Discursos João Paulo II 1982 - Sexta-feira, 12 de Março de 1982


VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A ASSIS

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NO ENCONTRO COM OS SACERDOTES E RELIGIOSOS


Catedral de São Rufino

Sexta-feira, 12 de Março de 1982



Amados Co-irmãos no sacerdócio, caros Religiosos e Religiosas!

1. Vindo a Assis para participar nos trabalhos da assembleia extraordinária da Conferência Episcopal Italiana, como teria podido omitir de ter um encontro, mesmo que seja breve, com vós Sacerdotes e Religiosos dentro desta Catedral histórica, dedicada ao mártir Rufino, primeiro Bispo e principal Patrono da Cidade? A concelebração desta manhã com os Irmãos Bispos, em vez de me dispensar, antes convida-me e pede que vos dirija uma particular saudação que seja uma lembrança da minha presença, hoje, na Igreja local e também um encorajamento a todos vós que, no respectivo âmbito, realizais o vosso trabalho pastoral.

Saúdo-vos de modo cordial e juntamente convosco saúdo os qualificados leigos, aqui presentes como representantes dos movimentos católicos das dioceses de Assis e de Nocera Umbra-Gualdo Tadino. Especial pensamento, unido a vivo agradecimento pelas palavras a mim dirigidas, vai a D. Sérgio Goretti, a quem estão confiadas estas duas Comunidades, e desde já o encarrego, e a vós, de fazer extensiva a minha saudação, em sinal de bênção e de augúrio, aos fiéis de todas as paróquias e de todos os centros, espalhados nas planuras e montes desta escolhida porção da Úmbria.

2. Fácil e obrigatório — ao menos pela escolha — se me apresenta o argumento do presente colóquio. Tão estreito e estável é o nexo entre Assis e Francisco que se presta, especialmente na circunstância do ano centenário, a oportunas e salutares considerações: nesta Cidade ele nasceu; com o Bispo da Cidade, Guido — o seu Bispo — manteve relacionamentos de obséquio, de obediência e de amizade; aqui, em grande parte, trabalhou admiravelmente no longo caminho da sua presença terrena; daqui irradiou o exemplo das suas virtudes e a sua mensagem de fraternidade e de paz, que, quase como círculos pouco a pouco mais amplos, se difundiram na circunstante região, nas áreas limítrofes da Toscana e do Lácio, e depois na Itália, na Europa e no mundo.

A figura de Francisco "pauper et humilis" domina ainda hoje, bem para além dos limites geográficos desta sua terra. Porquê? É uma pergunta legítima, que todos podem fazer a si mesmos; mas especialmente vós, que sois seus concidadãos e conterrâneos, deveis fazê-la. E sendo sacerdotes ou, em todo o caso, pessoas consagradas, procurai colher, nas entrelinhas da resposta, aqueles elementos e aspectos que dizem respeito propriamente ao animus de Francisco e, como tais, não somente são verdadeiros e genuínos, mas também mais válidos e indicativos para vós e para as obras do sagrado ministério.

3. A oito séculos do nascimento, o mundo — mesmo aquele dos que estão afastados dos valores religiosos e são indiferentes a eles — contempla admirado São Francisco, porque nele vê uma cópia autêntica, fiel e, por isso, fidedigna de Cristo Jesus. Eis o ponto central da resposta! Ele é alter Christus, mas não já por palavras, e não só de iure (como deveria ser, profundamente, todo aquele que se professa cristão): ele assim é também e sobretudo na realidade da própria vida.

A um certo ponto — como vós bem sabeis — quando era um brilhante jovem na vivaz Assis medieval, fez uma opção radical e generosa: despojando-se de tudo, renunciando à herança paterna, já despido e marginalizado, decidiu seguir de modo total e irrevocável o Senhor Jesus desde o nascimento na Gruta de Belém até ao Calvário. Ele mantém-se fiel a esta "opção fundamental", ao empreender um seguimento efectivo, passo a passo, nas pegadas do Redemptor até aos estigmas do Verna, até à morte na terra nua, lá na planície, na parte baixa da Cidade...

Como negar, amados Co-irmãos, que uma tal linha de perfeita correlação e coerência entre Francisco e Cristo se apresente de novo nítida e clara a cada um de vós para a análoga opção que, embora seja em circunstâncias e modos diversos, fez quanto ao seguimento de Cristo? Não é talvez também o sacerdote alter Christus? É-o e deve sê-lo pelo carácter sacramental, impresso na sua alma pela Ordenação sacerdotal; é-o e deve sê-lo pela função, a que foi elevado, de legítimo representante de Cristo; é-o e deve sê-lo pelos contínuos e quotidianos relacionamentos que, em virtude do seu ministério, ele mantém com Cristo presente e vivo na Eucaristia, no tesouro da sua Palavra, na pessoa dos irmãos.

Vede, portanto, como aquela rápida e essencial resposta, que nos dá a medida da grandeza de Francisco, pode ser aplicada proficuamente, como alto apelo ideal e autorizado ensinamento de vida, a cada um de vós. Sacerdos alter Christus: ut Franciscus, ita et tu!

4. Se a limitação do tempo me impede de desenvolver os inúmeros e preciosos exemplos de virtude que Francisco, permanecendo sempre diácono, oferece a quem atingiu o grau e a dignidade do presbiterato, contudo não posso omitir um outro dado de particular relevo que, bem pessoal na sua biografia, pode também ele inspirar a acção do sacerdote no mundo de hoje.

Um dia, ao voltar de Roma, começou a discutir com os companheiros se deveria retirar-se em solidão e recolhimento para contemplar e rezar, ou deveria antes "viver no meio do povo" para anunciar o Evangelho e salvar os irmãos com um apostolado directo. Depois de ter rezado, encontrou logo a resposta, e foi uma nova opção perfeitamente equiparada àquela fundamental do seguimento de Cristo (cf. Legenda maior IV, 1-2). Como este tinha percorrido as regiões da Palestina convidando à penitência e anunciando o Evangelho do Reino (cf. Mc Mc 1,14-15), assim teria feito Francisco e os seus frades, realizando um ministério itinerante de contacto, de palavra, de testemunho na sociedade do seu tempo. Nunca época de crise difundida pelas grandes transformações, que já depois do ano mil se verificavam nas diversas Nações da Europa e não podiam não interessar a Igreja, a meditada opção do "Poverello" de Assis trouxe um determinante contributo para o desejado impulso religioso-moral. Ele e os seus discípulos esforçaram-se incansavelmente por levar novamente Cristo à sociedade, e isto foi feito não já em oposição ou de modo polémico com a legítima autoridade da Igreja, (como algumas seitas heréticas do tempo), mas em perfeita obediência e em cumprimento de um mandato apostólico (cf. Regula non bullata XVII; Regula bullata IX).

