AUDIÊNCIAS 1982 - AUDIÊNCIA GERAL

Fazei penitência, e crede no Evangelho.

Com estes convites dirige-se hoje a Igreja pessoalmente a cada homem, e primeiro que tudo a cada um dos seus filhos e das suas filhas para lhes anunciar a Quaresma.

Como o jejum, durante quarenta dias de Jesus de Nazaré no deserto, precedeu o anúncio do Evangelho do Reino de Deus, assim cada ano a Quaresma prepara a Igreja para o renovamento deste Evangelho nas solenidades pascais.

Hoje encontramo-nos na liturgia das Cinzas, que celebrarei na igreja da Estação quaresmal de Santa Sabina no Aventino, partindo com a procissão penitencial da Basílica de Santo Anselmo.

A todos os que vieram a fim de participar na habitual Audiência Geral da quarta-feira, desejo recordar, desde o princípio, o convite da liturgia das Cinzas, desejando que o período da Quaresma se torne para cada um tempo de conversão e de graça, tempo de profundo renovamento no Espírito.

2.. Desejo pois dedicar a minha meditação de hoje àquele serviço pastoral que, devido à Providência Divina, me foi dado retomar novamente no meio das Igrejas nos Países Africanos, isto é na Nigéria, em Benim, no Gabão e na Guiné Equatorial, do passado dia 12 ao dia 19 de Fevereiro.

As experiências adquiridas durante a precedente visita no Continente africano, em Maio de 1980, constituíram preparação para os deveres pastorais ligados à presente visita, deveres que estão em correspondência com o desenrolar da vida e da missão da Igreja nos vários Países da África.

Cada vez convém que subamos à origem desta missão. Pensamos com particular comoção naqueles que no decurso do século XVII, foram os primeiros a chegar com a palavra do Evangelho aos países do Golfo da Guiné. Talvez a missão deles tenha lançado raízes mais profundas no menor de entre os países visitados: na Guiné Equatorial, onde em 300 mil habitantes cerca de 85 por cento é constituído por católicos.

Todavia, um resultado duradouro foi deixado em toda a parte pela segunda chegada dos missionários, que remonta a diversos períodos do século XIX. O lugar mais antigo, que dá testemunho desta segunda onda de evangelização é o templo dedicado à Mãe de Deus em Libreville, de 1844.

O múltiplo esforço dos missionários, empreendido no século passado e continuado consequentemente no século XX, plasmou a Igreja na sua forma actual em todos os Países nomeados da África.

Desta forma hodierna é necessário todavia pensar e falar como de um novo período de evangelização, que vai a par e passo com o processo de descolonização e de formação dos Estados africanos independentes. Assim portanto, a Igreja na África, não deixando de ser "missionária", actualmente já se tornou Igreja "africana", guiada, em grandíssima maioria, por Bispos que são filhos das suas sociedades, com uma participação claramente crescente do Clero indígena na pastoral e das Congregações religiosa locais, de modo especial as femininas — e também do Laicado africano (o que se torna particularmente evidente depois do Vaticano II). Este Laicado, aliás, cumpriu desde o princípio os fundamentais deveres da Igreja "missionária", principalmente mediante o trabalho dos Catequistas leigos.

3. Exactamente em tal período foi-me dado visitar, pela segunda vez, a Igreja na África — e por isso — depois de terminar esta visita, agradeço primeiro que tudo a Deus e depois aos homens que foram colaboradores e cooperadores do serviço missionário do Bispo de Roma.

Reflectindo e falando sobre a Igreja africana em cada um dos Países recentemente visitados, é preciso antes de tudo ter diante dos olhos estes mesmos Países na sua múltipla característica: étnica, sócio-económica, politica, etc.

Basta recordar que no caminho da visita papal se encontrou a Nigéria, contando cerca de 80 milhões de habitantes e sendo no actual momento o maior País africano que se encontra no caminho de um forte desenvolvimento económico. E depois a República Popular de Benim, com uma população de cerca de 3 milhões e meio; o Gabão, cuja capital Libreville faz lembrar as capitais dos Países mais modernos do Ocidente, ao passo que a República no seu conjunto conta apenas 1 milhão e 200 mil cidadãos; por fim a já mencionada Guiné Equatorial, que muito recentemente saiu de uma enorme crise, da qual se vêem ainda os vestígios nas destruições produzidas no período precedente.

Sob o ponto de vista da língua, a Nigéria usa a língua inglesa ao lado de muitas línguas locais, das quais três parecem dominar ("jomba", "ibo" e "hausa"); Benim e o Gabão a língua francesa a nível oficial, além de muitas línguas locais; na Guiné fala-se a língua espanhola, além das locais.

