
Homilias JOÃO PAULO II 134
Gruta de Lourdes nos Jardins Vaticanos
Segunda-feira, 2 de Julho de 1979
Caríssimos
1. O nosso encontro matutino neste lugar tão sugestivo que nos leva, pela mente e pelo coração, até à gruta de Lurdes, lugar predilecto e bendito, onde Maria Santíssima apareceu à pequena Bernadette, tem um significado bem preciso: é um encontro familiar junto do altar do Senhor e sob os olhos da Virgem Maria, com o Secretário de Estado, o neo-Cardeal Agostino Casaroli, meu primeiro colaborador, com o Bispo e uma representação dos Sacerdotes da sua Diocese natal, Piacenza, e com os seus parentes e amigos.
135 Este é para mim um momento de particular alegria, o qual me oferece ocasião para manifestar os meus sentimentos de afecto e vivo apreço por aquele que, após longos anos de generosa dedicação, passados num serviço total e directo à Santa Sé e ao Papa, é agora investido da importante e grave responsabilidade de Secretário de Estado.
Sinto o dever de agradecer vivamente ao Cardeal Casaroli a solicitude e sabedoria com que se prodigaliza para o bem da Igreja, e o ter aceite este Cargo tão alto e tão importante; e convido todos a acompanhá-lo com uma constante e fervorosa mação, a fim de que o Senhor lhe seja sempre luz, auxílio e conforto.
Congratulo-me também com toda a diocese de Piacenza, que, pela séria e afectuosa formação ministrada nos seus seminários, soube dar tantos Sacerdotes e eminentes Personalidades ao serviço da Igreja. Posso apenas do coração desejar sempre maior número de vocações sacerdotais na vossa diocese, para as necessidades locais e da Igreja universal.
Dirijo uma saudação particularmente cordial aos Familiares do Cardeal Casaroli, assegurando-lhes que participo intensamente na sua sincera alegria destes dias, tão significativos e importantes.
2. Tomando, agora, o tema da Palavra de Deus, que foi lida na liturgia de hoje, tentemos descobrir nela algumas boas directrizes para a nossa vida.
Aparece, sobretudo, diante dos nossos olhos, a cena plasticamente descrita pelo evangelista João: estamos no monte Calvário, há uma cruz, e, pregado nela, Jesus; e, ali ao lado, está a Mãe de Jesus, rodeada por algumas mulheres; está ainda o discípulo predilecto, precisamente João. O Moribundo fala apesar da respiração difícil da agonia: "Mulher, eis aí o teu filho!". E, depois, voltado para o discípulo: "Eis aí a tua mãe!". A intenção é evidente: Jesus quer entregar a mãe aos cuidados do discípulo amado.
Somente isto? Os antigos Padres da 'Igreja entreviram, por detrás do episódio, aparentemente tão simples, um significado teológico mais profundo. Já Orígenes identifica o apóstolo João com todo o cristão, e, depois dele, tornou-se cada vez mais comum a referência a este texto para justificar a maternidade universal de Maria.
E uma convicção que tem concreto fundamento no dado da revelação: como não pensar, de facto, ao ler esta passagem, naquelas palavras misteriosas de Jesus durante as bodas de Caná (Cfr. Jn 2,4), quando, ao pedido de Maria, Ele responde chamando-lhe "mulher" — como agora e reenviando o início da sua colaboração com Ela, em favor dos homens, para o momento da Paixão, a sua "hora" precisamente, como é costume indicá-la (Cfr. Jn 7,30 Jn 8,20 Jn 12,27 Jn 13,1 Mc 14,35 Mc 14,41 Mt 26,45 Lc 22,53).
Maria é plenamente conhecedora da missão que lhe foi destinada: encontramo-la nos começos da vida da Igreja, juntamente com os discípulos que se estão preparando para o iminente acontecimento do Pentecostes; como nos recorda a primeira leitura da Missa. Em tal narrativa de Lucas, o seu nome sobressai dos das outras mulheres: a comunidade primitiva, reunida "no plano superior", une-se em oração à volta d'Ela, que e a "mãe de Jesus", como que a procurar protecção e conforto, diante das incógnitas de um futuro carregado de sombras ameaçadoras.
3. O exemplo da comunidade cristã dos inícios é paradigmático: também nós, nas vicissitudes, embora diversas, do nosso tempo, nada podemos fazer melhor do que recolher-nos à volta de Maria, reconhecendo n'Ela a Mãe de Cristo, do Cristo total, isto é, de Jesus e da Igreja, nossa Mãe. E d'Ela aprender. O quê?