A segunda lição que desejo propor-vos — como bem compreendeis — está precisamente aqui: está no esforço que, segundo o exemplo de Francisco, deve fazer o sacerdote na presente época, que está a aproximar-se do ano dois mil. Tempo de crise também hoje, diz-se; tempo de decadência de valores e de secularização generalizada. Que é preciso fazer, então, para levar novamente Jesus Cristo e o seu Evangelho ao meio dos homens? No final do século passado, quando com o advento da primeira sociedade industrial se começou a perceber algum sintoma da crise, foi dito que era já tempo para os sacerdotes "saírem das sacristias" e de irem ao encontro do povo. E hoje? Hoje tudo isto parece impor-se com mais grave urgência, e encontra já um significativo "precedente" e um modelo característico na atitude de Francisco e dos seus, que andavam pelos caminhos do mundo conforme o mandato programático do Senhor Jesus: "Ide; eis que Eu vos envio como cordeiros no meio dos lobos; não leveis bolsa, nem mochila, nem calçado... Em toda a casa em que entrardes, dizei primeiro: Paz a esta casa... Quando entrardes numa cidade e vos acolherem... curai os doentes e anunciai-lhes que o Reino de Deus está próximo" (Lc 10,4-8 cf. Lc 9,1-6 Mt 10,5 Mt 10,9-10 Mc 6,7-13).

Eis o modo de agir do operário evangélico: é este seu caminhar pelas vias do mundo com coragem, em total separação das coisas da terra, como portador de paz e anunciador do advento do Reino. Hoje, ainda mais do que no passado, é preciso caminhar para anunciar aos homens a Boa Nova do amor misericordioso de Deus e, com ela, o dever de corresponder a este amor anterior e manifestado por primeiro; caminhar para promover o bem integral dos homens; caminhar sem recusar o empenho do serviço a Deus e o do serviço aos irmãos; caminhar, e antes ainda coordenar em equilibrada síntese a assim chamada dimensão vertical rumo ao alto, para Deus, e a horizontal em direcção dos homens.

Como os dois braços da Cruz são símbolo desta dúplice dimensão, assim Francisco, que seguiu a Cristo até à Cruz e com razão pôde repetir as palavras de São Paulo: "Fui crucificado com Cristo" (Ga 2,20 cf. Ga 6,17), recorda a todos nós sacerdotes a dúplice orientação, para a qual devemos voltar a olhar tanto na maneira de ver o sagrado ministério quanto na de o exercer. "Homem de Deus" é acima de tudo, essencialmente, o sacerdote, mas ao mesmo tempo, sem contradizer tal qualificação, é constituído para o bem dos homens (cf. 1Tm 6,11 He 5,1).

Não duvido que estas breves referências, válidas obviamente para todos, tenham especial eficácia e, direi, uma força maior de estímulo para vós que sois filhos desta Terra e, por isso, quase naturalmente estais "sintonizados" com o espírito de Francisco, que foi — convém repetir — espírito apostólico e evangélico.

Sacerdotes ou Religiosos, Sacerdotes e Religiosos, para além das legítimas diferenças e distinções canónicas, existe uma convergência objectiva naquilo que fazeis, segundo as respectivas atribuições, dentro de cada uma das comunidades, como no âmbito da diocese e na Igreja universal. Trabalhai, portanto, em fraterna harmonia; trabalhai em união de caridade; trabalhai em colaboração entre vós e com o Bispo para a edificação da única e indivisível Igreja de Cristo. Disto tirará proveito não só a embora necessária coordenação e organização do trabalho pastoral, mas também, e sobretudo, a credibilidade daquela unitária e imutável mensagem, que todos sois chamados a anunciá-la.

Sobretudo vós Sacerdotes, no seguimento do grande Conterrâneo, que aos Bispos e aos Sacerdotes tributou sempre um singular respeito e honra, tende a mais atenta e vigilante compreensão do incomparável dom recebido de Deus (cf. Jo Jn 4,10). Podereis assim confirmar e reforçar quotidianamente o vosso compromisso de obreiros evangélicos, em união com o Bispo, com os Co-irmãos e Colaboradores religiosos e leigos.

No nome do Senhor, pregoeiro São Francisco, abençoo-vos todos de coração.



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A ASSIS

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NO ENCONTRO COM AS AUTORIDADES CIVIS


Praça diante da Basílica de Santa Maria dos Anjos

Assis, 12 de Março de 1982



Sou-lhe grato. Senhor Ministro, pelas cordiais palavras e pela sua presença aqui, na qualidade de Representante do Governo Italiano, na cidade do Santo Patrono da Itália. Igualmente sou reconhecido ao Senhor Presidente da Câmara Municipal, pelas gentis expressões de boas-vindas que me dirigiu como intérprete dos sentimentos de todos os cidadãos de Assis, como também agradeço às Autoridades da Região da Úmbria, da Província de Perugia e da cidade de Assis.

Ao saudar depois cordialmente a inteira população agradeço-lhe ter vindo a dar-me uma tão vibrante e festiva demonstração de afecto.

No início do meu Pontificado vim a esta terra para homenagear o Patrono da querida Itália, que para mim se tornou a segunda Pátria. Voltei aqui hoje, na ocasião do oitavo centenário do nascimento de São Francisco, não só para me unir ao Episcopado italiano, aqui vindo em peregrinação, mas também para me encontrar com esta cidade e esta diocese, para salientar a importância e a actualidade da mensagem partida de Assis há oito séculos.

Desde quando Francisco filho de Pedro de Bernardone, abandonou a riqueza da casa paterna, o nome de Assis permaneceu estreitamente ligado ao seu, como um binómio inscindível, e a cidade tornou-se um dos centros mais frequentados para sugestivos de apelo espiritual não só para a Itália, mas para a Igreja inteira.

Quem não conhece, no mundo, o nome de São Francisco? Quem não ouviu falar de Assis? Aqui vêm multidões contínuas, em todas as épocas, de todos os continentes, e a todos os ângulos do mundo retornam levando no coração o aumentado fascínio do "Poverello" e da sua terra. A razão deste fascínio singular não está somente na beleza intacta da natureza, no exemplo de um homem que se despoja de tudo para esposar "a Senhora Pobreza", mas sobretudo no modelo de vida que nos oferece, consistente no esforço de imitar em tudo e "sem restrições" o Filho de Deus que veio à terra para nós. E este influxo de Francisco é ainda imenso, porque constitui um estímulo — como escreveu o mesmo Francisco no seu "Testamento" — para viver "segundo a forma do santo Evangelho".

