Discursos João Paulo II 1988 - Maputo, 16 de Setembro de 1988


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II

AO ZIMBÁBUE, BOTSUANA, LESOTO,

SUAZILÂNDIA E MOÇAMBIQUE

DISCURSO DO SANTO PADRE DURANTE

A VISITA AO HOSPITAL CENTRAL DE MAPUTO


Domingo, 18 de Setembro de 1988



Meus amados irmãos e irmãs doentes,

1. SAÚDO-VOS COM AFECTO: que a Paz e a consolação de nosso Senhor Jesus Cristo estejam convosco! Diante de vós, compadecido, penso no que experimentava o divino Mestre, quando os enfermos vinham ter com Ele, ou lhe eram trazidos, para ouvirem a sua palavra de salvação e serem curados dos seus males e enfermidades (Cfr. Lc Lc 4,40).

Muito desejei este encontro convosco, durante a minha breve visita pastoral ao vosso País. Humilde Vigário de Jesus Cristo na terra, venho junto de vós animado pelo desejo de fazer algo daquilo que faria o Salvador do homem nesta hora; com toda a intensidade de amor cristão, quero dizer-vos:

– gostaria que a minha presença fosse para vós momento de alívio e motivo de conforto e esperança;

– sinto-me muito unido a vós e a todos os que sofrem, no corpo e na alma, pela perda da saúde. Sofro porque vós sofreis, e por não estar em meu poder melhorar-vos;

peço a Deus que vos dê coragem e conformidade com os seus desígnios, que nunca vos falte a assistência de que precisais e que Ele vos torne atentos ao “germe de eternidade” que está em vós, não redutível à pura matéria (Cfr. Gaudium et Spes GS 18): a vossa alma.

2. Desejaria que estas minhas palavras amigas chegassem a todos os doentes de Moçambique: aos que estão nos hospitais ou nas próprias casas, sofrendo de doenças prolongadas e incuráveis; aos que sofrem longe dos seus lares nos campos de refugiados e deslocados; às vítimas da fome e da nudez; às crianças sem assistência e sem carinho de ninguém; aos feridos cruelmente nas vicissitudes da guerra e às vítimas inocentes das insídias da violência.

A todos e a cada um chegue a certeza de que o Papa os ama, com o amor de Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado: Jesus mostrava-se sempre carinhoso com todos os que sofriam; e continua a amar quantos padecem no corpo e no espírito. Tendo assumido a condição de homem, por amor, Ele mesmo sofreu e foi provado em tudo, à nossa semelhança, excepto no pecado: padeceu, “por nós homens e para a nossa salvação”. O Filho de Deus, inocente, ao padecer não eliminou o mistério da dor. Mas deu-nos certezas capazes de o aceitar:

– Deus, que é Amor, continua a amar-nos como Pai quando sofremos;

– os sofrimentos, se forem aceites com fé e unidos à paixão de Cristo, podem ser redentores (Cfr. Cl Col 1,24);

– um cristão baptizado, nunca está só na sua dor e aflição: é membro do Corpo místico de Cristo, que é a Igreja (Cfr. 1Co 12,13).

3. Conheceis, por certo, a parábola do Bom Samaritano, que Jesus contou (Cfr. Lc Lc 10,25 ss): história comovedora daquele que prestou assistência, a melhor que pôde, a um homem desconhecido, que fora muito maltratado por ladrões. Recordais, também da paixão de Cristo a figura do Cireneu (Cfr. Lc Lc 23,26 ss).

Pois bem, ao lado da vossa cama, também passam “bons samaritanos” e “cireneus”: os que fazem o possível para aliviar os vossos sofrimentos e vos ajudar a curar. É de apreço e de estímulo esta palavra, para médicos, enfermeiros e auxiliares. Alguns vieram de outros países; outros são filhos do vosso Povo; todos, por certo, animados de sentimentos humanitários, conscientes de serem úteis na família humana.

Sim, família: procurai ver em cada doente um irmão, membro da “vossa” família, um vosso semelhante, por quem vale a pena exercitar a vossa nobre profissão, com saber, dedicação e amor. E “fazei sempre aos outros o que gostaríeis que vos fizessem a vós”.

Mas há mais “samaritanos” ou “cireneus”, que vos “assistem”, com as suas visitas e orações. Talvez não tenham possibilidades de vos trazer nada; mas vêm dar-vos o melhor que possuem: a certeza do seu amor fraterno, do seu amor cristão. Gostei de saber que esta obra de misericórdia – a visita aos doentes – é apreciada e praticada entre vós, não só os familiares, mas numerosos cristãos, entre os quais se salientam os jovens, visitam os enfermos; e as próprias comunidades cristãs se organizam, para que a nenhum doente falte a presença carinhosa de um irmão.

4. Procurai, amados doentes, ver em quantos vos “assistem” um recado do amor de Deus, em Jesus Cristo; e que da parte deles haja o cuidado de divisar o mesmo Jesus Cristo em quem precisa de auxílio: a mim o fizestes (Cfr. Mt Mt 25,45). E não vos deixeis abater, nem apossar pelo medo. Colaborai com a medicina e tende confiança em Deus, rico em misericórdia!

Confio às vossas orações e aos merecimentos do vosso sofrimento, oferecido a Deus, o bom êxito da minha visita pastoral a Moçambique, bem como as outras solicitudes que tenho, como Bispo de Roma e Pastor da Igreja universal.

Sobre cada um de vós imploro a protecção de Nossa Senhora, que ternamente invocamos como “Saúde dos enfermos”: modelo de fé e de confiança, no meio das provações e sofrimentos, que Ela seja para vós todos “Mãe de misericórdia”. Rezai-lhe! Rezai o terço!

Antes de vos dar a Bênção Apostólica, para nos sentirmos mais irmãos, rezemos juntos o PAI NOSSO...

Bendito seja o nome do Senhor!

– Agora e para sempre!

A nossa protecção está no nome do Senhor:

– Que fez o Céu e a Terra.

Abençoe-vos Deus Todo-poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo

Amém!





VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II

AO ZIMBÁBUE, BOTSUANA, LESOTO,

SUAZILÂNDIA E MOÇAMBIQUE

DISCURSO DO SANTO PADRE

DURANTE O ENCONTRO ECUMÉNICO


EM MAPUTO


Domingo, 18 de Setembro de 1988



Caros irmãos e irmãs,
Representantes das Igrejas
e Comunidades cristãs de Moçambique

1. “GRAÇA E PAZ A VÓS, da parte de Deus, nosso Pai, e da do Senhor Jesus Cristo!” (Ep 1,2). São os votos e a prece que me vêm espontaneamente, ao encontrar-me aqui convosco, em nome do Senhor e com amor pelo homem moçambicano. É também saudação, a vós, aqui presentes, e às vossas Igrejas e Comunidades espalhadas por Moçambique.

I offer cordial greetings to the delegation from the South African Council of Churches, led by the President. While I am grateful for your fraternal presence here today, I also wish to express my appreciation of this gesture of solidarity with the Christian communities and the people of this country.

Como cristãos, estamos unidos pelo baptismo comum. E aprendemos do Apóstolo Paulo esta verdade importante: “Todos os que fostes baptizados com Cristo, revestistes-vos de Cristo... Todos sois um só em Cristo Jesus (Ga 3,27-28). Em virtude deste único baptismo, nós apresentamo-nos ao mundo como portadores também de uma responsabilidade comum: esta advém-nos da obediência a Cristo, que pediu ardentemente ao Pai: “Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, também eles sejam um em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste” (Jn 17 Jn 21 Jn 4).

2. Esta responsabilidade comum é tão verdadeira e tão importante, que nos deve impelir a fazer tudo o que estiver ao nosso alcance – e com toda a urgência – para que se desvaneçam as divisões que ainda existem entre nós; e deste modo, possamos pôr em prática o desejo de Cristo, quanto à perfeita unidade dos seus discípulos.

Existe, na verdade, uma relação essencial entre a unidade dos cristãos e a proclamação do Evangelho. No fundo, é uma questão de fidelidade à comum vocação cristã e de sentido da fé, dom gratuito de Deus, que requer uma correspondência da parte do homem, em comportamento coerente; requer que o homem tome consciência da tarefa de “reordenar” o mundo, segundo o projecto divino da criação. E assim, a credibilidade da mensagem do Evangelho anda ligada à unidade dos cristãos (Cfr. Unitatis Redintegratio UR 1).

3. As divisões que subsistem entre nós, portanto, prejudicam a vitalidade e incidência da proclamação que fazemos; e chegam mesmo a constituir escândalo para o mundo, mormente para as Igrejas jovens na África. Entretanto, apesar das divisões, graças àquilo que temos em comum, é possível darmos um testemunho sincero, se bem que limitado, diante do mundo, que anela por ouvir a mensagem de amor e de esperança, que é a Boa Nova da salvação, alcançada por Jesus Cristo para todos os homens.

A vossa presença aqui, neste dia, é indício do vosso desejo e busca de darmos juntos esse testemunho comum ao dilecto povo de Moçambique: um povo que tem fome e sede de Deus. E esta sua expectativa somente em Cristo poderá encontrar uma satisfação plena.

4. Há muitas formas de darmos, como cristãos, um testemunho comum. Por exemplo: o trabalho realizado em conjunto no campo bíblico, a prestação de serviços de caridade, a promoção dos direitos humanos, o diálogo ecuménico, a oração comunitária, quando se proporcione a ocasião para isso, e, enfim, o anúncio de Jesus Cristo aos que ainda o não conhecem. “A cooperação de todos os cristãos exprime ao vivo a unidade que já existe entre eles e põe o rosto de Cristo Servo numa luz mais radiosa” (Unitatis Redintegratio UR 12).

Ao mesmo tempo, os sinceros esforços ecuménicos que se fizerem em plano social, podem ajudar a aliviar os sofrimentos daqueles que carecem dos bens de primeira necessidade, podem contribuir para a defesa e promoção dos homens e mulheres, especialmente dos mais desprotegidos, que a sociedade contemporânea, em muitas partes, tende não raro a abandonar a si próprios e a marginalizar, como se não existissem ou como se a sua vida não contasse. Para uma cooperação que torne mais eficazes as iniciativas, “todos os cristãos devem descobrir aquilo que já os une, mesmo antes de ser alcançada plenamente a comunhão entre eles” (Redemptor Hominis RH 12).

O nosso testemunho comum manifesta ao mundo que aqueles que acreditam em Cristo e vivem segundo o seu Espírito, tendo-se tornado assim filhos do Pai Comum, podem empenhar-se para que sejam superadas divergências humanas e, gradualmente, as divisões existentes entre os cristãos. Pela cooperação, os que crêem em Cristo podem mais facilmente aprender a entender-se e a estimar-se uns aos outros e ver como aplanar o caminho que leva à unidade dos cristãos (Unitatis Redintegratio UR 12).

5. É pena que enquanto se envidam, por um lado, sérios esforços por dar um testemunho comum, por outro, se vão tornando mais complicadas as nossas divisões, devido ao aparecimento de novas igrejas e ao aumento das seitas, fenómeno que, infelizmente, também se verifica no vosso País. Daí transparece às vezes um espírito contrário ao Evangelho, que, para vós “guias” cristãos, não pode deixar de constituir motivo de reflexão, diligência e oração.

6. Caros irmãos e irmãs em Cristo,

Espero que estas minhas palavras sejam bem acolhidas por vós, pois estou ao corrente do vosso interesse e dos passos já dados, no sentido do testemunho comum de Cristo e da sua mensagem em Moçambique. Existem já, graças ao Senhor, algumas formas de encontro e cooperação, que se tornaram habituais. Que Deus abençoe tais iniciativas!

Resta, todavia, um longo caminho a percorrer. Que se continue a procurar a verdade na caridade, para que seja cada vez mais eficaz também o comum empenho em contribuir para a unidade do Povo moçambicano no edificar a Nação.

Nutro a esperança e peço a Deus que o vosso desejo de unidade e os esforços para trabalhar em conjunto continuem a crescer, em conformidade com o desejo de Cristo. Por isso: “Aquele que, pelo seu poder... é capaz de fazer imensamente mais do que possamos pedir ou imaginar, a Ele seja dada glória, na Igreja e em Jesus Cristo, em todas as gerações, pelos séculos dos séculos. Ámen” (Ep 3,20-21).





VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II

AO ZIMBÁBUE, BOTSUANA, LESOTO,

SUAZILÂNDIA E MOÇAMBIQUE

DISCURSO DO SANTO PADRE POR OCASIÃO

DA VISITA À COMUNIDADE PAROQUIAL


DO BAIRRO DA POLANA CANIÇO EM MAPUTO


: Domingo, 18 de Setembro de 1988



Caríssimos amigos, irmãos e irmãs,
Seja louvado nosso Senhor Jesus Cristo!

1. ASSIM VOS SAÚDO, cordialmente. O calor do vosso acolhimento impressiona-me e comove-me; e diz-me que era justificado o meu desejo de vir aqui ao Bairro da Polana Caniço, visitar o lugar onde viveis e, sobretudo, visitar-vos a vós. Elevo a Deus o meu pensamento agradecido por este encontro.

Sabeis que venho visitar a vossa terra como mensageiro do Evangelho da paz. Quando faço viagens semelhantes pelo mundo, eu lembro-me sempre de que sou, como Bispo de Roma, o sucessor de São Pedro, a quem Jesus Cristo exigiu um especial juramento de amor. Exigiu-lho a ele e todos os Papas que haviam de ocupar depois a Sé de Roma, a “Igreja que preside à assembleia universal da caridade”(S. IGNATII ANTIOCHENI Ad Romanos, “Inscriptio”, 1, 1-2, 2: FUNK 1, 213). Estou aqui, portanto, por um duplo motivo de amor: amor a Jesus Cristo que me manda fazer estas visitas; e amor ao próximo, que sois vós. Amar é a lei da nossa fé; é pelo amor que todos hão-de conhecer que somos cristãos (Cfr. Jo Jn 13,35).

Nas minhas visitas pastorais, faço o possível por encontrar-me com toda a gente: com os que vivem no conforto e com os que têm dificuldades para sobreviver. Mas, os menos favorecidos de bens materiais, os pobres, porque precisam mais de alento e ajuda, ocupam um lugar especial no meu empenho em prosseguir a “missão” do próprio Jesus Cristo: “anunciar aos pobres a Boa Nova” da salvação de Deus (Cfr. Lc Lc 4,18).

2. Vim aqui, pensando especialmente nas famílias que encontraria e nas pessoas que tiveram de deixar as suas casas, as suas terras, por causa da guerra, e procurar refúgio noutras partes. E o meu espírito vai neste momento a todos os recantos de Moçambique, onde se encontre uma família – nas cidades, nos bairros ou nas aldeias comunais – e onde quer que haja um refugiado, deslocado ou foragido: a todos desejo saudar e dizer uma palavra amiga, de conforto e esperança.

Vendo-vos em tão grande número, olhando para os vossos rostos, ansiosos e preocupados, não se pensa somente num normal fenómeno de migração interna.É conhecido o sofrimento de muitas famílias que se encontram desagregadas; sabe-se também que os filhos, há vários anos, estão separados dos pais, crescendo longe do afecto da família e não recebendo dela formação, com o risco de os mais pequenos e mais vulneráveis, ficarem marcados física e psiquicamente; e que os velhinhos nem sempre têm o amparo de que carecem. Como Jesus, diante das multidões cansadas e famintas, vem-me espontânea a exclamação: “tenho compaixão deste povo” (Mc 8,2), que sofre a fome física e tem fome de Deus.

3. As famílias: penso neste momento nas famílias harmoniosas e felizes, e com elas dou graças a Deus; penso naquelas que choram por causa da incerteza do amanhã da doença, da fome e da guerra, enfim, pelas consequências do desamor, em toda a sua extensão, e o meu coração chora com elas; penso nas que estão dispersas e divididas, por qualquer motivo; e rezo, para que o Senhor se compadeça. Quanto eu desejaria que todas se sentissem envolvidas pelo amor de Jesus Cristo Redentor e que a minha passagem no meio de vós constituísse para cada uma motivo de alento para se animar e preparar dias melhores.

Conheço o zelo e cuidado com que os vossos Bispos se interessam pelas famílias; e se esforçam por que elas vivam segundo a vontade de Deus, material e espiritualmente. Há tempos eles publicaram uma instrução sobre “a família cristã na Igreja em Moçambique” (CEM, A família cristã na Igreja em Moçambique, 21 nov. 1981). É uma explicação da doutrina da Igreja, válida em toda a parte: também no contexto da sociedade africana e moçambicana.

A Igreja em África não pode deixar de viver em comunhão de fé e costumes com todo o Povo de Deus espalhado pelo mundo; não pode deixar de dar uma resposta unívoca e eficaz aos desafios que os casais aqui têm de enfrentar. Os próprios casais, de resto, querem ter critérios seguros quanto à fidelidade, à fecundidade e à educação da prole; critérios que não podem senão reflectir o ensino de Jesus Cristo, transmitido pelo Magistério eclesial. Nesta linha, os vossos Pastores quiseram esclarecer-vos sobre o amor que deve reinar entre os esposos na intimidade do lar; sobre as relações que devem existir entre os pais e os filhos; e sobre os direitos da família e correlativos deveres, dela e para com ela, na comunidade cristã e na sociedade civil.

4. O plano divino sobre o matrimónio e a família, estabelecido desde o princípio (Cfr. Mt Mt 19,8), exige:

unidade no amor: compete, de facto, ao casal como “comunidade íntima de vida e de amor” (Gaudium et Spes GS 48), “a missão de guardar, revelar e comunicar o amor, como reflexo vivo e participação real do amor de Deus pela humanidade e do amor de Cristo pela Igreja” (Familiaris Consortio FC 17);

fidelidade no amor, através da qual os esposos são chamados a crescer continuamente na comunhão interpessoal (Familiaris Consortio FC 19); e a oferecer estabilidade e esperança a um mundo destroçado pelo ódio e pela divisão. Para isso, Deus não deixará de dar-lhes a graça necessária, que alimente e desenvolva a comunhão de vida e a mantenha indissolúvel até à morte;

liberdade e direitos-deveres desta célula viva e vital de toda a sociedade e da Igreja, por força daquele “vínculo sagrado de que o próprio Deus é o autor – em vista do bem, tanto dos esposos e da prole, como da sociedade – e que está fora de todo o arbítrio humano” (Cfr. Gaudium et Spes GS 48).