A crer, antes de mais. Maria foi dita "bem-aventurada", porque soube acreditar (Cfr. Lc 1,45). A sua fé foi a maior que um ser humano jamais teve; maior que a própria fé de Abraão. O "Santo", de facto, que nascera d'Ela, "crescendo, afastava-se, passava ao de cima, e, diferenciado, vivia a uma distância infinita d'Ela; tê-lo gerado e nutrido e visto no seu abandono; não se impressionar diante da sua majestade, mas também não hesitar no seu amor quando a sua protecção materna se encontrou superada, e de tudo isto acreditar que assim era justo e deste modo se cumpria a vontade de Deus; não se cansar jamais, não se deixar vencer pelo tédio, ao contrário permanecer firme e percorrer juntos passo a passo, pela força da fé, o caminho que a pessoa do Filho, no seu carácter misterioso, prossegue eis a sua grandeza" (R. Guardini, Il Signore, Milão 1964, PP 28-29).
136 E eis também a primeira lição que nos oferece.
É pois, a lição da oração: uma oração "assídua e concorde" (Cfr. Ac 1,14).
Com frequência, nas nossas comunidades, recolhemo-nos para discutir, para avaliar situações, para elaborar programas. Pode ser também um tempo bem empregado. É necessário, porém, repetir que o tempo mais útil, aquele que dá sentido e eficácia às discussões e aos projectos, é o tempo dedicado à oração. Nela, de facto, a alma dispõe-se a acolher o "Consolador", que Cristo prometeu enviar (Cfr. Jn 15,26) e ao qual confiou a tarefa de "guiar-nos para a verdade total" (Cfr. Jn 16,13).
Ainda uma coisa Maria nos ensina com o seu exemplo: diz-nos que é necessário permanecer em comunhão com a comunidade hierarquicamente estruturada. Entre as pessoas reunidas no Cenáculo de Jerusalém, São Lucas recorda, em primeiro lugar, os onze Apóstolos, de cujos nomes faz o elenco, embora já tivesse reproduzido a lista nas páginas do seu Evangelho (Cfr. Lc 6,14 ss.). Há, em tudo isto, uma "intenção" evidente. Se, antes da Páscoa da Ressurreição, os Apóstolos constituíam o séquito particular de Jesus, agora aparecem já como homens aos quais o Ressuscitado entregou os plenos poderes e uma missão: são eles, portanto, os responsáveis pela obra de salvação que a Igreja deve realizar no mundo.
Maria está com eles; sob um certo aspecto, está-lhes até subordinada. A comunidade cristã constrói-se "sobre o fundamento dos Apóstolos". É esta a vontade de Cristo. Maria, a Mãe, aceitou-a jubilosamente. Também, sob este aspecto, Ela se tornou para nós modelo exemplar.
Agora, continuemos a celebração da Missa. Revive misticamente, nesta nossa assembleia litúrgica, a experiência do Cenáculo. Maria está connosco. Invocamo-la e confiamo-nos a Ela. Que nos socorra com a sua ajuda, neste propósito, aqui renovado, de querer generosamente imitá-l'A.
Domingo, 15 de Julho de 1979
1. Com profunda veneração ouvimos as palavras que a liturgia da Igreja dedica ao domingo de hoje. Agora, é preciso determo-nos um pouco e acolher estas palavras, isto é adaptá-las aos corações dos ouvintes. Adaptá-las à nossa vida. Eis alguns pensamentos neste sentido.
2. Antes de mais: quem somos nós todos, membros desta assembleia, ouvintes da Palavra de Deus e, daqui a pouco, participes do Corpo e do Sangue do Senhor?
A pergunta: «quem sou?» condiciona todas as outras e todas as respostas relativas ao argumento: «que coisa devo fazer?».
A esta primeira e fundamental pergunta responde hoje São Paulo na carta aos Efésios. Responde: somos escolhidos por Deus em Cristo Jesus.
137 Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, do alto dos Céus, nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. Foi assim que n'Ele nos escolheu antes da constituição do mundo, para sermos santos e imaculados diante dos Seus olhos. Predestinou-nos para sermos seus filhos adoptivos por meio de Jesus Cristo, por Sua livre vontade, para fazer resplandecer a Sua maravilhosa graça, pela qual nos tornou agradáveis em Seu amado Filho (Ep 1,3-6).
Esta é a resposta que nos dá hoje São Paulo à pergunta «quem sou?», e desenvolve-a nas outras palavras do mesmo texto da carta aos Efésios.
Eis a ulterior etapa da resposta:
Somos remidos; estamos plenos da remissão dos pecados e da graça; somos chamados à união com Cristo e, em seguida, a unificar todos em Cristo.
E ainda não é o fim desta resposta de São Paulo.
