Homilias JOÃO PAULO II 850

1982




MISSA NO PONTIFÍCIO COLÉGIO PIO BRASILEIRO DE ROMA

HOMILIA DE JOÃO PAULO II

17 de Janeiro de 1982




Meus amados irmãos e irmãs,
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

1. São páginas de alto teor espiritual e profunda significação prática as que se abrem, nesta Eucaristia, à nossa meditação.

A primeira é do Antigo Testamento. No meio da noite Deus pronuncia com insistência o nome de um jovem no Templo. Este meio da noite é a imagem do sossego e da despreocupação: Samuel dorme ao lado da Arca do Senhor e o profeta o convida a dormir ainda. Imagem também do desconhecimento da Verdade: “Samuel não havia conhecido até então o Senhor” – comenta o cronista sagrado – “nem lhe fora revelada a palavra do Senhor”. Contudo, no meio da noite, o Senhor não cessa de chamá-lo – Samuel! Samuel! – até que, instruído por Heli, o jovem responde: “Fala, Senhor, teu servo escuta”!

851 A segunda página é do Evangelho de São João. À voz do Batista que designa o Cordeiro de Deus, André e um outro discípulo empreendem a “sequela Christi”: “Onde moras?”. “Vinde e vereis”, responde Jesus. “E permaneceram com Ele”. Permanecerão até o extremo fim, como permanecerá Pedro, atraído pelo irmão André, como permanecerão outros tantos.

No prolongamento das duas primeiras, a terceira página, de São Paulo, diz a todo aquele que respondeu ao chamado do Senhor: “Tu não pertences a ti mesmo! Teu corpo, teu ser é para a glória de Deus! Quem uma vez se uniu ao Senhor faz um só espírito com ele!”. E acrescenta: “Fugi à prostituição”, isto é, a toda traição e infidelidade, a toda idolatria.

2. Assim, pois, neste início do “tempo comum”, a Liturgia nos coloca diante dos olhos e da consciência o tema do chamado de Deus. Belo e significativo, liturgicamente, este “tempo comum”: porque nenhum mistério cristão especial o assinala, nenhuma festa o distingue, ele é, à luz do mistério de Cristo, a celebração da nossa vida comum, daquele quotidiano, por vezes opaco e irrelevante, mas luminoso porque portador da presença e da graça do Senhor. Falando da vocação nesta abertura do “tempo comum” – o “tempus per annum” do Missal – a Liturgia nos inculca que, no dia-a-dia da nossa existência, nós carregamos um chamado de Deus que dá sentido à nossa vida. E para nós aqui reunidos o Senhor reservou um chamado especial: a vocação a servi-Lo, servindo à Igreja e ao próximo, no ministério sacerdotal.

É para vós esta mensagem, caríssimos religiosos da Companhia de Jesus, encarregados da direcção e animação deste Colégio. Encarregados por Deus de velar pela vocação dos seminaristas e sacerdotes aqui presentes, vós lhes repetis, com palavras e com o testemunho da vida, a palavra de Heli a Samuel: “Se te chamam, dize: 'Fala, Senhor, teu servo escuta'”, ou a palavra do Precursor: “Aquele é o Cordeiro de Deus”.

É para vós esta mensagem, queridos sacerdotes de várias Dioceses brasileiras, residentes nesta Casa durante o período de vosso aperfeiçoamento em Roma.

É para vós, jovens seminaristas, aqui enviados por vossos Bispos para os estudos filosóficos e teológicos e sobretudo para uma séria e acurada preparação ao sacerdócio.

Para vós, religiosas do Amor Divino, que, na fidelidade à vossa vocação religiosa, prestais vosso dedicado serviço para o melhor andamento e para o clima familiar do Colégio.

É para vós esta mensagem e sinto-me feliz em proclamá-la nesta visita que de há muito ansiava por fazer-vos, quase a prolongar, neste pedaço de Brasil em Roma, a visita inesquecível que tive a alegria de fazer ao vosso País. Várias circunstâncias atrasaram minha vinda aqui; mas o atraso tornou ainda mais vivo o desejo de vir e mais intenso o prazer de estar hoje convosco.

