Homilias JOÃO PAULO II 423


VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL



NA SANTA MISSA CELEBRADA EM BELÉM DO PARÁ


Belém, 8 de Julho de 1980




Senhor Arcebispo Dom Alberto Gaudêncio Ramos,
Senhor Bispo Auxiliar Dom Tadeu Prost,
Meus irmãos no Episcopado e no sacerdócio ministerial,
Meus amados irmãos e irmãs, religiosos, religiosas e leigos

1. Este momento de alegria e comunhão, nos encontra reunidos em Belém, “casa do Pão”, para receber o pão da Palavra de Deus e, dentro de momentos, o Pão eucarístico, Corpo do Senhor.

424 Nosso encontro se realiza na Basílica de Nossa Senhora de Nazaré. Belém e Nazaré nos falam antes de tudo de Jesus, o Salvador, na sua vida oculta, criança e depois jovem, no cumprimento de sua missão: “Eis que venho, ó Deus, para fazer em tudo a Tua vontade” (He 10,7). Belém e Nazaré nos falam também da Mãe de Jesus, sempre próxima ao Filho eterno de Deus, Seu filho segundo a carne, fiel ela também no cumprimento de um papel de primeira importância no plano da Salvação divina: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).

Nossa Senhora avançou no caminho da fé, sempre em união com o seu Filho. Acompanha-O passo a passo, associando-se a Ele, alegrando-se e sofrendo com Ele, amando sempre aqueles que Ele amava. Depois, Cristo subiu de novo para junto do Pai. E nos dias que precederam o Pentecostes, o grupo dos discípulos, Igreja nascente, cheios de alegria e de fé, pelo triunfo de Cristo ressuscitado e ansiosos pelo Espírito Santo prometido, querem sentir-se muito unidos.

Vamos encontrá-los em oração “com Maria, Mãe de Jesus” (Ac 1,14). Era a oração de uma família: daqueles que o Senhor havia chamado para a sua intimidade, com a Mãe, a qual, “com a sua caridade cooperou para que nascessem na Igreja os fiéis, membros daquela Cabeça, da qual Ela é efetivamente Mãe segundo o Corpo”, como diria Santo Agostinho (S. Agostinho, De Virginitate, 6: PL 40, 399).

2. Foi sob o patrocínio de Nossa Senhora da Graça que, por obra de intrépidos Religiosos, aqui se fundou uma comunidade cristã, depois Diocese, de onde se irradiou, não sem dificuldades, o Evangelho de Cristo para esta parte norte do Brasil. E ela, a Mãe da Graça divina, acompanhava os missionários neste seu empenho e esforço e estava com a Mãe Igreja – da qual é o protótipo, o modelo e a suprema expressão – nos inícios da sua implantação nestas terras abençoadas: abençoadas por Deus Criador, com as riquezas e belezas naturais que nos maravilham; e abençoadas por Cristo Redentor, depois, com os bens da Salvação por Ele operada, e que nós agora aqui celebramos.

Nesta Eucaristia, nesta ação de graças por excelência, como é sempre a Missa, com Maria Santíssima, vamos render preito agradecido ao Pai por Cristo no Espírito Santo: agradecer a evangelização e benefícios divinos por ela trazidos; agradecer a caridade dos missionários e a esperança que os animava e tornava fortes no dilatar a fé, mediante a pregação e o Batismo àqueles que, com a vida nova em Cristo, aumentaram aqui a família dos filhos de Deus.

3. Belém e o seu santuário de Nossa Senhora de Nazaré são monumentos do passado, como marco da evangelização e documento palpável de acentrada piedade para com a “Estrela da Evangelização”. Mas são também presente: o presente de uma Igreja viva e o presente da devoção mariana, nesta querida terra brasileira.

“Hão de chamar-me bem-aventurada todas as gerações” (Lc 1,48), disse Maria no seu cântico profético; “Bendita sois entre as mulheres, e bendito o fruto do vosso ventre, Jesus”, Lhe respondem em eco ao longo dos tempos povos de todas as latitudes, raças e línguas. Uns mais esclarecidos, outros menos, os fiéis cristãos não cessam de recorrer a Nossa Senhora, à Santa Mãe de Deus: em momentos de alegria, invocando-A “Causa da nossa alegria”; em momentos de aflição, chamando-Lhe “Consoladora dos aflitos”; e em momentos de desvario, implorando-A “Refúgio dos pecadores”.

Estas expressões de uma busca de Deus, ligadas ao modo de ser e à cultura de cada povo e, não raro, a estados de animo emocionais, nem sempre se apresentarão bem apoiadas numa adesão de fé. Pode acontecer até não estarem devidamente separadas de elementos estranhos à religião. No entanto, são algo de considerar e, por vezes, mesmo rico de valores a aproveitar.

Embora precisando de ser esclarecida, guiada e purificada, a religiosidade popular, ligada como norma à devoção a Nossa Senhora, sendo como lhe quis chamar o meu Predecessor Paulo VI “piedade dos pobres e dos simples”, traduz geralmente “uma certa sede de Deus” (cf. Evangelii Nuntiandi EN 48). Assim, não é necessariamente um sentimento vago, ou uma forma inferior de manifestação religiosa. Antes, contém, com frequência, um profundo sentido de Deus e dos seus atributos, como a paternidade, a providência, a presença amorosa, a misericórdia, etc.

