AUDIÊNCIAS 1998 - AUDIÊNCIA

Caríssimos Irmãos e Irmãs, abramos o coração à graça divina e disponhamo-nos a seguir Jesus na Sua paixão e morte, para entrarmos com Ele na glória da ressurreição.

Com estes sentimentos, desejo a todos um frutuoso tríduo pascal e uma santa e feliz Páscoa!



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 15 de Abril de 1998



1. A hodierna Audiência geral realiza-se na oitava da Páscoa. Nesta semana e durante o inteiro arco de tempo que vai até ao Pentecostes, a Comunidade cristã percebe de modo especial a presença viva e operante de Cristo ressuscitado. Na esplêndida moldura de luz e de exultação próprias do tempo pascal, prosseguimos as nossas reflexões em preparação para o Grande Jubileu do Ano 2000. Hoje, detemo-nos ainda no sacramento do baptismo que, imergindo o homem no mistério da morte e da ressurreição de Cristo, lhe comunica a filiação divina e o incorpora à Igreja.

O baptismo é essencial para a comunidade cristã. Em particular a Carta aos Efésios põe o baptismo entre os fundamentos da comunhão que une os discípulos de Cristo: «Há um só corpo e um só Espírito, como existe uma só esperança no chamamento que recebestes. Há um único Senhor, uma única fé, um único baptismo. Há um só Deus e Pai de todos...» (4, 4-6).

A afirmação de um só baptismo no contexto das outras bases da unidade eclesial reveste uma importância particular. Na realidade, ele remete ao único Pai, que no baptismo oferece a todos a filiação divina. Está intimamente ligado a Cristo, único Senhor, que une os baptizados no seu Corpo Místico, e ao Espírito Santo, princípio de unidade na variedade dos dons. Sacramento da fé, o baptismo comunica uma vida que abre o acesso à eternidade, e portanto faz referência à esperança, que aguarda com certeza o cumprimento das promessas de Deus.

O único baptismo exprime, pois, a unidade do inteiro mistério da salvação.

2. Quando Paulo quer mostrar a unidade da Igreja, compara-a a um corpo, o Corpo de Cristo, edificado precisamente através do baptismo: «Foi num só Espírito que todos nós fomos baptizados, a fim de formarmos um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres; e todos temos bebido de um só Espírito» (1Co 12,13).

O Espírito Santo é o princípio da unidade do Corpo, uma vez que anima tanto Cristo cabeça como os seus membros. Ao receberem o Espírito, todos os baptizados, não obstante as diferenças de origem, nação, cultura, sexo e condição social, são unificados no Corpo de Cristo, de maneira que Paulo pode dizer: «Não há judeu, nem grego; não há servo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo» (Ga 3,28).

3. Tendo como fundamento o baptismo, a primeira Carta de Pedro exorta os cristãos a aproximarem-se de Cristo, a fim de contribuirem para a construção do edifício espiritual por Ele e sobre Ele fundado: «Aproximai-vos d'Ele (Cristo), pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e preciosa aos olhos de Deus. E vós mesmos, como pedras vivas, entrai na construção dum edifício espiritual, por meio dum só sacerdócio santo, cujo fim é oferecer sacrifícios espirituais que serão agradáveis a Deus, por Jesus Cristo» (2, 4-5). O baptismo unifica, portanto, todos os fiéis no único sacerdócio de Cristo, habilitando-os para participar nos actos de culto da Igreja e para transformar a própria existência em oferta espiritual agradável a Deus. Desse modo, eles crescem em santidade e influem sobre o desenvolvimento da inteira comunidade.

O baptismo é também fonte de dinamismo apostólico. A tarefa missionária dos baptizados, em conformidade com a própria vocação, é amplamente recordada pelo Concílio que, na Constituição Lumen gentium, ensina: «A todo o discípulo de Cristo incumbe o encargo de difundir a fé, segundo a própria medida» (n. 17). Na Encíclica Redemptoris missio ressaltei que, em virtude do baptismo, todos os leigos são missionários (cf. n. 71).

4. O baptismo é um ponto de partida fundamental também para a aproximação ecuménica.

Ao falar dos nossos irmãos separados, o Decreto sobre o ecumenismo declara: «Os que crêem em Cristo e foram devidamente baptizados, estão numa certa comunhão, embora não perfeita, com a Igreja católica» (Unitatis redintegratio UR 3). O baptismo conferido validamente opera, na realidade, uma efectiva incorporação a Cristo e torna todos os baptizados, seja qual for a confissão a que pertençam, verdadeiramente irmãos e irmãs no Senhor. Este é o ensinamento do Concílio a respeito disso: «O baptismo, pois, constitui o vínculo sacramental da unidade que liga todos os que foram regenerados por ele» (ibid., 22).