4. Pelo que diz respeito à situação religiosa, em toda a parte coexistem com a Igreja católica diversas outras Igrejas e confissões cristãs, e desenvolve-se a cooperação ecuménica.Na Nigéria cerca de 40 por cento da população é constituída por muçulmanos, particularmente na parte setentrional do País. De maneira semelhante na República de Benim, onde 15 por cento da população é de muçulmanos, presentes sobretudo na parte setentrional.

A actividade missionária da Igreja deixa-se guiar neste campo pelos princípios do ensinamento sobre o Povo de Deus contidos na Constituição Lumen Gentium e pelas indicações dos outros documentos do Concílio Vaticano II, procurando quanto ao Islamismo os caminhos da aproximação e do diálogo.

Por fim, parte notável da população é constituída em toda a parte por seguidores das religiões tradicionais "africanas" (animistas), que parecem continuamente demonstrar grande prontidão para aceitar o cristianismo. Só com estes dados já se vê que a Igreja na África, embora tendo na actualidade as suas próprias estruturas normais, não cessa de ser "missionária" e não pode deixar de sê-lo.

Neste campo esboça-se uma novidade, isto é que esta Igreja se torna "missionária" também como Igreja "africana", isto não só mediante a actividade dos missionários brancos, cuja presença e cujo trabalho são, apesar de tudo, constantemente necessários e desejáveis.

Observando o conjunto da vida e da missão da Igreja na África, vemos quanto foi oportuna toda a obra do Concílio Vaticano II, as suas fundamentais formulações de natureza eclesiológica e as suas orientações pastorais. A visita à Igreja na África predispõe para uma especial gratidão para com o Espírito Santo, que no tempo oportuno e de modo apropriado permite extrair do eterno tesouro da Sabedoria e do Amor divino "coisas novas e coisas antigas" (Mt 13,52).

5. É difícil, nesta meditação, "contar" toda a peregrinação do Papa à África, que durou 8 dias. E difícil também realizar análises separadas das várias etapas. Estas, por outro lado, sob o aspecto da duração foram diversas: na Nigéria, mais de 4 dias; nos outros Países o resto do tempo. Parece todavia que — tomando em consideração também as proporções quantitativas — foi observada uma "paridade" fundamental, isto é de substância, das várias etapas. Por isso o fundamento para as análises particularizadas pode-se encontrar na crónica de cada etapa, nas homilias e nos discursos pronunciados.

Procuramos todavia formular algumas observações conclusivas de natureza mais sintética.

a) Em cada País visitado encontrámo-nos com uma Igreja já constituída como "africana"; todavia, os empreendimentos, primeiro da missão, e depois da obra de evangelização desta Igreja "africana", não se realizam no mesmo grau. Talvez isto seja mais plenamente evidente na Nigéria, de modo especial nalgumas Dioceses, que têm grande quantidade de vocações e já começam a mandar os próprios missionários. Na mesma Nigéria há todavia Dioceses, que sofrem neste momento de falta de Clero.

Significado fundamental para a missão da Igreja continuam a ter as Escolas e os Hospitais e os outros Institutos de assistência, dado o duplo carácter da evangelização: mediante a palavra (ensino) e mediante a obra (amor e misericórdia).

Há uma coisa interessante para examinar: Em que modo é que esta nova etapa da evangelização, em que a Igreja opera já como "africana" espelha a etapa precedente, a "missionária"? E quanto frutifica, nesta nova etapa, o trabalho dos missionários da etapa precedente, mesmo relativamente àquilo em que neste trabalho eles tinham a precedência? (Assim, por exemplo, na Nigéria vê-se um tipo de trabalho próprio dos missionários especialmente irlandeses, enquanto no Gabão se trata de missionários em grande parte franceses).

b) A Igreja africana, em cada um destes Países que visitei, encontra-se defronte a diversas formas de materialismo, que vêm do Ocidente e do Oriente. O materialismo teórico como programa político, por um lado; e o materialismo prático, como coeficiente do desenvolvimento económico, ligado ao liberalismo, por outro. Se é difícil avaliar este encontro segundo as experiências europeias, também ao mesmo tempo não se pode prescindir delas.