4. A par da religião do povo, é corrente também nos centros de culto mariano e nos santuários muito concorridos, verificar-se, por um motivo ou por outro, a presença de pessoas que, ou não pertencem ao grêmio da Igreja, ou então nem sempre permaneceram fiéis aos compromissos e à prática da vida cristã, ou ainda que vêm guiadas por uma visão incompleta da fé que professam.

Ora tudo isto exige uma pastoral atenta e adequada e, principalmente, muito pura e desinteressada, a qual vá de uma Liturgia viva e fiel, à pregação assídua e segura, à catequese sistemática e ocasional, particularmente na administração dos sacramentos; entre estes, em tais lugares de grande afluência de fiéis, ocupará sempre um lugar primordial o sacramento da Penitência, momento privilegiado de encontro com Deus, principalmente quando a isso ajuda a disponível caridade dos ministros do Confessionário.

425 Por conseguinte, não se perca nenhuma ocasião para esclarecer, purificar e robustecer a fé do povo fiel, mesmo quando de cunho nitidamente popular. O fato de nela ocupar lugar proeminente Nossa Senhora, como aliás sucede na totalidade da fé cristã, não exclui, nem sequer ofusca a mediação universal e insubstituível de Cristo, o qual permanece sempre o caminho por excelência para o encontro com Deus, como ensina o Segundo Concílio do Vaticano (Lumen Gentium LG 60).

5. Aqui reunidos como irmãos, em reunião de família que a vida mantém fisicamente afastados uns dos outros, neste dia de festa junto da Mãe, vamos voltar-nos todos agora para Ela, para Nossa Senhora. Não é verdade que, em reuniões familiares ocasionais junto da mãe, todos os irmãos se sentem mais dispostos à bondade, à reconciliação, à unidade e ao reencontro no afeto fraterno?

Depois, em tais encontros é imperativo da piedade e do amor filial deixar à Mãe a última palavra.

E é o momento das efusões de afeto e dos bons propósitos tranquilizadores do coração materno.

Chegamos a esse momento. Como Mãe bondosa, a Virgem Santíssima não cessa de convidar todos os seus filhos, os membros do Corpo místico, a cultivarem entre si a bondade, a reconciliação e a unidade. Seja-me permitido, nesta hora, à maneira de irmão mais velho, recolher e interpretar o que está certamente no coração de todos e depositá-lo no Coração Imaculado da Mãe de Jesus e Mãe nossa. Convido a todos a acompanhar, em oração silenciosa, a prece que faço em nome de todos:

– Senhora, Vós dissestes sob o sopro do Espírito que as gerações vos chamariam bem-aventurada. Nós retomamos o canto das gerações passadas para que não se interrompa e exaltamos em Vós o que de mais luminoso a humanidade ofereceu a Deus, a criatura humana na sua perfeição, de novo criada em justiça e santidade na beleza sem par que chamamos “a Imaculada” ou a “cheia de graça”.

– Mãe, Vós sois “a nova Eva”. A Igreja de vosso filho consciente de que só com “homens novos” se pode evangelizar, isto é, levar a Boa Nova ao mundo para fazer uma “nova humanidade”, vos suplica que por vosso meio não falte nela jamais a novidade do Evangelho, germe de santidade e de fecundidade.

– Senhora, adoramos o Pai pelas prerrogativas que brilham em Vós mas o adoramos também porque sois sempre para nós a “ancilla Domini”, pequena criatura. Porque fostes capaz de dizer: “fiat”, Vos tornastes Esposa do Espírito Santo e Mãe do Filho de Deus.

– Mãe, que apareceis nas páginas do Evangelho mostrando Cristo aos pastores e aos magos, fazei que cada evangelizador – bispo, sacerdote, religioso, religiosa, pai ou mãe de família, jovem ou criança – seja possuído por Cristo para ser capaz de revelá-lo aos outros.

– Senhora, escondida na multidão enquanto o Vosso filho realiza os sinais miraculosos do nascimento do Reino de Deus, e que só falais para mandar fazer tudo o que Ele disser (cf. Jo Jn 2,5), ajudai os evangelizadores a pregar sempre não a si próprios mas a Jesus Cristo.

– Mãe, envolvida pelo mistério de Vosso Filho, muitas vezes incapaz de entender mas capaz de recolher tudo e meditar no coração (), fazei que nós evangelizadores compreendamos sempre que para além das técnicas e estratégias, da preparação e dos planos, evangelizar é mergulhar no mistério de Cristo e tentar comunicar algo dele aos irmãos.

426 – Senhora da humildade na verdade, que nos ensinastes em cântico profético que “Deus sempre exalta os humildes” (cf. Lc Lc 1,52), ajudai sempre os “simples e os pobres” que vos procuram com a sua religiosidade popular; ajudai os pastores a conduzi-los à luz da verdade e a ser fortes e compreensivos ao mesmo tempo, quando devam banir elementos degenerados e purificar manifestações de piedade do povo.