É uma comunhão inicial, que pede que seja desenvolvida na direcção da plena unidade, como o mesmo Concílio adverte: «O baptismo, porém, de per si é o início e o exórdio, pois tende à consecução da plenitude de vida em Cristo. Por isso, o baptismo ordena-se à completa profissão da fé, à íntegra incorporação na obra da salvação, tal como o próprio Cristo o quis, e finalmente à total inserção na comunhão eucarística» (ibid.).

5. Na perspectiva do Jubileu, este aspecto ecuménico do baptismo merece ser evidenciado de modo particular (cf. Tertio millennio adveniente TMA 4).

A dois mil anos desde a vinda de Cristo, os cristãos, infelizmente, apresentam-se ao mundo sem a unidade plena, que Ele desejou e pela qual orou. Entretanto, não devemos esquecer que quanto já nos une é muito grande. É necessário promover a todos os níveis o diálogo doutrinal, a recíproca abertura e colaboração e, sobretudo, o ecumenismo espiritual da oração e do empenho de santidade. Precisamente a graça do baptismo é o fundamento sobre o qual construir aquela plena unidade, à qual o Espírito nos impele sem nos dar trégua.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 22 de Abril de 1998



1. O caminho rumo ao Jubileu, enquanto evoca a primeira vinda histórica de Cristo, convida-nos também a olhar o futuro na expectativa da Sua segunda vinda, no final dos tempos. Esta perspectiva escatológica, que indica a tensão fundamental da existência cristã para as últimas realidades, é um contínuo apelo à esperança e, ao mesmo tempo, ao empenho na Igreja e no mundo.

Não devemos esquecer que o «éschaton», isto é, o evento final, entendido de maneira cristã, não é só uma meta posta no futuro mas uma realidade já iniciada com a vinda histórica de Cristo. A Sua paixão, morte e ressurreição constituem o acontecimento supremo da história da humanidade. Esta já entrou na sua última fase, dando, por assim dizer, um salto de qualidade. Abre-se para o tempo o horizonte duma nova relação com Deus, caracterizada pela grande oferta da salvação em Cristo.

Por isto Jesus pode dizer: «A hora vem, e é já, em que os mortos hão-de ouvir a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão» (Jn 5,25). A ressurreição dos mortos esperada para o fim dos tempos, recebe uma primeira e decisiva actuação já agora, na ressurreição espiritual, objectivo primário da obra de salvação. Ela consiste na nova vida comunicada por Cristo ressuscitado, como fruto da Sua obra redentora.

É um mistério de renascimento na água e no Espírito (cf. Jo Jn 3,5) que assinala profundamente o presente e o futuro da humanidade inteira, ainda que a sua eficácia se realize desde agora só naqueles que acolhem plenamente o dom de Deus e o irradiam no mundo.

2. Esta dúplice dimensão, ao mesmo tempo presente e futura, da vinda de Cristo emerge claramente das Suas palavras. No discurso escatológico, que precede de pouco o drama pascal, Jesus prediz: «Então verão vir o Filho do Homem sobre as nuvens, com grande poder e glória. Ele enviará os Seus anjos e reunirá os Seus eleitos, dos quatro ventos, da extremidade da Terra à extremidade do céu» (Mc 13,26-27).

Na linguagem apocalíptica as nuvens são um sinal teofónico: indicam que a segunda vinda do Filho do Homem se realizará não na debilidade da carne, mas no poder divino. Estas palavras do sermão fazem pensar no futuro último que concluirá a história. Contudo, na resposta que dá ao Sumo Sacerdote durante o processo, Jesus retoma a profecia escatológica enunciando-a nos termos dum evento iminente: «E Eu digo-vos: vereis um dia o Filho do Homem sentado à direita do Poder e vindo sobre as nuvens do céu» (Mt 26,64).

Confrontando estas palavras com as do precedente discurso, percebe-se o sentido dinâmico da escatologia cristã, como um processo histórico já iniciado e a caminho rumo à sua plenitude.