3. Foi a serviço das levas de jovens brasileiros chamados por Deus – como o Samuel da primeira leitura ou André e Simão do Evangelho – que o Episcopado brasileiro há quase cinquenta anos, em abril de 1934, abriu as portas desta Casa, erguida com sacrifícios e renúncias, construída com amor e esperança. Os bustos dos eminentíssimos Cardeais Sebastião Leme da Silveira Cintra, então Arcebispo do Rio de Janeiro, e Benedetto Aloisi-Masella, então Núncio Apostólico no Brasil, colocados à entrada do Colégio, querem ser uma homenagem aos dois principais idealizadores e impulsionadores do grande empreendimento. Mas eles evocam também muitas outras pessoas que, no silêncio e no escondimento, como pedras de alicerce, entraram na construção deste Colégio. Recordando-os e recordando quantos, nestas quase cinco décadas, passaram por esta casa como membros da direcção ou como alunos, é natural interrogar-nos sobre as finalidades e o sentido do Colégio. Da resposta a essa interrogação depende muito a eficácia verdadeira do Colégio na hora atual. Uma simples reflexão, que desejo partilhar convosco, conduzirá a esta resposta.

4. Imponente pelo número de seus fiéis, marcante pela sua vitalidade, influente pela autoridade moral de que desfruta e, ao mesmo tempo, padecendo dos graves problemas atuais, alguns de âmbito geral, outros típicos de sua situação, a Igreja no Brasil tem urgente necessidade de sacerdotes bem formados. Posso confidenciar-vos que foi esta uma das impressões mais vivas e sentidas que trouxe de minha visita ao Brasil. É certo que no Brasil numerosos leigos, com exemplar disponibilidade e admirável senso eclesial, participam da missão da Igreja a todos os níveis; mas a experiência mostra que tal participação laical, longe de dispensar, exige ainda mais a atuação qualificada dos sacerdotes, com seu carisma próprio.

Não é difícil compreender que quanto menos numerosos são esses sacerdotes (come é lamentavelmente o caso no Brasil) melhor deve ser sua formação. Mas não hesito em acrescentar: na medida em que se verifica um despertar vocacional, de maior ou menor proporção no País, a formação dos futuros sacerdotes se revela igualmente urgente como condição indispensável da validade, duração e eficácia deste despertar. Em outras palavras, a alegre esperança de ter amanhã mais sacerdotes vale quanto vale a certeza de ter sacerdotes bem formados.

852 5. Os sacerdotes de que o Brasil precisa devem ser antes de tudo bons e devotados Pastores. A gente boa e simples, herdeira de uma fé também singela mas arraigada, bem como as faixas instruídas da população, os líderes e “construtores da sociedade pluralista”, os adultos como as gerações emergentes precisam desses Pastores revestidos das qualidades que os tornam realmente aptos a servir como autênticos ministros de Jesus Cristo:

– pastores próximos ao seu povo pela simplicidade, a compreensão e a abertura;

– pastores prudentes, corajosos, dotados de “sapientia cordis” para indicar caminhos para a vida sobretudo em momentos difíceis;

– pastores que sejam verdadeiros mestres, fiéis ao Magistério e educadores do povo de Deus na fé, pregadores da Palavra de Deus, para que não se cumpra o que diz o livro de Samuel: “Naqueles dias a Palavra de Deus se tornara rara...”

– pastores capazes de criar comunhão reunindo os dispersos, reconciliando os distantes, construindo com amor e paciência a comunidade;

– pastores que sejam mestres de oração;

– pastores de vida santa: de fé sólida e contagiante, de caridade irradiante, de oração permanente, de pureza, bondade e mansidão, de coração aberto para estar ao lado sobretudo dos mais pobres e necessitados, sem excluir ninguém da sua solicitude de pais e pastores;

– pastores convictos da própria missão, alegres na sua vocação, que encontram sua realização no ministério de que são investidos por graça e predilecção do Senhor.

6. Ora, para formar ou aperfeiçoar tais pastores, surgiu em boa hora este Colégio. Podemos agradecer a Deus ao vermos quantos sacerdotes aqui se prepararam para um serviço exemplar a Jesus Cristo e à sua Igreja no Brasil: cito com prazer, entre muitos outros, os cinquenta bispos brasileiros que por aqui passaram, um dos quais, primeiro na lista dos alunos fundadores, hoje pertence ao Sacro Colégio dos Cardeais: o Senhor Dom Agnelo Rossi. Minha visita quer ser um estímulo ao Colégio para continuar fiel aos seus objectivos.