– Mãe, pedimos por vossa intercessão, como os discípulos no Cenáculo, uma contínua assistência e dócil acolhimento do Espírito Santo na Igreja: para os que procuram a verdade de Deus e para os que devem servi-la e vivê-la. Que seja sempre Cristo “a luz do mundo”(cf. Jo Jn 8,12); e que o mundo nos reconheça Seus discípulos porque permanecemos na Sua Palavra e conhecemos a verdade que nos faz livres, com a liberdade dos filhos de Deus (cf. Jo Jn 8,32). Assim seja!



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL



NA MISSA EM FORTALEZA POR OCASIÃO


DA ABERTURA DO X CONGRESSO EUCARÍSTICO NACIONAL


Fortaleza, 9 de Julho de 1980




Senhor Cardeal Aloísio Lorscheider, Arcebispo de Fortaleza,
Meus amados Irmãos no Episcopado, no Sacerdócio,
Filhos e Filhas caríssimos

1. “Banquete sagrado no qual o pão é Cristo, no qual Sua Paixão é por nós revivida, nossa alma repleta de graça e um penhor da eternidade a nós oferecido”.

A partir deste momento e por vários dias, Fortaleza se torna de um modo todo particular, o cenáculo onde se celebra este banquete de que fala a Liturgia, cantando e afirmando a fé da Igreja no Santíssimo Sacramento.

Esta celebração nos recorda, de novo, que o Deus da nossa fé não é um ser longínquo, que contemplaria com indiferença a sorte dos homens, os seus afãs, as suas lutas e as suas angústias. É um Pai que ama os seus filhos, a ponto de enviar o seu Filho, o seu Verbo, “para que tivéssemos a vida e a tivéssemos em abundância”(Jn 10,10).

É este Pai amoroso, que agora nos atrai suavemente, pela ação do Espírito Santo que habita nos nossos corações (cf. Rm Rm 5,5).

Quantas vezes em nossa vida vimos separar-se duas pessoas que se amam. Durante a feia e dura guerra, em minha juventude, vi partir sem esperança de voltar, pais arrancados de casa sem saber se reencontrariam algum dia os seus. Na hora da partida, um gesto, uma fotografia, um objeto que passa de uma mão à outra para prolongar de algum modo a presença na ausência. E nada mais. O amor humano só é capaz destes símbolos.

427 Em testemunho e como lição de amor, na hora da despedida, “Jesus sabendo que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai, tendo amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até ao fim”(Jn 13,1). E assim, nas vésperas daquela última Páscoa passada neste mundo com os seus amigos, Jesus “tomou o pão e, dando graças, o partiu e disse: Tomai e comei; isto é o meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em memória de mim. Igualmente, depois da ceia, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento do meu sangue; fazei isto em memória de mim; todas as vezes que o beberdes”(1Co 11,23-25).

Assim, ao despedir-se, o Senhor Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem, não deixa aos seus amigos um símbolo, mas a realidade de Si mesmo. Vai para junto do Pai, mas permanece entre nós homens. Não deixa um simples objeto para evocar sua memória. Sob as espécies do pão e do vinho está Ele, realmente presente, com o seu Corpo, e seu Sangue, sua Alma e Divindade. Assim, como dizia um clássico da vossa língua (Fr. Antônio das Chagas, Sermões, 1764, p. 220 – S. Caetano): “ajuntando-se um infinito poder com um infinito amor, que se havia de seguir senão o maior milagre e a maravilha maior?”.

Cada vez que nos congregamos para celebrar, como Igreja Pascal que somos, a festa do Cordeiro imolado e redivivo, do Ressuscitado presente no meio de nós, é forçoso ter bem vivo na mente o significado do encontro sacramental e da intimidade com Cristo (cf. João Paulo II, Carta Apostólica Dominicae Cenae, 4; 24 de Fevereiro de 1980) .

2. É desta consciência, amadurecida na fé, que brota a resposta mais profunda e gratificante à pergunta que orienta a reflexão deste Congresso Eucarístico Nacional: “Para onde vais?”. Para que horizontes se dirigem os esforços, com os quais constróis fatigosamente o teu amanhã. Quais são as metas que esperas alcançar através das lutas, do trabalho, dos sacrifícios, a que te submetes no teu dia-a-dia? Sim, para onde vai o homem peregrino pela estrada do mundo e da história?

Creio que, se prestássemos atenção às respostas corajosas ou hesitantes, esperançosas ou dolorosas, que tais perguntas suscitam em cada pessoa – não somente neste País, mas também nas outras regiões da terra – ficaríamos surpreendidos com a identidade substancial que há entre elas. Os caminhos dos homens são, não raro, muito desencontrados entre si, os objetivos imediatos que se propõem, apresentam normalmente características, não só divergentes, mas às vezes até contrárias. E no entanto, a meta última, para a qual todos indistintamente se dirigem, é sempre a mesma: todos procuram a plena felicidade pessoal, no contexto de uma verdadeira comunhão de amor. Se tentardes penetrar até o mais profundo de vossos próprios anseios e dos anseios de quem passa ao vosso lado, descobrireis que é esta a aspiração comum de todos, esta a esperança que, após os fracassos, ressurge sempre, no coração humano, das cinzas de toda desilusão.

