Pacem in terris PT




CARTA ENCÍCLICA

PACEM IN TERRIS

DO SUMO PONTÍFICE

PAPA JOÃO XXIII

A PAZ DE TODOS OS POVOS

NA BASE DA VERDADE,

JUSTIÇA, CARIDADE E LIBERDADE




Aos veneráveis irmãos patriarcas, primazes, arcebispos, bispos
e outros ordinários do lugar em paz e comunhão com a Sé Apostólica,
ao clero e féis de todo o orbe, bem como a todas as pessoas de boa vontade.



INTRODUÇÃO


Ordem no universo


1 A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus.


2 O progresso da ciência e as invenções da técnica evidenciam que reina uma ordem maravilhosa nos seres vivos e nas forças da natureza. Testemunham outrossim a dignidade do homem capaz de desvendar essa ordem e de produzir os meios adequados para dominar essas forças, canalizando-as em seu proveito.


3 Mas o avanço da ciência e os inventos da técnica demonstram, antes de tudo, a infinita grandeza de Deus, criador do universo e do homem. Foi ele quem tirou do nada o universo, infundindo-lhe os tesouros de sua sabedoria e bondade. Por isso, o salmista enaltece a Deus com estas palavras: "Senhor, Senhor, quão admirável é o teu nome em toda a terra" (Ps 8,1). "Quão numerosas são as tuas obras, Senhor! Fizeste com sabedoria todas as coisas" (Ps 103,24). Foi igualmente Deus quem criou o homem à sua imagem e semelhança (cf. Gn Gn 1,26), dotado de inteligência e liberdade, e o constituiu senhor do universo, como exclama ainda o Salmista: "Tu o fizeste pouco menos do que um deus, coroando-o de glória e beleza. Para que domine as obras de tuas mãos sob seus pés tudo colocaste" (Ps 8,5-6).

Ordem nos seres humanos


4 Contrasta clamorosamente com essa perfeita ordem universal a desordem que reina entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força.


5 No entanto, imprimiu o Criador do universo no íntimo do ser humano uma ordem, que a consciência deste manifesta e obriga peremptoriamente a observar: "mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho a sua consciência e seus pensamentos" (Rm 2,15). E como poderia ser de outro modo? Pois toda obra de Deus é um reflexo de sua infinita sabedoria, reflexo tanto mais luminoso, quanto mais essa obra participa da perfeição do ser (cf. Sl Ps 18,8-11).


6 Uma concepção tão freqüente quanto errônea leva muitos a julgar que as relações de convivência entre os indivíduos e sua respectiva comunidade politica possam reger-se pelas mesmas leis que as forças e os elementos irracionais do universo. Mas a verdade é que, sendo leis de gênero diferente, devem-se buscar apenas onde as inscreveu o Criador de todas as coisas, a saber, na natureza humana.


7 São de fato essas leis que indicam claramente como regular na convivência humana as relações das pessoas entre si, as dos cidadãos com as respectivas autoridades públicas, as relações entre os diversos Estados, bem como as dos indivíduos e comunidades políticas com a comunidade mundial, cuja criação é hoje urgentemente postulada pelo bem comum universal.



Iª PARTE


ORDEM ENTRE OS SERES HUMANOS


Todo ser humano é pessoa, sujeito de direitos e deveres


8 E, antes de mais nada, é necessário tratar da ordem que deve vigorar entre os homens.


9 Em uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, e inalienáveis.(1)

1. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1942, AAS 35(1943), pp, 9-24; e João XXIII, Discurso do dia 4 de Janeiro de 1963, AAS 55(1963), pp. 89-91. Lv,1963, pp. 89-91.


10 E se contemplarmos a dignidade da pessoa humana à luz das verdades reveladas, não poderemos deixar de tê-la em estima incomparavelmente maior. Trata-se, com efeito, de pessoas remidas pelo Sangue de Cristo, as quais com a graça se tornaram filhas e amigas de Deus, herdeiras da glória eterna.