A Igreja no Brasil, o povo católico no Brasil, terá razões de esperança se aqui houver um ambiente adequado para um número crescente de seminaristas se prepararem ao sacerdócio e para grupos de sacerdotes obterem aquela actualização indispensável a um melhor exercício do próprio ministério. Não há quem não perceba quais devam ser as características deste ambiente.

Reine aqui uma vida comunitária simples e fraterna, baseada na caridade, estimulante e reconfortante.

853 Seja visível a seriedade e responsabilidade no estudo e no trabalho: muita gente no Brasil tem os olhos voltados para cá e aceita sacrifícios de toda ordem para manter esta casa porque espera muito dela.

Haja pois um clima de estudo apurado e, nas horas disponíveis, de zelosa actividade pastoral: muitas comunidades cristãs de Roma são gratas pela presença de sacerdotes vindos de outros países e que oferecem a uma valiosa acção pastoral horas que arriscariam de perder-se na ociosidade.

E, mais do que tudo, ainda se aqui um clima de verdadeira vida e formação espiritual. Os sacerdotes e futuros sacerdotes que aqui vêm, vêm decerto para progredir nas ciências, especialmente nas ciências eclesiásticas; mas devem vir, ainda mais, para crescer realmente no espírito de oração, no contacto pessoal com o Salvador.

7. Ouso acrescentar algo mais. Existe certamente nesta nossa Roma – percebe quem tem sensibilidade – uma graça especial. Graça da imperecível presença dos Apóstolos Pedro e Paulo.

Graça do testemunho de tantos mártires, que continua a integrar misteriosamente a alma de Roma.

Graça da catolicidade da Igreja, traduzida de tantos modos em torno ao Sucessor de Pedro.

Graça de perenidade. Será um enriquecimento para vós deixar-vos absorver, durante vossa estadia, por esta graça de Roma.

Se assim for, deste Colégio cada ano a Igreja no Brasil receberá pupilos de ministros de Cristo, que terão aproveitado sua estadia romana para aprofundar e robustecer a própria vocação e voltam com acrescida disponibilidade de serviço nas várias áreas que se poderão abrir ao seu ministério.

8. Concluo retornando à Palavra de Deus que nos é oferecida neste dia. Enquanto celebro convosco esta Eucaristia, penso, ainda uma vez, naquele templo onde repousava o jovem Samuel, e naquela praia da Galiléia evocada por São João. Aqui como ali a voz de Deus convoca, diz alto os nomes de filhos seus, que ele quer chamar para tarefas que só ele conhece. Este deve ser um lugar em que, com mais profunda e lúcida consciência, quem se sentiu chamado responde: “Fala, Senhor, teu servo escuta” ou, depois de perguntar, “onde moras?”, vai em silêncio no encalço de um Mestre muito amado.

O Senhor nos conceda que estas horas vividas juntos sejam para vós e para mim, irmãos, uma profunda experiência espiritual de comunhão com Ele e entre nós. E que tal experiência nos seja útil para vivermos melhor a nossa vocação.

Por agora, celebrando este mistério eucarístico, nós pedimos ao Senhor e nos comprometemos a fazer tudo para que o vosso Colégio – o nosso Colégio, pois ele é Pontifício – fiel às suas origens, permaneça sempre o que ele deve ser: casa de formação de autênticos apóstolos de Jesus Cristo para o querido Brasil.



VIAGEM APOSTÓLICA EM PORTUGAL

MISSA NO SANTUÁRIO DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO


854
Fátima, 13 de Maio de 1982

1. “E a partir daquele momento, o discípulo recebeu-A em sua casa” (Io. 19, 27)


Com estas palavras termina o Evangelho da Liturgia de hoje, aqui em Fátima. O nome do discípulo era João. Precisamente ele, João, filho de Zebedeu, apóstolo e evangelista, ouviu do alto da Cruz as palavras de Cristo: “Eis a tua Mãe”. Anteriormente, Jesus tinha dito à própria Mãe: “Senhora, eis o Teu filho”.

Este foi um testamento maravilhoso.

Ao deixar este mundo, Cristo deu a Sua Mãe um homem que fosse para Ela como um filho: João. A Ela o confiou. E, em consequência desta doação e deste acto de entrega, Maria tornou-se mãe de João. A Mãe de Deus tornou-se Mãe do homem.