O nosso coração procura a felicidade e quer experimentá-la num contexto de amor verdadeiro. Pois bem, o cristão sabe que a satisfação autêntica desta aspiração só se pode encontrar em Deus, a cuja imagem o homem foi criado (cf. Gn Gn 1,27). “Fizestes-nos para Vós, e nosso coração está inquieto enquanto não descansa em Vós” (S. Agostinho, Confessiones, 1,1). Quando Agostinho, de volta de uma tortuosa e inútil procura da felicidade em toda espécie de prazer e de vaidade, escrevia na primeira página de suas “Confissões” estas famosas palavras, não fazia senão dar expressão à exigência essencial que emerge do mais profundo de nosso ser.

3. É uma exigência que não está fadada à decepção e à frustração: a fé nos assegura que Deus veio ao encontro do homem na pessoa de Cristo, no Qual “habita toda a plenitude da divindade”(Col 2 Col 9). Se, pois, o homem deseja encontrar satisfação para a sede de felicidade que lhe abrasa o coração, é para Cristo que deve orientar os seus passos. Cristo não está longe dele. Nossa vida aqui na terra é, na realidade, um contínuo suceder-se de encontros com Cristo: com Cristo presente na Sagrada Escritura, como Palavra de Deus; com Cristo presente nos seus ministros, como Mestre, Sacerdote e Pastor; com Cristo presente no próximo, especialmente nos pobres, nos enfermos, nos marginalizados, que constituem os seus membros sofredores; com Cristo presente nos Sacramentos, que são os canais de sua ação salvadora; com Cristo hóspede silencioso dos nossos corações, onde habita comunicando sua vida divina.

Todo encontro com Cristo deixa marcas profundas. Sejam eles encontros durante a noite, como o de Nicodemos; encontros casuais, como o da Samaritana; encontros procurados, como o da pecadora arrependida; encontros suplicantes, como o do cego às portas de Jericó; ou encontros por curiosidade, como o do Zaqueu; ou também encontros de intimidade, como os dos Apóstolos, chamados para segui-l’O; encontros fulgurantes, como o de Paulo a caminho de Damasco.

Mas, o encontro mais íntimo e transformador, para o qual se ordenam todos os outros encontros, é o encontro à “mesa do mistério eucarístico, isto é, à mesa do pão do Senhor”(cf. João Paulo II, Carta Apostólica Dominicae Cenae, 11; 24 de Fevereiro de 1980). Aqui é Cristo em pessoa quem acolhe o homem, maltratado pelas asperezas do caminho, e o conforta com o calor de sua compreensão e do seu amor. É na Eucaristia que encontram sua plena atuação as dulcíssimas palavras: “Vinde a mim todos os que estais fatigados e oprimidos e eu vos aliviarei”(Mt 11,28). Aquele alívio pessoal e profundo, que constitui a razão última de toda a nossa canseira pelas estradas do mundo, nós o podemos encontrar – ao menos como antecipação e pregustação – naquele Pão divino, que Cristo nos oferece na mesa eucarística.

4. Uma mesa. Não foi por acaso que, desejando dar-se todo a nós, Senhor escolheu a forma da comida em família. O encontro ao redor de uma mesa diz relacionamento interpessoal e possibilidade de conhecimento recíproco, de trocas mútuas, de diálogo enriquecedor. O convite eucarístico se torna assim sinal expressivo de comunhão, de perdão e de amor.

Não são estas as realidades, das quais o nosso coração peregrino se sente necessitado? É impensável felicidade humana autêntica, fora deste contexto de conciliação e de amizade sincera. Pois bem, a Eucaristia não só significa esta realidade, mas a promove eficazmente. São Paulo tem uma frase extremamente clara a este respeito: “Nós – observa ele – somos um só corpo: participamos todos de um só pão”(1Co 10,17). O alimento eucarístico, fazendo-nos “consanguíneos” de Cristo, faz-nos irmãos e irmãs entre nós. São João Crisóstomo sintetiza assim, com estilo incisivo, os efeitos da participação da Eucaristia: “Nós somos aquele mesmo corpo. Que coisa é na realidade o pão? O Corpo de Cristo. Que se tornam os que comungam? O Corpo de Cristo. De fato, como o pão resulta de muitos grãos, embora permaneçam eles mesmos, contudo não aparece a sua distinção, por causa da sua união, assim também nós unimos mutuamente com Cristo. Não se alimenta este de um e aquele de outro corpo diferente, mas todos do mesmo corpo”(S. João Crisóstomo, In Epistulam 1 ad Corinthios).

428 A comunhão eucarística constitui, pois, o sinal da reunião de todos os féis. Sinal verdadeiramente sugestivo porque à sagrada mesa desaparece toda diferença de raça ou de classe social, permanecendo somente a participação de todos do mesmo alimento sagrado. Esta participação, idêntica em todos, significa e realiza a supressão de tudo o que divide os homens e efetua o encontro de todos a um nível superior, onde toda oposição fica eliminada. A Eucaristia torna-se assim o grande instrumento de aproximação dos homens entre si. Toda vez que os fiéis dela participam com coração sincero, não podem deixar de receber um novo impulso para um melhor relacionamento entre si com o reconhecimento recíproco dos próprios direitos, e também dos correspondentes deveres. Desta forma, facilita-se o cumprimento das exigências pedidas pela justiça, devido precisamente ao clima particular de relações interpessoais que a caridade fraterna vai criando dentro da própria comunidade.