Há oitocentos anos partiu de Assis a mensagem da "perfeita alegria", que é uma mensagem de amor e de paz para todos. Mensagem que tem a sua força na premissa de viver antes de pregar, de encarnar concretamente em si mesmo o ideal da vida cristã.

Esta mensagem de amor e de paz torna a partir hoje, uma vez ainda, após oito séculos, para todo o mundo conturbado pelo ódio, lutas, violência e perigos de guerra, para recordar que se queremos verdadeiramente a paz devemos viver segundo "a forma do santo Evangelho".

Voltei aqui, após pouco mais de três anos da minha primeira peregrinação, para convidar todos a caminharem para a frente com empenho e confiança pela via do amor evangélico; para pedir ao Santo de Assis que interponha a sua intercessão em favor da Itália, da Igreja e do mundo; para invocar a divina assistência sobre os trabalhos do Episcopado Italiano. E a minha Bênção quer ser sinal e auspicio da contínua assistência divina.



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A ASSIS

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AO POVO DE ASSIS REUNIDO NA PRAÇA


DA BASÍLICA DE SANTA MARIA DOS ANJOS


Sexta-feira, 12 de Março de 1982



Caríssimos Irmãos e Irmãs!

1. Quero logo exprimir-vos a minha profunda alegria de me encontrar novamente hoje convosco, cidadãos e cristãos da diocese de Assis, neste alegre encontro.

Saúdo-vos a todos, um a um, com sincero afecto, dirigindo um especial pensamento às Autoridades civis, que desejaram cortesmente estar ao meu lado neste feliz dia, e ao Bispo diocesano, D. Goretti, que associo aqui publicamente a quantos se consagram com responsabilidade e dedicação ao bem comum da convivência humana e cristã de Assis.

Agradeço-vos cordialmente o sentido e caloroso acolhimento a mim reservado; nele percebo o vosso acatamento e devoção não só a minha pessoa, mas sobretudo àquele que indignamente, represento: a Pedro, isto é, como sinal e garantia da unidade da Igreja universal, e ainda mais a Jesus Cristo, que de todos nós, sua Igreja, é o único verdadeiro Chefe, Senhor e Esposo, tendo-nos resgatado pelo seu precioso sangue (cf. 1P 1,18-19).

Depois da visita realizada poucos dia após o meu chamamento à Cátedra de Pedro, a 5 de Novembro, de 1978, esta é a segunda vez que venho a Assis. E, crede-me, a emoção é sempre a mesma, porque aqui se respira uma singular atmosfera de puríssima fé cristã e de altíssimos valores humanos de civilização. As duas componentes, de facto, encontram aqui a sua perfeita fusão, no nome de Francisco, e, se elas constituem indubitavelmente uma das maiores glórias da história da Itália e do seu nobre povo, contudo tiveram também um revérbero universal, pois dele muito se beneficiou o desenvolvimento religioso e civil de não poucos Países da terra. Francisco, filho de Pedro de Bernardone, tornou justamente célebre e honrado no mundo inteiro o nome desta Cidade umbra, em que nasceu há oito séculos. E fê-lo também como filho da Igreja, em plena comunhão com o outrora Bispo da Cidade, e com os Bispos de Roma, que aprovaram e encorajaram o novo movimento por ele iniciado, conferindo-lhe a possibilidade de um incitamento, que teve múltiplas repercussões no plano da vida cristã, das missões, e ainda da literatura e da arte. Era justo, por isso, que também eu voltasse a Assis, neste solene oitavo centenário franciscano, para reconfirmar a minha profunda veneração ao Santo "Poverello", a minha estima e do mesmo modo as minhas expectativas depositadas de novo nas grandes Famílias religiosas que dele derivam, a uma das quais é confiado e cuidado desta Basílica de Santa Maria dos Anjos; mas igualmente a minha alta consideração pela própria Cidade de Assis, que foi e continua a ser o berço privilegiado do grande "Menestrel de Deus", definido como "o mais santo dos italianos e o mais italiano dos Santos".

2. Mas a Assis Francisco não deve somente o seu registo natalício. Mais ainda, por graça divina, ele encontrou aqui a supereminente riqueza de Cristo e do seu Evangelho, que produziu nele, por assim dizer, um novo nascimento, colocando-o muna interior condição de absoluta harmonia com o próximo e a natureza. Encontramo-nos neste momento junto da Basílica que conserva a antiga igrejinha da Porciúncula. Precisamente nela, depois de a ter restaurada com as próprias mãos, quando fazia a leitura litúrgica do capitulo décimo do Evangelho segundo Mateus, Francisco decidiu abandonar a precedente breve experiência eremítica para se dedicar à pregação no meio do povo, "com palavra simples mas com coração maravilhoso", como diz o seu primeiro biógrafo Tomás Celano (Vita I, 23), dando início ao seu típico ministério. Aqui depois ocorre a tomada de hábito de Santa Clara, com a fundação da segunda Ordem das Clarissas ou "Pobres Damas de S. Damião". Aqui ainda Francisco impetrou a Cristo, mediante a intercessão da Rainha dos Anjos, o grande perdão ou "Indulgência da Porciúncula", após ter sido confirmada pelo meu predecessor, Papa Honório III, a partir de 2 de Agosto de 1216; e foi depois desta data que ele iniciou uma grande actividade missionária, levando Francisco e os seus Frades a alguns Países muçulmanos e a várias nações da Europa. Aqui, enfim, o Santo acolheu cantando a "nossa irmã morte corporal" (Canto das Criaturas, 12) aos quarenta e cinco anos de idade. Estamos, portanto, num dos lugares mais veneráveis do Franciscanismo, caro não só à Ordem franciscana, mas também a todos os cristãos, que aqui, quase enlevados pela intensidade das memórias históricas, destas recebem luz e estimulo para um renovamento de vida, como sinal de uma fé mais enraizada e de um amor mais genuíno.