3. Sabemos, por outro lado, que as imagens apocalípticas do discurso escatológico, a propósito do fim de todas as coisas, devem ser interpretadas na sua intensidade simbólica. Elas exprimem a precariedade do mundo e o soberano poder de Cristo, em cujas mãos está posto o destino da humanidade. A história caminha rumo à sua meta, mas Cristo não indicou qualquer prazo cronológico. Ilusórias e desviantes são, portanto, as tentativas de previsão do fim do mundo. Cristo só nos assegurou que o fim não acontecerá antes que a Sua obra salvífica tenha alcançado uma dimensão universal através do anúncio do Evangelho: «Esta Boa Nova do Reino será proclamada em todo o mundo para se dar testemunho diante de todos os povos. E então virá o fim» (Mt 24,14).

Jesus diz estas palavras aos discípulos preocupados por conhecer a data do fim do mundo. Eles teriam sido tentados a pensar numa data próxima. Jesus faz com que conheçam que muitos eventos e cataclismos devem acontecer antes e serão apenas «o princípio das dores» (Mc 13,8). Portanto, como diz Paulo, toda a criação «geme e sofre nas dores do parto» aguardando com impaciência a revelação dos filhos de Deus (cf. Rm Rm 8,19-22).

4. A obra evangelizadora do mundo comporta a profunda transformação das pessoas humanas sob a influência da graça de Cristo. Paulo indicou a finalidade da história no desígnio do Pai de «reunir sob a chefia de Cristo todas as coisas que há no Céu e na Terra» (Ep 1,10). Cristo é o centro do universo, que atrai todos a Si para lhes comunicar a abundância da graça e a vida eterna.

A Jesus o Pai deu «o poder de julgar, porque é Filho do Homem» (Jn 5,27). Se o juízo prevê obviamente a possibilidade da condenação, ele contudo é confiado Àquele que é «Filho do Homem», isto é, a uma pessoa plena de compreensão e solidária com a condição humana. Cristo é um juiz divino com um coração humano, um juiz que deseja dar a vida. Só o enraizamento obstinado no mal pode impedir-Lhe fazer este dom, pelo qual Ele não hesitou enfrentar a morte.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 29 de Abril de 1998



1. Orientando o nosso olhar para Cristo, o Jubileu convida-nos a dirigir o olhar também para Maria. Não podemos separar da Mãe o Filho, porque «ser nascido de Maria» pertence à identidade pessoal de Jesus. Desde as primeiras fórmulas de fé, Jesus foi reconhecido como Filho de Deus e Filho de Maria. Recorda-o, por exemplo, Tertuliano quando afirma: «É preciso crer num Deus único, omnipotente, criador do mundo, e no Seu Filho Jesus Cristo, que nasceu da Virgem Maria» (De virg. vel., 1, 3).

Como Mãe, Maria foi a primeira pessoa humana que se alegrou com um nascimento, que assinalava uma nova era na história religiosa da humanidade. Através da mensagem do anjo, ela conhecia o destino extraordinário reservado ao Menino no plano da salvação. A alegria de Maria põe-se na raiz de todos os Jubileus futuros. No seu coração materno, então, preparou-se também o jubileu que nos aprestamos a celebrar. Por este motivo a Virgem Santa deve estar presente de modo, por assim dizer, «transversal» no desenvolvimento dos temas previstos ao longo de toda a fase preparatória (cf. Tertio millennio adveniente TMA 43). O nosso Jubileu deverá ser uma participação na sua alegria.

2. A inseparabilidade de Cristo e de Maria é da vontade suprema do Pai no cumprimento do desígnio da Encarnação. Como diz Paulo, «ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o Seu Filho, nascido de mulher» (Ga 4,4).

O Pai quis uma mãe para o Seu Filho encarnado, para que Ele nascesse de modo verdadeiramente humano. Quis, ao mesmo tempo, uma mãe virginal, como sinal da filiação divina do Menino.

Para realizar esta maternidade, o Pai pediu o consentimento a Maria. Com efeito, o anjo expôs-lhe o projecto divino e esperou uma resposta, que devia vir da sua livre vontade. Isto emerge claramente da narração da Anunciação, onde se sublinha que Maria apresentou uma pergunta, da qual transparece o propósito de conservar a virgindade. Quando o anjo lhe explica que o obstáculo será superado através da obra do Espírito Santo, Ela exprime o seu consentimento.

3. «Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1,38). Esta adesão de Maria ao projecto divino teve um efeito imenso sobre todo o futuro da humanidade. Podemos dizer que o «sim», pronunciado no momento da Anunciação, mudou a feição do mundo. Era um «sim» à vinda d'Aquele que devia libertar os homens da escravidão do pecado e proporcionar-lhes a vida divina da graça. Deste «sim» da jovem de Nazaré tornou-se possível para o universo um destino de felicidade.