5. Não se podem ignorar, obviamente, as situações concretas de numerosíssimas famílias, aqui em Moçambique, como também não se devem esquecer as ameaças que impendem sobre a família em geral e em muitas partes do mundo. Algumas são de ordem social: condições sub-humanas de habitação, saúde, higiene, educação e falta de recursos; outras são de ordem moral: desagregação familiar, decadência dos valores tradicionais e dos valores cristãos na estima comum, pressões e imposição de modelos de vida por correntes estranhas, no caso, ao sentir dos povos africanos; outras enfim, são de ordem civil, sobretudo ligadas às leis no campo familiar. No mundo, globalmente, hoje em dia a legislação tende a tornar-se cada vez mais permissiva e, a um tempo, invasiva dos direitos sagrados dos cônjuges.

6. Gostaria de focar aqui todos os aspectos da importantíssima realidade que é a família, mas não é possível, por escassez de tempo. Limito-me a acentuar a necessidade de vos precaverdes, pais e mães de família de Moçambique, contra um perigo insidioso: de serdes envolvidos e arrastados por uma mentalidade contrária à vida.

Trata-se de uma atitude que não parece coadunar-se com o tradicional sentir do povo africano, que choca com o seu amor pela vida. Mas concepções materialistas e visões do mundo imanentistas pretendem inculcar e não hesitam em propagandear sistemas em que se parte do princípio, não justificado, de que o progresso só será possível se a população não crescer; e daí a facilidade com que se sugerem ou impõem meios de impedir a transmissão de novas vidas ou seu aniquilamento, se geradas; ambas as coisas vão contra aquilo que impõe o parâmetro interior da dignidade da pessoa humana, em todos os momentos da existência.

Contra esta aberração, a Igreja é decididamente a favor da vida, posiciona-se sempre em defesa da vida, pois “não está demonstrado, minimamente, que todo o crescimento demográfico é incompatível com o desenvolvimento autêntico” (Sollicitudo Rei Socialis SRS 25). Mas, conhecendo bem os graves problemas postos pela superpopulação, nalgumas regiões, e as situações difíceis que os casais têm de enfrentar, a Igreja, fautora de uma paternidade responsável, dá normas no sentido de se tornarem conhecidos e respeitados os métodos naturais para regular a fecundidade.

7. Ao lado da mentalidade contrária à vida, uma outra se pode infiltrar, também ela perniciosa: a mentalidade que recusa o Casamento religioso e vinculante. Além de não ter em conta a graça que produz o Matrimónio, devidamente celebrado, esta mentalidade menospreza a graça dos outros Sacramentos (a Penitência e a Eucaristia), recorrendo aos quais se pode construir a paz e a felicidade nos lares, garantir a perseverança no amor e vivificar o testemunho cristão.

Além destas insídias, há que mencionar aqui também a exasperação do sexo, que corrói a autenticidade do amor humano e abala os fundamentos da instituição familiar. Igualmente parece dever mencionar-se a lentidão no reconhecimento da igual dignidade e iguais direitos da mulher e do homem, com o devido respeito pela diversidade de funções dentro do lar.

8. Na medida em que a família moçambicana souber superar estas ameaças, para se manter fiel ao projecto de Deus “desde o princípio”, ela poderá corresponder às expectativas que, fundadamente, existem a seu respeito:

– contribuir para que a vossa jovem Nação seja uma família harmoniosa, unida e feliz;

– ser um ambiente de formação humana e cristã, capaz de fazer frente aos contravalores e aos desequilíbrios que hoje a minam;

– acelerar os tempos da paz e do desenvolvimento integral do homem no vosso País.

A família é a fonte natural e lugar privilegiado da cultura da vida; é o fulcro para onde convergem os valores que protegem a mesma vida e o núcleo social fundamental de toda a civilização do amor. Por isso, Moçambique conta convosco.

Queridas famílias moçambicanas.

Não cedais às teorias estranhas nem às pressões que enfraquecem a vossa unidade e estabilidade e destroem a felicidade! Não enveredeis pelos caminhos do egoísmo, que vos afastam dos vossos valores e tradições! Não deis ouvidos a ideologias que autorizem a sociedade ou o Estado a arrogar-se direitos e responsabilidades que só às famílias pertencem! Sede aquilo mesmo que os vossos Bispos preconizavam: “a família é uma comunidade e uma fonte de amor... uma comunidade e uma fonte de vida” (Cfr. CEM, A família cristã na Igreja em Moçambique, 21 nov. 1981, 71). Sede fermento de reconciliação e de união na grande família de Moçambique!

9. Quanto aos deslocados, por qualquer motivo, aos que aqui vos encontrais e aos que se encontram noutros pontos do País: a vossa penosa situação exigiria uma longa análise. Com os vossos compatriotas refugiados, sois a expressão de uma chaga típica, reveladora dos desequilíbrios e dos conflitos persistentes no mundo contemporâneo. Fazeis parte de multidões, a quem as calamidades naturais, as perseguições, as discriminações e as guerras privaram da família, da própria casa, do trabalho e do que vos era mais querido.

O problema já foi tratado pelo meu Predecessor o Papa João XXIII, de venerável memória, na Encíclica “Pacem in Terris”. E eu não tenho cessado de repetir e desenvolver as razões fundamentais, que impõem a obrigação de cuidar de irmãos na família humana, que pedem auxílio para sair do sofrimento. Vós, os deslocados e os refugiados, sois pessoas, com direitos inalienáveis, mesmo fora da vossa terra e da vossa pátria; estes direitos não estão, em hipótese nenhuma, pendentes ou condicionados por factores naturais ou por situações sócio-políticas.

10. Daqui, uma vez mais, lanço o meu apelo, em vosso favor:

à comunidade nacional: o problema que constituís e viveis nunca poderá ser solucionado sem serem criadas as condições duma genuína reconciliação para a paz – reconciliação entre os vários sectores da mesma Nação, no seio de cada grupo étnico e entre os grupos étnicos e, sobretudo, no coração das pessoas. Há necessidade urgente de perdoar e der-se as mãos para, em conjunto, se construir um futuro melhor para todos os Moçambicanos;

à comunidade mundial: para que sejam envidados todos os esforços e percorridos os caminhos do diálogo, da solidariedade e da fraternidade, para uma paz sem fronteiras (Cfr. IOANNIS PAULI PP. Il Nuntius ob diem ad pacem fovendam dicatum pro a. D. 1986, die 8 die. 1985: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, VIII, 2 (1985) 1463); para que se torne eficaz uma vontade sincera de ajudar todos os irmãos em necessidade; eventualmente, que recursos e fundos, destinados à produção e comércio das armas, sirvam para evitar ou pelo menos reduzir as proporções da vossa tragédia ( Cfr. Sollicitudo Rei Socialis SRS 23-24).

