Discursos João Paulo II 1998

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


A UM GRUPO DA ESCOLA FRANCESA DE ROMA


GUIADOS PELO CARDEAL PAUL POUPARD


9 de Novembro de 1998



Senhor Cardeal
Queridos Amigos da Escola francesa

A tradição quer que, de maneira regular, tenhais este encontro com o Sucessor de Pedro, manifestando desta forma os vínculos da vossa instituição ultracentenária com a Santa Sé. Sinto-me feliz por vos receber, agradecendo ao Senhor André Vauchez, Director da Escola Francesa, a cordial saudação que me dirigiu em nome de todos.

A vossa visita é particularmente importante nestes dias em que organizais um colóquio sobre o final da Idade Média, intitulado «Súplicas e pedidos. O governo através da graça no Ocidente». Acabais também de publicar os três novos volumes do Sr. Charles Pietri, «Christiana Respublica». Tenho também a ocasião de recordar a memória do ex-Director da Escola francesa e, ao mesmo tempo, membro do Pontifício Conselho para a Cultura, do qual não podemos esquecer os célebres trabalhos sobre a Roma cristã, como acaba de ser evocado. Nas suas pesquisas, ele unia a acção cultural no seio da sociedade civil e o serviço à Igreja. Dos eminentes membros que trabalharam na Escola francesa, não posso esquecer o Mons. Louis Duchesne, que renovou profundamente os estudos sobre o cristianismo dos primeiros séculos.

A Escola francesa faz parte da paisagem cultural romana e as suas publicações são os seus primeiros embaixadores junto dos investigadores e do grande público, com o desejo de difundir a cultura francesa, de acordo com as circunstâncias que presidiram à sua criação e que continuam a orientar as suas actividades. Alegro-me com as relações frutuosas que a vossa instituição mantém com o Pontifício Conselho para a Cultura, o Arquivo Secreto Vaticano, a Biblioteca Apostólica e com outros organismos citados anteriormente pelo Sr. Vauchez. A organização conjunta de congressos é um sinal tangível duma colaboração frutuosa entre a Santa Sé e um importante centro de estudos da República francesa. «O processo de encontro e comparação com as culturas é uma experiência que a Igreja viveu desde os começos da pregação do Evangelho » (Encíclica Fides et ratio FR 70). As diferentes manifestações duma cultura são expressões essenciais da humanidade do homem e da sua busca do sentido da vida. Elas fazem parte da dimensão espiritual do homem e da sua existência, bem como do seu desejo de entrar em relação com Deus. Ao reler a história, continuamos a descobrir até que ponto a fé cristã inspirou a produção cultural ao longo destes dois milénios, sinal de que ela anima a partir do interior as vicissitudes das pessoas e dos povos. Por sua vez, as obras humanas contribuem para a evangelização, exprimindo sob forma simbólica o mistério cristão do qual todos podem discernir e compreender determinados aspectos, a fim de despertar a sua adesão à pessoa do Salvador e aumentar a sua fé. A seu modo, todas as formas culturais se interessam pelo cristianismo, contribuindo para a superação das dificuldades que separam o Evangelho das culturas, o que, como recordava Paulo VI, é um dos maiores dramas do nosso tempo (cf. Evangelii nuntiandi EN 20).

Conservar na memória o nosso rico património tal como está inscrito nos numerosos vestígios que possuímos, sobretudo em Roma, é um serviço à humanidade e uma das tarefas actuais, para que se estabeleçam novos vínculos entre a fé e as culturas: desta forma, ao encontrar na nossa história os valores vividos por gerações passadas, podemos vivê-los também nós e caminhar ao encontro do Senhor.

Ao desejar que as vossas investigações sejam frutuosas, confio-vos à intercessão de Nossa Senhora, e a todos concedo a Bênção apostólica.



MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II


AO CONGRESSO EUROPEU DOS DIRECTORES NACIONAIS


E RESPONSÁVEIS PELA PASTORAL SOCIAL E DO TRABALHO






Ao Venerado Irmão FERNANDO CHARRIER
Bispo de Alexandria
Presidente da Comissão Episcopal
para os problemas sociais e do trabalho

1. A Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Europa, em 1991, foi um momento de importância relevante no caminho da «nova evangelização», empreendido pela Igreja do Continente. Ela quis reafirmar as comuns raízes cristãs da Europa, indispensáveis no actual processo de integração europeia.