Parece que a Igreja africana pode contar com mais forte resistência da religiosidade espontânea, também na sua tradicional forma "africana", pelo que diz respeito ao encontro com a ateização programada. Aqui um exemplo "extremo", em certo sentido, é dado pela Guiné Equatorial (onde a maioria é constituída por católicos) e também, em certo sentido, por Benim precisamente pelo que toca em particular à resistência por parte dos seguidores da local "religião dos avós".

c) A passagem para a etapa da Igreja africana requer, como uma das tarefas fundamentais, a evangelização da cultura. A cultura africana é esplêndido "substrato", que espera a encarnação do cristianismo. Aqui é preciso ler de novo a fundo os trechos da Lumen Gentium e da Gaudium et Spes, mas é preciso também livrarmo-nos das diversas concepções e sugestões "apriorísticas" em relação com este tema: "entre a mensagem da salvação e da cultura existem múltiplas relações. Deus, de facto, revelando-se ao Seu povo até à plena manifestação de Si no Filho encarnado, falou segundo o tipo de cultura próprio das diversas épocas históricas...".

"O Evangelho de Cristo... continuamente purifica e eleva a moralidade dos povos. Com a riqueza sobrenatural fecunda, vinda do seu interior, fortifica, completa e restaura em Cristo as qualidades espirituais e os dotes de cada povo. De tal modo a Igreja, cumprindo a sua missão, já com este mesmo facto estimula e dá o seu contributo para a cultura humana e civil..." (Gaudium et Spes GS 58).

6. No princípio da Quaresma, a qual nos prepara para as festas pascais, enviamos aos nossos irmãos na Nigéria, em Benim, na Guiné Equatorial e no Gabão, particulares expressões fraternas de unidade cristã sobre estes caminhos da fé, da esperança e da caridade, para os quais toda a Igreja, especialmente nestes dias, ambiciona caminhar.
Oração à Rainha da Polónia


1. Senhora de Jasna Góra! Mãe da minha Nação!

Desejo hoje, no inicio da Quaresma, dizer aos meus Compatriotas que na Cripta da Basílica de São Pedro no Vaticano — onde desde há tempo existe a Capela Polaca — benzi ontem a Tua nova Imagem e, ao mesmo tempo, a nova reestruturação interior desta capela para homenagear o 600° aniversário da Tua presença em Jasna Góra.

2. Desejo também hoje, ao falar pela primeira vez depois de voltar da África e ao renovar a saudação aos polacos que encontrei nos vários países africanos visitados: Nigéria, Benim, Gabão e Guiné Equatorial — dizer-Te, ó Mãe, e ao mesmo tempo dizer a todos os meus Compatriotas, que se encontram na Pátria, esta grande solidariedade que os une aos Polacos em todo o mundo, e esta grande solicitude.

"Solidarnosc" todavia é não só o nome da solicitude — antes de tudo da solicitude pelo destino dos homens internados e presos, característica diária na Pátria, pelos direitos do homem e a soberania da nação — este é não só o nome da solicitude; é o nome da unidade e da comunhão nas quais nos encontramos reciprocamente uns para com os outros, e em que desejamos exprimir a qualidade do nosso ser na comunidade da nação.

Senhora de Jasna Góra! Toma sob a Tua maternal protecção este nome e este profundo e difícil conteúdo que nele tomaram como um dever os Polacos dos anos oitenta..

Este profundo, difícil conteúdo atravessa uma dolorosa purificação.

Oferecemo-la a Ti hoje, Quarta-feira de Cinzas, início da Quaresma.

3. Não esquecerei o que vi na cidade de Kaduna, na Nigéria, na grande praça onde conferi as Ordenações sacerdotais aos diáconos negros: no meio de centenas de milhar de homens encontrava-se um grupo de polacos sobre o qual ventilava a bandeira branca-vermelha e a inscrição "Solidarnosc".

Saudações

Aos peregrinos de língua espanhola

Desejo saudar de modo particular o grupo argentino de " Ninos y Jovenes Cantores de Bariloche". Oxalá a vossa visita ao Sucessor de Pedro vos anime a ser boas testemunhas da fé e mensageiros de paz e alegria entre os vossos irmãos!

Aos peregrinos de língua inglesa

Faço extensiva a minha cordial saudação aos visitantes de língua inglesa. É sempre uma alegria particular receber grupos da Escandinávia. Hoje temos um coro de rapazes de Oslo e dois grupos de estudantes organizados pela Igreja da Suécia. As minhas calorosas boas-vindas para vós e para todos os outros peregrinos que vieram a Roma.

Aos peregrinos de língua francesa

Saúdo especialmente os seminaristas do Seminário interdiocesano de Poitiers. A vossa vocação, queridos amigos, é um mistério, uma graça, que vos chama ao serviço do povo de Deus para o apoiar na fé, ajudar a rezar, e a viver o Evangelho, transmitindo-lhe a própria vida de Deus. Aproveitai este tempo de maturação para desenvolver em vós mesmos estes talentos de fé, de oração, de caridade, que farão de vós testemunhas autênticas de Cristo e administradores dos seus mistérios.

