Discursos João Paulo II 1985




                                                         Janeiro de 1985



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS SEMINARISTAS DO PONTIFÍCIO


COLÉGIO PORTUGUÊS


12 de Janeiro de 1985



Meus amados irmãos e irmãs,
Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!

1. ESTAMOS AQUI CONGREGADOS, esta tarde, na comunhão do amor e do louvor de Deus e na caridade que nos irmana no Espírito Santo. Sinto alegria em encontrar-me hoje entre vós, nesta sede, relativamente nova, do Pontifício Colégio Português em Roma. Agradeço o vosso caloroso acolhimento, a vossa presença e saúdo a todos cordialmente: a representação dos Irmãos Bispos de Portugal, o Senhor Embaixador, as pessoas amigas da Casa, as Religiosas e, sobretudo, vós caros Sacerdotes e alunos, com os vossos Superiores, que aqui vos preparais, com amor e seriedade, para servir a Igreja de Deus.

O acto litúrgico que celebramos na vigília da Festa do Baptismo do Senhor, recorda-nos que a vida pública do divino Salvador está enquadrada por dois baptismos: o baptismo de penitência, nas margens do rio Jordão, que marca o início do itinerário de evangelização que o Servo de Javé percorrerá anunciando o Reino de Deus e passando fazendo o bem; e aquele outro baptismo – o do Calvário – em que o Redentor, como vítima de expiação, se constituirá pedra angular do mundo novo, “porque Deus estava com Ele”. Depois de Jesus Cristo ter sido baptizado, abriram-se os Céus e uma voz se fez ouvir: “Tu és o meu Filho muito amado: em Ti pus o meu enlevo”. E a “pedra angular, escolhida e preciosa” que os edificadores incrédulos rejeitaram, com a unção do Espírito Santo, que se manifestou sob a forma de pomba, torna-se a grande certeza para os que crêem: “quem puser n’Ele a sua confiança, não será confundido” .

2. Nós, por graça do Altíssimo, somos os que pusemos a confiança nessa “pedra angular”. Também nós um dia fomos baptizados na morte e ressurreição de Cristo; à semelhança d’Ele, recebemos a unção do Espírito; n’Ele nos tornamos filhos de Deus e pedras vivas, chamados a entrar “na construção dum edifício espiritual, por meio dum sacerdócio santo, cujo fim é oferecer sacrifícios espirituais que serão agradáveis a Deus”.

Como nas margens do Jordão, o Espírito Santo esteve presente nesse dia belo do nosso Baptismo, pois é Ele que gera no seio da fonte baptismal para uma vida nova aqueles que crêem em Cristo e os reúne num só Povo de Deus. E para a maioria de nós, aqui presentes, o Senhor reservou uma unção especial, que incluía em germe a vocação para “ministros de Cristo e administradores dos mistérios de Deus”, ao serviço do Senhor e do próximo, na grande família humana.

O primeiro sentimento que nos há-de dominar nesta breve meditação é a adoração e o agradecimento, por Ele ter feito em nós “grandes coisas”: Bendito seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, pela eficácia da nossa fé, pelo dom da caridade, juntamente com o seu Espírito, e pela coragem da esperança que nos outorgou, porque “fomos escolhidos”. Com efeito, ninguém pode usurpar para si esta honra, mas somente a recebe o que é chamado por Deus. O próprio Jesus Cristo, Sumo Sacerdote, não se glorificou a si mesmo; mas foi glorificado por Aquele que lhe disse: “Tu és meu filho, hoje te gerei”. Uma palavra análoga nos foi “dita” quando fomos baptizados: “Fui Eu, o Senhor, quem te chamou, num propósito de salvação”; e quero tomar-te pela mão e formar-te, para usar os termos da profecia de Isaías.

3. Filhos de Deus, pedras vivas, assentes na “pedra angular”, constituídos a favor dos homens nas coisas respeitantes a Deus, “para oferecer dons e sacrifícios”, temos, necessariamente, também de ter alguma coisa de nós mesmos para oferecer. Nesta tarde, quereria falar-vos da confiança, o melhor que podemos oferecer de nós mesmos na nossa sublime função sacerdotal: “Filho, dá-me o teu coração e sejam agradáveis aos teus olhos os meus caminhos”. O Senhor, o mesmo ontem, hoje e para sempre, em resposta continua a repetir-nos: olhai: “No mundo tereis aflições, mas tende confiança! Eu venci o mundo”.