DIREITOS


Direito à existência e a um digno padrão de vida


11 E, ao nos dispormos a tratar dos direitos do homem, advertimos, de início, que o ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida: tais são especialmente o alimento, o vestuário, a moradia, o repouso, a assistência sanitária, os serviços sociais indispensáveis. Segue-se daí que a pessoa tem também o direito de ser amparada em caso de doença, de invalidez, de viuvez, de velhice, de desemprego forçado, e em qualquer outro caso de privação dos meios de sustento por circunstâncias independentes de sua vontade.(2)

2. Cf. Pio XI, Carta Encicl. Divini Redemptoris, AAS 29(1937), p. 78; e Pio XII, Mensagem radiofônica da festa de Pentecostes, dia 1 de Junho de 1941, AAS 33(1941), pp. 195-205.



Direitos que se referem aos valores morais e culturais


12 Todo o ser humano tem direito natural ao respeito de sua dignidade e à boa fama; direito à liberdade na pesquisa da verdade e, dentro dos limites da ordem moral e do bem comum, à liberdade na manifestação e difusão do pensamento, bem como no cultivo da arte. Tem direito também à informação verídica sobre os acontecimentos públicos.


13 Deriva também da natureza humana o direito de participar dos bens da cultura e, portanto, o direito a uma instrução de base e a uma formação técnica e profissional, conforme ao grau de desenvolvimento cultural da respectiva coletividade. É preciso esforçar-se por garantir àqueles, cuja capacidade o permita, o acesso aos estudos superiores, de sorte que, na medida do possível, subam na vida social a cargos e responsabilidades adequados ao próprio talento e à perícia adquirida.(3)

3. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1942, AAS 35(1943), pp. 9-24.


Direito de honrar a Deus segundo os ditames da reta consciência


14 Pertence igualmente aos direitos da pessoa a liberdade de prestar culto a Deus de acordo com os retos ditames da própria consciência, e de professar a religião, privada e publicamente. Com efeito, claramente ensina Lactâncio, "fomos criados com a finalidade do prestarmos justas e devidas honras a Deus, que nos criou; de só a ele conhecermos e seguirmos. Por este vínculo de piedade nos unimos e ligamos a Deus, donde deriva o próprio nome de religião".(4) Sobre o mesmo assunto nosso predecessor de imortal memória Leão XIII assim se expressa: "Esta verdadeira e digna liberdade dos filhos de Deus que mantém alta a dignidade da pessoa humana é superior a toda violência e infúria, e sempre esteve nos mais ardentes desejos da Igreja. Foi esta que constantemente reivindicaram os apóstolos, sancionaram nos seus escritos os apologetas, consagraram pelo próprio sangue um sem número de mártires".(5)

4. Divinae Institutiones, 1. IV, c. 28, 2; PL. 6, 535.
5. Carta Encicl. Libertas praestantissimum: Acta Leonis XIII, VIII,1888, pp. 237-238.



Direito à liberdade na escolha do próprio estado de vida


15 É direito da pessoa escolher o estado de vida, de acordo com as suas preferências, e, portanto, de constituir família, na base da paridade de direitos e deveres entre homem e mulher, ou então, de seguir a vocação ao sacerdócio ou à vida religiosa.(6)

6. Cf Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1942, AAS 35(1943), pp. 9-24.


16 A família, baseada no matrimônio livremente contraído, unitário e indissolúvel, há de ser considerada como o núcleo fundamental e natural da sociedade humana. Merece, pois, especiais medidas, tanto de natureza econômica e social, como cultural e moral, que contribuam para consolidá-la e ampará-la no desempenho de sua função.


17 Aos pais, portanto, compete a prioridade de direito em questão de sustento e educação dos próprios filhos.(7)

7. Cf. Pio XI, Carta Encicl. Casti Conubii, AAS 22(1930), pp. 539-592; Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1942, AAS, 35(1943), pp. 9-24.