Com efeito, os Padres da nova Europa e qualificados expoentes do mundo da cultura maturaram a convicção de que essa integração não se pode limitar à construção da «Europa dos mercados », mas deve ter em vista, antes de tudo, uma Europa dos povos, na qual a história, as tradições, os valores, a legislação e as instituições de cada uma das Nações se tornem motivo de diálogo e de intercâmbio recíproco, em vista de uma eficaz cooperação para a realização de uma Europa política, na qual a tendência para a unidade não mortifique as riquezas e as diferenças de cada povo.

As situações de dificuldades económicas e políticas presentes em cada um dos Estados interpelam as Igrejas e a sua vocação a serem ponto de encontro e factor de unidade para o inteiro género humano (cf. Gaudium et spes GS 42). A elas é pedido um renovado empenhamento para que a verdade sobre o homem e a sociedade, o bem da liberdade, e especialmente da liberdade religiosa, a justiça social, a solidariedade, a subsidiariedade e a centralidade da pessoa humana se estabilizem na mentalidade, na legislação e nos comportamentos dos povos europeus.

2. No limiar do Terceiro Milénio, a situação do Continente apresenta-se, como eu recordava a 13 de Dezembro de 1991, no final da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos, diversificada e complexa de maneira a tornar difícil o caminho para a almejada integração. Isto diz respeito também aos crentes em Cristo, por causa das divisões ocorridas entre si ao longo do segundo milénio. O caminho ecuménico requer o empenho de todos, deve ser realizado a todos os níveis através de gestos e palavras e pode encontrar um terreno fecundo no âmbito da pastoral social e do trabalho. Com efeito, as situações e problemáticas sociais são comuns tanto aos católicos como aos crentes de outras confissões cristãs, todos chamados a trabalhar juntos para que o homem não seja considerado instrumento de produção, mas sujeito eficiente do trabalho e seu verdadeiro artífice e criador (cf. Laborem exercens LE 7). O trabalho humano pode constituir, portanto, um terreno privilegiado para superar «as dolorosas lacerações que contradizem abertamente a vontade de Cristo e são escândalo para o mundo» (Tertio millennio adveniente, TMA 34). Este empenho comum, desde há muito tempo posto em acto pelos trabalhadores, é hoje facilitado pela queda das ideologias, durante decénios motivo de contraposições e de instrumentalizações políticas.

Para além das pessoais inspirações ideais, os trabalhadores trabalham lado a lado nas diversas organizações para a defesa dos seus direitos. Como eu escrevia na Encíclica Laborem exercens, «se é verdade que o homem se sustenta com o pão granjeado pelo trabalho das suas mãos - e isto equivale a dizer, não apenas com aquele pão quotidiano mediante o qual se mantém vivo o seu corpo, mas também com o pão da ciência e do progresso, da civilização e da cultura - então é igualmente verdade que ele se alimenta deste pão com o suor do rosto; isto é, não só com os esforços e canseiras pessoais, mas também no meio de muitas tensões, conflitos e crises que, em relação com a realidade do trabalho, perturbam a vida de cada uma das sociedades e mesmo da inteira humanidade» (n. 1). Esta solidariedade, fundada na comum cultura e em análogas situações de vida e idênticos problemas, pode constituir um terreno válido de encontro para o diálogo religioso, a fim de se chegar àquela unidade pela qual Cristo Senhor orou na Última Ceia: «... para que todos sejam um só; como Tu, ó Pai, estás em Mim e Eu em Ti» (Jn 17,21).

3. A exigência de confronto deriva da urgência da evangelização num sector, o social, que hoje absorve grande parte das energias e do tempo, da classe dirigente e das pessoas em geral. O anúncio do Evangelho neste âmbito, de forma actualizada e mais incisiva, pode favorecer a nova época de civilização que a perspectiva da unidade europeia está a abrir para o Continente. Os europeus estão a descobrir sempre mais a tarefa de «exportar» as riquezas de cultura e de civilização que provêm das suas raízes cristãs. Para realizar essa missão histórica, os cristãos da Europa não podem deixar de interpelar-se sobre a própria fidelidade ao Redentor, à Sua palavra e à Sua vida; sobre o acolhimento atento e disponível dos ensinamentos do Magistério; sobre a efectiva radicação de algumas das suas actuais formas de vida na fé cristã, fundamento da civilização europeia.