às organizações internacionais e nacionais: deste Bairro-amostra, sobre um clamor que interpela todos os homens; vós, que tanto já tendes feito noutros quadrantes do globo, por irmãos em condições semelhantes, estendei o olhar e os auxílios a estes queridos Moçambicanos! E peço a Deus que, de nenhum modo, sejam obstaculizadas as diligências para esta obra de bem-fazer.

É obra de paz, o que vier a ser feito aqui, para curar feridas abertas, no corpo e no espírito desta gente; para salvar tantos seres humanos insidiados pelo desespero, dando-lhes uma oportunidade; para recuperar e reintegrar inteiras populações nesta família moçambicana e na família humana, com respeito pela sua cultura, pelos seus valores e pela sua identidade.

11. Por último, apelo para os cristãos moçambicanos: iluminados pela fé, vós, melhor do que ninguém, compreendeis o valor e a necessidade daquele amor que é maior do que o pecado e mais forte do que a morte. Sede, pois, nos vossos lugares de residência e de trabalho e onde quer que vos encontreis, sinais do amor e da presença de Deus. Usai de caridade para com todos, sem nenhuma discriminação étnica, social ou religiosa. Jesus Cristo, também Ele prófugo desde a primeira infância, vos interpela: tudo aquilo que quereríeis que os homens vos fizessem a vós, fazei-o vós a eles (Cfr. Mt Mt 7,12).

E vós, os directamente interessados, não vos deixeis abater pelo desânimo nem arrastar pela passividade. Procurai melhorar as condições de vida e a qualidade de vida, dentro das possibilidades, pois é essa a vontade de Deus. Não permitais que à vossa volta se diga que é Deus que quer ou o destino que determina a indigência, a miséria, a doença e a fome. E empenhai-vos em incutir nos vossos filhos e familiares o respeito por todos os homens e pelo bem comum. E para que tudo isso seja facilitado, confiai em Deus e ensinai aos outros que Ele é Pai, rico em misericórdia; e diligenciai por prestar-lhe obediência e o culto devido.

E faço votos de que sejam muitos os que vos prestem auxílio; de que nunca percais o que tendes de bom – e é muito – sobretudo, o amor à vida, o sentido da família e a solidariedade; de que sejais sempre “pacíficos”, como Cristo nos ensinou; e de que um dia possais retornar à vossa terra: é vosso direito poder voltar às raízes e reaver todo o relacionamento cultural e espiritual.

Antes de me despedir de vós, convido os cristãos aqui presentes a implorar de Deus, nosso Pai:

– que todas as famílias moçambicanas sejam fiéis à sua missão, na Igreja e na sociedade; – que elas contribuam para que nesta comunidade nacional se continue a plasmar uma grande família: a família moçambicana;

– que nos corações dos povos desapareçam as “estruturas de pecado”, que tão dramaticamente vos atingem;

– compaixão para com todos os que sofrem, e que acabem no mundo as causas da divisão, da violência e da guerra.

E rezemos com as palavras que Cristo nos ensinou: “Pai-Nosso...”.



VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II

AO ZIMBÁBUE, BOTSUANA, LESOTO,

SUAZILÂNDIA E MOÇAMBIQUE

DISCURSO DO SANTO PADRE

DURANTE O ENCONTRO COM OS BISPOS


DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL


DE MOÇAMBIQUE


Domingo, 18 de Setembro de 1988



Senhor Cardeal
e veneráveis Irmãos no Episcopado

1. É SEMPRE “BELO e agradável o convívio de irmãos, em boa união (Cfr. Sl Ps 133,1)”. Experimento de facto uma grande alegria, depois destas jornadas intensas, neste convívio fraterno convosco, antes de regressar a Roma. É o momento para todos juntos, antes de mais, darmos graças a Deus, ao fazermos, sintonizados com o Seu pensamento, um sumário balanço do encontro do Sucessor de Pedro com os nossos irmãos e irmãs em Jesus Cristo e com o homem moçambicano: “Graças a Deus que, par nosso meio, em todos os lugares faz sentir o odor do conhecimento de Cristo” (Cfr. 2Co 2,14).

Quero exprimir-vos também a vós o meu reconhecimento, amados Irmãos Bispos, constituídos para guiar na fé e governar na caridade as Igrejas particulares do Povo de Deus que peregrina em Moçambique. Estou profundamente grato a esta Conferência Episcopal por me ter convidado, conjuntamente às Autoridades do País, para vir aqui, como estou grato pela generosa dedicação, solicitude e sacrifícios na preparação primorosa da visita; e registo com agrado a clarividência que demonstrastes em perspectivar a sua continuidade, para que produza abundantes frutos de renovamento na vida cristã e favoreça o maior bem do povo moçambicano.

2. Rezando e pensando, em precedência, nos diversos encontros que poderia ter neste rápido jornadear e participar pessoalmente na vida da Igreja na vossa terra, em momento delicado de restabelecimento e crescimento, este convosco pareceu-me sempre o mais importante, entre aqueles que a Providência me permitiu realizar e os muitos por mim desejados e que não foram viáveis. Importante, pela dupla responsabilidade, que vos incumbe nesta hora: para com a Igreja em Moçambique, e para com a sociedade e as instituições humanas onde se exprime a cultura, entendida como totalidade de vida, do querido Povo moçambicano.

