
Homilias JOÃO PAULO II 919
12 de Maio de 1991
“Saí do Pai e vim ao mundo; de novo deixo o mundo e volto para o Pai” (Io. 16, 28).
1. São palavras pronunciadas por Cristo, no dia anterior à Sua paixão e morte na cruz, quando, no Cenáculo, se despedia dos Apóstolos. “A estes, se apresentou vivo depois da Sua paixão, com muitas provas incontestáveis: durante quarenta dias, apareceu-lhes e falou-lhes do que dizia respeito ao Reino de Deus”(Ac 1,3). Hoje a Igreja celebra solenemente a memória do Quadragésimo dia, actualizada nesta Liturgia da Ascensão, como o Salmo Responsorial nos convidava a proclamar: “Deus sobe por entre aclamações”(Ps 47,6)
920 A partida de Cristo para o Pai é descrita concisamente pelos Autores sagrados. “O Senhor Jesus - diz São Marcos - foi arrebatado ao céu e sentou-se à direita do Pai” (Marc. 16, 19). Nos Actos dos Apóstolos, o evangelista São Lucas escreve: “Elevou-se à vista (dos discípulos) e uma nuvem subtraiu-O a seus olhos”(Ac 1,9). A nuvem era, no Antigo Testamento, um sinal da presença de Deus (Cfr. Ex Ex 13,21-22 Ex 40,34-35), pelo que Jesus Cristo, saindo do meio do mundo visível, é abraçado por essa presença divina. Terminada a existência visível na terra, o Filho Unigénito humanado vive no seio Trinitário com o Pai e o Espírito Santo.
São Paulo na Carta aos Efésios, por sua vez, comenta deste modo o mistério de Ascensão: “Que quer dizer "subiu", senão que primeiro desceu aqui abaixo à terra? Aquele que desceu é também O que subiu ao mais alto dos céus, a fim de preencher todas as coisas”. Assim se cumpriram as palavras do Senhor: “Saí do Pai e vim ao mundo; de novo deixo o mundo e volto para o Pai”.
2. Na Ascensão, Jesus Cristo “sobe” a fim de preencher todas as coisas (Ep 4,9-10): o mundo inteiro, todas as criaturas, a história do homem.
Nesta perspectiva, se explica o último mandato, dado por Jesus aos Apóstolos antes de partir para o Pai: “Ide pelo mundo inteiro e pregai o Evangelho a toda a criatura” (Marc.16, 15). Assim escreve o Evangelista São Marcos, enquanto, nos Actos dos Apóstolos, São Lucas refere: “Sereis Minhas testemunhas - diz o Senhor - em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria, e até aos confins do mundo” (Ac 10,38).
Pregar o Evangelho quer dizer dar testemunho de Cristo: d’Aquele que “passou fazendo o bem” a todos (Cfr. ibid.), d’Aquele que foi crucificado pelos pecados do mundo, d’Aquele que ressuscitou e vive para sempre.
A pregação do Evangelho, isto é, o dar testemunho de Cristo é dever de todas as pessoas baptizadas no Espírito Santo. Antes da Sua partida, o Senhor Jesus sublinha exactamente este facto, ao ordenar aos Apóstolos que esperassem o cumprimento da promessa do Pai: “João baptizou com água, mas vós sereis baptizados no Espírito Santo, dentro de poucos dias... Recebereis uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis Minhas testemunhas” (Ac 1,5 Ac 1,8).
A Igreja, só com a força do Espírito Santo; é que pode dar testemunho de Cristo. Apenas com a Sua força, pode pregar eficazmente o Evangelho a toda a criatura.
A Ascensão do Senhor está intimamente ligada ao Pentecostes, e a Igreja preenche anualmente os dias intermédios entre uma e outro com a Novena do Espírito Santo, cujo início teve lugar no Cenáculo de Jerusalém. Os primeiros a fazerem esta Novena foram os próprios Apóstolos reunidos com a Mãe do Senhor.
3. Jesus Cristo subiu ao mais alto dos céus, para preencher todas as coisas. Esta plenitude do mundo criado realiza-se pela força do Espírito Santo. Esta obra tem lugar na história terrena dos homens e das nações: o Espírito Santo plasma, de modo invisível mas real, o que o Apóstolo São Paulo chama o Corpo de Cristo, referindo-se-lhe nos seguintes termos: “Há um só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a esperança da vocação a que fostes chamados; há um só Senhor, uma só fé, um só baptismo. Há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, actua em todos e em todos se encontra” (Ep 4,4-6).
