demora no Japão. Pela primeira vez os pés do Bispo de Roma tocaram aquele arquipélago, em que a história do cristianismo se escreve desde os tempos de São Francisco Xavier; primeiro, um período de intenso desenvolvimento; depois, longos anos de perseguições sangrentas; isto manifestou a estupenda prova de fidelidade dos Cristãos Japoneses, particularmente das regiões de Nagasaqui. Por fim, o período contemporâneo, em que a Igreja pode de novo actuar sem obstáculos; período em que desenvolveu muitas instituições e instrumentos modernos — recordemos as onze Universidades Católicas entre as quais a "Universidade Sophia" de Tóquio — e no qual, ao mesmo tempo, o processo de cristianização prossegue muito lentamente, muito mais lentamente do que no século XVI. Contudo, também estes poucos dias de demora me permitiram dar-me conta de como a Igreja e o cristianismo constituem certo ponto de referência na vida espiritual da sociedade japonesa. Pode ser que este vagar da cristianização nos nossos tempos derive das mesmas fontes que a secularização do mundo ocidental ligada com o processo intenso (e unilateral!) da civilização científica e técnica. De facto, sob este ponto de vista, o Japão encontra-se entre os países mais progressivos do mundo inteiro.

Etapa importante da visita ao Japão foi Hiroxima: a primeira cidade vítima da bomba atómica, a 6 de Agosto de 1945 (três dias depois também Nagasaqui).

Tanto a recordação dos indómitos mártires japoneses dos séculos passados, como também a eloquência de Hiroxima, ofereceram a oportunidade de eu dirigir os meus passos para o Extremo Oriente, precisamente rumo ao Japão.

9. Esta recente viagem foi sem dúvida a mais longa das por mim feitas até agora, ligadas com o meu serviço na Sé de Pedro. O seu itinerário abrangeu quase todo o globo. Ainda na última etapa tive a oportunidade de parar em Anchorage, no Alaska, adorando a Deus com o Sacrifício Eucarístico, juntamente com todos aqueles que, naqueles confins setentrionais do Continente Americano, prestam testemunho do Seu Amor e da Sua Presença até "aos extremos confins da terra" (Ac 1,8).

10. Falando-vos de tudo isto na audiência geral de hoje, primeira quarta-feira da Quaresma, começo por agradecer as orações, que em tão longo caminho me ajudaram; peço em seguida, juntamente convosco, que os frutos da conversão e da esperança atinjam todos aqueles que, em todo o orbe terrestre, não cessam de procurar o Rosto do Senhor (cf. Sl 26/27, 8).

Saudações

Aos Sacerdotes da Congregação do Imaculado Coração de Maria

Tenho o prazer de saudar de modo particular os Sacerdotes da Congregação do Coração Imaculado de Maria, Missionários de Scheut, por ocasião do seu Capítulo. Desde a fundação no século passado, na Bélgica, a vossa Congregação suscitou numerosas vocações missionárias em vários países, e os seus filhos anunciaram o Evangelho e fizeram nascer a Igreja em várias regiões importantes da África e da Ásia, precisamente na China, nas Filipinas e no Zaire. Hoje, graças a eles, algumas Igrejas locais tomaram o seu impulso e elas mesmas contribuem com vocações religiosas e missionárias da Congregação de Scheut. Os países donde regresso, Filipinas e Japão, deram-me testemunho disso. Queridos Amigos, a missão é também hoje urgente e as jovens Igrejas têm necessidade do vosso serviço para desabrocharem e aprofundarem a sua fé, para o seu anúncio aos outros irmãos, para a sua irradiação em todos os campos, inclusivamente no campo social. O campo é imenso, e sei que não poupais os vossos esforços. Para isso, sede fiéis ao carisma tão tipicamente missionário do vosso fundador, e garanti a todos os vossos membros uma sólida formação doutrinal como requer a obra de evangelização. O amor da igreja resida em vós! O Espírito Santo fecunde o vosso apostolado! A Virgem Maria vos ajude a guardar puro o vosso zelo pelo Evangelho! De todo o coração, abençoo os Capitulares, e em particular o novo Conselho geral, e mediante eles, todos os missionários de Scheut.