Visto que «uma fé que não se torna cultura é uma fé não plenamente acolhida, não inteiramente pensada, não vivida com fidelidade» (Insegnamenti de João Paulo II, V, 1, pág. 131), finalidade do encontro dos responsáveis da pastoral social e do trabalho das Igrejas da Europa é reafirmar a prioridade da evangelização da dimensão social da vida, em vista de uma nova cultura europeia, sustentada pela milenária tradição cristã. O renovado anúncio do Evangelho, que quer ajudar os homens da Europa a construírem um Continente aberto e solidário, passa necessariamente através de alguns momentos que constituem outros tantos objectivos comuns do projecto pastoral.

4. A Europa tem necessidade de esperança, mas esta só pode ser obtida por quem oferece ao homem perspectivas de alto perfil espiritual e moral, como são as que brotam da atenção aos sinais dos tempos e da leitura sapiencial da história, à luz da palavra de Deus, acolhida e meditada em sintonia com a Igreja.

Diante dos novos problemas da mundialização da cultura, da política, da economia e das finanças, urgem regras certas, suscitadas por aquela visão da vida que está presente no pensamento social cristão, no qual é decisivo o empenho contemporâneo pela globalização dos valores da solidariedade, da equidade, da justiça e da liberdade.

Nesta perspectiva se movem o Concílio Vaticano II e o recente Magistério social que, embora reconheçam os valores da modernidade, os enraízam no acontecimento de Cristo Senhor para os defender de possíveis desvios. A nova evangelização, aliás, não se limita a opor-se ao secularismo, mas propõe-se instaurar modos de viver a fé capazes de regenerar o tecido cívico das comunidades e da vida democrática.

5. Depois da primeira Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Europa, as Igrejas descobriram de novo a utilidade de se encontrar para uma comunicação de experiências e de dificuldades e para programar linhas comuns no esforço de evangelização do mundo do trabalho.

A perspectiva da integração política requer das Igrejas um renovado empenho para consolidar a Europa do próximo milénio, sobre bases duradouras e fecundas do cristianismo. No contexto actual, o empenho da pastoral social e do trabalho deve fazer redescobrir e viver a verdade evangélica nos areópagos da economia, da política e do trabalho. Com efeito, antes do território devem ser considerados os âmbitos de vida do homem e as culturas. É sobretudo deste contexto que chega à Igreja o apelo dirigido, em sonho, pelo macedónio ao apóstolo Paulo: «Passa... e vem ajudarnos » (Ac 16,9). Faço votos por que o Grande Jubileu do Ano 2000 encontre a Igreja mais generosa e disponível a acolher o mandato do Senhor: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a criatura» (Mc 16,15), para levar a toda a parte, com renovado ardor, o anúncio da salvação.

Com estes votos, enquanto confio o vosso encontro à materna protecção da Virgem de Nazaré e de São José, concedo- Lhe, venerado Irmão, uma especial Bênção Apostólica, extensiva aos Bispos, a todos os participantes, a quantos fazem parte do diversificado mundo do trabalho e a todos os que estão à espera de um trabalho.

Vaticano, 10 de Novembro de 1998.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


DURANTE UM ACTO ACADÉMICO


NA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE URBANIANA


11 de Novembro de 1998





Senhores Cardeais
Venerados Irmãos no Episcopado e no Sacerdócio
Ilustres Reitores das Pontifícias Universidades e dos Ateneus de Roma
Caríssimos Alunos

1. É para mim motivo de grande júbilo presidir a este solene Acto académico, no termo do qual benzerei a renovada Sala Magna desta Universidade Pontifícia. Com efeito, aqui são preparados espiritualmente e formados na teologia aqueles que irão às várias partes do mundo para ali anunciarem, como novos apóstolos, o Evangelho de Jesus Cristo.

Saúdo cordialmente antes de mais o Senhor Cardeal Jozef Tomko, Prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos e Grão-Chanceler da Pontifícia Universidade Urbaniana, e agradeço-lhe as amáveis palavras que, no início deste nosso encontro, quis dirigir-me em nome de todos os presentes. Depois, exprimo o meu sentido agradecimento ao Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, pelo relatório que acabou de apresentar.