Deste modo a Ascensão do Senhor não é meramente uma saída. Antes, é o início de uma nova presença e de um novo operar salvífico: “Meu Pai trabalha sempre e Eu também trabalho” (Io.5, 17). Este actuar com a força do Espírito Santo, descido no Pentecostes, do Espírito Paráclito, dá a força divina à vida terrena da humanidade na Igreja visível. Com a força do Espírito Santo, Cristo glorificado à direita do Pai, o Senhor da Igreja estabelece “a uns como apóstolos, a outros como profetas, a outros ainda como evangelistas, pastores e doutores, para o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo” (Ep 4,11-12).
4. Estes são os critérios essenciais da constante vitalidade da Igreja. Nessas palavras da Carta paulina, deve reencontrar a sua identidade mais profunda a Igreja de todo o tempo e lugar. Nelas se revê esta veneranda Igreja do Funchal, que foi, durante tantos anos, mãe das comunidades cristãs que se iam construindo nos territórios aonde chegavam os missionários português: na África, no Oriente, no Brasil. Da Igreja catedral do Funchal nasceram, nesses anos, numerosas Igrejas locais que continuaram, ao longo dos séculos, e continuam ainda a proclamar o Evangelho e a tornar Jesus Cristo presente no mundo.
921 O Papa traz hoje o Seu abraço cordial a esta querida diocese do Funchal, que há tantos anos - recordava-se há momentos - o esperava, bem como a todos os presentes. Apresento a minha saudação deferente e agradecida às autoridades presentes, em especial ao Senhor Presidente da República e aos Órgãos do Poder Regional. Saúdo o vosso Pastor, Dom Teodoro, em venerável amizade e profunda gratidão pelo seu convite e pelas significativas palavras de Boas-Vindas que me dirigiu, no início desta celebração. Saúdo afectuosamente os sacerdotes, religiosos e religiosas, os fiéis leigos, todos os filhos deste Arquipélago da Madeira, que vivem aqui ou emigraram para longe.
Centro de turismo mundialmente conhecido como a “Pérola do Atlântico”, pela beleza apreciável de que o Criador revestiu os cenários destas ilhas, pelos corações hospitaleiros dos residentes, e pelo dom do repouso e da saúde aqui reencontrada, a vossa terra é procurada por grande número de homens e mulheres de diversa proveniência, tradição e crença, dando-vos ocasião para presenteardes essas vidas, em seu tempo livre, com o Absoluto de Deus, com “as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus” (Col 3,1). De facto, os cristãos têm nisto um papel indispensável a desempenhar, cabendo-lhes contribuir para assegurar ao uso do tempo livre o seu verdadeiro enquadramento ético e espiritual: um tempo propício ao desenvolvimento dos valores humanos e à procura e contemplação de Deus.
5. Não é certamente desprovido de significado que o Senhor da História tenha permitido à humanidade deste século entrar na “civilização do lazer”, possibilitando a muita gente um novo espaço de vida, paralelo ao período de trabalho, ou seja, o tempo livre, que, em muitos países, devido à era tecnológica, já supera em extensão e importância o tempo de trabalho.
O homem criado à imagem de Deus, é chamado a realizar na sua vida tanto a dimensão operativa do Criador como a do encontro tranquilo, jubiloso e festivo com as Suas obras: “Deus viu tudo o que tinha feito; era muito bom….Concluída, no sétimo dia, toda a obra que havia feito, Deus repousou, no sétimo dia, do trabalho por Ele realizado” (Gn 1,31 Gn 2,2). Poderíamos dizer que o nosso século se revelou portentoso na primeira dimensão, mas altamente empobrecedor na segunda. Com efeito, o progresso, criado pela técnica, limitou-se quase exclusivamente a “dominar” a natureza e os seus produtos, mas não progrediu de igual modo no “domínio” que o homem é chamado a ter sobre o seu destino. Pelo contrário, verifica-se uma acentuada perda de consciência de si próprio e da sua dignidade.
Infelizmente certas formas de trabalho produtivo, tendem a despojar o próprio trabalho da sua dimensão humana, a favor da sua eficiência técnica, apresentando-se como uma experiência árida, reduzida ao automatismo de gestos e movimentos mecânicos cadenciados num ritmo obrigatório, privada de relacionamentos humanos e no seio da qual se torna difícil exprimir a própria identidade. Urge que o tempo livre readquira as dimensões de humanização que o trabalho perdeu.