Efectivamente, a par da evangelização e nela enquadrado, é dever dos Bispos, acentuado pelo recente Concílio Vaticano:

mostrar, quando anunciam o mistério de Cristo na sua integridade, que as coisas terrestres e as instituições humanas, no plano de Deus criador, se ordenam também para a salvação dos homens;

ensinar, segundo a doutrina da Igreja, quanto valem a pessoa humana com a sua liberdade e a própria vida corporal; a família com a sua estabilidade e unidade, a procriação e a educação dos filhos; a sociedade civil com as suas leis e profissões; o trabalho e o descanso, as artes e a técnica; a pobreza e a riqueza;

expor os princípios com que se hão-de resolver os gravíssimos problemas da propriedade, da promoção e da justa distribuição dos bens materiais, da paz e da guerra, e da convivência fraterna de todos os povos (Cfr. Christus Dominus CD 12 Pacem in Terris, passim).

Partindo destas dimensões do nosso ministério de educadores da fé do Povo de Deus, numa continuidade ideal com o que vos dizia há meses em Roma, aquando da vossa visita ad Limina, e com o que há dias disse na Assembleia da IMBISA, desejo encorajar algumas das vossas opções como Pastores directos do Povo de Deus que aqui peregrina.

3. Não nos sobejando o tempo para partilhar as primeiras impressões do contacto com esta realidade viva que é a Igreja em Moçambique – para mim, impressões óptimas – começo por reiterar-vos a certeza de que todos nós temos consciência de quanto se apresenta árdua a vossa tarefa, pelas dificuldades que estais chamados a superar no vosso labor quotidiano. Elas resultam da história remota e recente e da actualidade da vossa jovem Nação.

Encontrando-se em condições novas e sob muitos aspectos delicadas, no momento da independência, a Igreja no vosso País viu-se numa encruzilhada e a braço com limitações de vário género. Tais limitações foram-se agravando pela problemática, não totalmente nova mas diversa, de uma violência que não tardou a avassalar praticamente toda a terra moçambicana, com o seu cortejo de males físicos, morais e sociais.

4. Para apontar somente alguns desafios postos à vossa solicitude de Pastores, refiro o isolamento das comunidades cristãs – já em precárias condições de assistência pelo afastamento de muitos missionários – que passaram a contar com a generosidade e grandes sacrifícios dos animadores, dos vossos colaboradores directos no ministério sagrado e de vós próprios, para lhes assegurar um mínimo de assistência e a ligação com os centros missionários e convosco, como garantes da comunhão na Igreja universal.

Outra fonte de desajuste na vida pastoral está nas deslocações da população, que busca reparo ou sobrevivência noutras zonas mais seguras, dentro e fora do território nacional: os milhares e milhares de deslocados e refugiados. E desse modo as famílias desagregam-se, as comunidades desmantelam-se e a evangelização sofre com a violência; uma violência que aterroriza e mata, desumaniza os corações e torna difícil viver e conviver. Com muito acerto, pois, vós tivestes o cuidado de lançar uma pastoral peculiar, em prol dos refugiados, com a ajuda caridosa da Igreja nos países vizinhos do vosso. Isto tem sido e continua a ser uma bela prova de comunhão no amor de Cristo.

5. Não podendo percorrer todo o leque de iniciativas em que se tem vindo a concretizar o vosso zelo pastoral, quero partilhar a vossa alegria, por se vislumbrarem no horizonte da esperança sinais encorajadores de vitalidade da Igreja em Moçambique: homens e mulheres que voltam a encher os lugares de culto e a retomar a prática da vida cristã e a frequência dos Sacramentos; os muitos jovens que voltam às comunidades paroquiais ou similares; o bom número de vocacionados que batem à porta dos institutos de vida consagrada e começam a encher os vossos seminários propedêuticos, a caminho do Seminário Maior nacional.

Toda esta manifestação de vida precisa de ser acolhida, purificada, santificada e organizada para der cada vez mais frutos. O vosso coração de Pastores não pode deixar de encher-se de alegria, diante destas certezas e promessas na “vinha do Senhor”, como não pode deixar de sentir-se interpelado a corresponder à expectativa destas multidões, com fome no corpo e fome na alma, que buscam nos pastores a “compaixão” do Bom Pastor (Cfr. Mc Mc 8,2).

Mas no vosso ânimo levantam-se também, certamente, as interrogações do Apóstolo, quando acentuava que o mesmo Senhor de todos é rico para com todos os que O invocam: mas como O hão-de invocar sem acreditar, sem ter ouvido falar d’Ele, sem haver quem pregue, sem se dispor de “enviados” do mesmo Senhor? (Cfr. Rm Rm 10,14 ss) Toco neste ponto, amados Irmãos, porque a prioridade das vossas prioridades pastorais é promoção das vocações sacerdotais. E “não se perturbe o vosso coração nem se atemorize” (Jn 14,24) e sede perseverantes e pacientes como o lavrador (Cfr. Tg Jc 5,7).

Sei que estais atentos e diligentes na ajuda aos vocacionados para a vida sacerdotal e para a vida consagrada, em vista de uma Igreja cada vez mais implantada localmente; como sei que nunca perdeis de vista a distinção nítida, frisada pelo Concílio Vaticano II, entre os dois tipos de chamamento de Deus, que importa respeitar, deixando aos interessados absoluta liberdade de opção. Trata-se de um dom e iniciativa de Deus para enriquecer a Igreja.

6. O divino Mestre, partindo de uma reflexão sobre o discipulado, quis ensinar-nos a necessidade de sentar-nos à mesa e calcular os meios e as forças de que dispomos para a edificação e para a defesa do Reino de Deus, com a dúplice preocupação: de que o “sal conserve sempre o sabor” (Cfr. Lc Lc 14,25) e de que as providências humanas nunca posponham a providência do Pai celeste (Cfr. Mt Mt 6,25 ss).

Por isso, firmes na confiança de que Ele é o Senhor e que é Ele que “produz em nós o querer e o operar segundo o seu beneplácito” (Cfr. Fl Ph 2,13), sintonizados com o nosso tempo, em que há requintes de organização e previdência, temos de planificar pastoralmente, de saber “investir” os meios e forças à disposição. Nesta linha, quereria exortar-vos a prosseguir no empenho de valorizar e multiplicar quem vos prolongue na acção pastoral, ousando investir em:

– confiança, responsabilidade e formação sólida, total e permanente aos Sacerdotes e aos Leigos comprometidos, atendendo aos aspectos doutrinais, espirituais, litúrgicos e do exercício da liderança;

catequese, que continue e comprometa a família do catequizando, bem como em compreensão, acolhimento e acompanhamento dos jovens, em resposta à confiança por eles demonstrada para com a Igreja;

restabelecimento da família segundo o desígnio de Deus, com o seu papel insubstituível de lugar privilegiado de culto e transmissão da vida e dos genuínos valores, incluindo os valores da fé cristã;

ecumenismo e diálogo esclarecido e adaptado, com os irmãos cristãos e os que professam outras religiões;

– oração, muita oração pela paz em Moçambique.