Saúdo os Reitores e os Professores das Pontifícias Universidades e dos Ateneus de Roma. Depois, saúdo com afecto todos vós, prezados Docentes, Estudantes e Colaboradores da Universidade Urbaniana, bem como todos aqueles que quiseram participar neste significativo momento de reflexão teológica e de comunhão eclesial.

2. O Cardeal Ratzinger introduziu-nos com perícia magistral na leitura de um aspecto específico da Encíclica Fides et ratio. Como que retomando as suas considerações, gostaria agora de chamar a vossa atenção para aquilo que constitui, por assim dizer, o núcleo da Encíclica, ou seja, a relação entre fé e razão, que é importante focalizar sobretudo num período como o nosso, caracterizado por transformações temporais da sociedade e da cultura.

A passagem progressiva para formas de pensamento que se concentram à volta da denominação de «pós-modernidade » exige que a Igreja preste a devida atenção a este processo, fazendo ouvir a própria voz a fim de que ninguém seja privado daquela relação peculiar que nasce do Evangelho (cf. Fides et ratio FR 91). Além disso, tal solicitude é justificada, se se pensa no delicado papel que a filosofia desempenha na formação da consciência, na animação das culturas e, por conseguinte, na inspiração de leis que regulam a vida social e civil. Nesta tarefa, mesmo na autonomia do seu Estatuto epistemológico, ela só pode haurir vantagem da companhia da fé, que lhe indica sendas a percorrer para alcançar píncaros ainda mais elevados.

3. A ninguém passa despercebida a importância que a filosofia adquiriu progressivamente ao longo dos séculos. Alguns sistemas subsistem ainda hoje, em virtude da espessura especulativa que lhes consentiu promover um progresso certo na história da humanidade. Por outro lado, o papel que a filosofia desempenha não pode ser relegado a um círculo limitado de pessoas. Como escrevi: «Todo o homem é, de certa forma, um filósofo e possui as suas próprias concepções filosóficas, pelas quais orienta a sua vida. De diversos modos, consegue formar uma visão global e uma resposta sobre o sentido da própria existência: e à luz disso interpreta a própria vida pessoal e regula o seu comportamento » (Fides et ratio FR 30).

O acto de pensar qualifica o homem no seio da criação. É pensando que ele pode corresponder da melhor forma à tarefa que lhe foi confiada pelo Criador, de cultivar e guardar o jardim do Éden, onde se encontra «a árvore da ciência do bem e do mal» (cf. Gn Gn 2,15 Gn Gn 2,17 cf. Fides et ratio FR 22). Por conseguinte, com o pensamento cada um realiza uma experiência, por assim dizer, de «autotranscendência»: efectivamente, a pessoa supera-se a si mesma e aos limites que a confinam, para se aproximar do infinito.

4. Todavia, quanto mais o homem se abre para o infinito, tanto mais descobre o limite que traz em si. Trata-se de uma experiência dramática porque, enquanto se imerge em novos espaços, ao mesmo tempo descobre que não consegue ir além. A isto acrescenta-se a experiência do pecado: a existência humana é assinalada por este, de tal forma que inclusive a razão sente o seu peso.

Como que comentando o texto do Génesis, uma expressão da Carta a Diogneto, escrita nos primórdios da literatura cristã, permite compreender mais profundamente esta condição. O autor desconhecido escreve: «Neste lugar foi plantada a árvore da ciência e a árvore da vida; quem mata não é a árvore da ciência, mas a desobediência» (XII, 1). Eis, portanto, o verdadeiro motivo da depauperação do pensamento e da sua incapacidade de se elevar acima de si mesmo. É a desobediência, sinal da vontade de independência, que debilita a acção do homem, pondo em perigo a sua ascensão a Deus, mesmo no âmbito da reflexão filosófica.

Quando a ciência se refugia orgulhosamente em si própria, corre o risco de nem sempre expressar perspectivas de vida; se, pelo contrário, for acompanhada da fé, então será ajudada a ter em vista o bem do homem. O Apóstolo Paulo admoesta: «O conhecimento envaidece; o amor é que constrói» (1Co 8,1). A fé, que se fortalece com a caridade e que nesta se exprime, sugere à ciência um critério de verdade que visa a essência do homem e as suas verdadeiras necessidades.