Direitos inerentes ao campo econômico

18 No que diz respeito às atividades econômicas, é claro que, por exigência natural, cabe à pessoa não só a liberdade de iniciativa, senão também o direito ao trabalho.(8)

8. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da festa de Pentecostes, dia 1 de Junho de 1941, AAS 33(1941), p. 201.


19 Semelhantes direitos comportam certamente a exigência de poder a pessoa trabalhar em condições tais que não se lhe minem as forças físicas nem se lese a sua integridade moral, como tampouco se comprometa o são desenvolvimento do ser humano ainda em formação. Quanto às mulheres, seja-lhes facultado trabalhar em condições adequadas às suas necessidades e deveres de esposas e mães.(9)

9. Cf. Leão XIII, Carta Encicl. Rerum Novarum, Acta Leonis XIII, XI,1891, pp.128-129.


20 Da dignidade da pessoa humana deriva também o direito de exercer atividade econômica com senso de responsabilidade.(10) Ademais, não podemos passar em silêncio o direito a remuneração do trabalho conforme aos preceitos da justiça; remuneração que, em proporção dos recursos disponíveis, permita ao trabalhador e à sua família um teor de vida condizente com a dignidade humana. A esse respeito nosso predecessor de feliz memória Pio XII afirma: "Ao dever pessoal de trabalhar, inerente à natureza, corresponde um direito igualmente natural, o de poder o homem exigir que das tarefas realizadas lhe provenham, para si e seus filhos, os bens indispensáveis à vida: tão categoricamente impõe a natureza a conservação do homem".(11)

10. Cf. João XXIII, Carta Encicl. Mater et Magistra, AAS 53(1961), p.
MM 422.
11. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da festa de Pentecostes, dia 1 de Junho de 1941, AAS 33(1941), p. 201.


21 Da natureza humana origina-se ainda o direito à propriedade privada, mesmo sobre os bens de produção. Como afirmamos em outra ocasião, esse direito "constitui um meio apropriado para a afirmação da dignidade da pessoa humana e para o exercício da responsabilidade em todos os campos; e é fator de serena estabilidade para a família, como de paz e prosperidade social".(12)

12. Cf. João XXIII, Carta Encicl. Mater et Magistra, AAS 53(1961), p.
MM 428.


22 Cumpre, aliás, recordar que ao direito de propriedade privada é inerente uma função social.(13)

13. Cf. ibid., p.
MM 430;


Direito de reunião e associação

23 Da sociabilidade natural da pessoa humana provém o direito de reunião e de associação; bem como o de conferir às associações a forma que aos seus membros parecer mais idônea à finalidade em vista, e de agir dentro delas por conta própria e risco, conduzindo-as aos almejados fins.(14)

14. Cf. Leão XIII, Carta Encicl. Rerum Novarum, Acta Leonis XIII, XI,1891. pp.134-142; Pio XI, Carta Encicl. Quadragesimo Anno, AAS 23(1931), pp.199200; Pio XII, Carta Encicl. Sertum laetitiae, AAS 31(1939), pp. 635-644.


24 Como tanto inculcamos na encíclica Mater et Magistra, é de todo indispensável se constitua uma vasta rede de agremiações ou organismos intermediários, adequados afins que os indivíduos por si sós não possam conseguir de maneira eficaz. Semelhantes agremiações e organismos são elementos absolutamente indispensáveis para salvaguardar a dignidade e a liberdade da pessoa humana, sem lhe comprometer o sentido de responsabilidade.(15)

15. Cf. AAS 53(961), p. 430.


Direito de emigração e de imigração

25 Deve-se também deixar a cada um o pleno direito de estabelecer ou mudar domicílio dentro da comunidade política de que é cidadão, e mesmo, quando legítimos interesses o aconselhem, deve ser-lhe permitido transferir-se a outras comunidades políticas e nelas domiciliar-se.(16) Por ser alguém cidadão de um determinado país, não se lhe tolhe o direito de ser membro da família humana, ou cidadão da comunidade mundial, que consiste na união de todos os seres humanos entre si.