3. De modo particular, sinto o dever de salientar a específica mensagem que nos vem da Porciúncula e da sua Indulgência. Ela é mensagem de perdão e de reconciliação, isto é de graça, da qual nos tornamos objecto, com as devidas disposições, por parte da misericórdia divina. Deus, diz São Paulo, é verdadeiramente "rico em misericórdia" (Ep 2,4) e, como escrevi na Carta Encíclica que se intitula precisamente com estas palavras "a Igreja deve professar e proclamar a misericórdia divina em toda a verdade, tal como nos é transmitida pela Revelação" (Dives in misericórdia DM 13), ou melhor, ela "vive uma vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do Redentor" (ibid.). Pois bem, quem de nós pode dizer no seu íntimo que não tem necessidade desta misericórdia, isto é que está em total sintonia com Deus, a ponto de não precisar da sua intervenção purificadora? Quem não tem algo a ser perdoado por Ele e pela Sua paterna magnanimidade? Ou, usando os termos evangélicos, quem de nós poderia lançar a primeira pedra (cf. Jo Jn 8,7), sem se culpar de presunção ou de irresponsabilidade? Somente Jesus Cristo teria podido fazê-lo, mas a isto renunciou com um incomparável gesto de perdão, isto é de amor, que revela contemporaneamente uma ilimitada generosidade e uma construtiva confiança no homem. Cada dia devemos reavivar em nós seja a invocação, humilde e alegre, da reconciliatória graça de Deus, seja o sentido da nossa dívida para com Ele, que se ofereceu a nós "uma só vez para sempre" (He 9,12), e continuamente nos apresenta de novo, com imutável bondade, um perdão ao qual não temos direito, que nos restitui a paz com Ele e com nós mesmos, infundindo-nos nova alegria de viver. Só nesta base se compreende a austera vida de penitência levada por Francisco e, da nossa parte, podemos aceitar o apelo a uma constante conversão, que nos dissuada de uma existência egoísta e nos concentre em Deus como ponto focal da nossa vida.

O próximo Sínodo dos Bispos — como bem sabeis — terá como tema "A Reconciliação e a Penitência na missão da Igreja", e aqui em Assis não podemos desde agora não invocar a iluminante assistência de S. Francisco naqueles trabalhos.

4. Mas o Santo de Assis foi também, por assim dizer, um modelo da reconciliação entre os homens. A sua intensa actividade de pregador itinerante levou-o de região a região e de povoado a povoado por quase toda a Itália. O seu típico anúncio de "Paz e bem", que o fez ser definido como um "novo evangelista" (Tomás Celano, Vita I, 89; II, 107), ressoava por todas as classes sociais, muitas vezes em luta entre si, como convite a procurarem o acordo dos dissídios mediante o encontro e não o litígio, a docilidade da compreensão fraterna e não o ódio ou a violência que divide.

E no Canto das Criaturas (v. 10) ele confessa com júbilo: "Louvado sim, meu Senhor, por aqueles que perdoam por causa do Teu amor". É este um princípio fundamental do cristianismo, que não significa passividade ou estéril submissão, mas convida a enfrentar cada situação com interior serenidade, mas também com determinação, e com magnânima superioridade, que implica porém um nítido juízo de valor e divisão de responsabilidade. São muito claros, os reflexos de uma semelhante atitude também no plano da vida civil das Nações. Lá onde os direitos humanos são vilipendiados, em qualquer parte da terra, os cristãos não podem adoptar as mesmas armas do desprezo gratuito ou da violência sanguinária. Eles, de facto, têm outras riquezas interiores e uma dignidade, que ninguém pode depreciar. Mas isto não significa nem inútil comiseração nem cúmplice aquiescência. O cristão não pode nunca aceitar que a dignidade do homem seja de algum modo mutilada, e por isso sempre e constantemente levantará a voz para sugerir e favorecer uma recíproca reconciliação, que salvaguarde e promova a paz e o bem da inteira sociedade. E fa-lo-á com sumo respeito pelo homem, respeito que se pode bem dizer franciscano e por isso evangélico.

5. S. Francisco está diante de nós também como exemplo de inalterável mansidão e de sincero amor para com os animais irracionais que fazem parte da criação. Nele repercute aquela harmonia que é explicada com sugestivas palavras das primeiras páginas da Bíblia: "Deus colocou o homem no jardim do Éden, para o cultivar e o guardar" (Gn 2,15) e "conduziu" os animais "para o homem, para ver como ele os haviu de chamar" (Gn 2,19).

Em S. Francisco entrevê-se quase uma antecipação daquela paz, indicada pela Sagrada Escritura, quando "o lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao pé do cabrito; o touro e o leão comerão juntos, e um menino pequeno os conduzirá" (Is 11,6).

Ele contemplava a criação com os olhos de quem sabe reconhecer nela a maravilhosa obra da mão de Deus. A sua voz, o seu olhar, os seus dedicados cuidados, não só para com os homens mas também para com os animais e a natureza em geral, são um eco fiel do amor com que Deus pronunciou no início o "fiat" que os fez existir. Como não sentir vibrar no "Canto das Criaturas" algo da alegria transcendente de Deus criador, do qual está escrito que "contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom" (Gn 1,31)? Não está talvez aqui a explicação do afectuoso apelativo de "irmão" e "irmã", com que o "Poverello" se dirige a todo o ser criado?

A uma semelhante atitude somos chamados também nós. Criados à imagem de Deus, devemos torná-1'O presente no meio das criaturas "como senhores e guardas inteligentes e nobres" da natureza e "não como desfrutadores e destruidores sem respeito algum" (cf. Carta Encíclica Redemptor hominis, RH 15).

A educação ao respeito pelos animais e, em geral, pela harmonia da criação tem, além disso, benéfico efeito sobre o ser humano como tal, contribuindo para desenvolver nele sentimentos de equilíbrio, de moderação, de nobreza e habituando-o a elevar-se "da grandiosidade e beleza das criaturas" à transcendente beleza e grandeza do seu Autor (cf. Sab Sg 13,5).

6. Caríssimos irmãos e Irmãs, ao agradecer ao Senhor ter-me uma vez mais conduzido até esta Assis, inimitável e reconfortante, renovo a todos vós a expressão da minha gratidão pela vossa sentida participação neste encontro.

Convido-vos todos a louvar com as palavras de Francisco, o "Altíssimo, omnipotente, bom Senhor" (Canto das Criaturas, 1), porque somente n'Ele encontramos sempre a força suficiente para caminhar cada dia com novo entusiasmo. E isto desejo com todo o coração a cada um de vós e a quantos vos são caros. Penso, em particular, nos jovens, que se preparam com empenho para as suas tarefas de amanhã; nos trabalhadores, que receiam pelo justo sustento da sua família; nos doentes e nos vários sofrimentos que eles devem suportar, nas pessoas idosas e em quantos sentem o peso da solidão; a todos asseguro a minha lembrança na oração quotidiana. E todos, pela materna intercessão da Virgem dos Anjos, recomendo-vos à benevolência de Deus, a fim de que sempre vos assista e vos colme com a abundância dos seus dons celestes, que de coração invocarei ao dar dentro de pouco a Bênção eucarística.