E, a partir daquele momento, João “recebeu-A em sua casa”. João tornou-se também amparo terreno da Mãe de seu Mestre; é direito e dever dos filhos, efectivamente, assumir o cuidado da mãe. Mas acima de tudo, João tornou-se por vontade de Cristo o filho da Mãe de Deus. E, em João, todos e cada um dos homens d’Ela se tornaram filhos.

2. “Recebeu-A em sua casa” – esta frase significa, literalmente, na sua habitação.

Uma manifestação particular da maternidade de Maria em relação aos homens são os lugares, em que Ela se encontra com eles; as casas onde Ela habita; casas onde se sente uma presença toda particular da Mãe.

Estes lugares e estas casas são numerosíssimos. E são de uma grande variedade: desde os oratórios nas habitações e dos nichos ao longo das estradas, onde sobressai luminosa a imagem da Santa Mãe de Deus, até às capelas e às igrejas construídas em Sua honra. Há porém, alguns lugares, nos quais os homens sentem particularmente viva a presença da Mãe. Não raro, estes locais irradiam amplamente a sua luz e atraem a si a gente de longe. O seu círculo de irradiação pode estender-se ao âmbito de uma diocese, a uma nação inteira, por vezes a vários países e até aos diversos continentes. Estes lugares são os santuários marianos.

Em todos estes lugares realiza-se de maneira admirável aquele testamento singular do Senhor Crucificado: aí, o homem sente-se entregue e confiado a Maria e vem para estar com Ela, como se está com a própria Mãe. Abre-Lhe o seu coração e fala-Lhe de tudo: “recebe-A em sua casa”, dentro de todos os seus problemas, por vezes difíceis. Problemas próprios e de outrem. Problemas das famílias, das sociedades, das nações, da humanidade inteira.

3. Não sucede assim, porventura, no santuário de Lourdes na França? Não é igualmente assim, em Jasna Góra em terras polacas, no santuário do meu País, que este ano celebra o seu jubileu dos seiscentos anos?

855 Parece que também lá, como em tantos outros santuários marianos espalhados pelo mundo, com uma força de autenticidade particular, ressoam estas palavras da Liturgia do dia de hoje:
“Tu és a honra do nosso povo” (Iudit. 15,10); e também aquelas outras:
“Perante a humilhação da nossa gente”,
“... aliviaste o nosso abatimento, com a tua rectidão, na presença do nosso Deus”(Iudt. 13,20).

Estas palavras ressoam aqui em Fátima quase como eco particular das experiências vividas não só pela Nação portuguesa, mas também por tantas outras nações e povos que se encontram sobre a face da terra; ou melhor, elas são o eco das experiências de toda a humanidade contemporânea, de toda a família humana.

4. Venho hoje aqui, porque exactamente neste mesmo dia do mês, no ano passado, se dava, na Praça de São Pedro, em Roma, o atentado à vida do Papa, que misteriosamente coincidia com o aniversário da primeira aparição em Fátima, a qual se verificou a 13 de Maio de 1917.

Estas datas encontraram-se entre si de tal maneira, que me pareceu reconhecer nisso um chamamento especial para vir aqui. E eis que hoje aqui estou. Vim para agradecer à Divina Providência, neste lugar, que a Mãe de Deus parece ter escolhido de modo tão particular.

“Misericordiae Domini, quia non sumus consumpti” – Foi graças ao Senhor que não fomos aniquilados (
Lm 3,22) – repito uma vez mais com o Profeta.

Vim, efectivamente, sobretudo para aqui proclamar a glória do mesmo Deus:
“Bendito seja o Senhor Deus, Criador do Céu e da Terra”, quero repetir com as palavras da Liturgia de hoje (Iudt. 13,18).

E ao Criador do Céu e da Terra elevo também aquele especial hino de glória, que é Ela própria: a Mãe Imaculada do Verbo Encarnado:

856 “Abençoada sejas, minha filha, pelo Deus Altíssimo / Mais do que todas as mulheres sobre a Terra... / A confiança que tiveste não será esquecida pelos homens, / E eles hão-de recordar sempre o poder de Deus. / Assim Deus te enalteça eternamente” (Ibid. 13, 18-20).