Tende confiança: é para vós esta palavra, caríssimos responsáveis da direcção e animação espiritual desta Casa; é para vós, caríssimos alunos, Sacerdotes e seminaristas, que aqui perfazeis ou completais a vossa formação; é para vós, amadas Irmãs Religiosas, que aqui prestais o vosso serviço dedicado, certamente com o coração e o olhar na Serva do Senhor, ocupada na lida da casa de Nazaré, para proporcionar bom ambiente e clima familiar; é para vós, os que compartilhais a solicitude e manutenção desta Casa: do anónimo benfeitor, aos amigos conhecidos, aqui representados hoje, e aos Senhores Bispos, presentes nas pessoas do Senhor Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa e os Senhores Metropolitas de Portugal, entre estes o antigo aluno o Senhor Cardeal-Patriarca de Lisboa, e dos Senhores Dom Custódio Alvim e Dom Teodoro de Faria, antigos Reitores.

4. Em vós vejo prolongada em Roma a “Casa Lusitana”; e revivo, com grata emoção, as imagens da inesquecível visita ao vosso País, que tive a alegria de fazer há dois anos e meio. Foi sob o signo da confiança no Senhor da história que peregrinei até à vossa terra, desejoso de levar ao Portugal de hoje uma palavra de confiança, ao mesmo tempo que reafirmava estima por um Povo com uma gloriosa história e um rico património espiritual, fonte de responsabilidade. Foi sob o signo da confiança em Deus e na Mãe da Igreja que ajoelhei em Fátima, com o mundo e com o Povo português, para confiar à protecção de Nossa Senhora, Mãe de misericórdia e Esperança nossa, os destinos dos homens e das Nações. E com o mesmo sentimento de confiança convidei o mundo e, com ele Portugal, a vir a Roma – com a imagem de Nossa Senhora de Fátima – para aqui, no coração da Cristandade, no final do Ano Santo da Redenção, renovar o mesmo acto de consagração.

É motivo de confiança o passado deste Colégio: todos os que apostaram na necessidade desta Casa de formação, desde a primeira hora – e seria o momento de evocar os seus nomes, se não fora a usura do tempo – demonstraram confiança que pode dizer-se ter sido premiada. Com efeito, a história da Igreja em Portugal e noutros territórios e Nações de expressão portuguesa, neste século, não poderá ser escrita sem referir a participação que nela tiveram os antigos alunos do Pontifício Colégio Português, que conta no seu álbum de honra três Cardeais e quarenta e oito Bispos, sem esquecer os outros quase seiscentos servidores do Povo de Deus, em actividades de grande responsabilidade e, graças ao Senhor, com frutos e projecção que perduram.

E esta confiança permanece, a pesar das circunstancias em que vivem e lutam os homens de hoje. Favorecidos pelo bem do progresso, mas, não raro, a braços com um certo mal-estar, proveniente de vários e fortes motivos de ordem social, política, económica, ideológica e cultural, eles podem parecer desinteressados; no fundo, porém, sentem a necessidade de Sacerdotes íntegros e corajosos, plenamente homens “assumidos de entre os homens” e sensíveis à sua problemática e sofrimento, mas distintos, enquanto testemunhas, arautos e servidores, livres e disponíveis do absoluto de Deus, que não obstante tudo procuram.

5. Seria o momento de concretizar e responder a pergunta: como corresponder a essa confiança e expectativa? Ou, que é que se espera dos alunos deste Colégio, como casa de formação, aperfeiçoamento, ou evangélico “sentar-se” e “calcular” aquilo de que se dispõe para “edificar” ou para “defender” o Reino de Deus.

Deixo-vos breves tópicos, para vossa reflexão pessoal, sobre o tipo de Sacerdote que se espera e confia ver em vós sempre:

– Sacerdotes imbuídos dos sentimentos de Cristo, persuadidos de que mais do que profissão o “ser padre” é uma vocação divina, a viver no seguimento do mesmo Cristo e na sintonia com a sua Palavra, meditada e assimilada na intimidade da oração. Nada pode substituir a oração pessoal; não se improvisa o hábito da oração comunitária; e não se pode construir a comunhão eclesial sem a oração litúrgica. Estais em tempo e numa situação favorável para vos preparar e aprofundar naquilo que vos espera sempre, seja qual for a vossa especialização: mestres experientes de oração e guias de almas pelos caminhos da união com Deus.