Encorajo também os representantes da Federação internacional católica de Educação física e desportiva. O desporto é um passatempo são para o corpo e para toda a pessoa; estimula as qualidades pessoais de paciência e de domínio de si; desenvolve o sentido de equipa. São Paulo chega a compará-lo com o treino para a vida cristã. Sede educadores pelo desporto!

Mas é a todos os peregrinos — particularmente aos estudantes e aos jovens, numerosos nesta audiência — que desejo uma verdadeira Quaresma, que os prepare para a renovação da Páscoa. E abençoo-vos de todo o coração.

Aos peregrinos italianos

Desejo agora voltar à língua italiana para dirigir a minha cordial saudação aos grupos, sempre tão numerosos, provenientes das várias regiões da Itália.

Dirijo-me, em primeiro lugar, aos fiéis da paróquia romana de S. Pio V a Villa Carpegna, que celebra, contemporaneamente, o trigésimo aniversário da erecção canónica e o vigésimo da consagração da igreja. Esta dupla celebração seja para todos os fiéis ocasião de viverem mais intensa e conscienciosamente o mistério da Igreja, como realidade de amor em relação pessoal a Cristo e como comunidade eficazmente operante para o bem mútuo dos irmãos e das irmãs, que estão perto ou longe.

A minha saudação é também para os alunos do Instituto Estatal dos Surdos-Mudos de Roma, na "Via Nomentana", para os seus professores e acompanhadores, os quais tanto fazem para que os jovens, confiados aos seus cuidados, sejam harmoniosamente inseridos na vida social. A todos a minha especial Benção.

Desejo, também como de costume, dirigir uma particular saudação aos jovens, sempre junto de mim com a sua fé e o seu entusiasmo, e que eu considero a esperança do amanhã, para a Igreja e para a sociedade civil. Esta manhã encontra-se aqui presente um grupo de estudantes vindos da Austrália, filhos de italianos provenientes da Veneza Júlia. Faço votos por que possais viver coerente e intensamente a fé que herdastes dos vossos pais e torná-la extensiva, pelo influxo da vossa pessoal e aumentada convicção, ao novo continente.

Uma afectuosa saudação aos doentes presentes nesta Audiência, a todos os componentes da Associação Nacional das Famílias das Crianças da secção de Monopoli, aos deficientes, aos seus pais e aos respectivos educadores. Os doentes estão sempre no meu coração porque o sofrimento é precioso aos olhos e ao coração de Cristo. O sofrimento cristãmente aceito e suportado é uma fonte inexaurível de bem e de graça para o próprio doente, para a Igreja e para a humanidade. Fazendo-vos votos por que tenhais a força da aceitação evangélica, acompanho-vos com a minha especial Bênção.

E por fim, uma saudação e felicitações, aos Jovens Casais que, depois de terem jurado fidelidade e amor recíproco diante do altar do Senhor, quiseram hoje confirmar de novo a sua vontade de união cristã na presença do Papa. Abençoo-vos de coração e faço-vos votos de toda a felicidade.





                                                                            Março de 1982

PAPA JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 17 de Março de 1982




1. Continuemos a reflexão sobre a virgindade ou celibato para o Reino dos céus: tema importante também para uma completa teologia do corpo.

No imediato contexto das palavras sobre a continência para o Reino dos céus, Cristo faz um confronto muito significativo; o que nos confirma melhor ainda na convicção de que Ele queria radicar profundamente a vocação para tal continência na realidade da vida terrena, entrando assim na mentalidade dos seus ouvintes. Enumera, de facto, três categorias de eunucos.

Este termo diz respeito aos defeitos físicos que tornam impossível a procriação no matrimónio. Precisamente tais defeitos explicam as duas primeiras categorias, quando Jesus fala quer dos defeitos congénitos: "eunucos que nasceram assim do seio materno" (Mt 19,12), quer dos defeitos adquiridos, causados por intervenção humana: "há os que se tornaram eunucos pela interferência dos homens" (Mt 19,12). Em ambos os casos trata-se portanto de um estado de coacção, por isso não voluntário. Se Cristo, no seu confronto, fala depois daqueles "que se fizeram eunucos por amor do Reino dos céus", (Mt 19,12), como de uma terceira categoria, certamente faz esta distinção para acentuar ainda mais o carácter voluntário e sobrenatural dela. Voluntário, porque os pertencentes a esta categoria "fizeram-se eunucos"; sobrenatural, por outro lado, porque o fizeram "para o Remo dos céus".