16. Cf. Pio XII Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de1952, AAS 45 (1953), pp. 33-46.


Direitos de caráter político


26 Coere ainda com a dignidade da pessoa o direito de participar ativamente da vida pública, e de trazer assim a sua contribuição pessoal ao bem comum dos concidadãos. São palavras de nosso predecessor de feliz memória Pio XII: "A pessoa humana como tal não só não pode ser considerada como mero objeto ou elemento passivo da vida social, mas, muito pelo contrário, deve ser tida como o sujeito, o fundamento, e o fim da mesma".(17)

17. Cf. Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1944, AAS 37(1945), p.12.


27 Compete outrossim à pessoa humana a legítima tutela dos seus direitos: tutela eficaz, imparcial, dentro das normas objetivas da justiça. Assim Pio XII, nosso predecessor de feliz memória, adverte com estas palavras: "Da ordem jurídica intencionada por Deus emana o direito inalienável do homem à segurança jurídica e a uma esfera jurisdicional bem determinada, ao abrigo de toda e qualquer impugnação arbitrária".(18)

18.Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1942, AAS 35(1943), p. 21.



DEVERES


Indissolúvel relação entre direitos e deveres na mesma pessoa

28 Aos direitos naturais acima considerados vinculam-se, no mesmo sujeito jurídico que é a pessoa humana, os respectivos deveres. Direitos e deveres encontram na lei natural que os outorga ou impõe, o seu manancial, a sua consistência, a sua força inquebrantável.


29 Assim, por exemplo, o direito à existência liga-se ao dever de conservar-se em vida, o direito a um condigno teor de vida, à obrigação de viver dignamente, o direito de investigar livremente a verdade, ao dever de buscar um conhecimento da verdade cada vez mais vasto e profundo.

Reciprocidade de direitos e deveres entre pessoas diversas


30 Estabelecido este princípio, deve-se concluir que, no relacionamento humano, a determinado direito natural de uma pessoa corresponde o dever de reconhecimento e respeito desse direito por parte dos demais. É que todo direito fundamental do homem encontra sua força e autoridade na lei natural, a qual, ao mesmo tempo que o confere, impõe também algum dever correspondente. Por conseguinte, os que reivindicam os próprios direitos, mas se esquecem por completo de seus deveres ou lhes dão menor atenção, assemelham-se a quem constrói um edifício com uma das mãos e, com a outra, o destrói.

Na colaboração mútua


31 Sendo os homens sociais por natureza, é mister convivam uns com os outros e promovam o bem mútuo. Por esta razão, é exigência de uma sociedade humana bem constituída que mutuamente sejam reconhecidos e cumpridos os respectivos direitos e deveres. Segue-se, igualmente, que todos devem trazer a sua própria contribuição generosa à construção de uma sociedade na qual direitos e deveres se exerçam com solércia e eficiência cada vez maiores.


32 Não bastará, por exemplo, reconhecer o direito da pessoa aos bens indispensáveis à sua subsistência, se não envidarmos todos os esforços para que cada um disponha desses meios em quantidade suficiente.


33 A convivência humana, além de bem organizada, há de ser vantajosa para seus membros. Requer-se, pois, que estes não só reconheçam e cumpram direitos e deveres recíprocos, mas todos colaborem também nos múltiplos empreendimentos que a civilização contemporânea permite, sugere, ou reclama.

Senso de responsabilidade


34 Exige ademais a dignidade da pessoa humana um agir responsável e livre. Importa, pois; para o relacionamento social que o exercício dos próprios direitos, o cumprimento dos próprios deveres e a realização dessa múltipla colaboração derivem sobretudo de decisões pessoais, fruto da própria convicção, da própria iniciativa, do próprio senso de responsabilidade, mais que por coação, pressão, ou qualquer forma de imposição externa. Uma convivência baseada unicamente em relações de força nada tem de humano: nela as pessoas vêem coarctada a própria liberdade, quando, pelo contrário, deveriam ser postas em condição tal que se sentissem estimuladas a demandar o próprio desenvolvimento e aperfeiçoamento.