– Sacerdotes de vida santa, porque é santo Aquele a quem vos entregastes: com a graça divina sempre esplendorosa; “evangelizados”, para poderdes evangelizar, que é algo mais do que apregoar os conteúdos do Evangelho: é levar os homens a encontrar-se com Cristo e a deixar-se encontrar por Ele.

– Sacerdotes com convicções pessoais, alegres na sua missão e felizes com a sua escolha, sem desânimos nem cansaço, não obstante as dificuldades da caminhada evangélica. Num país tradicionalmente cristão, como o vosso, o que é um bem, existe, mais do que noutros, o desafio constante e o desejo de ver espelhada em vós a razão por que venerais Cristo no vosso coração e da esperança que vos anima.

– Sacerdotes de doutrina sólida: o privilégio de estudar em Roma tem de criar em vós o hábito e a seriedade do trabalho intelectual, como meio de actualização, capacidade de compreensão, de diálogo respeitoso e de discernimento; por outras palavras, criar em vós a segurança de “juntar sempre com Cristo” e não dispersar, no anúncio da Palavra e no guiar a reflexão do laicado católico, cada vez mais ávido de segurança e certeza, no dédalo das correntes de pensamento e das ideologias. Sentir com a Igreja e viver sincera e coerentemente a sua catolicidade e promessa de perenidade encontra nesta cidade de Roma um conjunto de estímulo único, que costumo chamar graça: a graça de estar em contacto com as memórias do passado que fala e com a vida que se expressa em serviço, em torno do Sucessor de Pedro, na Sé Apostólica que preside à caridade universal.

– Sacerdotes capazes de viver e criar comunhão na vida eclesial e abertos à reconciliação, com os dispersos e distantes, e de levar por diante, com todos os homens de boa vontade, o “diálogo da salvação”. Isto, como bem sabeis, pressupõe a aptidão para aceitar diferenças de pessoas e de legítimas opções pessoais e para formar equipa ao serviço da missão da Igreja, situada no tempo e no espaço; e pressupõe também a vivência da fidelidade, interna e externamente: fidelidade à própria consciência esclarecida, ao Magistério e às normas disciplinares da Igreja. A genuinidade do zelo apostólico afere-se sempre por esta fidelidade a comunhão com a Igreja, Mãe e Mestra, com o vosso Bispo e com o Presbitério diocesano. Só assim sereis bons educadores da fé dos demais cristãos.

– Sacerdotes próximos a todos, pela simplicidade e bondade, prudentes e sempre guiados por grande lucidez de espírito, que sabe distinguir as autênticas exigências da justiça e propor os imperativos da caridade, sem se deixar enredar por nada que seja redutor da integridade da mensagem do Evangelho. Sacerdotes, enfim, que sejam “Padres e só padres”, como se diz na vossa terra. E que os homens vejam sempre em vós só isso: é o que desejo a cada um e desejo ao querido Povo fiel de Portugal.

Tende confiança: “Tudo o que o Senhor quer, Ele o faz”, como rezámos há pouco com o Salmista, certos de estardes a “prolongar Cristo” que passou fazendo o bem, “porque Deus estava com Ele”. E que vos proteja sempre a Mãe da nossa confiança, Maria!

Agradeço ao Senhor, convosco, e agradeço-vos esta experiência espiritual de comunhão; e peço a Deus que este Colégio, que tem o título de “Pontificio” e conta com o afecto do actual Sucessor de Pedro, seja sempre fiel às suas origens e finalidade, viveiro de autênticos discípulos de Cristo, que confiam e sabem em quem confiaram, prontos a demonstrar a própria confiança no amor do Pai, na graça de Cristo e na comunhão do Espírito Santo.

Amen!



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO NOVO EMBAIXADOR DA REPÚBLICA


FEDERATIVA DO BRASIL JUNTO À SANTA SÉ


Segunda-Feira, 21 de Janeiro de 1985



Senhor Embaixador

1. É para mim motivo de alegria receber hoje Vossa Excelência, neste acto de apresentação das Cartas que o acreditam como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República Federativa do Brasil junto à Santa Sé. É acolhido aqui, como o será sempre, com toda a atenção e interesse. Apreciei as palavras que me dirigiu, as quais reflectem, com as boas disposições pessoais, para dedicar-se à alta missão que ora inicia, certamente também os sentimentos de benevolência do Governo e do querido Povo brasileiro para com o Sucessor de Pedro, que nele encontram plena reciprocidade.