5. Num contexto académico como o hodierno, julgo que seja importante salientar um ulterior aspecto que mencionei na Fides et ratio.Na Encíclica, evidenciei não só a necessidade, mas a urgência de uma retomada do diálogo entre filosofia e teologia que, quando foi bem realizado, manifestou indubitáveis vantagens para ambas as partes. A exorta ção que dirigi, a fim de que se cuide, «com particular atenção, da preparação filosófica daquele que deverá anunciar o Evangelho ao homem de hoje» (Fides et ratio FR 105), é o eco do mesmo convite feito a seu tempo pelos Padres conciliares, com vigorosa convicção (cf. Optatam totius OT 15). De facto, enquanto o estudo da filosofia abre a mente dos jovens estudantes para que compreendam as exigências do homem contemporâneo e o seu modo de pensar e de enfrentar os problemas (cf. Gaudium et spes GS 57), o aprofundamento da teologia permitirá dar a tais exigências a resposta de Cristo, «Caminho, Verdade e Vida» (Jn 14,6), orientando o olhar para o pleno sentido da existência.

Num momento em que parece emergir o dado da fragmentariedade do saber, é importante que a teologia seja a primeira a encontrar formas que consintam a identificação da unidade fundamental que une entre si os vários caminhos de investigação, evidenciando a sua derradeira meta na verdade revelada por Deus em Jesus Cristo. Nesta perspectiva, uma filosofia aberta ao mist ério e à sua revelação poderá ajudar a própria teologia a fazer compreender que a inteligência dos conteúdos de fé favorece a dignidade do homem e a sua razão.

6. Resgatando quanto foi património do pensamento cristão, escrevi que a rela ção entre a teologia e a filosofia deveria realizar-se «por uma reciprocidade circular» (Fides et ratio FR 73), como também o Cardeal Ratzinger acabou de recordar. Desta forma, tanto a teologia como a filosofia se hão-de ajudar reciprocamente para não caírem na tentação de estagnar nos obstáculos de um sistema a novidade perene encerrada no mistério da revelação trazida por Jesus Cristo. Esta conservará sempre a sua índole de novidade radical, que jamais nenhum pensamento poderá explicar de modo pleno, nem exaurir.

A verdade pode ser acolhida sempre e somente como um dom completamente gratuito, que é oferecido por Deus e deve ser recebido na liberdade. A riqueza desta verdade insere-se no tecido humano e deseja expressar-se na multiplicidade das formas que constituem a linguagem da humanidade. Os fragmentos de verdade que cada um traz consigo devem orientar-se para a recomposição daquela verdade única e definitiva que em Cristo encontra a sua forma perfeita. N'Ele a verdade sobre o homem é dada no Espírito Santo sem medida (cf. Jo Jn 3,34), de maneira a suscitar um pensamento que é devedor não já somente à razão, mas também ao coração. Deste pensamento profundo e fecundo é testemunho aquela «ciência dos santos», que há um ano me impeliu a proclamar Santa Teresa de Lisieux «doutora da Igreja», na esteira de inumeráveis santos, homens e mulheres, que assinalaram de modo significativo a história do pensamento cristão tanto teológico como filosófico. Chegou a hora de a experiência e o pensamento dos santos serem mais atenta e sistematicamente valorizados para o aprofundamento das verdades cristãs.

7. Em conformidade com as exigências das respectivas disciplinas, os teólogos e os filósofos são chamados a olhar para o único Deus que Se revela na criação e na história da salvação, como o manancial perene do seu trabalho. Como a história no-lo demonstra, a verdade que vem do «alto» não prejudica a autonomia do saber racional, mas impele- o rumo a ulteriores descobertas que criam um autêntico progresso para a humanidade, favorecendo a elaboração de um pensamento capaz de chegar ao íntimo do homem, fazendo-o amadurecer frutos de vida.

Quero confiar estas perspectivas e bons votos à intercessão d'Aquela que é invocada como «Sede da Sabedoria» e, enquanto invoco a sua constante protecção sobre vós e sobre o «centro de pensamento » que esta vossa Universidade é chamada a ser, concedo a todos a minha afectuosa Bênção Apostólica. Obrigado!