Somos chamados a existir para glória da Majestade Divina, participamos na palavra da verdade: no Evangelho da salvação; somos marcados com o selo do Espírito Santo; somos participes da herança, na expectativa da redenção total, que nos fará propriedade de Deus.
3. É esta a resposta de São Paulo à nossa pergunta. Há muito que meditar.
Perdoai, se eu me limito apenas a dar algumas indicações.
As palavras da carta aos Efésios não podem limitar-se a ressoar numa só carta, na escuta de uma só vez. Devem permanecer connosco. Devem prosseguir connosco. Estas são palavras à medida de toda a vida. A medida da eternidade.
Seria bom, se elas pudessem prosseguir juntamente com cada um de vós durante estas semanas e meses de repouso das férias. Onde quer que vos dirijais: a qualquer compromisso temporário ... ou ao trabalho apostólico ..., ou possivelmente como, mais de uma vez aconteceu, à peregrinação de Varsóvia a Jasna Gora ...
Que estas palavras vos sigam. A resposta à pergunta: «quem sou?», «quem somos?».
138 Plasmem e formem a vossa personalidade, inseridos como estamos, na mesma raiz, na dimensão do mistério, que Cristo inscreveu na vida de cada um de nós.
O sacrifício, em que participamos, a santa Missa, dá-nos também todas as vezes a resposta à pergunta fundamental «quem somos?».
4. Que coisa devemos fazer?
Talvez a resposta a esta segunda pergunta não sobressaia, desta liturgia da Palavra Divina, com a mesma força da outra relativa à pergunta: «quem somos?». No entanto, também ela é, na mesma, forte e decidida. Deus disse a Amós: Vai, e profetiza ao Meu povo! (Am 7,16).
Cristo chama os Doze e começa a enviá-los dois a dois (Mc 6,7).
E ordena-lhes que entrem em cada casa para assim prestarem testemunho. O Concílio Vaticano II recordou que todos os cristãos, não só os eclesiásticos mas também os leigos, têm a sua parte na missão profética de Cristo. Não há dúvida alguma acerca do «que devemos fazer».
5. Todavia permanece sempre actual a pergunta: como deve-mos fazê-lo?
Regozijo-me que cada um de vós individualmente, ou com toda a vossa Comunidade, procure uma resposta para esta pergunta. Quem procura esta resposta, encontra-a no tempo oportuno.
O Salmo responsorial de hoje assegura-nos que «Misericórdia e verdade encontrar-se-ão ...».
«A verdade germinará da terra».
Sim, a verdade deve germinar de cada um de nós; de cada coração.
139 Sede fiéis à verdade.
Fiéis à vossa vocação.
Fiéis ao vosso compromisso.
Fiéis à vossa escolha.
Sede fiéis a Cristo, que liberta e une (comunhão e libertação).
6. Por fim, fervorosos votos para cada um de vós e para todos.
Como um raio de luz da liturgia de hoje: a fim de que o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo penetre nos nossos corações, com a própria luz, para nos fazer compreender qual é a esperança da nossa vocação (Cfr. Ep 1,17-18).
Oxalá estes votos se realizem pela intercessão de Nossa Senhora, perante a qual meditámos a Palavra Divina da liturgia para poder continuar a realizar o sacrifício eucarístico.
Castel Gandolfo, 29 de Julho de 1979
"Onde podemos comprar pão para que estas pessoas tenham de comer?".
Diante da multidão, que o seguiu para ouvir a Sua palavra, desde as margens do mar da Galileia até às montanhas, Jesus dá início, com esta pergunta, ao milagre da multiplicação dos pães, que constituem o prelúdio significativo do longo discurso, no qual Ele se revela ao mundo como o verdadeiro Pão da vida que desceu do céu (Cfr. Jn 6,41).
140 1. Ouvimos a narração evangélica: com cinco pães de cevada e com dois peixes, postos à sua disposição por um rapaz, Jesus dá de comer a cerca de cinco mil pessoas. Mas estas não compreendendo a profundidade do "sinal" no qual foram envolvidas, estão convencidas de ter finalmente encontrado o Rei-Messias, que resolverá os problemas políticos e económicos da sua Nação. De fronte a tal modo falso de interpretar a sua missão, Jesus retira-se, sozinho, para a montanha. Também nós, caríssimos Irmãos e Irmãs, seguimos Jesus e continuamos a segui-Lo. Mas podemos e devemos perguntar a nós próprios: com que atitude interior? Com a autêntica da fé, que Jesus esperava dos Apóstolos e da multidão esfomeada, ou simplesmente com uma atitude de incompreensão? Jesus apresentava-se naquele momento como, mais do que Moisés, que no deserto tinha saciado o povo israelita durante o êxodo; apresentava-se como mais do que Eliseu, que com vinte pães de cevada e trigo novo tinha dado de comer a cem pessoas. Jesus manifestava-se; e hoje a nós manifesta-se como Aquele que é capaz de saciar para sempre a fome do nosso coração. "Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome e o que acredita em mim jamais terá sede" (Jn 6,35).