2. A distinção é muito clara e muito enérgica. Apesar disso, forte e eloquente é também o confronto. Cristo fala a homens, a quem a tradição da Antiga Aliança não tinha transmitido o ideal do celibato ou da virgindade. O matrimónio era tão comum que só uma impotência física podia constituir para ele uma excepção. A resposta dada aos discípulos em Mateus (19, 10-12) é a um tempo dirigida, em certo sentido, para toda a tradição do Antigo Testamento. Confirme-o um só exemplo, tirado do Livro dos Juizes, exemplo a que nos referimos aqui não tanto por causa do desenvolvimento do facto, quanto por motivo das palavras significativas, que o acompanham. "Seja-me concedido... chorar a minha virgindade" (Jg 11,37), diz a filha de Jefté ao pai, depois de ter sabido por ele que tinha sido destinada à imolação por um voto feito ao Senhor. (No texto bíblico encontramos a explicação de como se chegou a tanto). "Vai; — lemos em seguida — e deu-lhe dois meses de liberdade... Ela foi com as companheiras e chorou nos montes a sua virgindade. Passado este prazo, voltou para a casa do pai e Jefté cumpriu o voto que tinha feito. Ela não tinha conhecido varão" (Jg 11,38-39).

3. Na tradição do Antigo Testamento, quanto se deduz, não há lugar para o significado do corpo que, neste momento, Cristo, falando da continência para o Reino de Deus, quer ter em vista e revelar aos próprios discípulos. Entre as personagens a nós conhecidas, como guias espirituais do povo da Antiga Aliança, não há nenhuma que proclamasse tal continência com palavras ou comportamento (1). O matrimónio, então, não era só um estado comum, mas, além disso, naquela tradição tinha adquirido um significado consagrado pela promessa feita a Abraão pelo Senhor: "A aliança que faço contigo é esta: e serás pai de inúmeros povos... Tornar-te-ei extremamente fecundo; farei que de ti nasçam povos e terás reis por descendentes. Estabeleço uma aliança contigo e com a tua posteridade, de geração em geração; será uma aliança eterna, em virtude da qual Eu serei o teu Deus e da tua descendência" (Gn 17,4 Gn 17,6-7). Por isso, na tradição do Antigo Testamento o matrimónio, como fonte de fecundidade e de procriação relativamente à descendência, era um estado religiosamente privilegiado: e privilegiado pela revelação mesma. Sobre o fundo desta tradição, segundo a qual o Messias devia ser "filho de David" (Mt 20,30), era difícil entender o ideal da continência. Tudo perorava em favor do matrimónio: não só as razões de natureza humana, mas também as do Reino de Deus (2).:

4. As palavras de Cristo determinam em tal âmbito uma viragem decisiva. Quando Ele fala aos Seus filhos, pela primeira vez, sobre a continência para o Reino dos céus, dá-se claramente conta de que eles, como filhos da tradição da Antiga Lei, devem associar o celibato e a virgindade à situação dos indivíduos, em particular de sexo masculino, que por causa dos defeitos de natureza física não podem desposar-se ("os eunucos"), e por isso refere-se directamente a eles. Esta referência tem um fundo múltiplo: tanto histórico como psicológico, tanto ético como religioso. Com tal referência Jesus toca — em certo sentido — todos estes fundos, como se quisesse dizer: Sei que tudo, o que agora vos direi, despertará grande dificuldade na vossa consciência, no vosso modo de entender o significado do corpo; fa-lar-vos-ei, de facto, da continência, e isto associar-se-á sem dúvida em vós ao estado de deficiência fisiça, seja inata seja adquirida por causa humana. Eu, pela minha parte, quero dizer-vos que a continência pode também ser voluntária e escolhida pelo homem "para o Reino dos céus".

5. Mateus, no cap. 19, não anota qualquer imediata reacção dos discípulos a estas palavras. Encontramo-la mais tarde, só nos escritos dos Apóstolos, sobretudo em Paulo (3). Isto confirma que tais

1 Na primeira parle da Audiência desta quarta-feira, realizada na Basílica Vaticano, João Paulo II aó dirigir-se ao numeroso grupo de jovens e fiéis assim sc expressou:

Caríssimos jovens!

A vossa presença nesta Audiência alegra profundamente o meu coração, porque, com o vosso entusiasmo, dais a todos, e à Igreja de modo particular, a límpida certeza de poder contar convosco, com o vosso empenho e com a vossa preparação para proclamar a mensagem cristã.

Isto assume especial importância e típico significado neste período litúrgico da Quaresma, em que o Povo de Deus se prepara para a celebração anual do "Mistério pascal", isto é, para percorrer as etapas da paixão, morte e ressurreição de Cristo, Filho de Deus e Filho do homem.