Ao dar-lhe as cordiais boas-vindas, agradeço as deferentes expressões que me transmitiu, da parte do Senhor Presidente General João Baptista Figueiredo, que mandatou Vossa Excelência e agora termina as suas altas funções; peço que lhe apresente as melhores saudações; e, igualmente, ao Senhor Presidente eleito, com os meus votos de feliz êxito na chefia suprema dos destinos da Nação brasileira.

É com grande estima e simpatia que a Santa Sé considera o seu País e o Povo brasileiro, com o seu rico património cultural, impregnado de tradição cristã, e portador de tantas promessas, no contexto da América Latina e do mundo. Ao momento histórico que o Brasil está a viver, corresponde uma expectativa geral, que desejo venha a ser felizmente satisfeita. E sê-lo-á, certamente, num sentido positivo - são os meus votos – tendo em vista um passado de Nação pacifica e ordeira, que lhe faz honra, o carácter da sua cultura e, sobretudo, a índole generosa da sua gente. Esta continuará a empenhar-se, por certo, pelo maior bem de cada brasileiro, para que disponha de meios suficientes para uma realização integral, numa participação responsável e esclarecida na vida e nos destinos da comunidade.

2. É com elevado apreço e alguma saudade que recordo o meu contacto directo com o Povo brasileiro, ao longo de doze dias de grata peregrinação pelo seu País, em 1980. Com a cortesia das Autoridades, que se desvelaram em facultar essa visita pastoral, ficaram-me gravadas muitas imagens indeléveis de beleza e de bondade; a todas sobrepuja, porém, a imagem do homem concreto, com toda a sua verdade, que, em situações pessoais diversas, pude encontrar. Este se me afigurou marcado não só pela brasilidade – pela identidade da sua cultura, resultante da fusão de riquezas culturais e de valores espirituais de diversa proveniência – mas também pela aspiração generalizada de plasmar e manter o Brasil como uma grande família.

Membro dessa família, o Senhor Embaixador vem incumbido de uma missão que será – estou certo e desejo-lho do coração – uma experiência nova, a enriquecer a da precedente estada em Roma. Trata-se, como é sabido, de conduzir um tipo de relações muito especiais, que não incidem em acordos políticos, económicos ou culturais, mas sobretudo em bens e valores que se situam em plano diverso e se procuram conjuntamente, mediante o diálogo e – quando exigido pelo maior bem das pessoas e dos povos e consentido pela missão própria da Igreja – mediante a colaboração, em vista do maior bem comum, com a justiça e a paz. Providenciar quanto à sobrevivência, saúde, educação e promoção de populações, protecção de minorias étnicas, possibilidades de trabalho, justa distribuição e valorização de bens primários e defesa dos valores da família, da fraternidade social e da integridade moral são campos em que não raro se encontram a solicitude da Igreja e a aplicação dos governantes dos Povos.

Dentro dos limites da sua missão própria, a Igreja, como é sabido, não deixa de aconselhar os seus fiéis a tomar parte, com prudência, nos esforços que se envidam no sentido de eliminar ou minorar carências e de empreender verdadeiras reformas, enfrentar necessidades vitais, facultar o acesso de todos aos meios para se alimentarem, cuidarem e instruírem, melhorarem as condições de vida e assim se assegurar a paz. Sem estar ligada a qualquer sistema político, no seu papel de sinal e convite à salvaguarda da transcendência da pessoa humana encontra-se e chega mesmo a convergir com a caminhada da comunidade política, quando se trata de servir a sublime vocação pessoal e social dos homens que a integram e que são ao mesmo tempo membros da comunidade política Cfr. Gaudium et Spes, GS 76).

3. Ao render homenagem à memória dos filhos da Igreja pelo contributo que deram para se plasmar a sociedade brasileira actual, marcada por singular ecumenicidade, o Senhor Embaixador realçava esse ponto de encontro da acção da Igreja e da acção do Estado, no campo dos valores éticos e espirituais; sobre estes, efectivamente, se baseia a dignidade de toda a pessoa humana, com os seus direitos, liberdades e deveres, a serem actuados na busca do autêntico progresso e do bem comum, pelos caminhos da compreensão, da entreajuda, da justiça e da fraternidade, bem diversos dos caminhos da violência, que explode quando esses direitos, liberdades e deveres não são observados.