E o homem, especialmente o contemporâneo, tem tanta fome; fome de verdade, de justiça, de amor, de paz, de beleza; mas sobretudo fome de Deus. "Nós devemos ter fome de Deus", exclama Santo Agostinho ("famelici Dei esse debemus") (Enarrat in Psal. 146. n. 17: Pl. 37, 1895, 5). É Ele, o Pai celeste, que nos dá o verdadeiro pão!
2. Este pão, do qual temos necessidade, é sobretudo Cristo, o qual se dá a nós nos sinais sacramentais da Eucaristia, e nos faz ouvir, em cada Missa, as palavras da última Ceia: "Tomai e comei todos: este é o meu corpo oferecido em sacrifício por vós". Com o sacramento do pão eucarístico — afirma o Concílio Vaticano II — "é representada e produzida a unidade dos fiéis, que constituem um só Corpo em Cristo" (Cfr. 1Co 10,17). Todos os homens são chamados a esta união com Cristo que é a luz do mundo: "Dele provimos, por Ele vivemos, a Ele nos dirigimos" ( Lumen Gentium LG 3).
O pão de que temos necessidade é, além do mais, a Palavra de Deus, "porque nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4,4 cfr. Dt 8,3). Sem dúvida, também os homens podem exprimir e pronunciar palavras de alto valor. Mas a história mostra-nos como as palavras dos homens são às vezes insuficientes, ambíguas, enganadoras, tendenciosas; enquanto a palavra de Deus é cheia de verdade (Cfr. 2S 7,28 1Co 17,26), é integra (Ps 33,4); é estável e permanece eterna (Cfr. Ps 119,89 1P 1,25).
Devemos por-nos continuamente em religiosa escuta de tal Palavra; assumi-la como critério do nosso modo de pensar e de agir; conhecê-la, através da leitura assídua e da meditação pessoal; mas especialmente, devemos torná-la nossa, realizá-la, dia após dia, em cada atitude.
O pão, por fim, do qual temos necessidade, é a graça; e devemos invocá-la, pedi-la com sincera humildade e com constância incansável, sabendo bem que ela é o mais precioso de tudo quando podemos possuir.
3. O caminho da nossa vida, traçado pelo amor providencial de Deus, é misterioso, às vezes humanamente incompreensível, e quase sempre duro e difícil. Mas o Pai dá-nos o "pão do céu" (Cfr. Jn 6,32) para ser reanimado na nossa peregrinação na terra.
Apraz-me concluir com um passo de Santo Agostinho, que sintetiza admiravelmente tudo quanto meditámos: "Compreende-se muito bem... como a tua Eucaristia seja o alimento quotidiano. Sabem de facto os fiéis que a recebem e é justo que eles recebam o pão quotidiano necessário para este tempo. Rezam por eles, para se tornarem bons, para serem perseverantes na bondade, na fé e na vida justa... a Palavra de Deus, que cada dia vos é explicada, e num certo sentido, partida, é também ela pão quotidiano" (Sermo 58, IV; PL. 38, 395).
Que Cristo Jesus multiplique sempre, também para nós, o seu pão!
Assim seja!
Domingo, 5 de Agosto de 1979
Caríssimos
141 Estamos aqui reunidos à volta do altar do Senhor, que é o único a poder iluminar o mistério da nossa vida, drama de amor e de salvação, e a dar-nos a força para não cair para nos levantarmos e, sobretudo, para viver segundo as exigências e os ideais do cristianismo.
Este é exactamente, segundo me parece, o tema central da liturgia deste Domingo, no qual Jesus, pão da vida, se nos apresenta como o único e verdadeiro significado da existência humana.
1. Nos nossos tempos, infelizmente, o racionalismo científico e a estrutura da sociedade industrial, caracterizada pela férrea lei da produção e do consumo, criaram uma mentalidade fechada dentro de um horizonte de valores temporais e terrenos, que tiram à vida do homem todo o significado de transcendência.
O ateísmo teórico e prático, vastamente difundido; a aceitação de uma moral evolucionística, já não ligada aos princípios sólidos e universais da lei moral natural e revelada, mas ao costume sempre mutável da história; a exaltação repetida do homem como autor autónomo do próprio destino e, no extremo oposto, a sua humilhação deprimente ao nível das paixões inúteis, de engano cósmico, de peregrino absurdo do nada, num universo desconhecido e escarnecedor, fizeram desaparecer em muitos o significado da vida, e empurraram os mais fracos e os mais sensíveis para evasões funestas e trágicas.