Aos estudantes e aos animadores da "Ecole de la Foi" de Friburgo

Não me afasto do terreno do anúncio da Boa Nova ao dirigir-me aos estudantes da Escola da Fé de Friburgo, e aos seus animadores. Para contribuir com uma parte activa na evangelização, nos vossos Institutos, nas vossas dioceses e nas vossas cidades, procurai tornar-vos vós mesmos discípulos fervorosos de Cristo e formar comunidades aptas a ler o Evangelho com simplicidade e profundidade, celebrar e rezar juntos, testemunhar a ternura de Deus e o amor fraterno na realidade da existência quotidiana. O Senhor vos conduza segundo o seu Espírito, e a sua alegria resida em vós! Com a minha Bênção Apostólica!

Aos cantores da paróquia de San Hallvar, em Oslo

É um prazer para mim dirigir uma palavra de saudação aos membros do coro de rapazes da igreja paroquial de Santo Hallvard, em Oslo. Como sabeis, há poucos dias sobrevoei o vosso país no regresso da minha visita pastoral ao Extremo Oriente; por isso sois duas vezes bem-vindos. Oxalá, mediante os vossos cantos de louvor a Deus, possais crescer em amos por Ele, e a vossa actual visita a Roma intensifique a vossa alegria na vida cristã.

Aos estudantes ortodoxos do "Ostkirchliches Institut" de Regensburg

Com especial alegria dirijo a minha saudação aos estudantes da nossa Igreja irmã ortodoxa que, por desejo dos seus bispos, frequentam as Faculdades teológico-católicas ela Alemanha. Na vossa peregrinação aos túmulos dos Apóstolos Pedro e Paulo exprimo-vos as minhas cordiais boas-vindas.

Agradeço-vos o testemunho da vossa vida de crentes entre nós, católicos, que faz reviver em nós a venerável tradição do Oriente e nos ajuda a revigorar e a aprofundar o diálogo do amor fraterno e da aproximação mútua. Este modo de diálogo deve ser um elemento constante na nossa pastoral quotidiana para que o diálogo teológico entre as Igrejas ortodoxas e a Igreja católica, oficialmente iniciado, possa produzir fruto.

Saudai os vossos respectivos bispos do Oriente; saudai, na Alemanha, os Bispos católicos que tornaram possível o vosso estudo. Dizei aos meus irmãos no episcopado, a uns e a outros, que lhes estou agradecido e que, tanto a eles como a vós, acompanho com a minha oração no nosso caminho comum até à unidade perfeita.

Aos Ecónomos Católicos e aos Ecónomos-Gerais e Provinciais

Tenho o prazer de dirigir cordiais boas-vindas ao grupo dos Ecónomos Católicos e dos Ecónomos-Gerais e Provinciais das Ordens e das Congregações religiosas que participam nestes dias em Congressos de estudo sobre os problemas inerentes ao seu trabalho, organizados pelo Centro Nacional dos Ecónomos de Comunidades. Ao manifestar-vos, caríssimos filhos, o meu vivo apreço pelo facto de, entre os graves deveres da vossa vocação sacerdotal e religiosa ou na vossa actividade profissional, vos empenhardes no humilde serviço dos irmãos, desejo encorajar-vos no encargo que vos foi confiado, e que a contínua evolução da sociedade e a relativa legislação tornam por vezes muito difícil. Ao mesmo tempo que vos exorto a atenderdes com perseverante generosidade e com sentido de responsabilidade às vossas incumbências, formulo votos por que elas sejam continuamente iluminadas pela palavra do divino Mestre: "Procurai primeiro o Seu reino e a Sua justiça" (Mt 6,33). A minha Bênção Apostólica vos conforte nesta fervorosa busca.

Aos Doentes

Saúdo de modo particular também os doentes aqui presentes. Asseguro-vos um especial lugar no meu afecto e nas minhas orações. Quero desejar-vos com todo o coração que, enquanto nesta Quaresma viveis mais do que qualquer outra pessoa a vossa conformação com Jesus que sofre, assim também possais experimentar a alegria da sua ressurreição: quer com a vossa plena saúde física, que desejo de todo o coração, quer pelo menos com uma autêntica e interior liberdade e adesão Àquele que é o Senhor da verdadeira vida. E oferecei também a vossa condição a Deus, que tem necessidade de uma santidade cada vez maior e de um testemunho eficaz e cada vez maior, no mundo.

E a minha paternal Bênção vos acompanhe todos os dias.





