Mater et Magistra PT




CARTA ENCÍCLICA DE JOÃO XXIII


MATER ET MAGISTRA



EVOLUÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL À LUZ DA DOUTRINA CRISTÃ




1 Aos veneráveis irmãos patriarcas, primazes, arcebispos, bispos
e outros ordinários do lugar em paz e comunhão com a Sé Apostólica,
bem como a todo o clero e féis do orbe católico.

Introdução

401 n. 1
Mãe e mestra de todos os povos, a Igreja Universal foi fundada por Jesus Cristo, a fim de que todos, vindo no seu seio e no seu amor, através dos séculos, encontrem plenitude de vida mais elevada e penhor seguro de salvação. A esta Igreja, "coluna e fundamento da verdade" (cf.
1Tm 3,15), o seu Fundador santíssimo confiou uma dupla missão: de gerar alhos, e de os educar e dirigir, orientando, com solicitude materna, a vida dos indivíduos e dos povos, cuja alta dignidade ela sempre desveladamente respeitou e defendeu.

402 n. 2
O cristianismo é, de fato, a realidade da união da terra com o céu, uma vez que assume o homem, na sua realidade concreta de espírito e matéria, inteligência e vontade, e o convida a elevar o pensamento, das condições mutáveis da vida terrena, até às alturas da vida eterna, onde gozará sem limites da plenitude da felicidade e da paz.

n. 3
De modo que a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas e de as fazer participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas.

n. 4
Ao realizar tudo isto, a Santa Igreja põe em prática o mandamento de Cristo, seu Fundador, que se refere sobretudo à salvação eterna do homem, quando diz: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (
Jn 14,6) e "Eu sou a luz do mundo" (Jn 8,12); mas noutro passo, ao contemplar a multidão faminta, exclamou, num lamento sentido: "Tenho pena de toda esta gente" (Mc 8,2); manifestando, assim, como se preocupa também com as exigências materiais dos povos. E não foi só com palavras que o Divino Redentor demonstrou esse cuidado: provou-o igualmente com os exemplos da sua vida, multiplicando, várias vezes, por milagres, o pão que havia de saciar a fome da multidão que o seguia.

n. 5
E com este pão, dado para alimentar o corpo, quis anunciar e significar aquele pão celestial das almas, que iria deixar aos homens na véspera da sua Paixão.

n. 6
Não é, pois, para admirar, que a Igreja católica, à imitação de Cristo e em cumprimento das suas disposições, tenha mantido sempre bem alto, através de dois mil anos, isto é, desde a instituição dos antigos diáconos, até aos nossos tempos, o facho da caridade, não menos com os preceitos do que com os numerosos exemplos que vem proporcionando. Caridade, que ao conjugar harmoniosamente os mandamentos do amor mútuo com a prática dos mesmos, realiza de modo admirável as exigências desta dupla doação que em si resume a doutrina e a ação social da Igreja.

403 n. 7
Documento verdadeiramente insigne desta doutrina e desta ação desenvolvida pela Igreja ao longo dos séculos, deve considerar-se a imortal encíclica Rerum Novarum, (1) que o nosso predecessor de feliz memória, Leão XIII, há setenta anos promulgou para formular os princípios que haviam de resolver cristãmente a questão operária.

n. 8
Poucas vezes a palavra de um papa teve ressonância tão universal, pela profundeza e vastidão da matéria tratada, bem como pelo vigor incisivo da expressão. A linha de rumo ali apontada e as advertências feitas revestiram-se de tal importância, que nunca poderão cair no esquecimento. Foi aberto um caminho novo à ação da Igreja. O Pastor supremo, fazendo próprios os sofrimentos, as queixas e as aspirações dos humildes e dos oprimidos, uma vez mais se ergueu como defensor dos seus direitos.

n. 9
E hoje, apesar de ter passado tanto tempo, ainda se mantém real a eficácia dessa mensagem, não só nos documentos dos papas sucessores de Leão XIII, os quais, quando ensinam em matéria social, continuamente se referem à encíclica leonina, ora para nela se inspirarem, ora para esclarecerem o seu alcance, e sempre para estimular a ação dos católicos; mas até na organização mesma dos povos. Tudo isso mostra como os sólidos princípios, as diretrizes históricas e as paternais advertências contidas na magistral encíclica do nosso predecessor conservam ainda hoje o seu valor e sugerem, mesmo, critérios novos e vitais, para os homens poderem avaliar o conteúdo e as proporções da questão social, tal como hoje se apresenta, e decidir-se a assumir as responsabilidades daí resultantes.