No Brasil, nação de longa tradição cristã, o Estado e a Igreja têm tido diálogo e preocupação de atitudes recíprocas construtivas, com respeito dos respectivos campos, que só é para desejar continuem. Da parte da Santa Sé haverá antecipada gratidão todas as vezes que Vossa Excelência se fizer eco das convicções e votos cabíveis na missão da Igreja, que ela não deixa de exprimir quanto aos grandes problemas e desafios postos hoje ao mundo inteiro e que portanto afectam todos e cada um dos países. Não é o momento de enumerar esses problemas e desafios, a que aludia em recente encontro com o Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé (Cfr. IOANNIS PAULI PP. II Allocutio ad viros Nationum apud Sedem Apostolicam constitutos Legatos, die 12 ian. 1985: vide supra , pp. 53 ss.). Todas e cada uma das nações são chamadas a interessar-se e, porventura, a entrar mesmo num diálogo sério e franco, evitando omissões, quanto aos imperativos do bem comum da inteira família humana e quanto aos imperativos da solidariedade; esta, como se sabe, quando genuína, comporta o respeito pelos demais e é devida aos Povos em dificuldade.

Faço os melhores votos de que, com clarividência e discernimento, o Brasil continue a assumir o seu papel na construção de um mundo mais iluminado pelo amor, pela justiça, pela verdade do homem e pela solidariedade, caminhos para a paz estável.

Desejo cordialmente a Vossa Excelência, que aqui continua hoje a tradição ininterrupta desde os alvores da independência do seu País, de relações amistosas, que se realizem sem obstáculos os auspiciosos anelos que confessava, de total dedicação para servir; e, sobretudo, desejo-lhe um feliz e fecundo desempenho da sua missão, que lhe seja portador de alegrias, consolações e lhe permita, outrossim, descobrir melhor o rosto da Igreja católica. Para tanto, invoco sobre a pessoa de Vossa Excelência e sobre o querido Povo brasileiro – e todos os que têm a tarefa de salvaguardar e promover o seu bem comum – a assistência, os favores e as bênçãos de Deus.





                                                             Abril de 1985

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS BRASILEIROS DAS PROVÍNCIAS


ECLESIÁSTICAS DE BELÉM E DE MANAUS


EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


Segunda-feira, 29 de Abril de 1985



Veneráveis e queridos Irmãos no Episcopado,

1. SEJAM BEM-VINDOS a este encontro colegial, que é para mim motivo de profunda alegria. Ele coroa os gratíssimos encontros com cada um dos Senhores, Bispos das Províncias eclesiásticas de Belém e Manaus. Neles tive a oportunidade de partilhar suas preocupações e alegrias, conhecer seus anelos e esperanças e comungar sua gratidão a Deus pelos objetivos alcançados, no pastoreio do rebanho que o Senhor lhes confiou.

Neste momento de “Cenáculo”, quero renovar-lhes a expressão de sentimentos de afeto e apreço, em que incluo os Presbitérios, os Religiosos e todos os fiéis das suas Dioceses e Prelazias, de uma vasta e bela região do imenso Brasil.

Reconhecido a Deus, fonte de toda a consolação (Cfr. 2Co 1,3), agradeço-lhes também, pelo testemunho de comunhão na fé e na caridade, que constitui esta “visita ad Limina”, que os Senhores prepararam com tanto interesse e esmero. Isso mostra a consciência que têm da natureza colegial da Ordem dos Bispos, em continuidade com a “primitiva disciplina na Igreja, segundo a qual os Bispos de todo o mundo comunicavam entre si e com o Bispo de Roma, no vínculo da unidade, da caridade e da paz” (Cfr. Lumen Gentium LG 22).

2. Ao falar com os Senhores, após a visão dos Relatórios quinquenais, com insistência me vêm ao espírito as imagens de luz, cor e vida, onde se verificam as situações concretas de suas Igrejas particulares referidas ou descritas; imagens que colhi na visita pastoral de há cinco anos, a Belém e a Manaus, sobrevoando a maravilhosa floresta amazônica. Terras ricas e generosas, não só do ponto de vista da natureza, mas também do ponto de vista humano e religioso; manifestam-no as suas gentes, com a bondade de coração, o sentido da hospitalidade, o culto dos grandes valores espirituais e cristãos e as suas arraigadas tradições e devoções, primeira entre todas a devoção a Nossa Senhora.