6. Em particular, o tempo livre deverá permitir ao homem achar a possibilidade de realização do verdadeiro humanismo, qual é o do “homem pascal”, que a Igreja anuncia e testemunha, resplandecente da Vida Nova, que o livra do pecado e lha abre os horizontes da eternidade, encontrando em Deus o repouso à medida do seu coração inquieto (Cfr. S. Augustini Confessiones, I, 1). Na verdade, o Senhor, enquanto ser absolutamente bom, repousa em Si próprio, na Sua plenitude; o homem, imagem de Deus, só poderá repousar em Deus, em Quem encontra o seu significado e a sua santidade.
O “homem pascal” não tem necessidade de falsos infinitos, ou de superlativos do mais belo, do maior e do mais emocionante, porque ele sabe que a sua ilimitada liberdade está contida e guardada na celebração do Acontecimento Pascal: a Páscoa tem e dá a liberdade que anima o tempo livre como o seu princípio mais íntimo. Desta liberdade pascal brota aquela soberania de vida cristã que difunde e dá tranquilidade, ou seja, que leva ao repouso e o suscita. Porque “remido por Cristo e tornado nova criatura no Espírito Santo, o homem pode e deve amar as coisas criadas por Deus. Recebeu-as de Deus e considera-as e respeita-as como vindas da mão do Senhor. Dando por elas graças ao Benfeitor, e usando e aproveitando as criaturas em pobreza e liberdade de espírito, é introduzido no verdadeiro senhorio do mundo, como quem nada tem e tudo possui. "Todas as coisas são vossas; mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus"(1Co 3,22-23) ”. (Gaudium et Spes GS 37)
Assim o homem novo em dignidade, contemplação e adoração, entrega-se confiante a Deus, numa grande festa de toda a criação restaurada. Celebra-se o esplendor renovado e a bondade plena do mundo em Deus: Cristo ressuscitado, na Sua graça infinita, liberta o homem dos seus limites. A Páscoa é a nova criação do mundo e do homem. Tudo isto o celebramos na Eucaristia dominical: o novo, o criativo, o repousante até “à última Vinda de Cristo Salvador” (“Ordinarium Missae”, Embolismus ad “Pater Noster”).
7. “Homens da Galileia, porque estais a olhar para o céu? Esse Jesus, que vos foi arrebatado para o céu, virá da mesma maneira como agora O vistes partir”(Ac 1,11).
Com estas palavras, termina o relato da Ascensão do Senhor. Antes o próprio Cristo dissera: “Náo vos deixarei órfãos, voltarei para vós” (Io. 14, 18), afirmação que poderíamos julgar referida apenas às aparições naqueles 40 dias, após a ressurreição. Mas não! De facto, quando já subia definitivamente para o Pai, disse: “Eu estou convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (Matth. 28, 20).
Este “Eu estou” tem a força do Nome de Deus. “Eu estou” como Filho no Pai (ou, à direita do Pai), e “estou convosco” (quer dizer, com a Igreja e o mundo), no poder do Espírito Santo. Graças a este poder, o nosso permanecer na fé cristã tem carácter de expectativa pela Sua Vinda: a Segunda e definitiva Vinda de Cristo Salvador.
922 Esta expectativa, porém, não é passiva: ela constitui a edificação do Corpo de Cristo. A humanidade deve dar este “Corpo” definitivo e escatológico Àquele que assumiu o corpo, fazendo-se Homem no seio da Virgem Maria. Não fiquemos, pois, passivamente à sua espera! Por todo o lado, no trabalho ou no tempo livre, na tua terra ou viajando por outros lugares, quando acolhes o outro ou aceitas a sua hospedagem, tu és arauto itinerante de Cristo! É que devemos chegar “todos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus”. Devemos chegar “ao estado do homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo” (Ep 4,13).
A Ascensão do Senhor é, à luz da Liturgia de hoje, a solenidade da maturação no Espírito Santo para “a Plenitude de Cristo”. Jesus conduz-nos ao Pai: Ele próprio permanece o Pastor Eterno das nossas almas (Cfr. 1Petr. 2, 25). Louvado seja Ele para sempre. Amém.
Segunda-feira, 13 de Maio de 1991
“Eis a tua Mãe” (Jn 19,27)!