É instrutivo lembrar, a este respeito, o que acontecia entre os cristãos dos primeiros tempos, que os Atos dos Apóstolos nos descrevem “assíduos... na fração do pão”(
Ac 2,42). Deles se dizia que “estavam unidos e tinham tudo em comum; vendiam as suas propriedades e seus bens e distribuíam o preço entre todos, segundo a necessidade de cada um”(Ac 2,44-45). Com tal procedimento os primeiros cristãos punham em prática espontaneamente “o princípio, segundo o qual os bens deste mundo estão destinados pelo Criador para atender às necessidades de todos, sem exceção”(cf. Paulo VI, Mensagem para a Quaresma de 1978). A caridade, alimentada na comum “fração do pão”, expressava-se com natural prosseguimento na alegria de gozar juntos dos bens que Deus generosamente tinha posto à disposição de todos. Da Eucaristia brota, como atitude cristã fundamental, a partilha fraterna.

5. Neste ponto e sob esta luz vem-me espontaneamente ao espírito a difícil condição daqueles que, por razões diversas, devem abandonar sua terra de origem e transferir-se para outras regiões: os migrantes. A pergunta: “Para onde vais?” adquire no seu caso uma dimensão particularmente realista: a dimensão do mal-estar e da solidão, não raro, a dimensão da incompreensão e da rejeição.

O quadro da mobilidade humana, neste vosso País, é amplo e complexo. Amplo, porque envolve milhões de pessoas de todas as categorias. Complexo, pelas causas que supõe, pelas consequências que provoca, pelas decisões que exige. O número dos que migram dentro desta imensa Nação atinge, pelo que me é dado saber, alturas que preocupam os responsáveis: uma boa parte deles vai à procura de melhores condições de vida, emigrando de ambientes saturados de população, para lugares mais desabitados ou de melhores condições de clima, que oferecem, por isso mesmo, a possibilidade de um progresso econômico e social mais fácil. E não são poucos também os brasileiros que atravessam a fronteira.

Mas, o Brasil, como também os outros Países do continente americano, é uma nação que já deu muito e muito deve à imigração: apraz-me lembrar aqui os portugueses, os espanhóis, os poloneses, os italianos, os alemães, os franceses, os holandeses e tantos outros da África, do médio e do extremo Oriente, praticamente, do mundo inteiro, que aqui encontraram vida e bem-estar. E, ainda hoje, não são poucos os estrangeiros que pedem trabalho e casa a este sempre generoso Brasil. Nesta complexa situação, como não pensar, pois, no desenraizamento cultural e talvez linguístico, na separação temporária ou definitiva da própria família, nas dificuldades de inserção e de integração no novo ambiente, no desequilíbrio sócio-político, nos dramas psicológicos e em tantas outras consequências, especialmente, de caráter interior e espiritual?

A Igreja do Brasil quis unir a celebração deste Congresso Eucarístico com o problema das migrações. “Para onde vais?”. É uma pergunta à qual cada um deve dar sua resposta, que respeite as legítimas aspirações dos outros. A Igreja não se cansou nem se cansará jamais de proclamar os direitos fundamentais do homem: “o direito de permanecer livremente no próprio País, de ter uma Pátria, de emigrar dentro e para fora do País, por motivos legítimos, de poder ter uma vida de família plena, de contar com os bens necessários para a vida, de conservar e desenvolver o próprio patrimônio étnico, cultural, linguístico, de professar publicamente a própria religião, de ser reconhecido e tratado de acordo com a dignidade de sua pessoa em qualquer circunstância”(Pont. Com. para a Pastoral das Migrações e do Turismo, Igreja e mobilidade humana, 17, 26 de maio de 1978: AAS 70 [1978] 366). Por este motivo, a Igreja não pode dispensar-se da denúncia das situações que constringem muitos à emigração, como o fez em Puebla (cf. Puebla, 29 et 71).

É, porém, necessário que esta denúncia da Igreja seja confirmada com uma ação pastoral concreta, que empenhe todas as suas energias. As das Igrejas dos pontos de partida, através de uma preparação adequada dos que se dispõem a emigrar. As das Igrejas do lugar de chegada, que deverão sentir-se responsáveis por uma boa acolhida, que deverá traduzir-se em gestos fraternos para com os emigrantes.

Que esta fraternidade, que na Eucaristia encontra seu ponto mais alto, se torne aqui uma realidade sempre mais vigorosa. Ao lado dos Índios, primeiros moradores destas terras, os emigrantes, provenientes de todas as partes do mundo, formaram um povo sólido e dinâmico que, amalgamado pela Eucaristia, soube enfrentar e superar, no passado, grandes dificuldades. Os meus votos são de que a fé cristã, alimentada na mesa eucarística, continue a ser o fermento unificador das novas gerações, de tal modo que o Brasil possa sempre olhar sereno para seu futuro e caminhar pelas estradas de um progresso humano autêntico.