PAPA JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 18 de Março de 1981




Aos Jovens na Basílica de São Pedro



Doutrina paulina da pureza como "vida segundo o Espírito"

1. No nosso encontro de há semanas, concentrámos a atenção sobre a passagem da primeira Carta aos Coríntios, em que São Paulo chama ao corpo humano "templo do Espírito Santo". Escreve: "Não sabeis porventura que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que habita em vós, que recebestes de Deus, e que não vos pertenceis a vós mesmos? E que fostes comprados por alto preço" (1Co 6,19-20). "Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo?" (1Co 6,15). O Apóstolo indica o mistério da "redenção do corpo", realizada por Cristo, como fonte de um particular dever moral, que obriga os cristãos à pureza, aquela que o mesmo Paulo define noutra passagem como exigência de "possuir o seu corpo em santidade e honra" (1Th 4,4).

2. Todavia não descobriríamos até ao fundo a riqueza do pensamento encerrado nos textos paulinos, se não notássemos que o mistério da redenção frutifica no homem também de modo carismático. O Espírito Santo que, segundo as palavras do Apóstolo, entra no corpo humano como no próprio "templo", nele habita e opera unido aos seus dons espirituais. Entre estes dons, conhecidos na história da espiritualidade como os sete dons do Espírito Santo (cf. Is Is 11,2 segundo os Setenta e a Vulgata), o mais congenial à virtude da pureza parece ser o dom da "piedade" (eusebeia, clonum pietatis)(1). Se a pureza dispõe o homem para "manter o próprio corpo com santidade e respeito", segundo lemos na primeira Carta aos Tessalonicenses (4, 3-5) a piedade, que é dom do Espírito Santo, parece servir de modo particular à pureza, adaptando o sujeito humano àquela dignidade que é própria do corpo humano em virtude do mistério da criação e da redenção. Graças ao dom da piedade, as palavras de Paulo — "Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que habita em vós... e que não pertenceis a vós mesmos?" (1Co 6,19) — adquirem a eloquência de uma experiência e tornam-se viva e vivida verdade nas acções. Abrem também o acesso mais pleno à experiência do significado esponsal do corpo e da liberdade do dom ligado com ele, no qual se desvelam o rosto profundo da pureza e o seu laço orgânico com o amor.

3. Embora a conservação do próprio corpo "com santidade e honra" se consiga mediante a abstenção da "impureza" — e tal caminho é indispensável —, todavia frutifica sempre na experiência mais profunda daquele amor, que foi inscrito desde o "princípio", segundo a imagem e semelhança do próprio Deus, em todo o ser humano e portanto também no seu corpo. Por isso São Paulo termina a sua argumentação da primeira Carta aos Coríntios no capítulo sexto com uma significativa exortação: "Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo" (v. 20). A pureza, como virtude, ou seja, capacidade de "manter o próprio corpo com santidade e respeito", aliada com o dom da piedade, como fruto da permanência do Espírito Santo no "templo" do corpo, realiza nele tal plenitude de dignidade nas relações interpessoais, que Deus mesmo é nisso glorificado. A pureza é glória do corpo humano diante de Deus. É a glória de Deus no corpo humano, através do qual se manifestam a masculinidade e a feminilidade. Da pureza brota aquela singular beleza, que penetra toda a esfera da recíproca convivência dos homens e consente que se exprimam a simplicidade e a profundidade, a cordialidade e a autenticidade irrepetível da confiança pessoal. (Talvez se apresente depois outra ocasião para tratar mais amplamente este tema. O laço da pureza com o amor, e também o laço da mesma pureza no amor — com aquele dom do Espírito Santo que é a piedade — constituem a trama pouco conhecida da teologia do corpo, que merece todavia aprofundamento particular. Isto poderá ser realizado no decurso das análises quanto à sacramentalidade do matrimónio).

4. Agora uma breve referência ao Antigo Testamento. A doutrina paulina acerca da pureza, entendida como "vida segundo o Espírito", parece indicar certa continuidade em relação com os Livros "sapienciais" do Antigo Testamento.Neles encontramos, por exemplo, a seguinte oração para obter a pureza nos pensamentos, palavras e obras: "Senhor, pai e Deus da minha vida... afastai de mim a intemperança, e não se apodere de mim a paixão da impureza" (Si 23,4-6). A pureza é, de facto, condição para encontrar a sabedoria e para segui-la, conforme lemos no mesmo Livro: "Encontrei, em mim mesmo, muita sabedoria, e nela fiz grandes progressos" (Si 51,20). Além disso, poder-se-ia também de algum modo tomar em consideração o texto do Livro da Sabedoria (8, 21) conhecido pela liturgia na versão da Vulgata: "Scivi quoniam aliter non possum esse continens, nisi Deus det; et hoc ipsum erat sapientiae, scire, cuius esset hoc donum" (2).