1. Acta Leonis XIII, 11(1891), pp, 97-144.


PRIMEIRA PARTE


ENSINAMENTOS DA ENCÍCLICA "RERUM NOVARUM" E OPORTUNOS DESENVOLVIMENTOS NO MAGISTÉRIO DE PIO XI E PIO XII


A época da encíclica "Rerum Novarum"

n. 10
Os tempos em que Leão XIII falou eram de transformações radicais, de fortes contrastes e amargas rebeliões. As sombras daqueles trempos fazem-nos apreciar melhor a luz que promana do seu ensinamento.

404 n. 11
Como é sabido de todos, o conceito do mundo econômico, então mais difundido e posto em prática, era um conceito naturalista, negador de toda a relação entre moral e economia. O motivo único da ação econômica, dizia-se, é o interesse individual. Lei suprema reguladora das relações entre os operadores econômicos é a livre concorrência sem limites. Juros dos capitais, preços das mercadorias e dos serviços, benefícios e salários, são determinados, de modo exclusivo e automático, pelas leis do mercado. O Estado deve abster-se de qualquer intervenção no campo econômico. Os sindicatos, nalguns países, eram proibidos; noutros, tolerados ou considerados como de direito privado.

n. 12
Num mundo econômico assim concebido, a lei do mais forte encontrava plena justificação no plano teórico e dominava no das relações concretas entre os homens. E daí derivava uma ordem econômica rádicalmente perturbada.

n. 13
Enquanto, em mãos de poucos, se acumulavam riquezas imensas, as classes trabalhadoras iam gradualmente caindo em condições de crescente mal-estar. Salários insuficientes ou de fome, condições de trabalho esgotadoras, que nenhuma consideração tinham pela saúde física, pela moral e pela fé religiosa. Sobretudo inumanas as condições de trabalho a que eram freqüentemente submetidas as crianças e as mulheres. Sempre ameaçador o espectro do desemprego. A família, sujeita a contínuo processo de desintegração.

n. 14
Daí uma profunda insatisfação nas classes trabalhadoras, entre as quais se propagava e se consolidava o espírito de protesto e de rebelião. E assim se explica porque encontraram tanto aplauso, naqueles meios, as teorias extremistas, que propunham remédios piores que os próprios males.


Os caminhos da reconstrução

405 n. 15
Coube a Leão XIII, nos momentos difíceis daquele conflito, publicar a sua mensagem social, baseada na consideração da natureza humana e informada pelas normas e o espírito do Evangelho; mensagem que, desde que foi conhecida, se bem não faltassem oposições compreensíveis, suscitou universal admiração e entusiasmo. Certamente, não era a primeira vez que a Sé Apostólica descia à arena, em defesa dos interesses materiais dos menos favorecidos. Outros documentos do mesmo Leão XIII tinham já preparado o caminho; mas, desta vez, formulava-se uma síntese orgânica dos princípios e desenhava-se uma perspectiva histórica tão ampla, que fizeram da encíclica Rerum Novarum um verdadeiro resumo do catolicismo no campo econômico-social.

n. 16
Nem careceu de audácia este gesto. Enquanto alguns ousavam acusar a Igreja católica de limitar-se, perante a questão social, a pregar resignação aos pobres e a exortar os ricos à generosidade, Leão XIII não hesitou em proclamar e defender os legítimos direitos do operário. Ao encetar a exposição dos princípios da doutrina católica no campo social, declarava com solenidade: "Entramos confiadamente nesta matéria e fazemo-lo com pleno direito, já que se trata de uma questão para a qual não é possível encontrar solução eficaz, sem recorrer à religião e à Igreja".(2)

n. 17
Bem conheceis, veneráveis irmãos, os princípios basilares expostos pelo imortal Pontífice, com tanta clareza como autoridade, segundo os quais deve ser reconstruído o setor econômico e social da comunidade humana.