6. No início desta Celebração cantastes com entusiasmo:

“Reunistes num só povo / emigrantes, nordestinos, estrangeiros e nativos: / somos todos peregrinos”.

É uma verificação plenamente ligada à realidade. Sim, todos somos peregrinos: perseguidos pelo tempo que passa, errantes pelas estradas da terra, caminhamos nas sombras do provisório à procura daquela paz verdadeira, daquela alegria segura, da qual tanto precisa nosso coração cansado. No banquete eucarístico, Cristo vem ao nosso encontro para oferecer-nos, sob as humildes aparências de pão e de vinho, o penhor daqueles bens supremos para os quais tendemos na esperança. Digamos-lhe, pois, com fé renovada:

429 “Nós formamos o teu povo / que é santo e pecador:
Cria em nós corações novos, transformados pelo amor”.

Homens de coração novo, um coração transformado pelo amor: disto precisa o Brasil para caminhar confiante ao encontro de seu futuro. Eis, por isso, a minha oração e o meu augúrio: que esta Nação possa prosperar sempre espiritual, moral e materialmente, animada com aquele espírito fraterno, que Cristo veio trazer ao mundo. Desapareçam, ou se reduzam gradativamente ao mínimo, no seu interior, as diferenças entre regiões dotadas de particular bem-estar material e regiões menos afortunadas. Desapareçam a pobreza, a miséria moral e espiritual, a marginalização, e que todos os cidadãos se reconheçam e se abracem como autênticos irmãos em Cristo!

Tudo isso será certamente possível se uma nova era de vida eucarística tornar a animar a vida da Igreja no Brasil. O amor e a adoração a Jesus Sacramentado sejam, pois, o sinal mais luminoso de vossa fé, da fé do povo brasileiro!

Ó Jesus Eucaristia, abençoa a tua Igreja, abençoa esta grande Nação, e dá-lhe a prosperidade calma e a paz autêntica! Amém!





VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL



NA SANTA MISSA CELEBRADA EM MANAUS


Sexta-feira, 11 de Julho de 1980




Senhor Arcebispo Administrador Apostólico,
Meus irmãos no Episcopado e no Sacerdócio ministerial,
Caríssimos religiosos e religiosas, queridos irmãos e irmãs

1. No quadro de uma viagem pastoral intensamente desejada como é esta ao Brasil, o Papa desejou muito especialmente esta visita ao Amazonas e concretamente à formosa Manaus, capital deste grande Estado. Eu queria conhecer esta realidade original e dificilmente comparável a tudo quanto pude observar em outros pontos do País. Queria proporcionar às populações desta região a possibilidade de “ver Pedro” na humilde pessoa deste seu sucessor. Queria, mais ainda, nesta Igreja missionária, prestar uma sincera homenagem às missões e aos missionários em geral.

Eu vos saúdo pois a todos vós aqui presentes e em vós saúdo as populações e Dioceses dos Estados do Amazonas e do Acre, e dos Territórios de Rondônia e Roraima e Amapá. Saúdo também as pessoas representantes de grupos chegados da Venezuela. Por vós todos ofereço o Sacrifício Eucarístico. A vós deixo a minha bênção. Rezo por vosso bem-estar material e pelo vosso crescimento na fé. Acompanho vossa vida e vossos trabalhos, vossas angústias e esperanças.

430 Mas peço-vos licença para dirigir-me neste ponto da nossa Eucaristia, de modo particular, aos vossos missionários. Falando-lhes, falo indiretamente de vós e a vós. Confirmando-os em sua missão, confirmo na fé essa comunidade eclesial por eles alimentada e sustentada.

Desejo neste momento ter ainda um pensamento especial para uma significativa parcela da população que constitui – os Índios! E quero aqui repetir substancialmente o que dizia ontem no encontro que tive com eles. A Igreja procura dedicar-se hoje aos Índios, como se dedicou desde a descoberta do Brasil, aos seus antepassados. O Bem-aventurado José de Anchieta, nesse sentido, é um pioneiro e de certo modo um modelo de gerações e gerações de Missionários Jesuítas, Salesianos, Franciscanos, Dominicanos, Capuchinhos, Missionários do Espírito Santo ou do Precioso Sangue, Beneditinos e tantos outros!

Com meritória constância, eles procuraram comunicar-lhes, aos Índios, o Evangelho, e prestar-lhes toda ajuda possível em vista de sua promoção humana.

Confio aos Poderes Públicos e outros responsáveis os votos que eu faço de todo o coração em Nome do Senhor que aos Índios, cujos Antepassados foram os primeiros habitantes desta terra, seja reconhecido o Direito de habitá-la na Paz e na Serenidade!

Têm o temor, verdadeiro pesadelo de serem desalojados em benefício de outros mais seguros, de um espaço vital que será a base não somente para a sobrevivência, mas para a preservação da sua Entidade como um Povo!