Segundo este contexto, não tanto é a pureza condição da sabedoria quanto a sabedoria é condição da pureza, como de um dom particular de Deus. Parece que já nos supercitados textos sapienciais se delineia o duplo significado da pureza: como virtude e como dom. A virtude está ao serviço da sabedoria, e a sabedoria predispõe para acolher o dom que provém de Deus. Este dom fortifica a virtude e consente que se gozem, na sabedoria, os frutos de um proceder e de uma vida que sejam puros.

5. Como Cristo na sua bem-aventurança do Sermão da Montanha, a qual se refere aos "puros de coração", põe em relevo a "visão de Deus", fruto da pureza e em perspectiva escatológica, assim Paulo por sua vez realça a sua irradiação nas dimensões da temporalidade, quando escreve: "Tudo é puro para os que são puros; mas, para os homens sem fé nem integridade, nada é puro; até o seu espírito e a sua consciência estão contaminados. Dizem que conhecem a Deus, mas negam-n'O com as suas obras..." (Tt 1,15 ss.). Estas palavras podem referir-se também à pureza em sentido tanto geral quanto específico, como à nota característica de todo o bem moral. Para a concepção paulina da pureza, no sentido de que falam a primeira Carta aos Tessalonicenses (4, 3-5) e a primeira Carta aos Coríntios (6, 13-20), isto é no sentido da "vida segundo o Espírito", parece ser fundamental — como resulta do conjunto destas nossas considerações — a antropologia do renascimento do Espírito Santo (cf. também Jn 3,5 ss.). Ela ergue-se das raízes lançadas na realidade da redenção do corpo, operada por Cristo: redenção, cuja expressão última é a ressurreição. Há profundas razões para relacionar a temática inteira da pureza com as palavras do Evangelho, nas quais Cristo se refere à ressurreição (e isto constituirá o tema da nova etapa das nossas considerações). Aqui pusemo-la em relação com o "ethos" da redenção do corpo.

6. O modo de entender e de apresentar a pureza — herdado da tradição do Antigo Testamento e característico dos Livros "sapienciais" — era certamente uma indirecta mas, apesar disso, real preparação para a doutrina paulina acerca da pureza entendida como "vida segundo o Espírito". Sem dúvida aquele modo facilitava também a muitos ouvintes do Sermão da Montanha a compreensão das palavras de Cristo, quando, explicando o mandamento "Não cometerás adultério", se referia ao "coração" humano. O conjunto das nossas reflexões pôde deste modo demonstrar, ao menos em certa medida, com que riqueza e com que profundidade se distingue a doutrina sobre a pureza nas suas mesmas fontes bíblicas e evangélicas.



Notas

1) A eusebeía ou pietas no período helenístico-romano referia-se geralmente à veneração dos deuses (como "devoção"), mas conservava ainda o sentido primitivo mais lato do respeito para com as estruturas vitais.

A eusebeía definia o comportamento recíproco dos consanguíneos, as relações entre os cônjuges, e também a atitude que as legiões deviam a César ou a dos escravos para com os patrões.

No Novo Testamento, só os escritos mais tardios aplicam a eusebeía aos cristãos; nos escritos mais antigos esse termo caracteriza os "bons pagãos" (Ac 10,2 Ac 10,7 Ac 17,23).

E assim a eusebeía helénica, como também o "donum pietatis", referindo-se embora, sem dúvida, à veneração divina, têm larga base para exprimir as relações inter-humanas (cf. W. Foerster, art. eusebeía, em: "Theological Dictionary of the New Testament", ed. G. Kittel-G. Bromi1ey, vol. VII, Grand Rapids 1971, Eerdmans, PP 177-182).

2) Esta versão da Vulgata, conservada pela Neovulgata e pela liturgia, citada várias vezes por Santo Agostinho (De S. Virg., par. 43; Confess. VI, 11; X, 29; Serm. CLX, 7), muda todavia o sentido do original grego, que se traduz assim: "Como sabia que não podia obter a sabedoria, se Deus ma não desse...".