n. 18
Dizem respeito, primeiramente, ao trabalho que deve ser considerado, em teoria e na prática, não mercadoria, mas um modo de expressão direta da pessoa humana. Para a grande maioria dos homens, o trabalho é a única fonte dos meios de subsistência. Por isso, a sua remuneração não pode deixar-se à mercê do jogo automático das leis do mercado; pelo contrário, deve ser estabelecida segundo as normas da justiça e da eqüidade, que, em caso contrário, ficariam profundamente lesadas, ainda mesmo que o contrato de trabalho fosse livremente ajustado por ambas as partes.

406 n. 19
A propriedade privada, mesmo dos bens produtivos, é um direito natural que o Estado não pode suprimir. Consigo, intrinsecamente, comporta uma função social, mas é igualmente um direito, que se exerce em proveito próprio e para bem dos outros.

n. 20
O Estado, cuja razão de ser é a realização do bem comum na ordem temporal, não pode manter-se ausente do mundo econômico; deve intervir com o fim de promover a produção de uma abundância suficiente de bens materiais, "cujo uso é necessário para o exercício da virtude"; (3) e também para proteger os direitos de todos os cidadãos, sobretudo dos mais fracos, como são os operários, as mulheres e as crianças. De igual modo, é dever seu indeclinável contribuir ativamente para melhorar as condições de vida dos operários.

n. 21
Compete ainda ao Estado velar para que as relações de trabalho sejam reguladas segundo a justiça e a eqüidade, e para que nos ambientes de trabalho não seja lesada, nem no corpo nem na alma, a dignidade de pessoa humana. A este propósito, a encíclica leonina aponta as linhas que vieram a inspirar a legislação social dos estados contemporâneos: linhas, como já observava Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno,(4) que eficazmente contribuíram para o aparecimento e a evolução de um novo e nobilíssimo ramo do direito, o "direito do trabalho".


n. 22
E aos trabalhadores, afirma ainda a encíclica, reconhece-se o direito natural de constituírem associações, ou só de operários, ou mistas de operários e patrões; como também o direito de darem às mesmas a estrutura orgânica que julgarem mais conveniente para assegurarem a obtenção dos seus legítimos interesses econômico-profissionais, e o direito de agirem, no interior delas, de modo autônomo e por própria iniciativa, para a consecução dos mesmos interesses.

2. Cf. ibid. p.107.
3. S. Tomás, De Regimine Principum, I,15.

407 n. 23
Operários e empresários devem regular as relações mútuas, inspirando-se no princípio da solidariedade humana e da fraternidade cristã; uma vez que, tanto a concorrência de tipo liberal, como a luta de classes no sentido marxista, são contrárias à natureza e à concepção cristã da vida.


n. 24
Eis, veneráveis irmãos, os princípios fundamentais em que deve basear-se, para ser sã, a ordem econômica e social.


n. 25
Não devemos, pois, admirar-nos, se os católicos mais eminentes, atendendo aos apelos da encíclica, empreenderam iniciativas múltiplas, para traduzirem em prática aqueles princípios. De fato, nessa tarefa se empenharam, sob o impulso de exigências objetivas da natureza, homens de boa vontade de todos os países do mundo.


n. 26
Por isso, a encíclica, com razão, foi e continua a ser considerada como a Magna Carta (5) da reconstrução econômica e social da época moderna.

4. Cf. AAS, 23(1931), p.185.
5, Cf. ibid. p.189.


A encíclica "Quadragesimo Anno"

n. 27
Pio XI, nosso predecessor de santa memória, comemorou o quadragésimo aniversário da encíclica Rerum Novarum, com um novo documento solene: a encíclica Quadragesimo Anno.(6)

6. Cf. ibid. pp.177-228.

n. 28
Nesta, o sumo pontífice insiste no direito e dever da Igreja de prestar a sua contribuição insubstituível para a feliz solução dos problemas sociais mais urgentes e mais graves, que angustiam a família humana; confirma os princípios fundamentais e as diretrizes históricas da encíclica leonina; e aproveita a ocasião para precisar alguns pontos de doutrina sobre os quais tinham surgido dúvidas, mesmo entre católicos, e para desenvolver o pensamento social cristão, atendendo às novas condições dos tempos.