O homem tem uma necessidade extrema de saber se merece nascer, viver, lutar, sofrer e morrer, se tem valor o empenhar-se .. em qualquer ideal superior aos interesses materiais e contingentes, se, numa palavra, há um "porquê" que justifique a sua existência terrena.
Esta portanto permanece a questão essencial: dar um sentido ao homem, às suas escolhas, à sua vida, à sua história.
2. Jesus possui a resposta a estas nossas perguntas; Ele pode resolver a "questão do sentido" da vida e da história do homem. Eis a lição fundamental da liturgia de hoje. A multidão que o tinha seguido, infelizmente apenas por motivos de interesse material, tendo sido alimentada gratuitamente com a multiplicação dos pães e dos peixes, Jesus disse com seriedade e autoridade: "Trabalhai não pela comida que perece, mas pela que dura até à vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará" (Jn 6,28-29).
Deus encarnou para iluminar, ou antes para ser o significado da vida do homem. Este necessita acreditar com profunda e alegre convicção; este necessita viver com constância e coerência; este necessita anunciar e testemunhar, não obstante as tribulações dos tempos e as ideologias contrárias, quase sempre insinuantes e perturbadoras.
E em que modo Jesus é o significado da existência do homem? Ele próprio explica-o com uma clareza consoladora: "O Meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão que vem do Céu, pois o Pão de Deus é o que desce do Céu e dá vida ao mundo... Eu sou a pão da vida; o que vem a Mim jamais terá fome e o que acredita em Mim jamais terá sede” (Jn 6 Jn 32-35).
Jesus fala simbolicamente referindo-se ao grande milagre do maná dado por Deus ao povo hebraico, atravessando o deserto. É claro que Jesus não elimina a preocupação normal, a procura do alimento quotidiano e de tudo o que pode tornar a vida humana mais desenvolvida, mais evoluída, mais safisfatória. Mas a vida passa fatalmente. Jesus explica que o verdadeiro significado da nossa existência está na eternidade, e que toda a história humana com os seus dramas e as suas alegrias deve ser vista em perspectiva eterna.
Também nós, como o povo de Israel, vivemos sobre a terra a experiência do Êxodo: a "terra prometida" é o Céu. Deus, que não abandonou o seu povo no deserto, não abandona tão-pouco o homem na sua peregrinação terrena. Deu-lhe um "pão", capaz de o sustentar ao longo da estrada: o "pão" é Cristo. Ele é antes de tudo o alimento da alma com a verdade revelada e depois com a sua própria Pessoa presente no Sacramento da Eucaristia.
142 O homem necessita da transcendência! O homem necessita da presença de Deus na sua história quotidiana! Só assim pode encontrar o sentido da vida! Pois bem, Jesus continua a dizer a todos: "Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vida" ( Jo Jn 14,6), "Eu sou a Luz do mundo, Quem Me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida" (Jn 8-12) "Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos e aliviar-vos-ei" (Mt 11,28).
3. A reflexão agora recai sobre cada um de nós. Depende de nós, de facto, recolher o significado que Cristo veio oferecer à existência humana e "encarná-lo" na nossa vida. Depende do compromisso de todos "Encarnar" tal significado na história humana. Grande responsabilidade e dignidade sublime! É necessário, a este fim, um testemunho coerente e corajoso da própria fé.
São Paulo, escrevendo aos Efésios, traça, neste perspectiva um programa concreto de vida:
— é preciso antes de mais, abandonar a mentalidade mundana e pagã: "Eis a advertência que vos faço no Senhor; não torneis a proceder como procedem os gentios na futilidade do seu discernimento".
— depois, é preciso mudar a mentalidade mundana e terrestre segundo a mentalidade de Cristo: "Deveis despojar-vos do homem velho no que diz respeito ao vosso passado do homem corrompido pelas paixões enganadoras".
— por fim, é preciso aceitar toda a mensagem de Cristo, sem reduções cómodas e viver segundo o seu exemplo: "Deveis renovar espiritualmente a vossa inteligência e revestir o homem novo, criado em conformidade com Deus na justiça e na santidade verdadeiras (Ep 4,17-20).
Caríssimos, como podeis ver, trata-se de um programa muito responsabilizador, debaixo de certos aspectos poder-se-ia mesmo dizer heróico; e todavia devemos apresentá-lo a nós e aos outros na sua integridade, contando com a acção da graça, que pode dar a cada um a generosidade de aceitar a responsabilidade das próprias acções em perspectiva eterna e para o bem da sociedade.
Andai, portando, para a frente com confiança e com um generoso empenho, procurando cada dia um novo motivo e uma nova alegria na devoção a Jesus Eucarístico e na confiança em Maria Santíssima.