Saudações

A grupos de Sacerdotes italianos

Com particular satisfação acolho e saúdo os trinta Diáconos do Seminário de Venegono, acompanhados do seu Arcebispo, Dom Carlos Maria Martini, e exprimo as minhas afectuosas boas-vindas aos dez Sacerdotes da Diocese de Piacenza e aos oito Religiosos da Congregação dos Clérigos Regulares de São Paulo, os quais celebram respectivamente o 40º e o 250º aniversário de sacerdócio. A vós, caríssimos jovens que aguardais o mês de Junho fixado para a vossa Ordenação, dirijo a minha paterna exortação: regozijai-vos do inefável júbilo da vossa vocação de ser luz do mundo, fermento de vida, anunciadores da Palavra de Deus, administradores de graça e de perdão.

E a vós, caríssimos irmãos sacerdotes, que viestes a Roma para uma pausa salutar de oração e de comunhão, dirijo e convite a perseverardes com confiança no vosso fervoroso testemunho. Tornastes-vos de facto participantes de Cristo e do seu ministério de salvação "desde que conserveis firmemente até ao fim a vossa fé dos primeiros dias" (He 5,14). Invoco sobre os vossos três grupos uma renovada efusão de dons celestes, e de coração vos abençoo.

A uma peregrinação proveniente da República Federal da Alemanha

Dirijo uma saudação muito cordial de boas-vindas ao Senhor Reitor e aos diáconos, aqui presentes, do Seminário diocesano de Paderborn. Desejaria, queridos jovens amigos, que o diaconado, que aceitastes solenemente na Igreja, não fosse para vós apenas uma mera etapa exterior na vossa escalada para o presbiterado, mas um treino no ministério sacerdotal mediante uma atitude constante de disponibilidade e de serviço desinteressados. Ser sacerdote significa ser servidor: servidor de Jesus Cristo; servidor do Povo de Deus e de todos os homens para honra e glória de Deus. Neste sentido desejo-vos um período de diaconado espiritualmente frutuoso, e no vosso caminho até ao sacerdócio acompanho-vos com a minha especial. Bênção Apostólica.

Aos Doentes

Que palavras vos dirijo agora, a vós, queridos doentes? Antes de tudo aceitai a minha saudação cordialíssima: sede bem-vindos aqui; se Jesus era tão sensível com todos os que sofriam, como nos diz o Evangelho, o seu Vigário, o Papa, não pode deixar de estar muito unido a vós e às vossas tribulações.

Gostaria, também, de acrescentar: estamos no período sagrado da Quaresma, que se realiza toda, para todos, sob a insígnia predominante da cruz do Senhor. O Senhor quis a sua cruz; podia tê-la afastado de si, mas desejou-a, e por amor, pelo nosso amor, para nos dar os dons da graça e da salvação, da coragem e da serenidade. Caríssimos, nas vossas horas tristes, olhando para Jesus, sabei unir com amor a vossa cruz à Sua! Sentirá com isso grande consolação a vossa alma, acumulará incalculáveis méritos a vossa vida; e também vós, mesmo na ocultação, podeis ser, com a vossa fé e o vosso amor, missionários, apóstolos, sacerdotes. Tende estas generosas intenções, que muito agradam ao nosso divino Redentor. Com o meu paterno afecto, chegue até vós a minha Bênção.

Às participantes no Congresso Nacional (italiano) do Patronato para a Assistência Espiritual às Forças Armadas

Estão presentes nesta Sala também as participantes no Congresso Nacional do Patronato para a Assistência Espiritual às Forças Armadas, acompanhadas pela Presidente Senhora Lívia Andreotti. Caríssimas irmãs, regozijo-me convosco pela importante actividade que realizais num sector tão delicado como o da assistência e acolhimento aos militares nas comunidades eclesiais locais. Sabei tirar estímulo do vosso encontro aqui em Roma, centro da Cristandade, para consolidar a vossa fé e tornar cada vez mais operante a vossa caridade. Deste modo dareis testemunho verdadeiramente evangélico às pessoas entre as quais desenvolveis a vossa meritória obra. Com a minha Bênção Apostólica.