Ao reflectir e ao inspirar-me na oração, que a Igreja nos faz elevar a Deus, hoje, quarta-feira da terceira Semana da Quaresma, desejo que sejais sempre "formados no empenho das boas obras", que neste tempo de conversão e de graça são a renúncia ao pecado, a mortificação, o sentido do sacrifício, concebidos não como aviltamento e depauperação da personalidade e da natureza humana, mas como o seu enobrecimento e exaltação. A isto é preciso unir "a auscultação da Palavra" de Deus, uma atenção devota, humilde, silenciosa e obediente, porque nos encontramos diante de um interlocutor, que é a Verdade infinita a responder às mais secretas e inquietantes perguntas da nossa existência como homens e cristãos. A Palavra de Deus estimular-vos-á a servi-1'O, com generosa dedicação "livres de todo o egoísmo", na compreensão de que Ele, Deus de Amor e de Misericórdia, quis entregar-se totalmente a nós e alargar o nosso coração, para torná-lo capaz de se dar a Ele, supepalavras se tinham imprimido na consciência da primeira geração dos discípulos de Cristo, e depois frutificaram repetidamente e em modo múltiplo nas gerações dos seus confessores na Igreja (e talvez também fora dela). Portanto, do ponto de vista da teologia — isto é da revelação do significado do corpo, totalmente novo a respeito da tradição do Antigo Testamento —, estas são palavras de mudança. A análise delas demonstra quanto são precisas e substanciais, apesar da concisão que têm. (Verificá-lo-emos ainda melhor quando fizermos a análise do texto paulino da primeira carta aos Coríntios, cap. 7). Cristo fala da continência "para" o Reino dos céus. Em tal modo, Ele quer sublinhar que este estado, escolhido conscientemente pelo homem na vida temporal, em que de ordinário os homens "se casam e se dão em casamento", tem uma singular finalidade sobrenatural. A continência, mesmo se escolhida de modo consciente e também se decidida pessoalmente, mas sem aquela finalidade, não entra no conteúdo do sobredito enunciado de Cristo. Falando daqueles que escolheram conscientemente o celibato ou a virgindade para o Reino dos céus (isto é "se fizeram eunucos"), Cristo nota — pelo menos de modo indirecto — que tal escolha, na vida terrena, anda unida à renúncia e também a um determinado esforço espiritual.

Alocução da Audiência Geral de quarta-feira, 17 de Março

A vocação à castidade na realidade da vida terrena

6. A mesma finalidade sobrenatural '— "para o Reino dos céus" — admite uma série de interpretações mais pormenorizadas, que não enumera Cristo em tal passagem. Pode-se porém afirmar que, através da fórmula lapidar de que-Ele se serve, indica indirectamente tudo aquilo que foi dito sobre aquele tema na Revelação,, na Bíblia e na

Aos jovens presentes na Basílica Vatieana

rando o nosso às vezes restrito e mesquinho individualismo.

A Quaresma, tempo de permanente conversão, será também tempo privilegiado para a "comum oração" a Deus, nosso Pai, para que todos nos reconheçamos "irmãos" em Cristo.

Desejo-vos de todo o coração, caríssimos jovens, que o vosso propósito ,de seguir a Cristo se mantenha com firmeza, ainda que este seguimento possa comportar e exigir contínuos esforços e uma coragem a toda a prova perante o mundo, que pode estar surdo e indiferente a quanto se refira à pessoa e à missão de Jesus.

A minha Bênção Apostólica vos acompanhe sempre, como também os que vos são caros.

Desejo agora dirigir uma saudação aos fiéis da Diocese de Sovana-Pitl-gliano-Orbetello, os quais, juntamente com o seu Bispo, D. João D'Ascenzl, vieram em peregrinação a Roma para manifestar publicamente a sua fé.

Caríssimos Irmãos e Irmãs! Agradeçovos sinceramente a vossa visita e o vosso testemunho. Um pensamento de apreço julgo necessário dirigir ao numeroso grupo vindo, com notáveis sacrifícios, da Ilha do Giglio.

Exorto-vos a tornar sempre mais intenso e capilar o trabalho da catequese a todos os níveis e o empenho pelas Vocações, dando coerente e concreto testemunho de vida cristã também diante de tantos que vêm desfrutar as belezas naturais dadas por Deus à vossa região.

Com estes votos, de bom grado invoco ao Senhor a efusão dos favores celestes sobre vós aqui presentes, sobre todos os fiéis da vossa diocese, especialmente os trabalhadores das minas de Amiata agora desempregados e os tripulantes de navios, distantes das suas famílias, e con-cedo-vos de coração a minha Bênção Apostólica.

Tradição; tudo isto que se tornou riqueza espiritual da experiência da Igreja, em que o celibato e a virgindade para o Reino dos céus frutificaram de modo múltiplo nas várias gerações dos discípulos, seguidores do Senhor.