1. A Liturgia coloca hoje diante dos nossos olhos, queridos irmãos e irmãs, um vasto horizonte da história do homem e do mundo. As palavras do livro do Génesis trazem-nos ao pensamento a origem do universo, a obra da criação; do primeiro livro vamos ao último, o Apocalipse, para contemplar com os olhos da fé “um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido” (Ap 21,19, pois, o principio e o fim; o Alfa e o Ómega (Cfr. ibid. Ap 21,6). Todavia o fim é um novo princípio, porque é plena realização tudo em Deus: “A morada Deus com os homens” (Ibid. Ap 21,3).
Assim entre o primeiro princípio e este novo e definitivo começo, transcorre a história do homem criado por Deus “à Sua imagem”, como no-lo diz a Palavra do Senhor: “Deus criou o homem à Sua imagem; à imagem de Deus o criou; varão e mulher os criou”(Gn 1,27).
2. No centro desta história do homem e do mundo, ergue-se a Cruz de Cristo sobre o Gólgota. O homem, criado varão e mulher, reencontra nesta Cruz a profundidade exacta do seu próprio mistério, que se revela nas palavras do Homem das dores à Sua Mãe, que estava junto da Cruz: “Mulher, eis o teu filho”! E em seguida dirigindo-se ao discípulo amado: “Eis a tua Mãe” (Jn 19,26-27).
O homem, criado à imagem de Deus, é coroa de toda a criação. Confundido diante da sua grandeza, o Salmista desabafa:
“Fizeste-lo pouco menor que os anjos; / de glória e de honra o coroastes! / Destes-lhe poder sobre a obra das vossas mãos: / tudo submetestes a seus pés. / Ó Senhor, nosso Deus, / que é o homem para que Vos lembreis dele? / E o filho do homem para que dele cuideis?” (Ps 8,6-7 Ps 8,2 Ps 8,5).
Que é o homem?
A pergunta do Salmista soa com uma estupefacção ainda mais profunda diante deste mistério que encontra o seu clímax no Gólgota. Que é o homem, se o Verbo, o Filho consubstancial ao Pai, se fez homem, Filho do Homem nascido da Virgem Maria por obra do Espírito Santo?
923 Que é o homem. ...se o próprio Filho de Deus, e simultaneamente verdadeiro homem, tomou sobre Si os pecados de todos os homens e os carregou, como Homem das dores, como Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, sobre o altar da Cruz?
Que é o homem? A admiração do Salmista diante da grandeza misteriosa do homem, tal como lhe aparece na obra da criação, torna-se ainda maior na contemplação da obra da Redenção.
Que é o homem?
3. Desde o início, ele foi constituído senhor da Terra, senhor do mundo visível. Mas a sua grandeza não se manifesta apenas no facto de sujeitar e dominar a Terra (cfr. Gen Gn 1,28). A dimensão própria da sua grandeza é a glória de Deus: como escreverá Santo Ireneu, “a glória de Deus é o homem vivo, mas a vida do homem é a contemplação de Deus” (S. Irenaei Adversus Haereses, IV, 20, 7). O homem está colocado no centro do mundo das criaturas visíveis e invisíveis, todas elas invadidas pela glória do Criador: proclamam a Sua glória.
E assim através da história do Cosmos visível (e invisível), se eleva, como um Templo imenso, um delineamento do Reino eterno de Deus. O homem - varão e mulher - foi colocado desde o início no meio deste Templo. Ele próprio se tornou a sua dimensão central, e verdadeira “morada de Deus com os homens”, já que foi por motivo e amor do homem que Deus entrou no mundo criado.
Caríssimos irmãos, a “morada de Deus com os homens” atingiu a sua culminância em Cristo. Ele é “a nova Jerusalém”(Cfr. Apoc Ap 21,2) de todos os homens e povos, uma vez que n’Ele todos foram eleitos para os destinos eternos em Deus. É também o início do Reino eterno de Deus, na história do homem, e este Reino - n’Ele e por Ele - é a realidade definitiva do céu e da terra. É um “novo céu e uma nova terra”, onde “o primeiro céu e a primeira terra” encontrarão o seu pleno cumprimento.
4. Testemunha-o a Cruz no Gólgota, que é a Cruz da nossa Redenção. Na Cruz está patente toda a história do homem, que é simultaneamente a história do pecado e do sofrimento.Está marcada pelas lágrimas e pela morte, como o refere o Livro do Apocalipse: quantas lágrimas nos olhos humanos, quanto luto e lamento, quanta fadiga humana! (Cfr. ibid. 21, 4) E, no fim da existência terrena, a morte. Esta constituiu precisamente o progressivo desaparecimento “do primeiro céu e da primeira terra”, marcados pela herança do pecado.