Evento maravilhoso! O louvor que brota do coração de Isabel no episódio da Visitação, pode bem exprimir o júbilo da humanidade inteira: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre» (Lc 1,42).

4. A partir do instante do consentimento de Maria, realiza-se o mistério da Encarnação. O Filho de Deus entra no nosso mundo e começa a viver como homem, embora permaneça plenamente Deus. A partir daquele momento, Maria torna-se Mãe de Deus.

Este título é o mais excelso que se pode atribuir a uma criatura. É totalmente justificado em Maria, porque uma mãe é mãe da pessoa do filho em toda a inteireza da sua humanidade. Maria é «Mãe de Deus» enquanto é Mãe do «Filho que é Deus», ainda que esta maternidade seja definida no contexto do mistério da Encarnação.

Foi precisamente esta intuição que fez florescer no coração e nos lábios dos cristãos, desde o terceiro século, o título de Theotókos, Mãe de Deus. A oração mais antiga dirigida a Maria tem origem no Egipto e pede o seu socorro em circunstâncias difíceis, invocando-a «Mãe de Deus».

Quando, mais tarde, alguns contestaram a legitimidade deste título, o Concílio de Éfeso, em 431, aprovou-o solenemente e a sua verdade impôs-se na linguagem doutrinal e no uso da oração.

5. Com a maternidade divina, Maria abriu plenamente o seu coração a Cristo, e n'Ele à humanidade inteira. A dedicação total de Maria à obra do Filho manifesta-se sobretudo na participação no Seu sacrifício. Segundo o testemunho de João, a Mãe de Jesus «estava junto da cruz» (Jn 19,25). Uniu-se, então, a todos os sofrimentos que afligiam Jesus. Participou na oferta generosa do Seu sacrifício pela salvação da humanidade.

Esta associação ao sacrifício de Cristo produziu em Maria uma nova maternidade. Ela, que sofreu por todos os homens, tornou-se mãe de todos os homens. Jesus mesmo proclamou esta nova maternidade quando, do alto da cruz, lhe disse: «Mulher, eis aí o teu filho» (Jn 19,26). Maria era assim constituída mãe do discípulo amado e, na intenção de Jesus, mãe de cada discípulo, de cada cristão.

Esta maternidade universal de Maria, destinada a promover a vida segundo o Espírito, é um supremo dom que Cristo crucificado oferece à humanidade. Ao discípulo amado Jesus disse: «Eis aí a tua mãe». E desde aquela hora ele «acolheu-A em sua casa» (Jn 19,27), ou melhor, «entre os seus bens», entre os dons preciosos a ele deixados pelo Mestre crucificado.

As palavras: «Eis aí a tua mãe» são dirigidas a cada um de nós. Somos convidados a amar Maria como Cristo a amou, a recebê-la como Mãe da nossa vida, a deixar-nos guiar por Ela nas vias do Espírito Santo.



                                                                                Maio de 1998

JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 6 de Maio de 1998



1. A primeira bem-aventurança citada no Evangelho é a da fé, e refere-se a Maria: «Feliz daquela que acreditou» (Lc 1,45). Estas palavras, pronunciadas por Isabel, põem em relevo o contraste entre a incredulidade de Zacarias e a fé de Maria. Ao receber a mensagem do futuro nascimento do filho, Zacarias teve dificuldade em crer, julgando o facto irrealizável porque, tanto ele como a sua esposa, eram de idade avançada.

Maria na Anunciação é posta diante de uma mensagem ainda mais extraordinária, como é a proposta de se tornar a mãe do Messias. A essa perspectiva Ela reage não com a dúvida, mas limitando-se a perguntar como a virgindade, à qual se sente chamada, poderia conciliar-se com a vocação materna. À resposta do anjo, que indica a omnipotência divina a operar através do Espírito, Maria dá o seu consentimento humilde e generoso.

Naquele momento único da história da humanidade, a fé desempenha um papel decisivo. Justamente Santo Agostinho afirma: «Cristo é acreditado e concebido mediante a fé. Em primeiro lugar actua-se a vinda da fé ao coração da Virgem, e depois vem a fecundidade no seio da mãe» (Sermo 293, PL 38, 1327).