408 n. 29
As dúvidas, levantadas diziam respeito, de modo especial, à propriedade privada, ao regime dos salários, e à atitude dos católicos perante uma forma de socialismo moderado.

n. 30
Quanto à propriedade privada, o nosso predecessor torna a afirmar o seu caráter de direito natural, e acentua o seu aspecto e a sua função social.

n. 31
Com relação ao regime de salários, nega a tese que o declara injusto por natureza; mas reprova ao mesmo tempo as formas inumanas e injustas que, não poucas vezes, se praticou; inculca e desenvolve os critérios em que se deve inspirar e as condições a que é preciso satisfazer para não se lesar a justiça nem a eqüidade.

n. 32
Nesta matéria, o nosso predecessor indica claramente ser vantajoso, nas condições atuais, suavisar o contrato de trabalho com elementos tomados do contrato de sociedade, de modo que "os operários se tornem participantes ou na propriedade ou na gestão, ou, em certa medida, nos lucros obtidos".(7)

7. Cf. ibid. p.199.

n. 33
Deve considerar-se da mais alta importância doutrinal e prática a afirmação de Pio XI que o trabalho não se pode "avaliar justamente nem retribuir adequadamente, quando não se tem em conta a sua natureza social e individual".(8) Por conseguinte, para determinar a remuneração, declara o papa, a justiça exige que se tenham em conta, além das necessidades de cada trabalhador e a sua responsabilidade familiar, a situação da empresa a que os operários prestam o seu trabalho, e ainda as exigências da economia geral.(9)

n. 34
Entre comunismo e cristianismo, o pontífice declara novamente que a oposição é radical, e acrescenta não se poder admitir de maneira alguma que os católicos adiram ao socialismo moderado: quer porque ele foi construído sobre uma concepção da vida fechada no temporal, com o bem-estar como objetivo supremo da sociedade; quer porque fomenta uma organização social da vida comum tendo a produção como fim único, não sem grave prejuízo da liberdade humana; quer ainda porque lhe falta todo o princípio de verdadeira autoridade social.

409 n. 35
Nem deixa Pio XI de notar que, nos quarenta anos passados desde a promulgação da encíclica leonina, a situação histórica mudara profundamente. A livre concorrência, em virtude da dialética que lhe é própria, tinha acabado por destruir-se a si mesma ou pouco menos; levara a uma grande concentração da riqueza e além disso à acumulação de um poder econômico desmedido nas mãos de poucos, "os quais, muitas vezes nem sequer eram proprietários, mas simples depositários e administradores do capital, de que dispunham a seu belprazer".(10)

8. Cf. ibid, p. 200.
9. Cf. ibid, p. 201.
10. Cf. ibid. p. 210-211.

n. 36
E assim, como observa com perspicácia o sumo pontífice, "à liberdade de mercado sucedeu a hegemonia econômica; à sede de lucro, a cobiça desenfreada do predomínio; de modo que toda a economia se tornou horrivelmente dura, inexorável, cruel",(11) escravizando os poderes públicos aos interesses de grupo e desembocando no imperalismo internacional do dinheiro.

11. Cf. ibid. p. 211.

n. 37
Para remediar tal situação, o supremo pastor indica, como princípios fundamentais, o regresso do mundo econômico à ordem moral e a subordinação da busca dos lucros, individuais ou de grupos, às exigências do bem comum. Isto comporta, segundo o seu ensinamento, a reorganização da vida social mediante a reconstituição de corpos intermediários autônomos com finalidade econômica e profissional, criados pelos particulares e não impostos pelo Estado; o restabelecimento da autoridade dos poderes públicos para desempenharem as funções que lhes competem na realização do bem comum; e a colaboração em plano mundial entre as comunidades políticas, mesmo no campo econômico.