A peregrinos de duas paróquias italianas

Outros dois grupos, ainda, se destacam perante a minha vista. São formados por fiéis da Paróquia de Santa Maria da Piedade, no Prato, e pelos das Paróquias de Ronciglione, na Diocese de Sutri. .
Dir-vos-ei apenas uma palavra e é esta: amai as vossas Paróquias! Nelas encontrareis solidariedade, simpatia e unidade na mesma oração; nelas sentir-vos-eis mais irmãos e encontrareis a força para fazer da família um ninho de amor, de fidelidade e de piedade; para tornar a vossa comunidade o verdadeiro povo de Deus. Vivei assim a vossa vida paroquial e o Senhor não deixará de vos abençoar e também todos os vossos esforços,



Aos jovens na Basílica de São Pedro

Caríssimos jovens

1. Estou contentíssimo de me encontrar convosco esta manhã na Basílica Vaticana, nesta Audiência reservada só para vós, que com a vossa vivacidade e a vossa alegria trazeis o dom da esperança e da confiança.

Por isso, com grande afecto vos saúdo a todos: rapazes e meninas das Escolas Elementares e Médias, os jovens e as jovens dos Cursos Superiores; dirijo depois a minha saudação aos Presidentes e Directores, aos que vos ensinam, aos Professores, aos pais e aos que vos acompanham.

Exprimo-vos o meu cordial agradecimento por esta vossa visita, inspirada em sentimentos de fé, e desejo assegurar-vos o meu afecto e a recordação que de vós terei diante de Deus.

De muitas partes da Itália viestes a Roma, e desejaria que esta peregrinação se imprimisse na vossa memória, de maneira que servisse de auxílio e de inspiração para toda a vossa vida especialmente nos momentos de dificuldade.

2. O período da Quaresma, que estamos passando para nos prepararmos dignamente para a comemoração da Páscoa, sugere-me dois pensamentos que vos deixo como recordação e como programa.

Sabeis que Jesus, antes de iniciar a vida pública, se retirou em oração quarenta dias no deserto. Ora, caríssimos jovens, procurai estabelecer também vós um pouco de silêncio na vossa vida, a fim de poderdes pensar, reflectir e orar com maior fervor e fazer propósitos com maior decisão. É difícil hoje criar "zonas de deserto e de silêncio", porque se é continuamente arrastado pela engrenagem das ocupações, pelo ruído dos acontecimentos e pela atracção dos meios de comunicação, de modo que fica comprometida a paz interior e encontram obstáculos os pensamentos mais altos que devem qualificar a existência do homem. É difícil, mas é possível e importante, saber fazê-lo.

Santa Teresa do Menino Jesus conta na sua autobiografia que, sendo criança, de vez em quando era impossível descobri-la, pois se escondia para orar. "Em que pensas?" perguntavam-lhe as pessoas de família; e ela com inocente simplicidade respondia: "Penso em Deus bom, na vida e na Eternidade" (cf. Cap. IV). Reservai também vós um pouco de tempo, especialmente à noite, para orar, para meditar, para ler uma página do Evangelho ou um episódio da biografia de algum Santo; criai-vos uma zona de deserto e de silêncio, tão necessária para a vida espiritual. E, se vos é possível, participai também nos Retiros e nos cursos de Exercícios Espirituais, organizados nas vossas dioceses e paróquias.

3. Juntamente com a importância do recolhimento, Jesus inculca também a necessidade do esforço para vencer o mal. Da narração dos Evangelistas sabemos que até Jesus quis sujeitar-se à tentação. Fê-lo para insistir na realidade dela e para ensinar a estratégia do combate e da vitória. Também vós, na vossa meninice e na vossa juventude, tendes as vossas tentações: ser cristão significa aceitar a realidade da vida e travar a luta necessária contra ó mal, segundo o método ensinado pelo Divino Mestre. E exorto-vos a que sejais, agora e sempre, corajosos, sem vos admirardes das dificuldades, confiando sempre n'Aquele que é vosso Amigo e vosso Redentor, e velando e orando para manterdes sólida a vossa fé, viva a vossa "graça".

Proteja-vos a Virgem Maria e acompanhe-vos a minha Bênção.



PAPA JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 25 de Março de 1981




Aos Jovens na Basílica de São Pedro

A Anunciação do Senhor mistério fundamental da Encarnação

1. Eis que venho para fazer, ó Deus, a Tua vontade (cf. Sl Ps 39,8 s.; He 10,7).


AUDIÊNCIAS 1981 - AUDIÊNCIA GERAL