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO NOVO EMBAIXADOR


DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL


SENHOR MARCO CÉSAR MEIRA NASLAUSKY


JUNTO DA SANTA SÉ POR OCASIÃO


DA APRESENTAÇÃO DAS CARTAS CREDENCIAIS


12 de Novembro de 1989



Senhor Embaixador

1. É para mim grato acolher o distinto Representante do Brasil neste ato de apresentação das Cartas Credenciais como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário junto à Santa Sé. É aqui recebido hoje, como sempre o será, com a atenção e interesse que merecem a pessoa de Vossa Excelência e o seu nobre País; este, aliás, tem vindo a demonstrar recíproca consideração, até na escolha dos mandatos para esta missão, ao refletir o sincero afeto do povo brasileiro, em primeiro lugar do Presidente da República Federativa do Brasil, pelo Sucessor de Pedro.

Por isso, agradeço as amáveis palavras e a saudação que o mais Alto Mandatário da Nação desejou fazer-me chegar, através de Vossa Excelência. Peço-lhe encarecidamente a fineza de retribuir a saudação, de minha parte, com votos de paz e de bem.

2. Com a recente reeleição do Senhor Presidente da República, o Governo brasileiro prepara-se para dar continuidade à obra de saneamento social devido, como Vossa Excelência afirmava, «às distorções e injustiças acumuladas» nos anos de instabilidade política e econômica. Tenho acompanhado principalmente, e com interesse, a aplicação daqueles mecanismos de ação, destinados, entre outros, a enfrentar uma mais justa distribuição da riqueza, o direito de instrução escolar e de educação a todos os níveis, o espinhoso problema da dívida pública e o drama do desemprego em muitos setores da economia nacional. Anoto com satisfação os frutos alcançados pelo empenho do Governo brasileiro em dar prioridade à área social, na defesa dos direitos humanos especialmente da infância, e a efetiva aplicação da reforma agrária. São estes sérios desafios para a paz e o progresso harmônico da sociedade mas que, como compreenderá, dizem respeito a uma mais ampla exigência social, que vê no bem-estar futuro da família brasileira o referencial intransferível de toda ação governamental.

Assim sendo, permita-me acrescentar, Senhor Embaixador, que a comprovação do desenvolvimento do Brasil, registrado nestes últimos anos, será duradoura na medida em que houver, ao mesmo tempo, um crescimento dos valores morais que fazem da solidariedade, especialmente entre os menos favorecidos, o eixo das mais importantes decisões. A crise global que o mundo atravessa não é só de carácter financeiro, mas sim crise de valores, de ideais, do fundamento moral que norteia, de modo especial, a família. Foi por isso que no ano passado, em minha Viagem Pastoral ao Rio de Janeiro, para o II Encontro Mundial com as Famílias, quis sublinhar o fato que «através da família, toda a existência humana é orientada para o futuro. Nela, o homem vem ao mundo, cresce e amadurece. Nela, ele se torna um cidadão sempre mais maduro do seu país, e um membro da Igreja sempre mais consciente» (Homilia, 5 de outubro de 1997).

3. O momento de esperança que vive o País e os anseios de sua gente, por ver renovada a sociedade em seu conjunto, constituem fortes estímulos para uma mais ampla cooperação e sentimentos de partilha pelo bem comum, que estão na base da tradição cristã do povo da Terra da Santa Cruz.

A proximidade da celebração dos dois mil anos do nascimento de Cristo, coincidindo com os quinhentos anos de evangelização do Brasil, servirá, não resta dúvida, para recolher as experiências passadas e abrir-se aos desafios futuros, tendo em vista o papel que a Providência chamará vossa grande Nação a desempenhar no panorama internacional.