2. Se desejamos contemplar a profundidade da fé de Maria, serve-nos de grande ajuda a narração evangélica das bodas de Caná. Diante da falta de vinho, Maria poderia procurar qualquer solução humana ao problema que se apresentou, mas não hesita em dirigir-se imediatamente a Jesus: «Não têm vinho» (Jn 2,3). Ela sabe que Jesus não tem vinho à Sua disposição; de maneira verosímil pede então um milagre. E o pedido é tanto mais audaz, uma vez que até àquele momento Jesus ainda não operara nenhum milagre. Agindo deste modo, Ela obedece, sem dúvida, a uma inspiração interior, uma vez que, segundo o plano divino, a fé de Maria deve preceder a primeira manifestação do poder messiânico de Jesus, como precedeu a Sua vinda sobre a terra. Ela encarna já aquela atitude que será louvada por Jesus a respeito dos verdadeiros crentes de todos os tempos: «Bem-aventurados os que, sem terem visto, acreditarem!» (Jn 20,29).

3. A fé a que Maria é chamada, não é fácil. Já antes de Caná, ao meditar palavras e comportamentos do Filho, Ela teve de exercitar uma fé profunda. Emblemático é o episódio de Jesus ao desaparecer do Templo aos doze anos de idade, quando Ela e José, angustiados, tiveram de ouvir a Sua resposta: «Por que Me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de Meu Pai?» (Lc 2,49). Mas agora, em Caná, a resposta de Jesus ao pedido da Mãe parece ainda mais precisa e de modo algum encorajadora: «Que temos nós com isso, mulher? A Minha hora ainda não chegou» (Jn 2,4). Na intenção do IV Evangelho não se trata da hora da manifestação pública de Cristo, mas sim da antecipação do significado da Hora suprema de Jesus (cf. 7, 30; 12, 23; 13, 1; 17, 1), cujos frutos messiânicos da redenção e do Espírito são representados de modo eficaz pelo vinho, como símbolo de prosperidade e de alegria. O facto, porém, de esta Hora ainda não estar cronologicamente presente é um obstáculo que, vindo da vontade soberana do Pai, parece insuperável.

Entretanto, Maria não renuncia ao seu pedido, a ponto de empenhar os servos na realização do milagre esperado: «Fazei o que Ele vos disser» (Jn 2,5). Com a docilidade e a profundidade da sua fé, Ela lê as palavras de Cristo para além do seu sentido imediato. Intui o abismo insondável e os recursos infinitos da misericórdia divina, e não duvida da resposta de amor do Filho. O milagre responde à perseverança da sua fé.

Maria apresenta-se como modelo de uma fé em Jesus que resiste a todos os obstáculos.

4. Também a vida pública de Jesus reserva provas para a fé de Maria. Por um lado, causa-lhe alegria saber que a pregação e os milagres de Jesus suscitavam em muitos admiração e consenso. Por outro, vê com tristeza a oposição sempre mais enérgica da parte dos Fariseus, dos doutores da Lei, da hierarquia sacerdotal.

Pode-se imaginar o sofrimento de Maria diante desta incredulidade, que Ela constatava até nos seus parentes: aqueles que são chamados «os irmãos de Jesus», isto é, os ligados à Sua família, não acreditavam n'Ele e interpretavam o Seu comportamento como que inspirado por uma vontade ambiciosa (cf. Jo Jn 7,2-5).

Maria, embora sinta dolorosamente a oposição familiar, não rompe as relações com estes parentes, que encontramos com Ela na primeira comunidade à espera do Pentecostes (cf. Act Ac 1,14). Com a sua benevolência e caridade, Maria ajuda os outros a compartilharem a sua fé.

5. No drama do Calvário, a fé de Maria permanece intacta. Para a fé dos discípulos, este drama foi chocante. Só pela eficácia da oração de Cristo foi possível a Pedro e aos outros, embora provados, retomar o caminho da fé, a fim de se tornarem as testemunhas da ressurreição.

Ao dizer que Maria estava aos pés da cruz, o evangelista João (cf. 19, 25) faz-nos entender que Maria continuou repleta de coragem naquele momento dramático. Foi sem dúvida a fase mais difícil na sua «peregrinação de fé» (cf. Lumen gentium LG 58). Mas pôde estar de pé, porque a sua fé permaneceu sólida. Na prova, Maria continuou a acreditar que Jesus era o Filho de Deus e, com o Seu sacrifício, haveria de transformar o destino da humanidade.