. 1) Ê verdade que Jeremias devia, por explícita ordem do Senhor, observar o celibato (cf. fer. 16, 1-2); mas isto foi um "sinal profético", que simbolizava o fu-, taro abandono e a destruição do país e do povo.

2) É verdade, como nos consta das fontes extrabfblicas, que no período inter-testamenlário o celibato era mantido no âmbito do judaísmo por alguns membros da seita dos Essénios (cf. José Flávio, Bell. Jud. II, 8, 2: 120-121; Al. Filão, Hypothel. 11, 14); mas isto acontecia à margem do judaísmo oficial e provavelmente não persistiu além do princípio do século I.

Na comunidade de Qumran o celibato não obrigava a todos, mas alguns dos membros mantinham-no até à morte, transferindo para o terreno da pacífica convivência a prescrição do Deuteronó-mio (25, 10-14) na pureza ritual que obrigava durante a guerra santa. Segundo as crenças dos Qumranianos, tal guerra durava sempre "entre os filhos da luz e os filhos das -trevas"; o celibato foi portanto para eles a expressão de estarem prontos para a batalha (cf. / Qm. 7, 5-7). - 3) Cf. 1 Cor. 7, 25-40; ver também Apoc. 14, 4.

Oração à Rainha da Polónia

Continuando a minha oração que,' durante as Audiências das quartas--feiras, elevo a Nossa Senhora de Jasna Góra, leio mais uma vez as palavras dos Bispos polacos no comunicado de 27 de Fevereiro passado:

"O entendimento social deve garantir a satisfação das necessidades e a realização das aspirações do povo, a cooperação dos cidadãos na vida pública e no efectivo controlo social!

As partes do entendimento são: a autoridade governativa e os representantes fidedignos dos grupos sociais organizados. Não podem faltar os representantes dos sindicatos temporaneamente suspensos e, entre estes, os do sindicato autónomo e independente Solidarnosc, que encontra vasto consenso social... Os problemas mencionados são uma guia de direcção das investigações e das soluções...".

Senhora de Jasna Góra!

Desde há gerações inteiras que ¦ educas os filhos e as filhas da minha Nação.

Nos últimos decénios tornaram-se particularmente estreitos os laços que os unem a Ti.

Permite, pois, que também hoje eu Te exprima estas palavras dos meus irmãos no ministério episcopal.

Estas palavras são manifestação da solicitude pelo futuro da Nação, da solicitude nascida em meio das provas dos últimos meses e anos.

Estas palavras são programa de vida para as condições da ordem social!

Tu, que és Mãe da Vida, concorre para que se realizem estas palavras!

VALÉRIO VOLPINI Director

E. MARCONDES Redactòr-Chefe da Edição


TIPOGRAFIA DE «LOSSERVATORE ROMANO"













Saudações cordiais aos peregrinos e ouvintes de língua portuguesa!

Neste tempo da Quaresma - tempo de conversão, de penitência - reflectimos sobre a virgindade ou celibato “por amor do Reino dos Céus”, pela sua relação com uma teologia do corpo humano.

No Evangelho, Jesus Cristo fala de uma renúncia ao matrimónio, não pela incapacidade, congénita ou provocada, de procriar e de realizar os outros fins da união conjugal, mas como acto voluntário, a exigir esforço espiritual, por um fim sobrenatural: “por amor do Reino dos Céus”. Isso não encontrava a seu favor a prática corrente e a tradição entre os ouvintes, para os quais, segundo a mentalidade do Antigo Testamento, o matrimónio era um estado privilegiado.

Mas Cristo foi bem claro sobre o valor e sentido de tal renúncia, que viria a constituir riqueza espiritual da Igreja. Para que cresçais no apreço de tal riqueza, dou-vos a Bênção Apostólica.



PAPA JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA GERAL


Quarta-feira, 17 de Março de 1982

1. Continuemos a reflexão sobre a virgindade ou celibato para o Reino dos céus: tema importante também para uma completa teologia do corpo.


No imediato contexto das palavras sobre a continência para o Reino dos céus, Cristo faz um confronto muito significativo; o que nos confirma melhor ainda na convicção de que Ele queria radicar profundamente a vocação para tal continência na realidade da vida terrena, entrando assim na mentalidade dos seus ouvintes. Enumera, de facto, três categorias de eunucos.