Na base deste canto de louvor, que a Igreja entoa com alegria, aqui como em tantos lugares da terra, está a incomparável escolha de uma filha do género humano para ser Mãe de Deus.
E por isso seja sobretudo adorado Deus: Pai, Filho, e Espírito Santo.

Seja bendita e venerada Maria, protótipo da Igreja, enquanto “habitação da Santíssima Trindade”.

5. A partir daquele momento em que Jesus, ao morrer na Cruz, disse a João: “Eis a tua Mãe”, e a partir do momento em que o discípulo “A recebeu em sua casa”, o mistério da maternidade espiritual de Maria teve a sua realização na história com uma amplidão sem limites. Maternidade quer dizer solicitude pela vida do filho. Ora se Maria é mãe de todos os homens, o seu desvelo pela vida do homem reveste-se de um alcance universal. A dedicação de qualquer mãe abrange o homem todo. A maternidade de Maria tem o seu início nos cuidados maternos para com Cristo.

Em Cristo, aos pés da Cruz, Ela aceitou João e, nele, aceitou todos os homens e o homem totalmente. Maria a todos abraça, com uma solicitude particular, no Espírito Santo. É Ele, efectivamente, “Aquele que dá a vida”, como professamos no Credo. É Ele que dá a plenitude da vida, com abertura para a eternidade.

A maternidade espiritual de Maria é, pois, participação no poder do Espírito Santo, no poder d’Aquele “que dá a vida”. E é ao mesmo tempo, o serviço humilde d’Aquela que diz de si mesma: “Eis a serva do Senhor” (
Lc 1,38).

À luz do mistério da maternidade espiritual de Maria, procuremos entender a extraordinária mensagem que, daqui de Fátima, começou a ressoar pelo mundo todo, desde o dia 13 de Maio de 1917, e que se prolongou durante cinco meses, até ao dia 13 de Outubro do mesmo ano.

6. A Igreja ensinou sempre, e continua a proclamar, que a revelação de Deus foi levada à consumação em Jesus Cristo, que é a plenitude da mesma, e que “não se há-de esperar nenhuma outra revelação pública, antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo” (Dei Verbum DV 4). A mesma Igreja aprecia e julga as revelações privadas segundo o critério da sua conformidade com aquela única Revelação pública.

Assim, se a Igreja aceitou a mensagem de Fátima, é sobretudo porque esta mensagem contém uma verdade e um chamamento que, no seu conteúdo fundamental, são a verdade e o chamamento do próprio Evangelho.

“Convertei-vos (fazei penitência), e acreditai na Boa Nova (Mc 1,15): são estas as primeiras palavras do Messias dirigidas à humanidade. E a mensagem de Fátima, no seu núcleo fundamental, é o chamamento à conversão e à penitência, como no Evangelho. Este chamamento foi feito nos inícios do século vinte e, portanto, foi dirigido, de um modo particular a este mesmo século. A Senhora da mensagem parecia ler, com uma perspicácia especial, os “sinais dos tempos”, os sinais do nosso tempo.

857 O apelo à penitência é um apelo maternal; e, ao mesmo tempo, é enérgico e feito com decisão. A caridade que “se congratula com a verdade”(1Co 13,6) sabe ser clara e firme. O chamamento à penitência, como sempre anda unido ao chamamento à oração.Em conformidade com a tradição de muitos séculos, a Senhora da mensagem de Fátima indica o terço – o rosário – que bem se pode definir “a oração de Maria”: a oração na qual Ela se sente particularmente unida connosco. Ela própria reza connosco. Com esta oração do terço se abrangem os problemas da Igreja, da Sé de Pedro, os problemas do mundo inteiro. Além disto, recordam-se os pecadores, para que se convertam e se salvem, e as almas do Purgatório.

As palavras de mensagem foram dirigidas a crianças, cuja idade ia dos sete aos dez anos. As crianças, como Bernadette de Lourdes, são particularmente privilegiadas nestas aparições da Mãe de Deus. Daqui deriva o facto de também a sua linguagem ser simples, de acordo com a capacidade de compreenção infantil. As criancinhas de Fátima tornaram-se as interlocutoras da Senhora da mensagem e também as suas colaboradoras. Uma delas ainda está viva.