Não é esta, porventura, a verdade de toda a história? Esta verdade não está confirmada - de modo particular - pelo nosso século, já a caminho do seu termo, conjuntamente com o Segundo Milénio da história depois de Cristo?
O nosso século confirma - talvez como nenhum outro até agora - a verdade das palavras do Salmista sobre o homem e a sua grandeza, e ao mesmo tempo a verdade do Apocalipse a propósito das lágrimas, do sofrimento e da morte. O homem tornou-se, mais que nunca, senhor da criação, dominando os elementos e as energias da natureza; mas contemporaneamente demonstrou a potência avassaladora do pecado, o qual nasce no íntimo do homem, e frutifica em depravação, destruição e morte, levada até ao extremo de guerras totais, e de métodos que exterminam não apenas os indivíduos, mas povos e nações inteiras.
5. A Cruz de Cristo não cessa de o testemunhar! Entretanto só ela - esta Cruz de Cristo - perdura, através da história do homem, como sinal da certeza da Redenção.
Mediante a Cruz de seu Filho, Deus repete de geração em geração a Sua verdade acerca da criação: “Eis que Eu faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). O primeiro céu e a primeira terra continuam a passar... Perante eles, permanece Cristo indefeso, despojado de tudo no tormento mortal, Filho do Homem crucificado! E, no entanto, Ele não cessa de ser sinal da certeza vitoriosa da vida. Pela Sua morte, foi semeado, no seio da terra, o poder invencível da Vida Nova; a Sua morte é princípio de ressurreição:
924 “Onde está, ó morte, a tua vitória? / Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (1Co 15,55).
Mediante a Cruz sobre o Gólgota, desce de junto de Deus, na história da humanidade, na história de cada século, “a cidade santa, a Nova Jerusalém... como esposa adornada para o seu esposo”(Ap 21,2).
6. De coração profundamente comovido e maravilhado diante do plano criador e salvífico de Deus para realizar a plenitude a que Ele nos chamou, Eu, Peregrino convosco dessa Nova Jerusalém, vos exorto, queridos irmãos e irmãs, a acolher a Graça e o Apelo que neste lugar se sente mais palpável e penetrante, no sentido de ajustarmos os nossos caminhos aos de Deus. Saúdo-vos a todos, amados peregrinos de Nossa Senhora de Fátima, aqui presentes física ou espiritualmente. Mas de um modo especial a minha saudação cordial e deferente vai para o Senhor Presidente da República, nesta Terra de Santa Maria; saúdo afectuosamente o Senhor Bispo de Leiria-Fátima, Dom Alberto - a quem agradeço as amáveis palavras de Boas Vindas - e os demais veneráveis Irmãos no Episcopado aqui presentes. Una saudação fraterna portadora de esperança e encorajamento à Igreja de Angola, aqui presente na pessoa dos Pastores com um significativo número dos seus diocesanos, em romagem de gratidão à sua Padroeira, neste Ano Jubilar da sua Evangelização, iniciada em Soyo, local onde no século XV os portugueses pela primeira vez celebraram a Santa Missa e baptizaram os primeiros nativos daquele território.
Finalmente, movido pela Palavra de Deus nesta Celebração Eucarística - “varão e mulher os criou”! (Gn 1,27) - é-me grato exprimir às famílias a minha saudação propiciadora de todas as bênçãos de Deus para o vosso lar, os filhos e a vossa vida em comum. A vossa tarefa fundamental é realizar através da história a bênção originária do Criador - “crescei e multiplicai-vos” (Ibid. 1, 28) - transmitindo a “imagem divina” pela geração de novos filhos.