n. 38
Os temas fundamentais, característicos da magistral encíclica de Pio XI, podem reduzir-se a dois.
410 O primeiro proíbe completamente tomar como regra suprema das atividades e das instituições do mundo econômico quer o interesse individual ou de grupo, quer a livre concorrência, quer a hegemonia econômica, quer o prestígio ou o poder da nação, ou outros critérios semelhantes.

n. 39
Pelo contrário, devem considerar-se regras supremas, daquelas atividades e instituições, a justiça e a caridade social.

n. 40
O segundo tema recomenda a criação de uma ordem jurídica, nacional e internacional, dotada de instituições estáveis, públicas e privadas, que se inspire na justiça social e à qual se conforme a economia; assim tornar-se-á menos difícil aos economistas exercer a própria atividade em harmonia com as exigências da justiça e atendendo ao bem comum.


A radiomensagem de Pentecostes de 1941

n. 41
Também Pio XII, nosso predecessor de venerável memória, contribuiu não pouco para definir e desenvolver a doutrina social cristã. No dia 1° de junho de 1941, festa de Pentecostes, transmitiu uma radiomensagem "para chamar a atenção do mundo católico sobre um acontecimento digno de ser gravado com letras de ouro nos fastos da Igreja: o qüinquagésimo aniversário da fundamental encíclica social Rerum Novarum de Leão XIII...(12) e para agradecer humildemente a Deus todo-poderoso... o dom que... se dignou conceder à Igreja com aquela encíclica do seu vigário na terra; e para louvá-lo, pelo sopro do Espírito renovador que, por meio da mesma, derramou desde então de modo sempre crescente sobre toda a humanidade".(13)

12. Cf. AAS, 33(1941), p.196.
13. Cf. ibid. p.197.

411 n. 42
Nessa radiomensagem, o grande pontífice reivindica para a Igreja a "irrefutável competência de julgar se as bases de uma determinada ordem social estão de acordo com a ordem imutável que Deus Criador e Redentor manifestou por meio do direito natural e da revelação",(14) reafirma a vitalidade perene dos ensinamentos da encíclica Rerum Novarum e a sua fecundidade inexaurível; e aproveita a ocasião "para expor ulteriores princípios diretivos de moral sobre três valores fundamentais da vida social e econômica. Esses três valores fundamentais, que se unem, se enlaçam e se ajudam mutuamente, são: o uso dos bens materiais, o trabalho e a família".(15)

14. Cf. ibid. p.196.
15. Cf. ibid. p.198s.

n. 43
Quanto ao uso dos bens materias, o nosso predecessor afirma que o direito de todo homem a usar daqueles bens para o seu próprio sustento tem prioridade sobre qualquer outro direito de natureza econômica, e mesmo sobre o direito de propriedade. Certamente, acrescenta o nosso predecessor, também o direito de propriedade dos bens é um direito natural; mas, segundo a ordem objetiva estabelecida por Deus, o direito de propriedade é limitado, pois não pode constituir obstáculo a que seja satisfeita a "exigência irrevogável dos bens, criados por Deus para todos os homens, estarem eqüitativamente à disposição de todos, segundo os princípios da justiça e da caridade".(16)


n. 44
No que se refere ao trabalho, retomando um tema apontado na encíclica leonina, Pio XII confirma que ele é simultaneamente um dever e um direito de todos e cada um dos homens. Por conseguinte, corresponde a estes, em primeiro lugar, regular as relações mútuas do trabalho. Só no caso dos interessados não cumprirem ou não poderem cumprir o seu dever, "compete ao Estado intervir no campo da divisão e distribuição do trabalho, segundo a forma e a medida requeridas pelo bem comum devidamente entendido".(17)


n. 45
Quanto à família, o sumo pontífice afirma que a propriedade privada dos bens materiais deve ser considerada como "espaço vital da família; isto é, meio apto para assegurar ao pai de família a sã liberdade de que necessita para poder cumprir os deveres que lhe foram impostos pelo Criador, para o bem-estar físico, espiritual e religioso dos seus".(18) Isto confere também à família o direito de emigrar. Sobre este ponto, o nosso predecessor adverte que os Estados, tanto os que permitem a emigração como os que acolhem novos elementos, se procurarem eliminar tudo o que "pode impedir o nascimento e o progresso de uma verdadeira confiança" (19) mútua, conseguirão uma vantagem recíproca e contribuirão simultaneamente para o incremento do bem-estar humano e do avanço da cultura.