7. Quando Jesus disse do alto da Cruz: “Senhora, eis o Seu filho” (Io. 19, 26), abriu, de maneira nova, o Coração da Sua Mãe, o coração Imaculado, e revelou-Lhe a nova dimensão do amor e o novo alcance do amor a que Ela fora chamada, no Espírito Santo, em virtude do sacrifício da Cruz.

Nas palavras da mensagem de Fátima parece-nos encontrar precisamente esta dimensão do amor materno, o qual com a sua amplitude, abrange todos os caminhos do homem em direcção a Deus: tanto aqueles que seguem sobre a terra, como aqueles que, através do Purgatório, levam para além da terra. A solicitude da Mãe do Salvador, identifica-se com a solicitude pela obra da salvação: a obra do Seu Filho. É solicitude pela salvação, pela eterna salvação de todos os homens. Ao completarem-se sessenta e cinco anos, depois daquele dia 13 de Maio de 1917 é difícil não descobrir como este amor salvífico da Mãe abraça na sua amplitude, de um modo particular, o nosso século.

À luz do amor materno, nós compreendemos toda a mensagem de Nossa Senhora de Fátima.

Aquilo que se opõe mais directamente à caminhada do homem em direcção a Deus é o pecado, o perseverar no pecado, enfim, a negação de Deus. O programado cancelamento de Deus do mundo do pensamento humano. A separação d’Ele de toda a actividade terrena do homem. A rejeição de Deus por parte do homem.

Na verdade, a salvação eterna do homem somente em Deus se encontra. A rejeição de Deus por parte do homem se se tornar definitiva, logicamente conduz à rejeição do homem por parte de Deus (Cfr. Matth. 7, 23; 10, 33), à condenação.

Poderá a Mãe, que deseja a salvação de todos os homens, com toda a força do seu amor que alimenta no Espírito Santo, poderá Ela ficar calada acerca daquilo que mina as próprias bases desta salvação? Não, não pode!

Por isso, a mensagem de Nossa Senhora de Fátima, tão maternal, se apresenta ao mesmo tempo tão forte e decidida. Até parece severa. É como se falasse João Baptista nas margens do rio Jordão. Exorta à penitencia. Adverte. Chama à oração. Recomenda o terço, o rosário.

Esta mensagem é dirigida a todos os homens. O amor da Mãe do Salvador chega até onde quer que se estenda a obra da salvação. E objecto do Seu desvelo são todos os homens da nossa época e, ao mesmo tempo, as sociedades, as nações e os povos. As sociedades ameaçadas pela apostasia, ameaçadas pela degradação moral. A derrocada da moralidade traz consigo a derrocada das sociedades.

8. Cristo disse do alto da Cruz: “Senhora, eis o Teu filho”. E, com tais palavras, abriu, de um modo novo, o Coração da Sua Mãe.

858 Pouco depois, a lança do soldado romano trespassou o lado do Crucificado. Aquele coração trespassado tornou-se o sinal da redenção, realizada mediante a morte do Cordeiro de Deus.

O Coração Imaculado de Maria aberto pelas palavras – “Senhora, eis o Teu Filho” – encontra-se espiritualmente com o Coração do Filho trespassado pela lança do soldado. O Coração de Maria foi aberto pelo mesmo amor para com o homem e para com o mundo com que Cristo amou o homem e o mundo, oferecendo-Se a Si mesmo por eles, sobre a Cruz, até àquele golpe da lança do soldado.

Consagrar o mundo ao Coração Imaculado de Maria significa aproximar-nos, mediante a intercessão da Mãe, da própria Fonte da Vida, nascida no Gólgota. Este Manancial escorre ininterruptamente, dele brotando a redenção e a graça. Nele se realiza continuamente a reparação pelos pecados do mundo. Tal Manancial é sem cessar Fonte de vida nova e de santidade.

Consagrar o mundo ao Imaculado Coração da Mãe significa voltar de novo junto da Cruz do Filho. Mais quer dizer, ainda: consagrar este mundo ao Coração trespassado do Salvador, reconduzindo-o à própria fonte da Redenção. A Redenção é sempre maior do que o pecado do homem e do que “o pecado do mundo”. A força da Redenção supera infinitamente toda a espécie de mal, que está no homem e no mundo.

O Coração da Mãe está conscio disso, como nenhum outro coração em todo o cosmos, visível e invisível.

E para isso faz a chamada.