Queridas famílias: o vosso serviço generoso e respeitador da vida será possível hoje, como foi sempre, se vos detiverdes na contemplação da dignidade humana e sobrenatural dos filhos que gerais: cada homem é objecto do amor infinito de Deus que o resgatou. As famílias que não recusam os seus deveres relativos à procriação, dentro de um conveniente sentido de paternidade responsável e de confiança na Providência divina, dão ao mundo um insubstituível testemunho do mais alto valor. São um desafio à mentalidade antinatalista reinante, e uma justa condenação dessa mentalidade, que de tal modo nega a vida que chega a sacrificá-la, em muitos casos, ainda no seio materno, por meio do aborto, crime nefando, como declara o Concílio (cfr. Gaudium et Spes GS 27). Peço-vos, pois, estimadas famílias, esse serviço generoso e respeitador da vida. “Contra o pessimismo e o egoísmo que obscurecem o mundo, a Igreja está do lado da vida: e em cada vida sabe descobrir o esplendor daquele "sim", daquele "Amém" que é o próprio Cristo (Cfr. 2Co 1,19 Ap 3,14). Ao "não" que invade e aflige o mundo, contrapõe este "Sim" vivente, defendendo deste modo o homem e o mundo de quantos insidiam e mortificam a vida” (Familiaris Consortio FC 30).
7. “Mulher, eis o Teu filho!” - “Eis a tua Mãe!”.
O Santuário de Fátima é um lugar privilegiado, dotado de um valor especial: contém em si uma mensagem importante para a época que estamos a viver. É como se aqui, no início do nosso século, tivessem ressoado, com um novo eco, as palavras pronunciadas no Gólgota.
Maria, que estava junto da Cruz de Seu Filho, teve de acolher uma vez mais a vontade de Cristo, Filho de Deus. Mas enquanto, no Gólgota, o Filho lhe indicava um só homem, João, Seu discípulo amado, aqui Ela teve de os acolher a todos. Todos nós, os homens deste século e da sua difícil e dramática história.
Nestes homens do século XX, revelou-se com igual grandeza, quer a sua capacidade de subjugar a Terra, quer a sua liberdade de fugir ao mandamento de Deus e de o negar, como herança do seu pecado. A herança do pecado mostra-se como uma louca aspiração de construir o mundo - um mundo criado pelo homem -, “como se Deus não existisse”. E também como se não existisse aquela Cruz no Gólgota, onde “Morte e Vida se enfrentaram num duelo singular”, a fim de se manifestar que o amor é mais poderoso do que a morte, e que a glória de Deus é o homem vivo.
Mãe do Redentor! Mãe do nosso século!
Pela segunda vez, estou diante de Ti, neste Santuário, para beijar as Tuas mãos, porque estiveste firme junto da Cruz do teu Filho, que é a cruz de toda a história do homem, também do nosso século.
925 Estiveste e continuas a estar, pousando o Teu olhar nos corações destes filhos e filhas que pertencem já ao Terceiro Milénio. Estiveste e continuas a estar velando, com mil cuidados de Mãe, e defendendo, com Tua poderosa intercessão, o amanhecer da Luz de Cristo no seio de povos e nações.
Tu estás e permanecerás, porque o Filho Unigénito de Deus, Teu Filho, Te confiou todos os homens, quando ao morrer sobre a Cruz nos introduziu, no novo princípio de tudo quanto existe. A tua maternidade universal, ó Virgem Maria, é a âncora segura de salvação da humanidade inteira. Mãe do Redentor! Cheia de Graça! Eu Te saúdo, Mãe da confiança de todas as gerações humanas!
«Praça do Congresso» (Natal) - 13 de Outubro de 1991
“Minha carne é verdadeiramente uma comida e meu sangue verdadeiramente uma bebida” (Jn 6,55).
Confesso junto a todos vós, caros Irmãos e Irmãs, esta verdade da nossa fé e de nossa vida de fé. Nós a professamos juntos ao longo deste Congresso, que se tornou o grande altar onde o Brasil inteiro está venerando e celebrando o Mistério Eucarístico.
É uma circunstância feliz que o Congresso esteja sendo realizado em Natal. Precisamente aqui, em 1645 um homem simples, profundamente religioso, Matias Moreira, deu, com seus companheiros na região conhecida por Cunhaú e Uruaçú, um belo testemunho que lembra o dos mártires da Igreja. Quando insultado e ferido pelos hereges por sua recusa em renegar a fé na Eucaristia e a fidelidade à Igreja do Papa, exclamou, quando lhe abriam o peito para arrancar-lhe o coração: “Louvado seja o Santíssimo Sacramento!”.
Irmãos e Irmãs, esta magnífica profissão de fé, regou com sangue generoso a terra onde o Brasil inteiro veio reafirmar sua devoção na presença real de Cristo na Eucaristia.