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NA FESTIVIDADE DE SÃO JOSÉ

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NA CERIMÓNIA DE BOAS VINDAS EM ROSIGNANO


Sexta-feira, 19 de Março de 1982



Senhor Presidente da Câmara Municipal

Agradeço as suas palavras de boas-vindas que segui com vivo interesse. Também eu lhe apresento a minha saudação mais cordial, que é dirigida com a mesma cordialidade a todas as pessoas que Vossa Excelência representa. Expressou-me sentimentos de entusiasto acolhimento por parte da Administração Comunal e da população inteira de Rosignano Solvay pela minha visita de hoje. E, por meu lado, quero assegurar-lhe que também eu me sinto verdadeiramente feliz por me encontrar em Rosignano.

Este dia, 19 de Março, de facto é consagrado pela Igreja à celebração da figura de São José, que brilha diante de nós como exemplo de homem dedicado ao trabalho, com quem o próprio Jesus de Nazaré passou a maior parte da sua vida. Precisamente estes dois motivos, ou seja a festa litúrgica de São José e o tema do trabalho que lhe anda ligado, levaram-me a vir hoje aqui, onde existe um grande conjunto industrial, de que depende a subsistência de numerosas famílias locais. Venho para homenagear o Santo e ao mesmo tempo aqueles que, de qualquer modo, são trabalhadores como ele.

Embora não conheça os problemas pessoais de cada um dos cidadãos, quer sejam operários, estudantes, empregados, donas de casa, etc., quero assegurar a todos a minha, viva participação nas suas dificuldades e nas suas alegrias. De facto, infelizmente, ninguém está livre de trabalhos e sofrimentos de vários géneros e de vários graus. Pois bem, em tudo isto é necessário um ponto superior de referência, uma luz, uma força, que o Evangelho nos propõe em Jesus Cristo. E, ao mesmo tempo, a sua promessa de que estará "sempre connosco" (Mt 28,20), é também um estímulo, um encorajamento a prosseguir, dedicada e entusiasticamente, nos multíplices compromissos de cada um, quer sejam individuais, familiares ou sociais. Sei que a população de Rosignano Solvay já oferece claro exemplo de apego ao trabalho e de produtividade. Quero abençoar tudo aquilo que significa contributo construtivo para a convivência pacífica e justa da grande família italiana, que me é sempre tão querida. E quereria que a minha bênção frutificasse num compromisso civil cada vez mais responsável e, contemporaneamente, numa adesão ao cristianismo cada vez mais convicta e nobilitante; de facto, se é verdade que a Igreja considera já implicitamente cristão tudo o que é autenticamente humano, também é verdade que a mensagem cristã ajuda o homem a descobrir é a realizar cada vez melhor a própria identidade.

Isto desejo de todo o coração à População inteira de Rosignano, e o meu voto é de prosperidade e de felicidade, verdadeira e profunda, para todos. Por isto o confio ao Senhor, a quem todos recomendo na oração.

Entretanto, é-me grato conceder a todos os presentes e aos seus Entes queridos a propiciadora Bênção Apostólica.



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A LIVORNO

NA FESTIVIDADE DE SÃO JOSÉ

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

NO ENCONTRO COM OS TRABALHADORES


DA INDÚSTRIA SOLVAY


Sexta-feira, 19 de Março de 1982



Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. Eis-me finalmente entre vós, neste dia em que a Igreja celebra a festa de São José, exemplo e protector do mundo do trabalho. Convidastes-me: obrigado! E eis-me agora aqui para vos testemunhar quanto interesse, quanta simpatia e quanto afecto tem a Igreja por vós trabalhadores que, com a vossa fadiga quotidiana, ofereceis indispensável contributo ao progresso da humanidade.

Julgo por isso particularmente importante e significativo este encontro. Renovo a minha saudação ao Presidente da Sociedade e aos membros da Direcção Geral, que me acolheram com grande gentileza à minha chegada ao estabelecimento; renovo-a também aos membros do Conselho de Fábrica e aos Secretários dos Sindicatos de categoria da região, que tive o prazer de conhecer no encontro de há pouco, no termo da visita aos locais do vosso trabalho. Dirijo depois a minha saudação mais calorosa a todos vós — chefes, operárias e operários dos Estabelecimentos Solvay — que desejastes manifestar-me a vossa sincera simpatia acolhendo-me com espontânea e afectuosa cordialidade. E penso nos trabalhadores dos Estabelecimentos Solvay das outras áreas, em particular os do subterrâneo de São Carlos, junto dos quais não pude dirigir-me pessoalmente por causa do breve tempo à minha disposição, mas que foram os primeiros a convidar-me. Sei que uma numerosa representação deles quis estar aqui presente. Sinto a necessidade de exprimir-lhes o meu apreço por este gesto afectuoso, e ao mesmo tempo dirijo especial saudação aos trabalhadores de Ponte Ginori, que também estão connosco por meio de uma representação.

2. Caríssimos operários, empregados e dirigentes do Estabelecimento Solvay, ouvi com grande atenção as saudações pronunciadas pelos porta-vozes das várias componentes do vosso complexo industrial. Delas recolhi dois claros elementos: resultados e ansiedades. Os resultados foram por vós conseguidos mediante o concorde esforço, a generosa dedicação e a firme esperança, que vos animaram. Mas tendes também ansiedades pela difícil conjuntura económica e pelas repercussões que daí derivam para o emprego, quer imediatamente quer em perspectiva; ansiedades pelas tensões que agitam o País e pelas explosões de violência homicida; ansiedades, por fim, pelas nuvens ameaçadoras que escurecem o horizonte internacional, por motivo da flagrante e muitas vezes cruenta violação dos direitos humanos, perpetrada em várias partes de um e de outro hemisfério.

Escutei e apreciei a madura consciência social, que em tais intervenções se manifestava. Impressionou-me, em particular — ao lado da franca denúncia de uma sociedade "que torna o homem cada vez mais egoísta, cada vez mais só e cada vez mais insatisfeito" —, a vontade reafirmada de trabalhar pela construção de um mundo diverso, no qual "no centro de tudo já não esteja o proveito e a ambição do poder, mas o homem com as suas exigências de paz, de democracia e de liberdade".