A ressurreição foi a confirmação definitiva da fé de Maria. Mais do que em qualquer outro, a fé em Cristo ressuscitado assumiu no seu coração o mais autêntico e completo rosto da fé, que é o rosto da alegria.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 13 de Maio de 1998



1. Na preparação para o Grande Jubileu do Ano 2000, o corrente ano é dedicado de modo particular ao Espírito Santo. Procedendo no caminho iniciado para a Igreja inteira, depois de ter concluído a temática cristológica, hoje começamos uma reflexão sistemática sobre Aquele «que é Senhor e dá a vida». Em múltiplas ocasiões falei amplamente a respeito da terceira pessoa da Santíssima Trindade. Recordo, em particular, a Encíclica «Dominum et vivificantem» e a catequese sobre o Credo. A perspectiva do iminente Jubileu oferece-me a ocasião para voltar de novo à contemplação do Espírito Santo, a fim de perscrutar com espírito adorante a acção que Ele realiza no fluxo do tempo e da história.

2. Na realidade esta contemplação não seria fácil, se o próprio Espírito não viesse em ajuda da nossa debilidade (cf. Rm Rm 8,26). Como discernir, com efeito, a presença do Espírito de Deus na história? Só podemos dar uma resposta a esta pergunta recorrendo às Sagradas Escrituras que, inspiradas pelo Paráclito, nos revelam progressivamente a Sua acção e a Sua identidade. Elas manifestam-nos, de certo modo, a «linguagem» do Espírito, o Seu «estilo», a Sua «lógica». A realidade em que Ele actua, é possível lê-la também com olhos que penetram para além duma simples observação exterior, captando atrás das coisas e dos eventos os traços da Sua presença. A própria Escritura, desde o Antigo Testamento, ajuda-nos a compreender que nada de quanto é bom, verdadeiro e santo no mundo, se pode explicar independentemente do Espírito de Deus.

3. Uma primeira velada referência ao Espírito encontra-se desde as primeiras linhas da Bíblia, no hino a Deus criador com que se abre o livro do Génesis: «O Espírito de Deus movia-Se sobre a superfície das águas» (Gn 1,2). Para dizer «espírito» usa-se aqui a palavra hebraica ruach, que significa «sopro» e pode designar tanto o vento como o respiro. Como se sabe, este texto pertence à chamada «fonte sacerdotal» que remonta ao período do exílio babilónico (VI séc. a.C.), quando a fé de Israel tinha chegado explicitamente à concepção monoteísta de Deus. Ao tomar consciência do poder criador do único Deus, graças à luz da revelação, Israel chegou a intuir que Deus criou o universo com a força da Sua palavra. Unido a esta, emerge o papel do Espírito, cuja percepção é favorecida pela mesma analogia da linguagem que, por associação, vincula a palavra ao sopro dos lábios: «Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, pelo sopro (ruach) da Sua boca, todos os seus exércitos» (Ps 33,6). Este sopro vital e vivificante de Deus não está limitado ao instante inicial da criação, mas sustém em permanência e vivifica toda a criação, renovando-a continuamente: «Se lhes enviais o Vosso espírito, voltam à vida, e renovais a face da terra» (Ps 104,30).

4. A novidade mais característica da revelação bíblica é ter divisado na história o campo privilegiado da acção do Espírito de Deus. Em cerca de 100 passagens do Antigo Testamento o ruach JHWH indica a acção do Espírito do Senhor que guia o Seu povo, sobretudo nos grandes momentos do seu caminho. Assim, no período dos juízes, Deus fazia descer o seu Espírito sobre homens débeis e transformava-os em guias carismáticos, investidos de energia divina: é o que aconteceu com Jedeão, Jefte e em particular com Sansão (cf. Jz Jg 6,34 Jg 11,29 Jg 13,25 Jg 14,6 Jg 14,19).

Com o advento da monarquia davídica esta força divina, que até então se manifestara de modo imprevisível e intermitente, alcança uma certa estabilidade. Isto é bem constatado na consagração régia de David, a propósito do qual a Escritura diz: «A partir daquele dia o Espírito do Senhor apoderou-Se de David» (1S 16,13).

Durante e depois do exílio na Babilónia toda a história de Israel é relida como um longo diálogo estabelecido por Deus com o povo eleito, «pelo Seu Espírito, pelo ministério dos profetas do passado» (Za 7,12). O profeta Ezequiel torna explícito o ligame entre o espírito e a profecia, por exemplo quando diz: «Então desceu sobre mim o espírito de Deus e disse-me: “Diz: Assim fala Deus...”» (Ez 11,5).

Mas a perspectiva profética aponta sobretudo no futuro o tempo privilegiado em que se cumprirão as promessas no sinal do ruach divino. Isaías anuncia o nascimento de um descendente, sobre o qual «repousará o espírito... de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor» (Is 11,2-3). «Este texto — como escrevi na Encíclica Dominum et vivificantem — é importante para toda a pneumatologia do Antigo Testamento, porque constitui como que uma ponte entre o antigo conceito bíblico do espírito, entendido primeiro que tudo como “sopro carismático”, e o “Espírito” como pessoa e como dom, dom para a pessoa. O Messias da estirpe de David (“do tronco de Jessé”) é precisamente essa pessoa, sobre a qual “pousará” o Espírito do Senhor» (n. 15).