A esta questão complexa e espinhosa almejo que se dê uma resposta ponderada, oportuna e inteligente para benefício de todos. Assim se respeitará e favorecerá a dignidade e a liberdade de cada um dos Índios, como Pessoa Humana e como um Povo!

2. Queridos Missionários, Bispos, Irmãos Sacerdotes, Irmãos Religiosos, Irmãs Religiosas, leigos e leigas, todos irmãos e irmãs!

Ao encontrar-vos aqui persegue-me um pensamento: há menos de 20 anos a Providência quis que o então Arcebispo de Cracóvia estivesse intensa e profundamente ligado à preparação de alguns dos mais importantes documentos do Concílio Vaticano II que ele depois assinaria com milhares de outros Padres. Eu vivi, naqueles dias memoráveis de um Concílio eminentemente eclesiástico, as reflexões, os estudos, os debates que iriam definir a Igreja como Povo de Deus reunido em virtude da unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, como sinal e um instrumento da comunhão dos homens entre si e da humanidade com Deus, como sacramento da salvação para o mundo ao qual ela é enviada. Eles proclamariam também que, por tudo isso, esta Igreja é essencialmente missiónaria. Paulo VI retomaria com vigor esta palavra em sua magistral Exortação Apostólica “Evangelii Nuntiandi” (Evangelii Nuntiandi
EN 59 Ad Gentes, 35) sobre a evangelização: “Toda a Igreja é missionária”.

Pois bem, nesta Igreja missionária eu tenho consciência de ser, por força do ministério pontifical que um desígnio misterioso de Deus me confiou, o primeiro responsável pela ação missionária. E esta precisa responsabilidade me trouxe ao Brasil, a vós e me impele a falar-vos com abertura de coração.

3. Quero, antes de tudo, trazer-vos estímulo e encorajamento no vosso labor missionário. Tarefa certamente exigente: ela vos arrancou de vosso país natal ou de outras regiões do Brasil e do seio de vossa família, vos confronta com uma realidade o mais das vezes espinhosa e difícil, pede de vós um trabalho cujos frutos provavelmente não sereis vós a colher.

Como surpreender-nos se, certos dias, sentis pesar essa tarefa com um peso que vos parece, por momento, superior às vossas forças? Nestes momentos, como aliás em todos os outros, devem ser para vós fontes de animo e conforto:

431 – a íntima convicção de que para esta tarefa, não vos apresentastes vós mesmos por nenhuma razão humana: fostes escolhidos e convocados pelo primeiro e supremo missionário Nosso Senhor Jesus Cristo;
– a certeza de que vosso trabalho, não só é útil e necessário, mas é indispensável à construção da Igreja neste pedaço de terra que, bem sei, adotastes como vossa;
– o afeto e a gratidão que tem por vós o povo bom ao qual anunciais o Evangelho;
– e por último, digo-o com total sinceridade, o imenso apreço que o Papa nutre pelo vosso trabalho, o respeito, a admiração, a fraterna amizade que ele tem para com as vossas pessoas.

4. Além destas expressões de encorajamento, desejais que o Papa vos diga ainda algo para a vossa missão?

Pois bem, sede, nesta porção da Igreja aonde Deus vos conduziu pela mão, aquilo que viestes ser: verdadeiros evangelizadores. A verdadeira evangelização, segundo a estimulante perspectiva da Evangelii Nuntiandi, é fundamentalmente o anúncio explícito de Jesus Cristo Redentor do Homem e da sua boa nova de Salvação. É por conseguinte comunicação alegre e esperançosa da revelação sobre a paternidade de Deus, Seu desígnio de amor, Seu Reino que se inicia neste mundo e tende à sua plenitude na eternidade. É também a proclamação de que em e por Jesus Cristo nasce um homem novo renovado na justiça e na santidade e com homens novos deve surgir uma sociedade nova regida pelas normas das bem-aventuranças e inspirada pela caridade que gera fraternidade e solidariedade. Toda evangelização visa portanto suscitar, aprofundar e consolidar a fé e, à luz da fé, tornar possível uma sociedade mais justa e fraterna.

No que concerne à fé, vós encontrais neste país um povo numeroso de batizados, povo profundamente religioso, que recorre a vós como a ministros de Jesus Cristo. Por uma série de circunstâncias históricas, entre as quais avulta a constante insuficiência de sacerdotes e demais ministros sagrados, à edificante piedade popular da maioria dessa gente não corresponde uma adequada formação seja no nível do conhecimento da Palavra de Deus e das verdades fundamentais, seja ao nível da prática sacramental, seja ainda ao nível da inserção da religião na vida e nos diversos aspectos desta.

Vós encontrais, por outro lado, não poucas situações de pobreza, de ignorância, de doenças, de marginalização que clamam por uma atenção desinteressada e eficaz de todos os que podem ajudar à promoção humana integral de amplas massas populares.

5. Vossa atividade missionária vos impele a revelar a todos, pequenos ou grandes, o “mistério escondido desde séculos” (
Col 1,26), a mostrar-lhes o rosto de Deus, a nutri-los com os sacramentos, a ensinar-lhes o caminho da oração, o espírito das bem-aventuranças. Mas essa atividade se complementa com o muito que devereis fazer também para ajudar aos necessitados a promover-se passando de situações de miséria e abandono indignas de filhos de Deus a condições mais humanas de vida. Assim fizeram legiões de missionários antes de vós aqui mesmo na América Latina, aqui mesmo no Brasil.