Alegro-me com todos vós, que soubestes exprimir bem a aspiração, que vos move no vosso esforço quotidiano, para "uma efectiva justiça social e para o respeito da dignidade humana no mundo do trabalho".

Estas coisas disseste-las, quase abrindo um diálogo comigo, num encontro que não quereis se mantenha como "fim a si mesmo", mas desejais conserve uma sua continuidade no futuro, graças também ao contributo que das minhas palavras contais retirar: seja para continuar com renovado empenho os resultados obtidos, e as esperanças que os animam; quer para vencer com ânimo forte as ansiedades referidas.

Pois bem, eu estou aqui para corresponder a esta vossa expectativa; estou aqui para oferecer, em cumprimento do ministério que me foi entregue, uma resposta às vossas interrogações; estou aqui para fazer-me eco da voz da Igreja, que partilha — segundo as palavras iniciais da Constituição Gaudium et spes, do recente Concílio —, "as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, dos pobres sobretudo e de todos os que sofrem" (Const. Past. Gaudium et spes GS 1).

3. Nas vossas intervenções fizestes referência diversas vezes à Encíclica Laborem exercens, mostrando apreciar as reflexões que nela expus. Estou-vos grato. Como sabeis, com tal documento pretendi recordar o 90° aniversário da Rerum novarum, a grande encíclica de Leão XIII, que abriu a série das manifestações da Sé Apostólica no tempo moderno sobre os vários aspectos da questão social, realizando como um grande colóquio "itinerante" com os homens das gerações que se vão apresentando.

A Laborem exercens está em plena continuidade com este constante colóquio com o mundo operário. Nela referi-me também à experiência directa que fiz deste mundo que é o vosso, e foi também meu. Fui, na verdade, um de vós. Quantas recordações ocorreram à minha memória, enquanto visitava, há pouco, algumas secções deste vosso grande complexo industrial, enquanto saboreava a alegria de apertar a mão a muitos de vós, de trocar algumas impressões, de observar de perto os ambientes dentro dos quais se realiza a vossa quotidiana fadiga! Passei ao lado do banco do vosso trabalho e voltou-me espontaneamente à memória o tempo em que também eu, depois de deixar em Cracóvia as pedreiras de Zakrzowek, comecei a trabalhar na Solvay, em Borek Falecki, como operário nas caldeiras.

Quantas coisas mudaram desde então! Admirei a alta tecnologia, de que hoje se vale a Sociedade Solvay, tecnologia que foi pouco a pouco afinando, no decorrer destes anos, os seus processos de laboração. Vi quanto se fez para melhorar as condições de vida de todos os que para tais procedimentos contribuem com a prestação do seu trabalho. Outros passos falta ainda certamente dar nesta estrada. Será, graças ao empenho de todos, que tais passos poderão ser completados. O que desejo aqui reafirmar é que me sinto solidário convosco, porque me vejo participante dos vossos problemas, tendo-os compartilhado pessoalmente. Considero graça do Senhor ter sido operário, porque isto me deu a possibilidade de conhecer de perto o homem do trabalho, do trabalho industrial, mas também de qualquer outro tipo de trabalho. Pude conhecer a concreta realidade da sua vida: existência impregnada de profunda humanidade, embora não imune de fraquezas, vida simples, dura, difícil e digna de todo o respeito.

Quando saí da fábrica para seguir a minha vocação para o sacerdócio, levei comigo a experiência insubstituível daquele mundo e a profunda carga de humana amizade e de vibrante solidariedade dos meus companheiros de trabalho, conservando-as no meu espírito como elemento precioso.

4. Caros irmãos e irmãs! A Igreja, em virtude do seu mandato divino, está perto de vós, está do vosso lado, porque está ao lado do homem, de cada homem. A centralidade e a dignidade da pessoa humana incitam o Papa e os Bispos a proclamarem a sua solicitude pelo mundo do trabalho. A Igreja muito tem que dizer ao homem do trabalho: não nas questões técnicas, mas nas questões fundamentais e na defesa da dignidade e dos direitos dos trabalhadores. Ela proclama que a dignidade do trabalho faz parte da dignidade do homem; e tutelando a dignidade do trabalho, ela sabe que positivamente contribui para a defesa da justiça social. E se não deixa de reparar nos "resultados" conseguidos, justo motivo do vosso brio, ela vê em seguida demasiado bem as "ansiedades" e os perigos, que eles custam.

Como operários do sector industrial, estais inseridos na engrenagem do trabalho moderno que a força inventiva do génio humano agigantou. Ao mesmo tempo, porém, estais dispostos tanto às mais entusiasmantes como às mais perigosas consequências de tal processo, não só sob a perspectiva económico-social, mas também sob a ético-religiosa.

O desenvolvimento da técnica repropõe hoje de modo novo o problema do trabalho humano. A técnica, de fato, que foi e é coeficiente de progresso económico, pode transformar-se de aliada em adversária do homem. Ela, com efeito, apresenta-se marcada por uma evidente ambivalência: por um lado, diminuiu a fadiga do homem e multiplicou os bens económicos através de uma produção maciça; por outro, porém, com a mecanização dos processos produtivos, tende de facto para despersonalizar aquele que "realiza o trabalho", tirando-lhe toda a satisfação e todo o estímulo para a criatividade e a responsabilidade. Na actividade industrial encontram-se, com efeito, duas realidades: o homem e a matéria, a mão e a máquina, as estruturas empreendedoras e a vida do operário. Quem terá a preeminência? Tornar-se-á a máquina uma prolongação da mente e da mão criadora do homem, ou ficará este sujeito aos mecanismos que impelem a organização, reduzindo-se ela a operar como autómato? A matéria sairá nobilitada da oficina, e o homem pelo contrário degradado? Não vale porventura mais o homem do que a máquina e os seus produtos?

5. É sabido como a era técnico-industrial promoveu inovações profundas, transformações radicais na sociedade. A presença da máquina no mundo da empresa modificou não só as configurações tradicionais do trabalho, mas influiu substancialmente sobre o género de vida do trabalhador, sobre a sua psicologia, sobre a sua mentalidade, sobre a sua consciência e a cultura mesma dos povos, dando origem a um novo tipo de sociedade.

Com o afirmar-se, em seguida, da organização cientifica do trabalho e com as consequentes cadeias de montagem, acentuou-se mais a situação de alienação do homem e a sua impossibilidade de participar responsavelmente no trabalho que realiza.