16. Cf. ibid. p.199.
17. Cf. ibid. p. 201.
18. Cf. ibid. p. 202.

Ulteriores modificações

412 n. 46
A situação, já mudada ao tempo da comemoração celebrada por Pio XII, sofreu nestes vinte anos profundas inovações, quer no interior dos países quer nas suas relações mútuas.


n. 47
No campo científico, técnico e econômico: a descoberta da energia nuclear, as suas primeiras aplicações para fins bélicos e depois a sua utilização cada vez maior para fins pacíficos; as possibilidades ilimitadas abertas pela química aos produtos sintéticos; a difusão da automatização e da automação no setor industrial e no dos serviços de utilidade geral; a modernização do setor agrícola; o quase desaparecimento das distâncias nas comunicações, sobretudo por causa do rádio e da televisão; a rapidez crescente dos transportes; e o princípio da conquista dos espaços interplanetários.


n. 48
No campo social: a difusão dos seguros sociais, e, nalgumas nações economicamente desenvolvidas, o estabelecimento de sistemas de previdência social; a formação e extensão, nos movimentos sindicais, de uma atitude de responsabilidade perante os maiores problemas econômicos e sociais; a elevação progressiva da instrução de base; um bem-estar cada vez mais generalizado; a crescente mobilidade social e a conseqüente remoção das barreiras entre as classes; o interesse do homem de cultura média pelos acontecimentos diários de repercussão mundial. Além disso, o aumento da eficiência dos sistemas econômicos, em cada vez maior número de países, evidencia mais ainda os desequilíbrios econômicos e sociais entre o setor agrícola, por um lado, e o setor da indústria e dos serviços de utilidade geral, por outro; entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas menos desenvolvidas no interior de cada país; e no plano internacional, são mais melindrosos ainda os desequilíbrios econômicos e sociais entre países economicamente desenvolvidos e países economicamente em vias de desenvolvimento.

413 n. 49
No campo político: em muitos países, a participação na vida pública de um número cada vez maior de cidadãos de diversas condições sociais; a difusão e a penetração da atividade dos poderes públicos no campo econômico e social. Acresce, além disso, no plano internacional, o declínio dos regimes coloniais e a conquista da independência política conseguida pelos povos da Ásia e da África; a multiplicação e a complexidade das relações entre os povos e o aumento da sua interdependência; a criação e o desenvolvimento de uma rede cada vez mais apertada de organismos de projeção mundial, com tendência a inspirar-se em critérios supranacionais: organismos de finalidades econômicas, sociais, culturais e políticas.

19. Cf. ibid. p. 203.

Temas da nova encíclica


n. 50
Nós sentimo-nos no dever de conservar viva a chama acesa pelos nossos grandes predecessores e de exortar a todos a que nela busquem incentivo e luz para resolverem a questão social da maneira mais adequada aos nossos tempos. Por este motivo, comemorando de forma solene a encíclica leonina, comprazemo-nos em aproveitar a ocasião para repetir e precisar pontos de doutrina já expostos pelos nossos predecessores, e ao mesmo tempo fazer uma exposição desenvolvida do pensamento da Igreja, relativo aos novos e mais importantes problemas do momento.


SEGUNDA PARTE


ACLARAÇÕES E AMPLIAÇÕES DOS ENSINAMENTOS DA "RERUM NOVARUM"


Iniciativa pessoal e intervenção dos poderes públicos em matéria econômica

n. 51
Devemos armar desde já que o mundo econômico é criação da iniciativa pessoal dos cidadãos, quer desenvolvam a sua atividade individualmente, quer façam parte de alguma associação destinada a promover interesses comuns.