Torna-se-me presente, sobretudo, a imagem do homem que me ficou, dos encontros e celebrações que tive a alegria de aí realizar: do homem que labuta e sofre, do homem que espera e confia . . . Belém-Marituba e Manaus-Indios da Amazônia, são binômios a significar que, ao mesmo tempo, do ponto de vista social, se trata de terras onde a homem é prevalentemente pobre e sofredor, como os Senhores unanimemente me confirmaram.

Congratulo-me com os Senhores, pois também nessas regiões onde foram chamados a reger o rebanho de que o Espírito Santo os constituiu Bispos (Cfr. Act Ac 20,28), a Igreja vai procurando responder aos desafios e “crescendo, como um edifício, com a assistência do Espírito Santo” (Cfr. Ibid. Ac 9,31). È o fruto da ação divina e também do ministério e do apostolado, persistente e generoso, dos operários da messe, das Famílias religiosas e dos Institutos de vida consagrada e de numerosos leigos, generosamente comprometidos no labor pastoral das Comunidades.

3. De um relance de conjunto, fica a impressão de “boa terra” e, em geral, de “boa semente”, gracas a Deus. A retardar o crescimento desta semente de Palavra do reino, não faltam, certamente, dificuldades, carências e decepções. Mas é para nós também a norma que traçou o Apóstolo: “Em todas as coisas procuremos acreditar-nos como ministros de Deus, com muita paciência” (Cfr. 1Co 6,4); e de igual modo a lição de vida da apologia que faz são Tiago, bem verificável para os Senhores: “Vede como o lavrador aguarda o precioso fruto da terra e tem a paciência até receber a chuva temporã e a tardia. Tende também vós paciência e fortalecei os vossos corações” (Jc 5,7-8).

Quando da minha visita a Manaus, tive a intenção de deixar-lhes uma mensagem de alento à atividade sempre prioritária em toda a pastoral, que é a evangelização, guiada pelo magistério dos Senhores, como Bispos, a orientar a marcha do povo peregrino nas terras abençoadas em que são Pastores (cf. Ioannis Pauli PP. II, Homilia ad Missam in urbe “Manaus” habita, 4, 11 julho de 1980). Não é o caso de retomar as considerações então propostas e que retenho plenamente atuais. É-me grato verificar, aliás, que se preocupam em fazer de suas Comunidades “Igreja evangelizada, para poder evangelizar”, usando uma formulação feliz de meu Predecessor Paulo VI.

4. O mesmo Sumo Pontífice, como é sabido, apresentou a evangelização como algo complexo, mas que consiste “antes de tudo, em testemunhar de modo simples e direto Deus revelado por Jesus Cristo no Espírito Santo” (Pauli VI Evangelii Nuntiandi, EN 26). Está nisto a graça e a vocação própria da Igreja, a sua identidade mais profunda. “Ela existe para evangelizar, isto é, para pregar e para ensinar, ser o canal do dom da graça, reconciliar os pecadores com Deus e perpetuar o sacrifício de Cristo, na Santa Missa, que é o memorial da sua Morte e Ressurreição” (Ibid. EN 14).

O Evangelista João, com a sua perspectiva própria, na primeira Carta sobretudo, insiste na explicação daquilo que constitui a fé em Deus, Verdade e Luz, e o seu testemunho: é dar o realce devido ao amor do Pai, manifestado em Jesus Cristo, feito homem, morto e ressuscitado, no Qual é oferecida a todos os homens, como dom de graça e misericórdia, a Salvação; uma Salvação não apenas imanente ao mundo, mas que o transcende, com dimensões de eternidade: “Deus deu-nos a vida eterna; e esta vida está em seu Filho” (1Jn 5,11)

É sobre esta base, como acentuou de maneira incisiva o Documento de Puebla, que tem que assentar a “parte integrante” da evangelização: a busca e as tentativas de resposta às interpelações da vida concreta dos homens, situados no tempo e no espaço que lhes é peculiar.