Agrada-me concluir citando-vos um pensamento do meu venerado predecessor Paulo VI, de quem passa amanhã o primeiro aniversário do piedoso falecimento. "Por entre a fúria dos interesses contrastantes, prejudiciais para o verdadeiro bem do homem, é necessário proclamar de novo bem alto as grandes palavras do Evangelho, as únicas que deram luz e paz aos homens, em análogas convulsões da história" (Discurso aos Cardeais, 21 de junho1976).
Basílica de São Pedro
Segunda-feira, 6 de Agosto de 1979
143 Ecce Sacerdos magnus, qui in diebus suis placuit Deo et inventus est iustus (Eis o grande Sacerdote que nos seus dias agradou a Deus e foi encontrado justo) (Cfr. Si 44,16-17): são estas as primeiras palavras que me vêm espontaneamente aos lábios no momento em que oferecemos a Deus o sacrifício eucarístico e nos preparamos para dar a última saudação ao venerado Irmão, o Cardeal Alfredo Ottaviani. Na verdade, ele foi grande Sacerdote, insigne por piedade religiosa, exemplarmente fiel no serviço à Santa Igreja e à Sé Apostólica, solícito no ministério e na prática da caridade cristã. E foi ao mesmo tempo um Sacerdote Romano, isto é, dotado daquele espírito típico, talvez não fácil de definir, que quem nasce em Roma — nascera nela dez anos antes do fim do século XIX — possui quase por herança e se exprime numa especial dedicação a Pedro e à fé de Pedro e, ainda, numa pronunciada sensibilidade por aquilo que é e faz e deve fazer a Igreja de Pedro.
Por isso, falei de "exemplar fidelidade", e agora que ele faleceu depois duma longa e laboriosa jornada terrena, torna-se mais fácil reconhecer esta fidelidade como característica da sua vida inteira. A sua foi realmente uma fidelidade a toda a prova; sem querer evocar de novo as fases da sua actividade nos diversos ministérios, a que a sua inteligência de escol e a confiança dos Sumos Pontífices o chamaram, ele distinguiu-se sempre por esta qualidade moral, qualidade singular, qualidade que quer dizer coerência, dedicação e obediência. Como Substituto da Secretaria de Estado, e depois Assessor, Pró-Secretário, Pró-Prefeito e Prefeito da então Sagrada Congregação do Santo Ofício; como Prelado, Bispo e Cardeal, ele demonstrou possuir tal qualidade como divisa que o caracterizava e o identificava aos olhos de quantos — e eram muitos tanto em Roma como fora — o conheciam e o estimavam. Sendo responsável pelo Dicastério, a que está institucionalmente confiada a defesa do sagrado património da fé e da moral católica, manifestou esta mesma virtude num comportamento de perspicaz atenção, na convicção, objectivamente fundada, e nele cada vez mais amadurecida pela experiência das coisas e dos homem, de que a rectidão da fé, isto é, a ortodoxia, é património irrenunciável e é condição primária para a rectidão dos costumes, ou ortopráxis. O seu alto sentido jurídico, que já em idade juvenil o tornara mestre celebrado e escutado por multidões de Sacerdotes, sustentou-o no trabalho tenaz que realizou em defesa da fé.
Sempre disponível, sempre pronto a servir a Igreja, ele encontrou também nas reformas o sinal providencial dos tempos, de maneira que soube e quis colaborar com os meus Predecessores João XXIII e Paulo VI, como fizera já com Pio XII e ainda antes com Pio XI. A sua existência gastou-se literalmente para bem da Igreja santa de Deus. O nosso irmão foi em tudo e sempre o homem de Deus, apto para toda a boa obra (2Tm 3,17); isto, sim, isto é uma referência de ordem essencial, é um parâmetro válido para bem lhe enquadrar a fisionomia espiritual e moral.
Foi também homem de grande coração sacerdotal: são muitos ainda os que dele se recordam no seu ministério quotidiano no meio dos rapazes e jovens do Oratório de São Pedro, que o tiveram — ao lado doutros não esquecidos Sacerdotes e Prelados Romanos — como amigo e irmão, e direi melhor: como pai solícito e afectuoso. Não era esta sua presença um diversivo para vencer o cansaço dos papéis oficiais e das obrigações burocráticas, mas exigência que brotava espontânea, intencional e generosa, dum programa sacerdotal, era "serviço exigido" pela sua vocação.