Convivência fundada sobre a verdade, a justiça, o amor a liberdade


35 A convivência entre os seres humanos só poderá, pois, ser considerada bem constituída, fecunda e conforme à dignidade humana, quando fundada sobre o verdade, como adverte o apóstolo Paulo: "Abandonai a mentira e falai a verdade cada um ao seu próximo, porque somos membros uns dos outros" (Ep 4,25). Isso se obterá se cada um reconhecer devidamente tanto os próprios direitos, quanto os próprios deveres para com os demais. A comunidade humana será tal como acabamos de a delinear, se os cidadãos, guiados pela justiça, se dedicarem ao respeito dos direitos alheios e ao cumprimento dos próprios deveres; se se deixarem conduzir por um amor que sinta as necessidades alheias como próprias, fazendo os outros participantes dos próprios bens; e se tenderem todos a que haja no orbe terrestre uma perfeita comunhão de valores culturais e espirituais. Nem basta isso. A sociedade humana realiza-se na liberdade digna de cidadãos que, sendo por natureza dotados de razão, assumem a responsabilidade das próprias ações.


36 É que acima de tudo, veneráveis irmãos e diletos filhos, há de considerar-se a convivência humana como realidade eminentemente espiritual: como intercomunicação de conhecimentos à luz da verdade, exercício de direitos e cumprimento de deveres, incentivo e apelo aos bens morais, gozo comum do belo em todas as suas legítimas expressões, permanente disposição de fundir em tesouro comum o que de melhor cada qual possua, anelo de assimilação pessoal de valores espirituais. Valores esses, nos quais se vivifica e orienta tudo o que diz respeito à cultura, ao desenvolvimento econômico, às instituições sociais, aos movimentos e regimes políticos, à ordem jurídica e aos demais elementos, através dos quais se articula e se exprime a convivência humana em incessante evolução.

Ordem moral tendo por fundamento objetivo o verdadeiro Deus


37 A ordem que há de vigorar na sociedade humana é de natureza espiritual. Com efeito, é uma ordem que se funda na verdade, que se realizará segundo a justiça, que se animará e se consumará no amor, que se recomporá sempre na liberdade, mas sempre também em novo equilíbrio cada vez mais humano.


38 Ora, essa ordem moral-universal, absoluta e imutável nos seus princípios - encontra a sua origem e o seu fundamento no verdadeiro Deus, pessoal e transcendente. Deus, verdade primeira e sumo bem, é o único e o mais profundo manancial, donde possa haurir a sua genuína vitalidade uma sociedade bem constituída, fecunda e conforme à dignidade de pessoas humanas.(19) A isto se refere santo Tomás de Aquino, quando escreve: "a razão humana tem da lei eterna, que é a mesma razão divina, a prerrogativa de ser a regra da vontade humana, medida da sua bondade... Donde se segue que a bondade da vontade humana depende muito mais da lei eterna do que da razão humana".(20)

19. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1942, AAS 35(1943), p.14.
20. Summa Theol.
I-II 19,4; cf. a. I-II 19,9.


Sinais dos tempos

39 Três fenômenos caracterizam a nossa época. Primeiro, a gradual ascensão econômico-social das classes tratalhadoras.


40 Nas primeiras fases do seu movimento de ascensão, os trabalhadores concentravam sua ação na reivindicação de seus direitos, especialmente de natureza econômico-social, avançaram em seguida os trabalhadores às reivindicações políticas e, malmente, se empenharam na conquista de bens culturais e morais. Hoje, em toda parte, os trabalhadores exigem ardorosamente não serem tratados à maneira de meros objetos, sem entendimento nem liberdade, à mercê do arbítrio alheio, mas como pessoas, em todos os setores da vida social, tanto no econômicosocial como no da política e da cultura.