Nestes últimos decénios, além disso, teve o seu ingresso no campo da indústria a automação, cujo carácter inovador, baseado na electrónica e na informática, nem sempre está plenamente em favor do homem.

6. Na época moderna, a consciência que estão adquirindo os seres humanos, particularmente os operários e as operárias acerca da sua dignidade, vai tomando dimensões universais. Tal fenómeno foi expresso no terreno histórico não só mediante a progressiva proclamação e defesa dos direitos humanos, mas também mediante o profundo desejo de mais viva e mais concreta justiça social.

Não é difícil fazer notar como de todas as partes do nosso planeta brota hoje a aspiração a uma maior justiça, em relação com as novas condições da economia e com as novas possibilidades da técnica, da produção e da distribuição dos bens. A percepção e a necessidade de tal justiça tornam-se cada vez mais insistentes e dominantes na consciência humana que, se reconhece por um lado os "resultados" conseguidos, sofre por outro com maior agudeza devido às "ansiedades" causadas pelas discriminações e carências, que podem ferir as legítimas aspirações dos trabalhadores.

Com efeito, a justiça social, na visão cristã, constitui a base, a virtude-chave e o valor fundamental da convivência sócio-politica. Dirige e regula as relações e os nexos dos cidadãos para com o bem comum, num ponto de vista, portanto, não puramente contratual e individual, mas comunitário. Como tal ele representa um direito fundamental de todos os homens, a eles conferido pelo Criador, e confirmado pela Mensagem evangélica.

Superando as rígidas delimitações da justiça comutativa, a justiça social procura portanto subordinar as coisas ao homem, os bens individuais ao bem comum, o direito de propriedade ao direito à vida, eliminando toda a condição de existência e de trabalho que seja indigna da pessoa humana.

Eis-nos, então, caríssimos irmãos e irmãs, no ponto central do problema a que é dedicado o nosso presente encontro.

Não me cansarei de afirmar que a economia e as suas estruturas são válidas e aceitáveis unicamente se são humanas, isto é, feitas pelo homem e para o homem. E não podem ser tais, se arruínam a dignidade de quantos — operários e dirigentes — nelas empregam as suas actividades; se anulam sistematicamente neles o sentido da responsabilidade; se paralisam neles qualquer forma de iniciativa pessoal; se, numa palavra, deixam de possuir um sentido e uma lógica humana.

7. Desejo agora referir-me a alguns elementos que julgo essenciais para que a ordem social seja realmente inspirada na justiça a respeito do trabalho humano.

Numa sociedade que deseja ser justa e humana, o proveito e o lucro não podem prevalecer sobre o homem: é absolutamente necessário que o homem continue a ser o sujeito da economia e das diversas estruturas de produção. Escrevi na Redemptor hominis: o homem "não pode renunciar a si mesmo nem ao lugar que lhe toca no mundo visível: não pode tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemas económicos, escravo da produção, escravo dos seus produtos" (n. 16). Deus criou-o para que seja senhor e não escravo do trabalho.

Nesta exigência de justiça devem-se colocar o direito ao trabalho e os outros direitos dos trabalhadores.

O trabalho constitui, de facto, um dos grandes e fundamentais direitos inalienáveis do homem, porque lhe dá vida, serenidade e significado. Mediante o trabalho o homem torna-se mais plenamente homem e colaborador de Deus no aperfeiçoamento da natureza. É de ambicionar que tal direito represente verdadeiramente uma realidade concreta para cada cidadão, um direito pro movido e tutelado pela sociedade.

Procurar trabalho ou emprego não é tarefa simples; todavia é necessário afirmar que nisto está um aspecto central e um compromisso fundamental da ordem política e económica.

8. Escrevi na Laborem exercens que a "concreta verificação da justiça de todo sistema sócio-económico e do seu recto funcionamento está representada pelo justo salário". Com efeito, o modo mais consistente de realizar a justiça nas relações do trabalho entre operário e empresário, independentemente do tipo de sistema económico, em que a actividade humana se aplica, é o da justa remuneração.

Mediante o salário é de facto geralmente aberto o caminho concreto de chegar aos bens destinados ao uso comum. Adequar o salário nas suas múltiplas e complementares modalidades, de maneira que se possa afirmar que o trabalhador participa real e justamente da riqueza, para cuja criação contribui de modo solidário, quer na empresa privada quer na economia nacional, é postulado e exigência de uma economia sã ao serviço de uma efectiva justiça social.

A aplicação das propostas imaginadas no campo católico com o fim de conseguir que o operário possa considerar-se co-proprietário do grande banco do trabalho é um elemento base daquela verificação, a que acima me referi: não só para que o homem do trabalho encontre plena satisfação no seu aspirar à justa remuneração, mas também e sobretudo para que seja salvaguardada a justiça em todas as estruturas do processo económico (cf. Laborem exercens LE 14).

9. Desejo ainda chamar a vossa atenção para outro aspecto essencial da justiça social: quer dizer, para a liberdade de associação, que deve reconhecer aos trabalhadores a possibilidade efectiva de participarem livre e activamente na elaboração e contraprova das decisões que lhes dizem respeito, em todos os níveis. A experiência histórica demonstra — como já afirmei noutras oportunidades — que tais associações ou sindicatos são elementos indispensáveis da vida social, especialmente nas modernas sociedades industrializadas. Surgidos para defender os justos direitos dos operários diante dos proprietários dos meios de produção, os sindicatos, particularmente os do sector industrial, cresceram sobre a base da luta. Todavia, nas suas atitudes de oposição social, devem imprimir essencial realce nos valores positivos que os animam, no desejo do justo bem, dentro do contexto do bem comum, na sede de justiça social, nunca na luta "contra" os outros, porque a primeira característica do trabalho é a de ser "por", de unir os homens; e aqui está a sua grande força social. Foi precisamente através da união e da solidariedade que os sindicatos puderam defender os interesses dos operários obtendo um salário justo, condições de trabalho dignas, segurança para o trabalhador e sua família.

Os poderes públicos, chamados a servir o bem comum, devem considerar portanto obrigação sua proteger no âmbito estatal estas associações através de leis prudentes; por sua parte, os sindicatos devem ter sempre na devida conta as limitações que a situação económica concreta geral pode, por vezes, requerer, no quadro do bem comum da Nação inteira.