O que importa – digo-o aqui em homenagem à consciência que certamente já tendes disso – é que o preço de vossa ação em favor da promoção material das pessoas não seja nem de longe a diminuição de vossa atividade estritamente religiosa. Seria um perigoso contra-testemunho tanto mais grave se deixais a impressão de fazê-lo sob o impulso de qualquer imperativo ideológico. A experiência mostra aliás que o testemunho, os pronunciamentos e a ação da Igreja em qualquer um dos seus níveis, só têm credibilidade e verdadeira eficácia no campo social se baseados em um testemunho, pronunciamentos e ação ainda mais intensos no seu campo principal que é o da educação da fé e o da vida sacramental. Se ela faz isso de verdade, é sua melhor forma de preparar cristãos que façam aquilo numa linha de profunda inspiração cristã e sem riscos de desvios.

6. Outra palavra vos quero dizer, breve mas carregada de sentimentos: uma mensagem de um sacerdote a seus irmãos sacerdotes. É o convite que quero deixar-vos em lembrança da minha visita, a serdes missionários em tal profundidade que isso não seja para vós apenas um título, embora belo e glorioso, mas o conteúdo mais profundo de vossa vida sacerdotal. Em outras palavras: que o ser missionário seja a razão de vossa vida, a inspiração profunda de vossa ação, o segredo de vossa espiritualidade.

432 Vosso modelo, nesta espiritualidade missionária, quem poderia ser senão o próprio Cristo, missionário do Pai, constantemente mergulhado na adoração deste Pai Celeste e constantemente entregue até a entrega final sobre a Cruz, à obra de salvação dos homens em total obediência à Vontade do mesmo Pai. Vossa atitude interior mais radical, a de bons pastores cheios de compaixão para com todos os que Deus confia ao vosso zelo, capazes de conhecê-los como o pastor conhece as ovelhas, prontos a nutri-los com a Palavra e os sacramentos, a defendê-los a gastar por eles vosso tempo, talentos, energias e a própria vida. Vossa preocupação, sempre nesta espiritualidade missionária: a de evangelizar mais ainda pelo testemunho de vossa vida do que por vossas palavras. “Forma factus gregis”, escrevia Pedro aos primeiros missionários nos albores da Igreja (1P 5,3); “sede modelos do rebanho”, vos diz o humilde sucessor de Pedro neste encontro convosco. Vosso estímulo permanente: uma imensa caridade, esta caridade reflexo em nós do amor de Cristo, da qual dizia São Paulo que ela nos impele, literalmente: que ela nos punge como aguilhão e nos faz caminhar. Aqui, às margens do rio-mar, como não dizer-vos: “Aquae multae non potuerunt extinguere caritatem”? (Ct 8,7) Os caudais do Amazonas não são capazes de apagar o grande amor a Deus e aos vossos irmãos que aqui vos trouxe, antes são modelo da imensidão e do vigor que deve ter esse amor.

7. Uma palavra ainda: uma comovida homenagem aos milhares de missionários que desde os anos da descoberta até hoje labutaram em toda a extensão do Brasil, e particularmente na região amazônica, “praedicaverunt verbum veritatis et genuerunt ecclesiae” (“pregaram a palavra da verdade e geraram igrejas”) (S. Agostinho Enarr. in Ps 44,23, CCL XXXVIII, p. 510). Quantos vieram de suas pátrias na Europa para nunca mais voltar, quantos esgotaram rapidamente suas jovens energias, consumidos pela fadiga ou pelas doenças, quantos encontraram a morte tragados pelas águas ou dormem o último sono em qualquer túmulo sem nome em um pedaço da imensa floresta? Eu me ajoelho diante de cada uma dessas sepulturas e mais ainda diante de cada uma dessas figuras de missionários, homens como nós, com defeitos e fraquezas, engrandecidos porém pelo testemunho do dom pleno de si mesmos às missões.

São vossos precursores: não cedais nunca à fácil tentação de pensar que a missão começa convosco, mas apoiai-vos sobre o muito que vos deixaram estes vossos irmãos, antepassados.

Sejam também, muitos deles que hoje contemplam a Face de Deus, vossos intercessores.

Entre eles, alguns receberam a glória dos altares como os Mártires do Rio Grande e, há dias, o Beato José de Anchieta a quem vai nossa veneração. Outros escondidos aos olhos dos homens encontram, na luz do Cristo Ressuscitado, o prêmio de seus sacrifícios. Alcancem eles de Deus, para vós, a coragem nas horas sombrias, a alegria de servir com amorosa generosidade e sobretudo a fidelidade que vos faça não olhar para trás, mas caminhar sempre atraídos pelo Senhor que um dia há de dizer-vos no entardecer: “Vem, servo bom e fiel, entra na alegria do teu Senhor” (Mt 25,21). Será esta a palavra definitiva, prêmio de vossos trabalhos, síntese de vossa vida.



Homilias JOÃO PAULO II 423