41 Em segundo lugar, o fato por demais conhecido, isto é, o ingresso da mulher na vida pública: mais acentuado talvez em povos de civilização cristã; mais tardio, mas já em escala considerável, em povos de outras tradições e cultura. Torna-se a mulher cada vez mais conscia da própria dignidade humana, não sofre mais ser tratada como um objeto ou um instrumento, reivindica direitos e deveres consentâneos com sua dignidade de pessoa, tanto na vida familiar como na vida social.


42 Notamos finalmente que, em nossos dias, evoluiu a sociedade humana para um padrão social e político completamente novo. Uma vez que todos os povos já proclamaram ou estão para proclamar a sua independência, acontecerá dentro em breve que já não existirão povos dominadores e povos dominados.


43 As pessoas de qualquer parte do mundo são hoje cidadãos de um Estado autônomo ou estão para o ser. Hoje comunidade nenhuma de nenhuma raça quer estar sujeita ao domínio de outrem. Porquanto, em nosso tempo, estão superadas seculares opiniões que admitiam classes inferiores de homens e classes superiores, derivadas de situação econômico-social, sexo ou posição política.


44 Ao invés, universalmente prevalece hoje a opinião de que todos os seres humanos são iguais entre si por dignidade de natureza. As discriminações raciais não encontram nenhuma justificação, pelo menos no plano doutrinal. E isto é de um alcance e importância imensa para a estruturação do convívio humano segundo os princípios que acima recordamos. Pois, quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão de sua dignidade, nos demais, o dever de reconhecer e respeitar tais direitos.


45 E quando as relações de convivência se colocam em termos de direito e dever, os homens abrem-se ao mundo dos valores culturais e espirituais, quais os de verdade, justiça, caridade, liberdade, tornando-se cônscios de pertencerem àquele mundo. Ademais são levados por essa estrada a conhecer melhor o verdadeiro Deus transcendente e pessoal e a colocar então as relações entre eles e Deus como fundamento de sua vida: da vida que vivem no próprio íntimo e da vida em relação com os outros homens.



2ª PARTE


RELAÇÕES ENTRE OS SERES HUMANOS E OS PODERES PÚBLICOS

NO SEIO DAS COMUNIDADES POLÍTICAS




Necessidade da autoridade e sua origem divina


46 A sociedade humana não estará bem constituída nem será fecunda a não ser que lhe presida uma autoridade legítima que salvaguarde as instituições e dedique o necessário trabalho e esforço ao bem comum. Esta autoridade vem de Deus, como ensina são Paulo: "não há poder algum a não ser proveniente de Deus" (Rm 13,1-6). A esta sentença do Apóstolo faz eco a explanação de são João Crisóstomo: "Que dizes? Todo governante é constituído por Deus? Não, não afirmo isso. Não trato agora de cada governante em particular mas do governo como tal. Afirmo ser disposição da sabedoria divina que haja autoridade, que alguns governem outros obedeçam e que não se deixe tudo ao acaso ou à temeridade humana".(21) Com efeito, Deus criou os homens sociais por natureza e, já que sociedade alguma pode "subsistir sem um chefe que, com o mesmo impulso eficaz, encaminhe todos para o fim comum, conclui-se que a comunidade humana tem necessidade de uma autoridade que a governe. Esta, assim como a sociedade, se origina da natureza, e por isso mesmo, vem de Deus".(22)

21. In Epist, ad Rom., c.13, vv. 1-2, homil. XXIII: PG. 60, 615.
22. Leão XIII, Epist. Encicly. Immortale Dei, Acta Leonis XIII, V,1885, p.120.