Sabemos, porém, que só poderá alcançar-se uma ordem temporal mais justa, se o progresso material vier acompanhado de um melhoramento dos espíritos, isto é, dos valores morais a nível nacional e internacional, como recordei na Encíclica Sollicitudo rei socialis; com efeito, a interdependência que hoje caracteriza e condiciona a vida dos indivíduos e dos povos deve ser um pressuposto moral que leve à «determinação firme e perseverante pelo bem comum» (n. 38). A defesa dos mais abandonados pela sociedade, a transparência nas decisões políticas conforme critérios de justiça, eqüidade e solidariedade, uma constante integração das raças e das culturas são, entre outros, postulados improrrogáveis de toda sociedade, mormente a brasileira, que há muito participa no cenário das decisões internacionais, como promotora de paz e de concórdia entre as nações.

Faço votos, Senhor Embaixador, que na consolidação destas exigências, o Brasil siga apoiando-se nos princípios cristãos do seu povo, por um renovado empenho a favor do bem comum, em contraste com o individualismo reinante em tantas regiões do globo, que está a sufocar as mais nobres aspirações de bem. Neste sentido, desejo reiterar aqui que a Igreja manterá sempre a rota traçada pelo Redentor dos homens, valendo- se dos princípios evangélicos da caridade e da justiça, para que, no âmbito da missão que lhe é própria e com respeito devido do pluralismo, seja promotora de todas aquelas iniciativas que sirvam à causa do homem como cidadão e filho de Deus. O exemplo de Frei Galvão recentemente beatificado, por todos conhecido como «o homem da caridade e da paz», e renascido em Cristo no mesmo ano em que o vosso País se tornou independente, sinaliza a todos os homens de boa vontade o caminho de uma Nação cada vez mais justa e mais fraterna.

A Santa Sede, por sua parte, não deixar á de favorecer também o melhor entendimento entre os povos, de modo especial os países latino-americanos - unidos por fortes laços históricos, culturais e religiosos - potenciando aqueles valores morais e espirituais que reforcem a solidariedade efetiva e eliminem as barreiras que tanto dificultam a compreensão e o diálogo, a nível de comunidade internacional.

4. Senhor Embaixador: na conclusão deste nosso encontro, peço-lhe a gentileza de fazer-se portador dos meus sinceros votos de felicidades ao Senhor Presidente da República, no momento em que se prepara para gerir, por mais um mandato, os altos destinos do Brasil; desejo, outrossim, manifestar-lhe minha gratidão pelas palavras de apreço que o Senhor Fernando Henrique Cardoso, em união com todos os brasileiros, quis enviar-me por ocasião da Beatificação do Frei Antônio de Sant'Anna Galvão. À Vossa Excelência exprimo a estima e o apoio de toda esta Sé Apostólica, para a nova e importante missão que hoje está a iniciar; peço a Deus que esta seja coroada de abundantes frutos e alegrias.

Ao encarecer-lhe fazer-se intérprete dos meus sentimentos e esperanças para quantos, em seu Governo, conduzem os destinos do povo brasileiro, aproveito a circunstância para implorar, por intercessão de Nossa Senhora Aparecida, para sua pessoa, para seu mandato e para seus familiares, assim como para todos os amados filhos da nobre Nação brasileira, copiosas bênçãos de Deus Todo- Poderoso.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES DA XXIII PLENÁRIA


DO PONTIFÍCIO CONSELHO «COR UNUM»


12 de Novembro de 1998





Venerados e caros Irmãos e Irmãs
do Pontifício Conselho «Cor Unum»!

1. Com grande alegria acolho-vos, por ocasião da Assembleia Plenária do vosso Dicastério, que, ao aproximar-se o Ano 2000, é dedicada ao Grande Jubileu. Agradeço ao vosso Presidente, D. Paul Josef Cordes, o cordial discurso que me dirigiu em nome de todos. Exprimo, ao mesmo tempo, o meu apreço aos Membros, aos Oficiais e aos Consultores do Dicastério pela dedicação com que realizam o seu trabalho e, em particular, pelo empenho posto em preparar do melhor modo possível o evento jubilar.

Na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente propus a todos os fiéis viverem este último ano de imediata preparação para o evento jubilar, como «caminho para o Pai» (n. TMA 50) e como aprofundamento da virtude da caridade. É precisamente daqui que é traçado o tema do vosso encontro: «Rumo ao Grande Jubileu - ano 1999: o Pai do amor». Espero que as vossas reflexões a este respeito possam contribuir para predispor iniciativas úteis, em vista do histórico acontecimento.