414 n. 52
Mas nele, pelas razões já aduzidas pelos nossos predecessores, devem intervir também os poderes públicos com o fim de promoverem devidamente o acréscimo de produção para o progresso social e em beneficio de todos os cidadãos.


n. 53
A ação desses poderes, que deve ter caráter de orientação, de estímulo, de coordenação, de suplência e de integração, há de inspirar-se no "princípio de subsidiariedade", (20) formulado por Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno: "Deve contudo manter-se arme o princípio importantíssimo em filosofia social: do mesmo modo que não é lícito tirar aos indivíduos, a fim de o transferir para a comunidade, aquilo que eles podem realizar com as forças e a indústria que possuem, é também injusto entregar a uma sociedade maior e mais alta o que pode ser feito por comunidades menores e inferiores. Isto seria, ao mesmo tempo, grave dano e perturbação da justa ordem da sociedade; porque o objeto natural de qualquer intervenção da mesma sociedade é ajudar de maneira supletiva os membros do corpo social, e não destruí-los e absorvê-los".(21)


20. Cf. AAS, 23(1931), p. 203.
21. Cf. ibid. p. 203.

n. 54
É verdade que hoje os progressos dos conhecimentos científicos e das técnicas de produção oferecem aos poderes públicos maiores possibilidades concretas de reduzir os desequilíbrios entre os diferentes fatores produtivos, entre as várias zonas no interior dos países e entre as diversas nações no plano mundial. Permitem, além disso, limitar as oscilações nas alternativas das situações econômicas e enfrentar com esperança de resultados positivos os fenômenos do desemprego das massas. Por conseguinte, os poderes públicos, responsáveis pelo bem comum, não podem deixar de sentir-se obrigados a exercer no campo econômico uma ação multiforme, mais vasta e mais orgânica; como também a adaptar-se, para este fim, às estruturas e competências, nos meios e nos métodos.

415 n. 55
Mas é preciso reafirmar sempre o princípio que a presença do Estado no campo econômico, por mais ampla e penetrante que seja, não pode ter como meta reduzir cada vez mais a esfera da liberdade na iniciativa pessoal dos cidadãos; mas, deve, pelo contrário, garantir a essa esfera a maior amplidão possível, protegendo efetivamente, em favor de todos e de cada um, os direitos essenciais da pessoa humana. Entre estes há de enumerar-se o direito, que todos têm, de serem e permanecerem normalmente os primeiros responsáveis pela manutenção própria e da família; ora, isso implica que, nos sistemas econômicos, se consinta e facilite o livre exercício das atividades produtivas.


n. 56
Aliás, até a evolução histórica põe em evidência cada vez maior o fato de se não poder conseguir uma convivência ordenada e fecunda sem a colaboração, no campo econômico, ao mesmo tempo dos cidadãos e dos poderes públicos; colaboração simultânea realizada harmonicamente, em proporções correspondentes às exigências do bem comum no meio das situações variáveis e das vicissitudes humanas.


n. 57
De fato, a experiência ensina que, onde falta a iniciativa pessoal dos indivíduos, domina a tirania política; e há ao mesmo tempo estagnação nos setores econômicos, destinados a produzir sobretudo a gama indefinida dos bens de consumo e de serviços que se relacionam não só com as necessidades materiais mas também com as exigências do espírito: bens e serviços que exigem, de modo especial, o gênio criador dos indivíduos.


n. 58
Onde, por outro lado, falta ou é defeituosa a necessária atuação do Estado, há desordem insanável; e os fracos são explorados pelos fortes menos escrupulosos, que medram por toda a parte e em todo o tempo, como a cizânia no meio do trigo.