47 A autoridade não é força incontrolável, é sim faculdade de mandar segundo a sã razão. A sua capacidade de obrigar deriva, portanto, da ordem moral, a qual tem a Deus como princípio e fim. Razão pela qual adverte o nosso predecessor Pio XII, de feliz memória: "A ordem absoluta dos seres e o próprio fim do homem (ser livre, sujeito de deveres e de direitos invioláveis, origem e fim da sociedade humana) comportam também o Estado como comunidade necessária e investida de autoridade, sem a qual não poderia existir nem medrar... Segundo a reta razão e, principalmente segundo a fé cristã, essa ordem de coisas só pode ter seu princípio num Deus pessoal, criador de todos. Por isso, a dignidade da autoridade política tem sua origem na participação da autoridade do próprio Deus".(23)

23. Cf. Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1944, AAS 37(1945), p.15.



Força proveniente da ordem moral

48 A autoridade que se baseasse exclusiva ou principalmente na ameaça ou no temor de penas ou na promessa e solicitação de recompensa, não moveria eficazmente os seres humanos à realização do bem comum. Se por acaso o conseguisse, isso repugnaria à dignidade de seres dotados de razão e de liberdade. A autoridade é sobretudo uma força moral. Deve, pois, apelar à consciência do cidadão, isto é, ao dever de prontificar-se em contribuir para o bem comum. Sendo, porém, todos os homens iguais em dignidade natural, ninguém pode obrigar a outrem interiormente, porque isso é prerrogativa exclusiva de Deus, que perscruta e julga as atitudes íntimas.


49 A autoridade humana pode obrigar moralmente só estando em relação intrínseca com a autoridade de Deus e é participação dela.


50 Desta maneira fica salvaguardada também a dignidade pessoal dos cidadãos. Obediência aos poderes públicos não é sujeição de homem a homem, é sim, no seu verdadeiro significado, homenagem prestada a Deus, sábio criador de todas as coisas, o qual dispôs que as relações de convivência se adaptem à ordem por ele estabelecida. Pelo fato de prestarmos a devida reverência a Deus, não nos humilhamos, mas nos elevamos e enobrecemos, porque, "servir a Deus é reinar".(25)

24. Cf. Leão XIII, Carta Encicl. Diuturnum illud, Acta Leonis XIII, II,1880-1881, p. 274.
25. Cf. Leão XIII, Carta Encicl. Diuturnum illud, Acta Leonis XIII, II, 1880-1881, p. 278, EE 3. Carta Encic. Immortale Dei, Acta Leonis XIII, V,1885, p.130.


51 Já que a autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus, caso os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência dos cidadãos. "É preciso obedecer antes a Deus que aos homens" (Ac 5,29). Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder; segundo a doutrina de Santo Tomás de Aquino: "A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a reta razão: derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz à razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor de lei, mas é um ato de violência".(26)

26. Summa Theol., I-II 93,3 ad 2um; cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1944, AAS 37(1945), pp. 5-23.


52 Pelo fato, porém, de a autoridade provir de Deus, de nenhum modo se conclui que os homens não tenham faculdade de eleger os próprios governantes, de determinar a forma de governo e o métodos e a alçada dos poderes públicos. Segue-se daí que a doutrina por nós exposta é compatível com qualquer regime genuinamente democrático.(27)

27. Cf. Leão XIII, Epist. Encycl. Diuturnum illud, Acta Leonis XIII, II,18801881, pp. 271-272. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1944, AAS 37(1945), pp. 5-23.



A atuação do bem comum constitui a razão de ser dos poderes públicos

53 Todo o cidadão e todos os grupos intermediários devem contribuir para o bem comum. Disto se segue, antes de mais nada, que devem ajustar os próprios interesses às necessidades dos outros, empregando bens e serviços na direção indicada pelos governantes, dentro das normas da justiça e na devida forma e limites de competência. Quer isso dizer que os respectivos atos da autoridade civil não só devem ser formalmente corretos, mas também de conteúdo tal que de fato representem o bem comum, ou a ele possam encaminhar.


54 Essa realização do bem comum constitui a própria razão de ser dos poderes públicos, os quais devem promovê-lo de tal modo que, ao mesmo tempo, respeitem os seus elementos essenciais e adaptem as suas exigências às atuais condições históricas.(28)

28. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1942, AAS 35(1943), p.13. Leão XIII, Epist. Encycl. Immortale Dei, Acta Leonis XIII, V, 1885, p.120.