7. Calaram fundo no meu coração as palavras que me dirigiu o Senhor Presidente desta Conferência Episcopal, aquando da recente visita ad Limina; ao partilhar comigo alegrias e preocupações vossas e do vosso povo: “Com grande mágoa – dizia o Dom Paulo Mandlate – vemos a guerra a enlutar cada vez mais o País e destruir infra-estruturas indispensáveis ao desenvolvimento de Moçambique. A guerra em curso destrói e mata indiscriminadamente milhares de inocentes indefesos, sobretudo crianças, velhos e mulheres. Cresce o número de refugiados e deslocados de guerra, sujeitos a viver em condições humilhantes e anti-humanas. Muitos missionários e missionárias tiveram de deixar zonas do seu trabalho; muitas comunidades cristãs dispersaram ou ficaram sem assistência sacerdotal nos lugares considerados de guerra. A fome agravou-se”.

Ao término da minha breve visita pastoral, posso afirmar que só à vista se pode captar bem a intensidade do sofrimento que se vive neste País, tão gravemente ferido e dessanguado. No entanto, agradeço a Deus, a vós Irmãos e a quantos me proporcionaram esta experiência de contactar com o querido Povo moçambicano, que sofre muito, mas dá mostras de confiança e coragem e continua a esperar.

Posso dizer que se percebe bem a fé desta gente num futuro diferente. É num País dotado de recursos e com um papel a desempenhar no desenvolvimento desta zona da Africa Austral, esse futuro parece estar ao alcance. Antes, porém, importa banir tantas misérias que enlutam esta pátria devastada pela violência.

8. A génese desta violência é assaz conhecida. Após vários anos de guerra pela independência, seguiu-se um breve período de júbilo bem compreensível por tão importante meta alcançada, que, como é bem sabido, não constitui um fim em si mesma.

Formar um povo culturalmente e juridicamente único, de maneira a constituir uma verdadeira Nação exige as ideias e os modelos de que lançar mão. A experiência deste Continente africano ensina que se trata de um problema que não pode ser simplificado. De modo análogo, não pode ser simplificado o problema do confronto com as ideologias, entendendo sob esta designação um conjunto de ideias numa visão orgânica e com perspectivas práticas.

Esse confronto pressupõe uma consciência sócio-política, em que há valores peculiares e uma identidade que caracterizam um povo determinado ou conjunto de povos, lhe ditam o comportamento e marcam o seu empenho comum em construir a Nação, com uma própria “personalidade”.

Naturalmente, numa caminhada assim, nem sempre as experiências são bem sucedidas. Em linha de princípio, dizem os estudiosos, a África acredita que o desenvolvimento depende do homem e do povo, como protagonistas, em plena liberdade.

9. Como quer que seja, aconteceu entre vós que, aos poucos, vastas camadas da população começaram a dar mostras de descontentamento, impaciência e insatisfação, pelo modo como estava a ser conduzida a gestão da coisa pública e por algumas decisões impopulares então actuadas, contrárias ao sentir das gentes moçambicanas.

Como sói acontecer em situações deste género, onde e quando falta a solidariedade, o sentido do “outro” como “semelhante” – pessoa, povo ou nação – elementos de fora intervieram, utilizando como mero “instrumento” a jovem Nação e dificultando-lhe os primeiros passos incertos, o que redundaria em exclui-la durante longo tempo do banquete da vida (Sollicitudo Rei Socialis SRS 39). As manifestações hostis aos Governantes e às estruturas do novo Estado foram-se avolumando até atingir as proporções da violência declarada, propiciada também por dificuldades económicas a que se juntaram calamidades naturais, então ocorridas.

E como a violência gera violência, exacerbaram-se os extremismos até ao fanatismo e ao ódio entre grupos opostos, determinando a lamentável situação que ultimamente aqui se tem vivido: um País promissor, dividido e percorrido por gente armada, que dá livre curso aos instintos da violência, em incursões de vingança e de morte.

10. Daqui, deste aceno a um quadro que vos é familiar, a necessidade urgente para o querido Povo moçambicano de ser reencontrada a unidade e a concórdia dos ânimos a nível nacional. E quando proclama esta necessidade e indica os caminhos da pacificação, a Igreja só quer contribuir para o maior bem da Nação. Como é conhecido, vós, amados Irmãos, não tendes deixado de adoptar os meios ao alcance, em ordem a serem eliminadas as causas da penosa situação, de que sofrem as consequências tantos e tantos inocentes.

A vossa preocupação, como Bispos, foi naturalmente suscitada pela situação concreta; sentistes-vos no dever de interpelar os responsáveis pelo restabelecimento da paz em terras moçambicanas, movidos por uma inquietude profunda, ao ver o vosso povo sofrer inocente e perder valores essenciais e naturais de bondade e de pacífica convivência, que lhes são tradicionalmente reconhecidos. Ao ouvirdes o clamor dos que sofrem, era justo que, seguindo o Bom Pastor, vos tornásseis a sua voz, exercitando a vossa responsabilidade moral; além do mais, a virtude da solidariedade no bem comum é empenho pelo bem de todos e de cada um, porque todos somos verdadeiramente responsáveis por todos (Cfr. Sollicitudo Rei Socialis SRS 38).

11. Hoje e aqui desejo apoiar uma vez mais e reforçar as vossas repetidas diligências, lançando um veemente apelo, que parte do fundo do meu coração, a quantos se encontram de um modo ou de outro envolvidos nesta guerra:

a todos aqueles filhos deste querido Povo moçambicano paciente e corajoso, que desejam o bem comum e encaram com sentimentos de humanidade o futuro da sua Nação: a porem de parte as acções destruidoras e a procurarem poupar o que resta como base para curar as feridas abertas e salvar tantos irmãos e irmãs de morte prematura e injusta; que pensem prevalentemente no desenvolvimento e no progresso para todos, em fraterna convivência pacífica;

– a todos aqueles filhos deste querido Povo Moçambicano a quem está cometido o encargo de gerir o bem comum e que, certamente, só querem o autêntico progresso da Nação e a felicidade dos seus irmãos e irmãs: a conjugarem esforços no sentido de construir, pois isso é urgente e só isso é importante, obedecendo aos imperativos éticos de servir, uma vez que para tanto estão mandatados.