5. Folheando a História do Brasil, avultam aí as figuras dos missionários, que deixaram tudo para embrenhar-se no desconhecido e levar o Evangelho de Cristo a estas regiões vastíssimas, com uma coragem e desprendimento a toda prova. Fizeram o que estava ao seu alcance, superando uma infinidade de entraves, para que neste Novo Continente se dilatasse a fé católica, que até hoje o distingue. Devido às distâncias e falta de vias de comunicação e ao exíguo número de evangelizadores, nem sempre puderam aprimorar, como teriam desejado, a instrução e formação religiosa das populações.

Não obstante as lacunas, que ainda hoje se sentem por toda a parte, devidas a circunstâncias particulares, é preciso reconhecer o grande mérito do trabalho destes pioneiros da evangelização, que contribuiu para que o Brasil se tornasse a maior nação católica do mundo e mantivesse sua fidelidade, ao longo dos tempos, à fé que eles transmitiram.

Suas Regiões do Norte 1 e Norte 2 caracterizam-se também pelas enormes distâncias. 1R, sem dúvida, muito difícil ao Pastor contactar um rebanho tão disperso. Sua voz muitas vezes não chega aos fiéis senão através do rádio, que é escutado com toda a atenção naquelas regiões. As viagens pastorais exigem verdadeiro espírito de aventura e um intenso amor por cada um daqueles moradores perdidos na imensidão da floresta virgem.

Além disto, verificam-se as situações concretas, do ponto de vista humano e social, com que deparam, de patente pobreza, ignorância, doença e, talvez marginalização, que não podem deixá-los indiferentes. E, diante de tudo isto, faltam os “operários para a messe”, os obreiros da evangelização. Está aqui uma das principais fontes de suas compreensíveis preocupações de Pastores.

6. Sem desânimos, “em todas as coisas procuremos acreditar-nos como ministros de Deus”. Ele é o “Senhor da messe”. Sei que os Senhores têm disto consciência clara e, mesmo, sofrida. Têm, por isso, consciência operosa e diligente em tentar percorrer as duas únicas vias que, na economia normal da graça e providência de Deus, se nos apresentam para sair do impasse.

A primeira consiste em valorizar a colaboração dos leigos, em tarefas precisas, que ampliem e multipliquem a ação dos sacerdotes, muitas vezes absorvidos, até ao extremo das forças, pelo ministério. Além do testemunho pessoal da Boa Nova, como cristãos, com que se tornam obreiros da evangelização, em continuidade com a vocação batismal e em virtude do sacerdócio comum dos fiéis, os leigos estão chamados a atuar a missão da Igreja, até onde podem. Sobretudo onde escasseiam, os ministros ordenados. Como tais hão de ser apreciados e aproveitados, solicitando de todos os modos a sua colaboração, formando e promovendo as suas consciências e aptidões de cristãos convictos, levando-os a realizar, afinal, a própria vocação ao apostolado.

A outra via é a da pastoral e da promoção vocacional, em que hão de ser integrados os mesmos leigos, a família e a escola, esclarecidos da importância, necessidade e requisitos do ministério sacerdotal. E este esclarecimento assenta na certeza de que há poderes - oferecer o Sacrifício da Eucaristia, perdoar os pecados e pregar a Palavra de Deus - que o divino Fundador da Igreja ligou ao Sacerdócio ministerial. Assim, as tentativas de transferir para a comunidade tais poderes demonstrar-se-ão vãs e serão ineptas para servir a vitalidade religiosa das comunidades. Há um dito brasileiro, segundo me disseram, que pode ser programático neste campo: “Plantando, dá”; e alegro-me por saber que alguns dos Senhores o estão tomando como lema; no caso, porém, sempre na grande confiança de que só Deus dá o crescimento (Cfr. 1Co 3,7).

7. Neste ponto, como noutros, sobre os quais quiseram abrir-me o coração e manifestar o anelo por soluções adequadas para os problemas de suas Comunidades, pude aquilatar a importância que têm para os Senhores as diretrizes comuns para toda a Igreja, numa louvável procura da pureza e integridade da fé e de unidade na vida eclesial. É assim, realmente, na comunhão com o Sucessor de Pedro e no compromisso com o único Evangelho, iluminado pelo Magistério vivo, que se tem de processar o empenho em agir e em esclarecer a consciência dos fiéis, “a tempo e fora de tempo” (Cfr. 2Tim 2Tm 4,2) , ajudando-os a superar dúvidas e a evitar tudo aquilo que seja causa de desorientação e de desvio. “Nunca se pode evangelizar sem a Igreja e, menos ainda, contra a Igreja” (Pauli VI - Evangelii Nuntiandi, EN 16).