2. Desde sempre o coração do homem interroga-se sobre grandes questões como, por exemplo, o mistério da justiça de Deus diante do problema do mal e do sofrimento, porque o ser humano traz em si o anélito a viver e a realizar-se plenamente no amor. Para quem olha para o próximo com amor, a miséria presente no mundo é motivo de profunda inquietação e, às vezes, o sofrimento injusto de muitos pode insinuar também a dúvida sobre a bondade e providência de Deus. Diante dessas situações não podemos permanecer indiferentes, antes, o Grande Jubileu deve tornar-se ocasião propícia para renovar a adesão de fé a Deus, que na Sua paternidade ama o homem com amor inigualável e infinito, e para intensificar a nossa generosidade para com aquele que se encontra em dificuldade.

O Pontifício Conselho «Cor Unum» é chamado a manifestar a atenção da Igreja universal a favor dos pobres e, em particular, a solicitude do Santo Padre pelos seus sofrimentos e misérias. O vosso Dicastério faz-se, assim, intérprete da missão que a Igreja desde sempre realiza a favor dos mais necessitados, pondo em prática tudo o que Cristo testemunhou com a Sua vida e deixou como testamento aos Seus discípulos. A parábola do Bom Samaritano é emblemática quanto a isto: um estrangeiro inclina- se com amor para a pessoa vítima dum roubo e ferida, e põe à disposição tempo e dinheiro para a curar. Ele é imagem de Jesus, que deu a Sua vida para salvar o homem: o homem sofredor, sozinho, vítima da violência e do pecado.

Noutra página bem conhecida do Evangelho, aquela sobre o juízo universal, o Senhor identifica-Se com aquele que tem fome, com quem tem sede, com quem está doente e no cárcere (cf. Mt Mt 25,40 Mt Mt 25,45). Em Cristo, portanto, nós contemplamos o amor de Deus que Se encarna e atravessa a inteira realidade humana, para a assumir, sem compromisso algum com o pecado, também nos seus aspectos mais dolorosos e problemáticos. Ele «passou fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo Diabo» (Ac 10,38). Na pessoa do Filho de Deus feito homem torna-se manifesto que Deus é amor, não só com palavras, mas «por acções factos e em verdade» (1Jn 3,18). Assim, a pregação de Cristo é sempre acompanhada pelos sinais, que dão testemunho de quanto Ele revela a respeito do Pai. A Sua atenção aos doentes, aos marginalizados, aos que sofrem, revela que para Deus o serviço ao homem é mais importante que a observância material da lei. O amor de Deus garante que o homem não é condenado ao sofrimento e à morte, mas pode ser libertado e remido de qualquer escravidão.

Com efeito, existe um mal mais profundo, contra o qual Cristo estabelece uma verdadeira e própria luta. É a guerra contra o pecado, contra o espírito do mal, que constringe o homem à escravidão. Os milagres de Jesus são sinais da cura integral da pessoa humana que parte sempre do coração, como Ele mesmo explicou, quando curou o paralítico: «Pois bem, para que saibais que o Filho do Homem tem, na terra, poder para perdoar pecados: Levanta-te - disse Ele ao paralítico - toma o teu catre e vai para tua casa» (Mt 9,6). Na Sua pregação e nas Suas acções reconhecemos assim a solicitude pelas necessidades tanto do espírito, que pede amor, como do corpo, que pede para ser aliviado do sofrimento.

3. Caríssimos, vós representais os numerosos organismos católicos que sustentam no mundo inteiro a obra caritativa da Igreja. Desejo exprimir-vos a minha particular gratidão pela multíplice actividade que realizais em nome da Comunidade eclesial, dando de muitos modos testemunho do amor de Cristo pelos mais pobres. A vossa obra constitui um sinal de esperança para muitas pessoas e insere-se no sulco da nova evangelização, que a Igreja está a pôr em prática nesta passagem de milénio. Uma evangelização que pede que às palavras se unam as obras, ao anúncio o testemunho, difundindo em toda a parte o Evangelho da caridade. Presentes no mundo da miséria e do sofrimento, os cristãos querem desse modo oferecer ao homem de hoje sinais eloquentes da paternidade de Deus, conscientes de que o Pai celeste inspira aos nossos corações a caridade verdadeira.


Discursos João Paulo II 1998