Este termo diz respeito aos defeitos físicos que tornam impossível a procriação no matrimónio. Precisamente tais defeitos explicam as duas primeiras categorias, quando Jesus fala quer dos defeitos congénitos: "eunucos que nasceram assim do seio materno" (Mt 19,12), quer dos defeitos adquiridos, causados por intervenção humana: "há os que se tornaram eunucos pela interferência dos homens" (Mt 19,12). Em ambos os casos trata-se portanto de um estado de coacção, por isso não voluntário. Se Cristo, no seu confronto, fala depois daqueles "que se fizeram eunucos por amor do Reino dos céus", (Mt 19,12), como de uma terceira categoria, certamente faz esta distinção para acentuar ainda mais o carácter voluntário e sobrenatural dela. Voluntário, porque os pertencentes a esta categoria "fizeram-se eunucos"; sobrenatural, por outro lado, porque o fizeram "para o Remo dos céus".

2. A distinção é muito clara e muito enérgica. Apesar disso, forte e eloquente é também o confronto. Cristo fala a homens, a quem a tradição da Antiga Aliança não tinha transmitido o ideal do celibato ou da virgindade. O matrimónio era tão comum que só uma impotência física podia constituir para ele uma excepção. A resposta dada aos discípulos em Mateus (19, 10-12) é a um tempo dirigida, em certo sentido, para toda a tradição do Antigo Testamento. Confirme-o um só exemplo, tirado do Livro dos Juizes, exemplo a que nos referimos aqui não tanto por causa do desenvolvimento do facto, quanto por motivo das palavras significativas, que o acompanham. "Seja-me concedido... chorar a minha virgindade" (Jg 11,37), diz a filha de Jefté ao pai, depois de ter sabido por ele que tinha sido destinada à imolação por um voto feito ao Senhor. (No texto bíblico encontramos a explicação de como se chegou a tanto). "Vai; — lemos em seguida — e deu-lhe dois meses de liberdade... Ela foi com as companheiras e chorou nos montes a sua virgindade. Passado este prazo, voltou para a casa do pai e Jefté cumpriu o voto que tinha feito. Ela não tinha conhecido varão" (Jg 11,38-39).

3. Na tradição do Antigo Testamento, quanto se deduz, não há lugar para o significado do corpo que, neste momento, Cristo, falando da continência para o Reino de Deus, quer ter em vista e revelar aos próprios discípulos. Entre as personagens a nós conhecidas, como guias espirituais do povo da Antiga Aliança, não há nenhuma que proclamasse tal continência com palavras ou comportamento (1). O matrimónio, então, não era só um estado comum, mas, além disso, naquela tradição tinha adquirido um significado consagrado pela promessa feita a Abraão pelo Senhor: "A aliança que faço contigo é esta: e serás pai de inúmeros povos... Tornar-te-ei extremamente fecundo; farei que de ti nasçam povos e terás reis por descendentes. Estabeleço uma aliança contigo e com a tua posteridade, de geração em geração; será uma aliança eterna, em virtude da qual Eu serei o teu Deus e da tua descendência" (Gn 17,4 Gn 17,6-7). Por isso, na tradição do Antigo Testamento o matrimónio, como fonte de fecundidade e de procriação relativamente à descendência, era um estado religiosamente privilegiado: e privilegiado pela revelação mesma. Sobre o fundo desta tradição, segundo a qual o Messias devia ser "filho de David" (Mt 20,30), era difícil entender o ideal da continência. Tudo perorava em favor do matrimónio: não só as razões de natureza humana, mas também as do Reino de Deus (2).:

4. As palavras de Cristo determinam em tal âmbito uma viragem decisiva. Quando Ele fala aos Seus filhos, pela primeira vez, sobre a continência para o Reino dos céus, dá-se claramente conta de que eles, como filhos da tradição da Antiga Lei, devem associar o celibato e a virgindade à situação dos indivíduos, em particular de sexo masculino, que por causa dos defeitos de natureza física não podem desposar-se ("os eunucos"), e por isso refere-se directamente a eles. Esta referência tem um fundo múltiplo: tanto histórico como psicológico, tanto ético como religioso. Com tal referência Jesus toca — em certo sentido — todos estes fundos, como se quisesse dizer: Sei que tudo, o que agora vos direi, despertará grande dificuldade na vossa consciência, no vosso modo de entender o significado do corpo; fa-lar-vos-ei, de facto, da continência, e isto associar-se-á sem dúvida em vós ao estado de deficiência fisiça, seja inata seja adquirida por causa humana. Eu, pela minha parte, quero dizer-vos que a continência pode também ser voluntária e escolhida pelo homem "para o Reino dos céus".

5. Mateus, no cap. 19, não anota qualquer imediata reacção dos discípulos a estas palavras. Encontramo-la mais tarde, só nos escritos dos Apóstolos, sobretudo em Paulo (3). Isto confirma que tais


AUDIÊNCIAS 1982 - AUDIÊNCIA GERAL