Chama não somente à conversão. Chama-nos a que nos deixemos auxiliar por Ela, como Mãe, para voltarmos novamente à fonte da Redenção.

9. Consagrar-se a Maria Santíssima significa recorrer ao seu auxílio e oferecermo-nos a nós mesmos e oferecer a humanidade Àquele que é Santo, infinitamente Santo; valer-se do seu auxílio – recorrendo ao seu Coração de Mãe aberto junto da Cruz ao amor para com todos os homens e para com o mundo inteiro – para oferecer o mundo, e o homem, e a humanidade, e todas as nações Àquele que é infinitamente Santo. A santidade de Deus manifestou-se na redenção do homem, do mundo, da inteira humanidade e das nações: redenção esta que se realizou mediante o sacrifício da Cruz. “Por eles, Eu consagro-me a Mim mesmo”, tinha dito Jesus” (Io. 17, 19).

O mundo e o homem foram consagrados com a potência da Redenção. Foram confiados Àquele que é infinitamente Santo. Foram oferecidos e entregues ao próprio Amor, ao Amor misericordioso.

A Mãe de Cristo chama-nos e exorta-nos a unir-nos à Igreja do Deus vivo, nesta consagração do mundo, neste acto de entrega mediante o qual o mesmo mundo, a humanidade, as nações e todos e cada um dos homens são oferecidos ao Eterno Pai, envoltos com a virtude da Redenção de Cristo. São oferecidos no Coração do Redentor trespassado na Cruz.

A Mãe do Redentor chama-nos, convida-nos e ajuda-nos para nos unirmos a esta consagração, a este acto de entrega do mundo. Então encontrar-nos-emos, de facto, o mais próximo possível do Coração de Cristo trespassado na Cruz.

859 10. O conteúdo do apelo de Nossa Senhora de Fátima está tão profundamente radicado no Evangelho e em toda a Tradição, que a Igreja se sente interpelada por essa mensagem.

Ela respondeu à interpelação mediante o Servo de Deus Pio XII (cuja ordenação episcopal se realizara precisamente a 13 de Maio de 1917), o qual quis consagrar ao Imaculado Coração de Maria o género humano e especialmente os Povos da Rússia. Com essa consagração não terá ele, porventura, correspondido à eloquência evangélica do apelo de Fátima?

O Concílio Vaticano II, na Constituição dogmática sobre a Igreja “Lumen Gentium” e na Constituição pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo “Gaudium et Spes” explicou amplamente as razões dos laços que unem a Igreja com o mundo de hoje. Ao mesmo tempo os seus ensinamentos sobre a presença especial de Maria no mistério de Cristo e da Igreja, maturaram no acto com que Paulo VI, ao chamar a Maria também Mãe da Igreja, indicava de maneira mais profunda o carácter da sua união com a mesma Igreja e da Sua solicitude pelo mundo, pela humanidade, por cada um dos homens e por todas as nações: a sua maternidade.

Deste modo, foi ainda mais aprofundada a compreensão do sentido da entrega, que a Igreja é chamada a fazer, recorrendo ao auxílio do Coração da Mãe de Cristo e nossa Mãe.

11. E como é que se apresenta hoje diante da Santa Mãe que gerou o Filho de Deus, no seu Santuário de Fátima, João Paulo II, sucessor de Pedro e continuador da obra de Pio, de João e de Paulo e particular herdeiro do Concílio Vaticano II?

Apresenta-se com ansiedade, a fazer a releitura, daquele chamamento materno à penitência e à conversão, daquele apelo ardente do Coração de Maria, que se fez ouvir aqui em Fátima, há sessenta e cinco anos. Sim, relê-o, com o coração amargurado, porque vê quantos homens, quantas sociedades e quantos cristãos foram indo em direcção oposta àquela que foi indicada pela mensagem de Fátima. O pecado adquiriu assim um forte direito de cidadania e a negação de Deus difundiu-se nas ideologias, nas concepções e nos programas humanos!

E precisamente por isso, o convite evangélico à penitência e à conversão, expresso com as palavras da Mãe, continua ainda actual. Mais actual mesmo do que há sessenta e cinco anos atrás. E até mais urgente. É por isso também que tal convite será o assunto do próximo Sínodo dos Bispos, no ano que vem, Sínodo para o qual já nos estamos a preparar.