Nascera pobre no popular bairro do Trastévere, e a esta origem devem atribuir-se o seu terno amor e a sua solicitude preferencial pelos pobres, pelas crianças e pelos órfãos. E agora são precisamente estas almas inocentes que — ao lado de tantos Sacerdotes e Leigos, que do Cardeal Ottaviani receberam a luz da sabedoria, a lição da simplicidade e a medicina da misericórdia — são estas almas que intercedem por ele diante do altar do Senhor, para que lhe seja dado mais cedo o prémio destinado ao "servo bom e fiel" (Cfr. Mt 25 Mt 21).
Por singular coincidência realiza-se este doloroso rito na mesma hora em que, exactamente há um ano, estava para deixar este mundo o meu amado Predecessor Paulo VI. E apraz-me recordar convosco a voz robusta e comovida do Cardeal que, a 21 de Junho de 1963, anunciou publicamente a realizada elevação ao Pontificado do Cardeal João Baptista Montini. Do tom mesmo das suas palavras, que afinal repetiam a habitual formula latina do Habemus Papam, transparecia a satisfação do antigo Mestre que via exaltado um colega e amigo, tão digno de estima, que abriria na Igreja e para a Igreja uma intensa e prometedora estação. Um e outro, nas respectivas posições de responsabilidade, têm já concluído o ciclo da existência terrena, para entrarem definitivamente — como todos desejamos e pedimos — naquele Reino, em que a ardente e intrépida fé de ambos os introduzira na esperança.
A um e a outro conceda agora o Senhor o repouso na sua luz, na sua paz. Amen.
Albano, 14 de Agosto de 1979
Caríssimas Irmãs no Senhor
É para mim grande alegria e viva comoção celebrar a Santa Missa aqui, diante de vós e por vós, que viveis a vossa existência contemplativa precisamente nas vizinhanças da minha residência estiva.
Entre todas as pessoas que o Papa estima e de que se aproxima, sois vós certamente as de maior valor, porque o Vigário de Cristo tem necessidade extrema do vosso auxílio espiritual e conta sobretudo convosco, que por divina vocação escolhestes "a melhor parte" (Lc 10,42), quer dizer, o silêncio, a oração; a contemplação e o amor exclusivo de Deus.
144 Vós não abandonastes o mundo para não terdes as cruzes do mundo ou, para não vos interessardes dos problemas que atormentam a humanidade; pelo contrário, vós trazei-los todos no coração e acompanhais, no atormentado cenário da história, a humanidade, com a vossa oração e a vossa ânsia de perfeição e salvação.
Por esta vossa presença, oculta mas autêntica na sociedade, e muito mais na Igreja, também eu olho confiadamente para as vossas mãos pastas e confio ao ardor da vossa caridade a preocupante missão do Pontificado Supremo.
E tenho o gosto de meditar convosco as lições e os pensamentos, que a liturgia de hoje vai buscar à Palavra de Deus, que ouvimos agora mesmo no Sagrado Evangelho.
1. Jesus recorda-nos, primeiro que tudo, a realidade consoladora do Reino dos Céus. A pergunta que os apóstolos dirigem a Jesus é bem sintomática: "Quem é então o maior no Reino dos céus?"
Vê-se que tinham discutido entre si sobre questões de precedência, de carreira e de méritos, com mentalidade ainda terrena e interesseira: queriam saber quem era o primeiro naquele Reino dos Céus, de que sempre falava o Mestre.
Jesus aproveita a ocasião para purificar o conceito errado que têm os apóstolos e os levar ao verdadeiro conteúdo da sua mensagem: o Reino dos céus é a Verdade salvífica por ele revelada; é a "graça", ou seja a vida de Deus por ele trazida à humanidade com a Encarnação e a Redenção; é a Igreja, o seu Corpo Místico, o povo de Deus que o ama e o segue; é finalmente a glória eterna do Paraíso, à qual é chamada toda a humanidade.
Jesus, falando do Reino dos céus, quer ensinar-nos que a existência humana tem valor unicamente na perspectiva da verdade, da graça e da glória futura. Tudo deve ser aceite e vivido com amor e por amor, na realidade escatólogica por Ele revelada: "Vendei os vossos bens e dai-os de esmola. Fazei para vós bolsas que não envelheçam, um tesoiro inesgotável nos céus..." (Lc 12,33). "Estejam cingidos os vossos rins e acesas as vossas lâmpadas" (Lc 12,35).
2. Jesus ensina-nos o modo justo para entrarmos no Reino dos céus.Conta o evangelista São Mateus que "Jesus chamou um menino, o colocou no meio deles e disse: Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no reino dos céus. Quem, pois, se fizer humilde como este menino, será o maior no reino dos céus" (Mt 18,2-4).
Esta é a perturbadora resposta de Jesus: para entrar no reino dos céus a condição indispensável é fazermo-nos pequenos e humildes como crianças.