5. Já no Antigo Testamento emergem dois traços da misteriosa identidade do Espírito Santo, depois amplamente confirmados pela revelação do Novo Testamento.

O primeiro traço é a absoluta transcendência do Espírito, que por isso é chamado «santo» (Is 63,10 Is 63,11 Ps 51,13). Para todos os efeitos o Espírito de Deus é «divino». Não é uma realidade que o homem pode conquistar com as suas forças, mas um dom que vem do alto: só se pode invocá-lo e acolhê-lo. Infinitamente «outro» a respeito do homem, o Espírito é comunicado com total gratuidade a quantos são chamados a colaborar com Ele na história da salvação. E quando esta energia divina encontra um acolhimento humilde e disponível, o homem é arrancado do seu egoísmo e libertado dos seus temores, e no mundo florescem o amor e a verdade, a liberdade e a paz.

Outra característica do Espírito de Deus é o poder dinâmico que Ele revela nas Suas intervenções na história. Às vezes corre-se o perigo de projectar sobre a imagem bíblica do Espírito concepções ligadas a outras culturas como, por exemplo, a concepção do «espírito» como algo evanescente, estático e inerte. A concepção bíblica do ruach está, ao contrário, a indicar uma energia supremamente activa, poderosa, irresistível: o Espírito do Senhor — lemos em Isaías — «é torrente transbordante» (30, 28). Por isso, quando o Pai intervém com o seu Espírito, o caos transforma-se em cosmo, no mundo acende-se a vida, e a história põe-se novamente em caminho.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 20 de Maio de 1998



1. A revelação do Espírito Santo, como pessoa distinta do Pai e do Filho, velada no Antigo Testamento, torna-se clara e explícita no Novo.

É verdade que os escritos neotestamentários não nos oferecem um ensinamento sistemático sobre o Espírito Santo. Contudo, recolhendo os muitos dados presentes nos escritos de Lucas, Paulo e João, é possível captar a convergência destes três grandes filões da revelação neotestamentária concernente ao Espírito Santo.

2. Em relação aos outros dois sinópticos, o evangelista Lucas apresenta-nos uma pneumatologia muito mais desenvolvida.

No Evangelho ele tem em vista mostrar que Jesus é o único a possuir o Espírito Santo em plenitude. Certamente, o Espírito intervém também em Isabel, Zacarias, João Baptista e sobretudo em Maria, mas só Jesus, ao longo de toda a Sua existência terrena, detém plenamente o Espírito de Deus. Ele é concebido por obra do Espírito Santo (cf. Lc Lc 1,35). A respeito d’Ele João Baptista dirá: «Eu baptizo-vos em água, mas vai chegar Quem é mais poderoso do que eu (...): Baptizar-vos-á no Espírito Santo e no fogo» (Lc 3,16).

Antes de baptizar no Espírito Santo e no fogo, Jesus mesmo é baptizado no Jordão, quando desce «sobre Ele o Espírito Santo em forma corpórea, como uma pomba» (Lc 3,22). Lucas sublinha que Jesus não só vai ao deserto «levado pelo Espírito Santo», mas Se dirige para ali «cheio do Espírito Santo» (ibid., 4, 1), e ali vence o tentador. Ele empreende a Sua missão «impelido pelo Espírito Santo» (ibid., 4, 14). Na sinagoga de Nazaré, quando inicia oficialmente a Sua missão, Jesus aplica a Si mesmo a profecia do livro de Isaías (cf. 61, 1-2): «O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres... » (Lc 4,18). Toda a actividade evangelizadora de Jesus é posta assim sob a acção do Espírito.

Este mesmo Espírito sustentará a missão evangelizadora da Igreja, segundo a promessa do Ressuscitado aos Seus discípulos: «Eu vou mandar sobre vós O que Meu Pai prometeu. Entretanto, permanecei na cidade até serdes revestidos com a força lá do Alto» (Lc 24,49). Segundo o livro dos Actos, a promessa cumpre-se no dia do Pentecostes: «Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem» (2, 4). Realiza-se assim a profecia de Joel: «Nos últimos dias, diz o Senhor, derramarei o Meu Espírito sobre toda a criatura. Os vossos filhos e as vossas filhas hão-de profetizar» (ibid., 2, 17). Lucas vê nos apóstolos os representantes do povo de Deus dos tempos finais, e ressalta com razão que este Espírito de profecia envolve o inteiro povo de Deus.