Esta Igreja que está no mundo, a serviço do homem concreto, munida por Cristo com o dom do Magistério - como tive ocasião de frisar na Favela do Vidigal - é a Igreja universal, a Igreja do mistério da Incarnação, que fala em nome da própria verdade, mas verdade “realista”, que nos leva a “ter em conta cada realidade humana, cada luta, cada injustiça e cada tensão”(Cfr. Ioannis Pauli PP. II, Allocutio in loco vulgo v. d. “Favela do Vidigal” in urbe “Rio de Janeiro” habita, 5, 2 de julho de 1980). E contudo permanece um mistério de unidade no Espírito Santo: “Um só Corpo e um só Espírito” (Ep 4,4). Por isso, quanto mais graves forem os problemas a enfrentar tanto mais profunda há de ser a unidade com a Cabeça visível do Colégio e dos Pastores entre si, fruto daquele amor em Cristo, pelo qual todos conhecerão que somos seus discípulos (Cfr. Jn 13,35 Lc 11,23).

8. Foi a esta luz que os Senhores quiseram informar-me de planos e programas de evangelização que desejo venham a concretizar-se com êxito, sob a sábia orientação de seu magistério. Estou certo de que os ilumina o único intuito de edificar a Igreja, na unidade e na paz de Cristo, de maneira a acreditá-los “como ministros de Deus”. Estes planos e programas, para aludir só a alguns, visam:

- o campo da Liturgia e da vida sacramental, com particular incidência na celebração dos sacramentos da Eucaristia e da Penitência, e no anúncio da Palavra de Deus;

- o campo da família, em ordem à formação de matrimônios estáveis e de lares sadios; na Exortação Apostólica “Familiaris Consortio” tive ocasião de dizer que “o futuro da humanidade passa pela família”¡ bem orientada, ela tem um papel importantíssimo também no futuro das vocações sacerdotais e religiosas;

- o campo da educação cristã, onde um mal entendido pluralismo e uma tolerância que facilmente degenera em permissivismo, quase fazem desaparecer o sentido do pecado, como recentemente acentuava na Exortação Apostólica “Reconciliatio et Paenitentia” (Ioannis Pauli PP. II Reconciliatio et Paenitentia, RP 16);

- o campo da formação para participar ativamente na vida da comunidade, em que o senso cristão há de ser salvaguardado da polarização política ou da tirania das ideologias em moda, uma e outras prontas para explorar o potencial humano, onde houver mal-estar generalizado;

- o vastíssimo campo social, em que a preocupação por ajudar a promoção humana integral de amplas camadas da população, ou de favorecer e restabelecer a justiça, não pode sufocar ou fazer relegar para um segundo plano o conteúdo essencial da evangelização;

- o delicado campo do atendimento aos índios, em relação aos quais a solicitude pastoral dos Senhores não tem poupado esforços, quer levando-lhes a Boa Nova da salvação cristã, que promovendo os seus direitos, quer, principalmente, devotando-lhes um amor verdadeiramente cristão.

9. Não quereria terminar estas considerações, sem renovar diante dos Senhores a comovida homenagem aos muitos missionários, que labutaram e labutam pelo reino de Deus no Brasil - particularmente, na região amazônica - que lhes rendi quando estive em Manaus. Homenagem que é, ao mesmo tempo, um apelo. A Igreja ainda hoje está cônscia de precisar de almas enamoradas de Cristo que abracem a causa missionária; da necessidade de muitos que dediquem toda a sua vida a trabalhar e a sofrer pela causa do Evangelho (Cfr. Mc 8,35).

Ao concluir estas palavras, imploro sobre os Senhores, meus Irmãos Bispos, e sobre as suas Comunidades eclesiais, pela intercessão de Maria Santíssima, a “Estrela da Evangelização”, Mãe da divina graça e Nossa Senhora da Nazaré - título sob o qual é tão invocada em suas regiões - a efusão dos dons do Espírito Santo, com uma ampla Bênção Apostólica.



                                                                 Junho de 1985


Discursos João Paulo II 1985