Aspectos fundamentais do bem comum

55 Mais ainda, as características étnicas de cada povo devem ser consideradas como elementos do bem comum. (29) Não lhe esgotam, todavia, o conteúdo. Pois visto ter o bem comum relação essencial com a natureza humana, não poderá ser concebido na sua integridade, a não ser que, além de considerações sobre a sua natureza íntima e sua realização histórica, sempre se tenha em conta a pessoa humana.(30)

29. Cf. Pio XII, Carta Encicl. Summi Pontificatus, AAS 31(1939), pp. 413-453.
30. Cf. Pio XI, Carta Encicl. Mit brennender Sorge, AAS 29(1937), p. 159; Carta Encicl. Divini Redemptoris, AAS 29(1937), pp. 65-106.


56 Acresce que por sua mesma natureza, todos os membros da sociedade devem participar deste bem comum, embora em grau diverso, segundo as funções que cada cidadão desempenha, seus méritos e condições. Devem, pois, os poderes públicos promover o bem comum em vantagem de todos, sem preferência de pessoas ou grupos, como assevera nosso predecessor, de imortal memória, Leão XIII: "De modo nenhum se deve usar para vantagem de um ou de poucos a autoridade civil constituída para o bem comum de todos".(31) Acontece, no entanto, que, por razões de justiça e eqüidade, devam os poderes públicos ter especial consideração para com membros mais fracos da comunidade, pois se encontram em posição de inferioridade para reivindicar os próprios direitos e prover a seus legítimos interesses.(32)

31. Leão XIII, Carta Encicl. Immortale Dei, Acta Leonis XIII, V,1885, p,121.
32. Cf. Leão XIII, Carta Encicl. Rerum Novarum, Acta Leonis XIII, XI,1891, pp.133-134.


57 Aqui, julgamos dever chamar a atenção de nossos filhos para o fato de que o bem comum diz respeito ao homem todo, tanto às necessidades do corpo, como às do espírito. Procurem, pois, os poderes públicos promovê-lo de maneira idônea e equilibrada, isto é, respeitando a hierarquia dos valores e proporcionando, com os bens materiais, também os que se referem aos valores espirituais.(33)

33. Cf. Pio XII, Carta Encicl. Summi Pontificatus, AAS 31(1939), p. 433.


58 Concordam estes princípios com a definição que propusemos na nossa encíclica Mater et Magistra: O bem comum "consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana".(34)

34. AAS 53(1961), p. 417.


59 Ora, a pessoa humana, composta de corpo e alma imortal, não pode saciar plenamente as suas aspirações nem alcançar a perfeita felicidade no âmbito desta vida mortal. Por isso, cumpre atuar o bem comum em moldes tais que não só não criem obstáculo, mas antes sirvam à salvação eterna da pessoa.(35)

35. Cf. Pio XI, Carta Encicl. Quadragesimo Anno, AAS 23(1931), p. 215.



Funções dos poderes públicos e direitos e deveres da pessoa

60 Hoje em dia se crê que o bem comum consiste sobretudo no respeito aos direitos e deveres da pessoa humana. Oriente-se, pois, o empenho dos poderes públicos sobretudo no sentido de que esses direitos sejam reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres. "A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres". (36)

36. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da festa de Pentecostes, de 1 de junho de 1941. AAS 33(1941), p. 200.


61 Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas injunções perdem a força de obrigar em consciência.(37)

37. Cf. Pio XI, Carta Encicl. Mit brennender Sorge, AAS 29(1937), p.159; Carta Encicl. Divini Redemptoris, AAS 29(1937), p. 79; cf. Pio XII, Nuntius Radiophonicus, da vigilia do Natal de 1942, AAS 35(1943), pp. 9-24.




Pacem in terris PT