A todos sem excepção quero dizer, tomando de empréstimo palavras destes meus Irmãos Bispos: lembrem-se da responsabilidade frente à família humana e à história. As armas não são caminho para a paz real, humana e duradoura. A guerra gera a guerra e a paz nascida da guerra das armas será sempre uma paz forçada, ilusória e precária. Abandonem os caminhos da violência e da vingança; e retomem os caminhos da justiça, da dignidade, do direito e da razão: deixem de matar. Se querem amanhã um povo pacífico, solidário e fraterno assumam hoje os caminhos da reconciliação e do diálogo (Cfr. CEM, A Paz é possível, Quaresma de 1985).

12. À Comunidade internacional dirijo também o meu apelo, uma vez mais, do solo moçambicano, em nome do Príncipe da Paz, Jesus Cristo: que se faça todo o possível para que não seja ulteriormente fomentada a discórdia neste País; e que sejam feitas todas as diligências no sentido de que aqui se torne deveras efectiva a solidariedade humana. Trata-se de um parceiro na sociedade que se encontra abaixo dos limites da sobrevivência: as pessoas morrem por causa da violência e da fome. Esta Nação precisa da assistência de outros povos e da comunidade internacional, para ser posta em condições de dar, também ela, uma contribuição para o bem comum, mediante os seus tesouros de humanidade e de cultura que, de outro modo, se perderão para sempre (Cfr. Sollicitudo Rei Socialis SRS 39).

Seja-me permitido acentuar a urgência desta solidariedade, visando uma rápida pacificação total e a imediata prestação de socorros para salvar grande número de vidas humanas; visando a elaboração de planos de auxílio a curto prazo, para a indispensável reconstrução das infra-estruturas de sobrevivência e, em seguida, para o desenvolvimento integral deste querido Povo moçambicano.

Estou ao corrente de que a Comunidade internacional, através de organizações governamentais e não-governamentais, já tem testemunhado, consoante isso lhe é possível, a sua solidariedade; mas trata-se de uma solidariedade que não pode parar e talvez exija ser ampliada. “Mais do que de ajuda material – declarava o Senhor Cardeal Roger Etchegaray, após uma visita em meu nome a este País – Moçambique precisa de ser apoiado nos seus esforços para recompor o tecido social dilacerado: as feridas morais são muito mais difíceis de sanar do que as físicas. Chegou a hora deste povo corajoso encontrar a segurança e harmonia, sem as quais não poderá chegar ao progresso nem ao bem-estar”.

13. A vós, como Bispos da Igreja no meio deste Povo sofredor, confio a abundância do que me vai no coração, pois vos cabe cooperar directamente, dentro da vossa missão específica, para poupar aos inocentes tanto sofrimento e para proporcionar aos famintos os bens de primeira necessidade, a fim de ser debelado também o flagelo da fome.

Sem paz este País não poderá desenvolver-se e caminhar para o futuro, de fronte erguida no concerto das nações que formam a família humana; sem paz não serão reabilitados e postos na sua verdadeira luz os autênticos valores tradicionais deste Povo, entre os quais se costumam salientar o espírito de família alargada e o amor à vida; sem paz não poderá ser melhorada a qualidade da vida e não haverá espaços para que Cristo Senhor, mediante a evangelização, aqui continue a realizar o seu anelo: “Vim para que todos tenham a vida e a tenham em abundância” (Cfr. Jo Jn 10,10).

A Igreja católica, como aliás as outras Igrejas cristãs, não tem cessado de proclamar o Evangelho da Paz em Moçambique; e está seriamente decidida, como tenho repetido, a der a sua contribuição para a concórdia, a unidade e o desenvolvimento deste Povo. E neste desígnio se insere quanto vos acabo de dizer e também o serviço pastoral que aqui vim realizar.

Sim, amados Irmãos, senti sangrar o coração deste Povo. Voltados para a Cruz e para a Ressurreição, prossigamos confiantes. Guiai na caridade a Igreja que aqui peregrina, para que cada um dos seus membros possa “progredir sem desfalecimento pelo caminho da fé viva, que estimula a esperança” (Cfr. Lumen Gentium LG 14) e para que a única grei de Deus continue a ser sinal, a oferecer o Evangelho da paz a todo o dilecto Povo moçambicano.

14. Pela fidelidade ao seu Senhor, a Igreja não pode limitar-se a proclamar uma esperança intramundana, como não pode empenhar-se em libertações parciais e somente de ordem temporal. Ela vive a consciência da promessa divina, a assegurar-lhe que a história presente não permanece fechada em si mesma, mas está aberta para o Reino de Deus (Cfr. Sollicitudo Rei Socialis SRS 46) . Por isso, quando se debruça sobre o homem, sobre o homem que sofre, ela tem presentes as dimensões desse Reino e procura elevar o mesmo homem à esperança ultraterrena.

A Igreja tem confiança no homem, conhecendo embora toda a perversão de que ele é capaz, porque sabe que há em cada pessoa humana qualidades e energias suficientes para manter ou reaver a sua dignidade: existe nela “bondade” fundamental (Cfr. Gn Gn 1,31), porque é imagem de Deus criador, colocada sob o influxo redentor de Jesus Cristo – que se uniu, de algum modo a cada homem, na Incarnação – e porque a acção eficaz do Espírito Santo “enche o mundo” (Cfr. Sb Sg 1,7).

Reafirmando esta confiança no homem moçambicano, por Maria Santíssima – modelo do modo de ver e aceitar o plano divino da Salvação – imploro para vós, amados Irmãos, e para as vossas Cristandades, a fidelidade na esperança, a audácia no amor e a coragem em acreditar, que transparecem no hino ao Deus da misericórdia, que é o Magnificat.

Com a minha Bênção Apostólica.



Discursos João Paulo II 1988 - Maputo, 16 de Setembro de 1988