3. São Paulo, por sua vez, evidencia a dimensão renovadora e escatológica da obra do Espírito, que é visto como a fonte da vida nova e eterna comunicada por Jesus à sua Igreja.

Na Primeira Carta aos Coríntios lemos que Cristo, novo Adão, em virtude da ressurreição, Se tornou «Espírito vivificante» (15, 45): isto é, foi transformado pela força vital do Espírito de Deus de maneira que Se tornou, por Sua vez, princípio de vida nova para os crentes. Cristo comunica esta vida precisamente através da efusão do Espírito Santo.

A existência dos crentes já não é a de escravos, sob a Lei, mas uma vida como filhos, pois receberam o Espírito do Filho nos seus corações e podem exclamar: Abbá, Pai! (cf. Gl Ga 4,5-7 Rm 8,14-16). É uma vida «em Cristo», isto é, de pertença exclusiva a Ele e de incorporação à Igreja: «Foi num só Espírito que todos nós fomos baptizados, a fim de formarmos um só corpo» (1Co 12,13). O Espírito Santo suscita a fé (cf. 1Co 12,3), derrama a caridade nos corações (cf. Rm Rm 5,5) e guia a oração dos cristãos (cf. Rm Rm 8,26).

Enquanto princípio de um novo ser, o Espírito Santo determina no crente também um novo dinamismo operativo: «Se vivemos pelo Espírito, caminhemos também segundo o Espírito» (Ga 5,25). Esta nova vida está contraposta à da «carne», cujos desejos desgostam a Deus e fecham a pessoa na prisão sufocante do eu que se dobra sobre em si mesmo (cf. Rm Rm 8,5-9). Abrindo-se, ao contrário, ao amor doado pelo Espírito Santo, o cristão pode saborear o fruto do Espírito: amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade... (cf. Gl Ga 5,16-24).

Segundo Paulo, contudo, aquilo que agora possuímos é só um «sinal» ou primícias do Espírito (cf. Rm Rm 8,23 cf. também 2Co 5,5). Na ressurreição final, o Espírito completará a Sua obra-prima, realizando para os crentes a plena «espiritualização» do seu corpo (cf. 1Co 15,43-44) e envolvendo de algum modo na salvação o universo inteiro (cf. Rm Rm 8,20-22).

4. Na perspectiva joanina o Espírito Santo é sobretudo o Espírito da verdade, o Paráclito.

Jesus anuncia o dom do Espírito no momento de concluir a Sua obra terrena: «Quando vier o Consolador, que vos hei-de enviar da parte do Pai, o Espírito da Verdade, que procede do Pai, Ele testificará de Mim. E vós também dareis testemunho, pois estivestes Comigo desde o princípio» (Jn 15,26 s.). E ao esclarecer ulteriormente o papel do Espírito, Jesus acrescenta: «Ele guiar-vos-á para a verdade total, porque não falará de Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e anunciar-vos-á o que há-de vir. Ele glorificar-Me-á, porque há-de receber do que é Meu, para vo-lo anunciar» (Jn 16,13-14). O Espírito, portanto, não trará um nova revelação, mas guiará os fiéis para uma interiorização e uma mais profunda penetração da verdade revelada por Jesus.

Em que sentido o Espírito da verdade é chamado Paráclito? Tendo presente a perspectiva joanina que vê o processo contra Jesus como um processo que continua nos discípulos perseguidos por causa do Seu nome, o Paráclito é Aquele que defende a causa de Jesus, convencendo o mundo «do pecado, da justiça e do juízo» (Jn 16,7 s.). O pecado fundamental que o Paráclito fará reconhecer é o de não se ter acreditado em Cristo. A justiça que Ele indica é aquela que o Pai prestou ao Filho crucificado, glorificando-O com a ressurreição e ascensão ao Céu. O juízo, neste contexto, consiste em fazer emergir a culpa de quantos, dominados por Satanás, príncipe deste mundo (cf. Jo Jn 16,11), rejeitaram Cristo (cf. Dominum et vivificantem DEV 27). O Espírito Santo é, pois, com a Sua assistência interior, o defensor e o patrocinador da causa de Cristo, Aquele que orienta as mentes e os corações dos discípulos para a plena adesão à «verdade» de Jesus.



AUDIÊNCIAS 1998 - AUDIÊNCIA