Ao renovar, neste momento, com todos vós que aqui estais, esta mesma profissão de fé, desejo abraçar a todas as regiões deste imenso país, que é de certo modo, um continente no continente sul-americano. Venho neste dia iniciar a visita à Igreja em terras brasileiras. Mesmo sendo o percurso da minha peregrinação necessariamente limitado, sinto-me, no entanto, no meu coração e na minha oração, unido a todos. Convido os brasileiros de todas as regiões para este banquete eucarístico, preparado para nós pelo Senhor: do longíquo Amazonas e de todo o Norte e Nordeste, da costa do Atlântico e do Sul, das montanhas e dos vastos planaltos do Centro e também das fronteiras do Oeste.
Todos nos unimos numa única afirmação da fé eucarística e na adoração do mistério: “Ave verum Corpus natum de Maria Virgine”.
2. “Lembra-te de todo o caminho por onde o Senhor te conduziu” (Dt 8,2). Lemos estas palavras no Livro do Deuteronômio que recordam a Israel, os quarenta anos de sua Peregrinação através do deserto, quando com o poder de Deus o libertou da escravidão do Egito: “Que teu coração não caia no orgulho de te esqueceres que foi o Senhor teu Deus, quem te tirou do Egito, da casa da servidão” (Ib.8, 14).
Aquele deserto é uma imagem da vida dos homens e dos povos. Por quais caminhos o Senhor Deus guiou o povo desta terra brasileira no decorrer dos séculos? De quantos lugares chegastes aqui? E continuais caminhando. O Brasil é o cenário de grandes migrações em busca de trabalho, de pão e de casa.
926 O deserto é imagem da vida humana sobre a terra - em qualquer lugar, mesmo se esta terra fosse a mais fértil e possuísse toda a riqueza da civilização moderna. Em qualquer lugar: o homem é um peregrino do Absoluto. É peregrino em direção à casa do Pai, onde tem a verdadeira morada.
Assim como o corpo humano tem necessariamente fome de pão e sede de água, para não cair na exaustão, o espírito humano, criado à imagem e semelhança de Deus, tem sede de Deus: “Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo” (Ps 42,2).
3. A Eucaristia é a resposta de Deus a esta sede dos homens que caminham neste mundo em direção à Pátria celestial. No deserto, Deus alimentou o seu povo com o maná que caía do céu. O maná era a figura da Eucaristia. Cristo disse: “Eu sou o pão vivo que desci do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão, que eu darei, é minha carne para a salvação do mundo” (Jn 6,51-52).
Jesus de Nazaré pronunciou estas palavras, depois da milagrosa multiplicação dos pães nas imediações de Cafarnaum. Muitos dos presentes não podiam compreendê-l’O. Diziam: “Dura é esta linguagem” (Ib. 6, 60). E saíram não querendo mais escutar aquilo que Jesus dizia, tão inverossímeis lhes pareciam aquelas palavras.
Foi preciso chegar à última ceia em Jerusalém. Foi necessário que no dia seguinte o Corpo de Cristo fosse entregue à morte na Cruz, que Seu Sangue fosse derramado em sacrifício propiciatório pelos pecados do mundo, para que a Eucaristia viesse a ser o alimento sacramental e a bebida da Igreja desde os primeiros dias, até os nossos tempos... até o fim do mundo.
4. Os apóstolos que, no dia de Pentecostes, a partir do cenáculo de Jerusalém, foram por todo o mundo anunciar que “Jesus é o Senhor” (Rm 10,9), transmitiram-nos o Evangelho e a Eucaristia. O Evangelho é o testemunho do Filho de Deus crucificado e ressuscitado. A Eucaristia é o sacramento do Seu sacrifício redentor pela vida do mundo.
5. Quando o Senhor instituiu a Sagrada Eucaristia, na Última Ceia, era noite, o que manifestava - como comenta São João Crisóstomo - que os tempos se tinham cumprido (S. Ioannis Chrysostomi In Matthaeum homiliae, 82, 1: ). Abriu-se assim o caminho para um verdadeiro amanhecer: a nova Páscoa. A Eucaristia foi instituída durante a noite, preparando a manhã da Ressurreição. Ela está a indicar-nos que não voltaremos a nos alimentar do maná do deserto, nós que temos o Pão de hoje e de sempre.