É claro que Jesus não quer obrigar o cristão a ficar numa situação de perpétuo infantilismo, de ignorância satisfeita e de insensibilidade às problemáticas dos tempos. Bem ao contrário! Mas apresenta o menino como modelo para se entrar no reino dos céus, por causa do valor simbólico que a criança encerra em si:
— primeiro que tudo, a criança é inocente, e para entrar no reino dos céus o primeiro requisito é a vida da "graça", isto é, a inocência, conservada ou readquirida, a exclusão do pecado, que é sempre acto de orgulho e de egoísmo.
145 — em segundo lugar, a criança vive de fé e de confiança nos pais e abandona-se com total disposição àqueles que a guiam e amam. Assim o cristão deve ser humilde e abandonar-se com total confiança a Cristo e à Igreja. O grande perigo, o grande inimigo é sempre o orgulho, e Jesus insiste na virtude da humildade, porque diante do infinito apenas se pode ser humilde; a humildade é verdade e é também sinal de inteligência e fonte de serenidade.
— por fim; a criança contenta-se com pequenas coisas, que bastam para a tornar feliz; um pequeno êxito, um belo desejo conseguido e um louvor recebido fazem-na exultar de alegria.
Para entrar no reino dos céus é necessário ter sentimentos grandes, imensos, universais; mas é preciso a pessoa saber contentar-se com pequenas coisas, com obrigações impostas pela obediência, com a vontade de Deus como se exprime no momento que passa, com alegrias quotidianas oferecidas pela Providência; é preciso fazer de todo o trabalho, embora oculto e modesto, uma obra-prima de amor e perfeição.
É necessário voltar-se uma pessoa para a pequenez, a fim de entrar no reino dos céus. Recordemos a genial intuição de Santa Teresa de Lisieux, quando meditava o versículo da Sagrada Escritura: "Se alguém é verdadeiramente pequeno, venha a mim" (Pr 9,4). Descobriu que o sentido da "pequenez" era como um ascensor que mais depressa e mais facilmente a levaria ao cume da santidade: "Os teus braços, ó Jesus, são o ascensor que me deve levantar até ao céu. Por isso, eu não preciso na verdade de me tornar grande; é preciso, pelo contrário, continuar a ser pequena, tornar-me pequena cada vez mais" (História duma alma, Manuscrito C, cap. X).
3. Por último, Jesus infunde em nós a ansiedade pelo Reino dos Céus."Que vos parece? — diz Jesus. Se um homem tiver cem ovelhas e uma delas se extraviara não deixará as noventa e nove no monte para ir à procura da extraviada? E, se chegar a encontrá-la, em verdade vos digo, alegra-se mais com ela do que com as noventa e nove que não se extraviaram... Assim também, é da vontade de vosso Pai que está nos céus não se perder um só destes pequeninos" (Mt 18,12-14).
São palavras dramáticas, e consoladoras ao mesmo tempo: Deus criou o homem para o tornar participante da sua glória e da sua felicidade infinita; por isso o quis, inteligente e livre, "à sua imagem e semelhança". Infelizmente assistimos com angústia ao inquinamento moral que devasta a humanidade, em especial desprezando os pequenos de que fala Jesus.
Que havemos de fazer? Imitar o bom Pastor e empenhar-nos sem descanso pela salvação das almas. Sem esquecermos a caridade material e a justiça social, devemos estar convencidos de a caridade espiritual ser a mais sublime, quer dizer, o empenho na salvação das almas. E salvam-se as almas com a oração e com o sacrifício. Esta a missão da Igreja.
Especialmente vós, claustrais e almas consagradas, deveis sentir-vos como Abraão no monte, a implorar misericórdia e salvação da bondade infinita do Altíssimo. E alegrai-vos em saber que muitas almas se salvam precisamente por causa da vossa propiciação.
Caríssimas Irmãs, na suave e mis atmosfera desta Vigília da Solenidade da Assunção de Maria Santíssima ao céu, vos confiamos todas aos seus maternais cuidados. E concluo com as palavras que Paulo VI, de venerada memória, exprimia no princípio do seu Pontificado: "Nossa Senhora aparece-nos hoje como, nunca, com a sua luz do alto. Mestra da vida cristã. E diz-nos: vivei como deve ser, vós também; e ficai sabendo que o mesmo destino, para mim antecipado na hora em que o meu caminho temporal foi encerrado, o será a seu tempo também para vós;... A Mãe do Céu está lá em cima, vê-nos e espera-nos com o seu olhar cheio de ternura;... São exactamente os seus olhos dulcíssimos que nos contemplam amorosamente e com maternal afecto nos animam..." (Discurso de 15 de Agosto de 1963).
Homilias JOÃO PAULO II 134