10. Vós todos, caros irmãos e irmãs, estais justamente desejosos de que, nos vossos canteiros de obras e nas vossas fábricas, reine a justiça como dimensão fundamental das vossas actividades laborais. Não é assim? Isto honra-vos: mas sem dúvida não basta! Do mundo do vosso trabalho deve também vir a solução para realizar a justiça social: são necessários sempre novos movimentos de solidariedade entre os homens do trabalho e com os homens do trabalho para criar a união dos corações, uma união construtiva, sincera, animada pela formação moral e pelo espírito de responsabilidade.

"A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça sozinha não basta e que, pelo contrário, pode levar à negação e à aniquilação de si mesma, se não se consente — àquela força mais profunda, que é o amor — moldar a vida humana nas suas várias dimensões... Tal afirmação não desvaloriza a justiça e não atenua o significado da ordem que sobre ela se estabelece: mas indica somente a necessidade de recorrer às forças do espírito, ainda mais profundas, que condicionam a ordem mesma da justiça" (Dives in misericórdia DM 12).

Sabeis, com efeito, que o amor cristão anima a justiça, a inspira, a descobre, a aperfeiçoa, a torna realizável, a respeita, a eleva e a supera; mas não a exclui, não a absorve, não a substitui, pelo contrário pressupõe-na e exige-a, porque não existe verdadeiro amor, verdadeira caridade, sem justiça. Não é acaso a justiça a medida mínima da caridade?

Eu ouvi atentamente a operária que falou no princípio deste encontro: pois bem, ela sublinhou de modo perfeito a necessidade de procurar no amor a inspiração para um esforço social mais pleno. Considero importante esta intuição. Se, de facto, a justiça social dá fisionomia humana à empresa, a caridade infunde-lhe o impulso vital da verdadeira solidariedade.

11. Caríssimos irmãos e irmãs! Alimento confiança de que este encontro de hoje consolide, em cada um de vós, a sincera adesão ao Evangelho do trabalho, proclamado por Aquele que, sendo o Filho de Deus feito homem, quis pertencer ao mundo do trabalho manual junto do banco do carpinteiro José, esposo de Maria Santíssima.

Jesus olha com amor para o nosso trabalho e as suas diversas manifestações, vendo em cada uma delas um revérbero da semelhança do homem com Deus Criador. O trabalho é querido e abençoado por Deus: traz consigo não já o peso de uma condenação, mas a nobreza de uma missão, a de tornar o homem protagonista, com Deus, na construção da humana convivência e do dinamismo que reflecte o mistério do Omnipotente.

Para o vosso trabalho olha a Igreja, que procura, juntamente com todos os homens de boa vontade, corroborar os "resultados" obtidos, e encontrar a resposta às "ansiedades" que se agitam no vosso ânimo. A fé cristã possui o poder oculto de dar alma ao trabalho, de conferir-lhe serenidade, paz, força e racionalidade, fazendo assim dele um instante de crescimento humano não só pessoal, familiar e comunitário, mas também religioso.

12. E agora consenti-me que me dirija a todos vós que participais neste encontro — a todos e a cada um em particular. Ao fazê-lo, penso, simultaneamente, nas vossas famílias, nas vossas crianças, nos vossos filhos, nas vossas esposas, nas vossas mães, nos vossos doentes e em todos os que vos são caros: sei o lugar que têm no vosso coração, sei o grande valor que representam para vós. Para eles encontrais vós, na fadiga e no trabalho de cada dia, a plena expressão e a medida espontânea do vosso amor.

Amai as vossas famílias! Repito-vo-lo: amai-as! Sede delas os guias alegres, a luz segura e os vigilantes tutores contra os germes da desagregação moral e social, que por desgraça conduzem inexoravelmente ã decomposição tantos núcleos familiares.

Abri as vossas famílias aos valores sociais, às exigências do espírito! A vida familiar deve ser experiência de comunhão e de participação. Longe de encerrar-se em si mesma, a família é chamada a abrir-se ao meio social para se tornar — movida pelo sentimento da justiça, pela solicitude para com os outros e pelo dever da própria responsabilidade para com a sociedade inteira — instrumento de humanização e de personalização, serviço ao próximo nas multiformes expressões de fraternal auxílio, defesa e tutela consciente dos próprios direitos e deveres.

Abri as vossas famílias a Cristo e a Sua Igreja! Não por acaso foi a família cristã definida como "Igreja doméstica", "pequena Igreja". Entre os seus encargos fundamentais há também o eclesial de testemunhar Cristo ao mundo: "ela, quer dizer, coloca-se ao serviço da edificação do Reino de Deus na história, mediante a participação na vida e na missão da Igreja" (Familiaris consortio FC 49) e é chamada a tornar-se, cada dia mais, uma comunidade crente e evangelizante, vencendo a tentação de viver timidamente a própria fé dentro da intimidade das paredes domésticas.

Mantende viva e constante a vossa sensibilidade pelo respeito da justiça social no mundo do trabalho; alimentando-a e sustentando-a com o amor que é "o vínculo da perfeição" (Col 3,14).

Reine sempre nas vossas fábricas, nos vossos locais de trabalho, a serenidade da modesta oficina de Nazaré, a serenidade que provém da consciência de terdes cumprido quotidianamente o próprio dever, a serenidade que torna o trabalho humano factor de crescimento e lhe dá a medida de vocação fecunda. A Igreja é vivamente sensível ao valor do ambiente "fábrica", o lugar em que se realiza a vida do trabalhador — a vossa vida! —, mas ao qual deveis também levar a fé para actuar de modo construtivo; fazer que ela se torne operante.

O Senhor está aqui connosco; não só agora; está sempre convosco no banco do vosso trabalho, para dar a todos a força regeneradora do Seu Evangelho, da Sua graça e do Seu amor. Não O esqueçais nunca! Não O marginalizeis nunca!

Tende sempre, como meta da vossa actividade, construir um mundo mais humano, mais fraternal e mais cristão; a vontade de criar formas mais perfeitas de união, de solidariedade e de socialidade, segundo as exigências dos tempos; o ideal de crescer em humanidade, progredindo cada dia mais na justiça e no amor.

Por isso, abençoo-vos a todos! Todos vos levo no coração, operárias e operários da Solvay! E pedirei sempre por vós, pelas vossas famílias e pelo vosso trabalho, recordando sempre comovidamente este dia belíssimo! São José vos proteja, Nossa Senhora vos ajude; Cristo vos conserve na Sua graça!

E seja louvado Jesus Cristo.



Discursos João Paulo II 1982 - Sexta-feira, 12 de Março de 1982