Queridos Irmãos e Irmãs, o Papa quer iniciar essa Sua peregrinação por terras brasileiras, precisamente no quadro da Celebração Eucarística, porque é o portador da mensagem do Altíssimo, do “Verbo que se fez Carne” (Cf. Jo Jn 1,14) para anunciar esse novo amanhecer que vai despontando no horizonte. O XII Congresso Eucarístico Nacional, que teve por lema “Eucaristia e Evangelização”, foi como o sopro do Espírito Santo que “procura fazer germinar "as sementes do Verbo", presentes nas iniciativas religiosas e nos esforços humanos à procura da verdade, do bem e de Deus” (Redemptoris Missio RMi 28). Agradeço ao querido Irmão no Episcopado, Dom Alaír Vilar Fernandes de Melo e a toda Comissão organizadora deste Congresso, pelo carinho e dedicação que puseram na sua preparação e realização, e aproveito a oportunidade para saudar o Senhor Cardeal Dom Nicolás Lopez Rodriguez, formulando meus votos de felicidades no início de seu mandato como Presidente do CELAM.
Peço a Deus que a vigilia de oração, que contou com a participação de muitos dos que estais aqui para preparar esta solene Eucaristia, reanime a graça de Deus que está no povo desta terra, no povo brasileiro.
Cristo Nosso Senhor, é o Divino semeador que segura o trigo com suas mãos chagadas, embebe-o no Seu Sangue, limpa-o, purifica-o e lança-o no sulco do mundo. Lança os grãos um a um, para que cada cristão, no seu próprio ambiente, dê testemunho da fecundidade da Morte e da Ressurreição do Senhor.
Não percamos de vista o que eu dizia na Encíclica “Redemptoris Missio”: “A primeira beneficiária da salvação é a Igreja: Cristo adquiriu-a com o Seu Sangue (Cf. Act Ac 20,28) e tornou-a Sua cooperadora na obra da salvação universal” (Redemptoris Missio RMi 9). A salvação, que é dom do Espírito, exige a colaboração do homem, para se salvar tanto a si próprio como aos outros. É preciso, portanto, espalhar generosamente a palavra de Deus, fazer que os homens conheçam a Cristo e, conhecendo-O, tenham fome d’Ele. “Porém - dizia São Paulo - como invocarão aquele em quem não têm fé? E como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão falar, se não houver quem pregue? (Rm 10,14) Por isso, é significativo que a introdução ao Texto-base deste Congresso, anime a todos a um “esforço maior à dimensão evangelizadora... que possa desencadear todo um trabalho missionário, não só de massas, mas também de pequenos grupos ou setores especializados”. “Ele servirá - acrescenta-se mais adiante - para preparar e capacitar os agentes pastorais: sacerdotes, religiosos e leigos que, por sua vez, levarão esta mensagem às bases”. Urge, assim, refletir e levar à prática suas conclusões, face a uma nova evangelização que represente uma penetração da fé “nos corações de todos os homens e de todas as mulheres, nas estruturas sociais e políticas, nas famílias e sobretudo nos jovens, nos ambientes do saber e do trabalho, nos grupos étnicos e indígenas, nas aldeias e cidades”.
927 6. Este clima de fervor apostólico, que está na base da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, convocada para 1992 em Santo Domingo, é também a luz que iluminou a todos os que participaram dos trabalhos deste Congresso, que hoje tenho o prazer de encerrar, nesta solene celebração eucarística. Possa o divino Espírito Santo irradiar sobre todos, Bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos abundantes graças de ação evangelizadora, para que daqui surjam os frutos de paz, de amor e de santidade que a Igreja espera, no Brasil e desde o Brasil.
7. “A fé provém da Pregação e a pregação - nos diz São Paulo - se exerce em razão da palavra de Cristo” (Rm 10,17).
Em Cafarnaum os apóstolos ouviram o anúncio da Eucaristia feito por Cristo. Apesar de que muitos dos que estavam ali tenham-se retirado, os apóstolos não se foram. À pergunta de Cristo responderam: “Senhor, a quem iríamos nós? Somente Tu tens palavras de vida eterna” (Jn 6,68).
A verdade eucarística é a Palavra da vida eterna. Jesus diz: “Em verdade, em verdade Eu vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós mesmos. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia” (Jn 6,53-54). E continua: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Assim como o Pai que me enviou vive, e eu vivo pelo Pai, assim também aquele que comer a minha carne, viverá por mim” (Ib. 6, 56-57).
Queridos Irmãos e Irmãs, Igreja que estais no Brasil, povo do Deus vivo!
A quem iremos?
Ele - o Cristo - “somente Ele, tem palavras de vida eterna”.
Homilias JOÃO PAULO II 919