A SOCIALIZAÇÃO


Origens e extensão do fenômeno

416 n. 59
A socialização é um dos aspectos característicos da nossa época. Consiste na multiplicação progressiva das relações dentro da convivência social, e comporta a associação de várias formas de vida e de atividade, e a criação de instituições jurídicas. O fato deve-se a multíplices causas históricas, como aos progressos científicos e técnicos, à maior eficiência produtiva e ao aumento do nível de vida.


n. 60
A socialização é simultaneamente efeito e causa de uma crescente intervenção dos poderes públicos, mesmo nos domínios mais delicados, como os da saúde, da instrução e educação das novas gerações, da orientação profissional, dos métodos de recuperação e readaptação dos indivíduos de algum modo menos dotados. Mas é também fruto e expressão de uma tendência natural, quase irreprimível, dos seres humanos: tendência a associarem-se para fins que ultrapassam as capacidades e os meios de que podem dispor os indivíduos em particular. Esta tendência deu origem, sobretudo nestes últimos decênios, a grande variedade de grupos, movimentos, associações e instituições, com finalidades econômicas, culturais, sociais, desportivas, recreativas, profissionais e políticas, tanto nos diversos países como no plano mundial.

Apreciação


n. 61
E claro que a socializaçâo assim entendida tem numerosas vantagens: torna possível satisfazer muitos direitos da pessoa humana, especialmente os chamados econômicos e sociais, por exemplo, o direito aos meios indispensáveis ao sustento, ao tratamento médico, a uma educação de base mais elevada, a uma formação profissional mais adequada, à habitação, ao trabalho, a um repouso conveniente e à recreação. Além disso, através da organização cada vez mais perfeita dos meios modernos da comunicação - imprensa, cinema, rádio e televisão - permite-se a todos de participar nos acontecimentos de caráter mundial.

417 n. 62
Mas, por outro lado a socialização multiplica os organismos e torna sempre mais minuciosa a regulamentação jurídica das relações entre os homens, em todos os domínios. Deste modo, restringe o campo da liberdade de ação dos indivíduos. Utiliza meios, segue métodos e cria círculos fechados, que tornam difícil a cada um pensar independentemente dos influxos externos, agir por iniciativa própria, exercer a própria responsabilidade, afirmar e enriquecer a própria pessoa. Sendo assim, deverá concluir-se que a socialização, crescendo em amplitude e profundidade, chegará a reduzir necessariamente os homens a autômatos? A esta pergunta temos de responder negativamente.


n. 63
Não se deve considerar a socialização como resultado de forças naturais impelidas pelo determinismo; ao contrário, como já observamos, é obra dos homens, seres conscientes e livres, levados por natureza a agir como responsáveis, ainda que em suas ações sejam obrigados a reconhecer e respeitar as leis do progresso econômico e social, e não possam subtrair-se de todo à pressão do ambiente.


n. 64
Por isso, concluímos que a socialização pode e deve realizar-se de maneira que se obtenham as vantagens que ela traz consigo e se evitem ou reprimam as conseqüências negativas.


n. 65
Para o conseguir, requer-se, porém, que as autoridades públicas se tenham formado, e realizem praticamente, uma concepção exata do bem comum; este compreende o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem nos homens o desenvolvimento integral da personalidade. E cremos necessário, além disso, que os corpos intermediários e as diversas iniciativas sociais, em que sobretudo procura exprimir-se e realizar-se a socialização, gozem de uma autonomia efetiva relativamente aos poderes públicos, e vão no sentido dos seus interesses específicos, com espírito de leal colaboração mútua e de subordinação às exigências do bem comum. Nem é menos necessário que os ditos corpos apresentem forma e substância de verdadeiras comunidades; isto é, que os seus membros sejam considerados e tratados como pessoas, e estimulados a participar ativamente na vida associativa.

418 n. 66
As organizações da sociedade contemporânea desenvolvem-se, e a ordem dentro delas consegue-se, cada vez mais, graças a um equilíbrio renovado: exigência, por um lado, de colaboração autônoma prestada por todos, indivíduos e grupos; e, por outro lado, coordenação no devido tempo e orientação promovidas pelas autoridades públicas.


n. 67
Se a socialização se praticasse em conformidade com as leis morais indicadas, não traria, por sua natureza, perigos graves de vir a oprimir os indivíduos. Pelo contrário, ajudaria a que nestes se desenvolvessem as qualidades próprias da pessoa humana. Reorganizaria até a vida comum, tal como a apresentava o nosso predecessor Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno (22): condição indispensável para a satisfação das exigências da justiça social.

22. Cf. AAS, 23(1931), p. 222s.


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