O sucessor de Pedro apresenta-se aqui também como testemunha dos imensos sofrimentos do homem, como testemunha das ameaças quase apocalípticas, que pesam sobre as nações e sobre a humanidade. E procura abraçar esses sofrimentos com o seu fraco coração humano, ao mesmo tempo que se põe bem diante do mistério do Coração: do Coração da Mãe, do Coração Imaculado de Maria.

Em virtude desses sofrimentos, com a consciência do mal que alastra pelo mundo e ameaça o homem, as nações e a humanidade o sucessor de Pedro apresenta-se aqui com uma maior na redenção do mundo: fé naquele Amor salvífico que é sempre maior, sempre mais forte do que todos os males.

Assim, se por um lado o coração se confrange, pelo sentido elo pecado do mundo, bem como pela série de ameaças que aumentam no mundo, por outro lado, o mesmo coração humano sente-se dilatar com a esperança, ao pôr em prática uma vez mais aquilo que os meus Predecessores já fizeram: entregar e confiar o mundo ao Coração da Mãe, confiar-Lhe especialmente aqueles povos, que, de modo particular, tenham necessidade disso. Este acto equivale a entregar e a confiar o mundo Àquele que é Santidade infinita. Esta Santidade significa redenção, significa amor mais forte do que o mal. Jamais algum “pecado do mundo” poderá superar este Amor.

Uma vez mais. Efectivamente, o apelo de Maria não é para uma vez só.Ele continua aberto para as gerações que se renovam, para ser correspondido de acordo com os “sinais dos tempos” sempre novos. A ele se deve voltar incessantemente. Há que retomá-lo sempre de novo.

860 12. Escreve o Autor do Apocalipse:

“Vi depois a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do Céu, da presença de Deus, pronta como noiva adornada para o seu esposo. E, do trono, ouvi uma voz potente que dizia: Eis a morada de Deus entre os homens. Deus há-de morar entre eles: eles mesmos serão o Seu povo e Ele próprio – Deus-com-eles – será o Seu Deus” (
Ap 21, 2ss).

A Igreja vive desta fé.

Com tal fé caminha o Povo de Deus.

“A morada de Deus entre os homens” já está sobre a terra.

E nela está o Coração da Esposa e da Mãe, Maria Santíssima, adornado com a gema da Imaculada Conceição: o Coração da Esposa e da Mãe, aberto junto da Cruz pela palavra do Filho, para um novo e grande amor do homem e do mundo. O Coração da Esposa e da Mãe, cônscio de todos os sofrimentos dos homens e das sociedades sobre a face da terra.

O Povo de Deus é peregrino pelos caminhos deste mundo na direcção escatológica. Está em peregrinação para a eterna Jerusalém, para a “morada de Deus entre os homens”.

Lá, onde Deus “há-de enxugar-lhes dos olhos todas as lágrimas; a morte deixará de existir, e não mais haverá luto, nem clamor, nem fadiga. O que havia anteriormente desapareceu” (Cfr. Apoc Ap 21,4).

Mas “o que havia anteriormente” ainda perdura. E é isso precisamente que constitui o espaço temporal da nossa peregrinação.

Por isso, olhemos para “Aquele que está sentado no trono” que diz: “Vou renovar todas as coisas” (Cfr. Ibid.21, 5).

E juntamente com o Evangelista e Apóstolo procuremos ver com os olhos da fé “o novo céu e a nova terra”, porque o “primeiro céu e a primeira terra” já passaram...

861 Entretanto, até agora, “o primeiro céu e a primeira terra” continuam, estando sempre à nossa volta e dentro de nós. Não podemos ignorá-lo. Isso permite-nos, no entanto reconhecer que graça imensa foi concedida ao homem quando no meio deste peregrinar, no horizonte da fé dos nossos tempos, se acendeu esse “Sinal grandioso: uma Mulher”!

Sim, verdadeiramente podemos repetir: “Abençoada sejas, filha, pelo Deus altíssimo, mais que todas as mulheres sobre a Terra!

... Procedendo com rectidão, na presença do nosso Deus,
... Aliviaste o nosso abatimento”.

Verdadeiramente, Bendita sois Vós!

Sim, aqui e em toda a Igreja, no coração de cada um dos homens e no mundo inteiro: sede bendita ó Maria, nossa Mãe dulcíssima!





Homilias JOÃO PAULO II 850