Redemptoris Mater PT


Ioannes Paulus PP. II

Redemptoris Mater

sobre a Bem Aventurada

Virgem Maria

na vida da Igreja que está a caminho


1987.03.25




Benção



Veneráveis Irmãos, caríssimos Filhos e Filhas: saúde e Bênção Apostólica!



INTRODUÇÃO

1 A MÃE DO REDENTOR tem um lugar bem preciso no plano da salvação, porque, "ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido duma mulher, nascido sob a Lei, a fim de resgatar os que estavam sujeitos à Lei e para que nós recebêssemos a adopção de filhos. E porque vós sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: "Abbá! Pai!"" (Ga 4,4-6).

Com estas palavras do Apóstolo São Paulo, que são referidas pelo Concílio Vaticano II no início da sua exposição sobre a Bem-aventurada Virgem Maria, 1 desejo também eu começar a minha reflexão sobre o significado que Maria tem no mistério de Cristo e sobre a sua presença activa e exemplar na vida da Igreja. Trata-se, de facto, de palavras que celebram conjuntamente o amor do Pai, a missão do Filho, o dom do Espírito Santo, a mulher da qual nasceu o Redentor e a nossa filiação divina, no mistério da "plenitude dos tempos". 2

Esta "plenitude" indica o momento, fixado desde toda a eternidade, em que o Pai enviou o seu Filho, "para que todo o que n'Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jn 3,16). Ela designa o momento abençoado em que "o Verbo, que estava junto de Deus, ... se fez carne e habitou entre nós" (Jn 1,1 Jn 1,14), fazendo-se nosso irmão. Esta "plenitude" marca o momento em que o Espírito Santo que já tinha infundido a plenitude de graça em Maria de Nazaré, plasmou no seu seio virginal a natureza humana de Cristo. A mesma "plenitude" denota aquele momento, em que, pelo ingresso do eterno no tempo, do divino no humano, o próprio tempo foi redimido e, tendo sido preenchido pelo mistério de Cristo, se torna definitivamente "tempo de salvação". Ela assinala, ainda, o início arcano da caminhada da Igreja. Na Liturgia, de facto, a Igreja saúda Maria de Nazaré como seu início, 3 por isso mesmo que já vê projectar-se, no evento da Conceição imaculada, como que antecipada no seu membro mais nobre, a graça salvadora da Páscoa; e, sobretudo, porque no acontecimento da Incarnação se encontram indissoluvelmente ligados Cristo e Maria Santíssima: Aquele que é o seu Senhor e a sua Cabeça e Aquela que, ao pronunciar o primeiro "fiat" (faça-se) da Nova Aliança, prefigura a condição da mesma Igreja de esposa e de mãe.


(1) Cfr. Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 52 et totum cap. VIII cui est titulus «De Beata Maria Virgine Deipara in mysterio Christi et Ecclesiae ».
(2) Locutio illa « plenitudo temporis » (p????µa t?? ?pó???) similibus aequatur dictionibus Iudaicae traditionis tum intra ipsa Biblia (cfr. Gn 29,21 1S 7,12 Tb 14,5) tum extra, praesertim Novi Testamenti (cfr. Mc 1,15 Lc 21,24 Jn 7,8 Ep 1,10). Formali sumpta sensu ea demonstrat non solum terminum cuiusdam progressionis temporis, sed praesertim perfectionem vel absolutionem aetatis, quae singulare habet momentum, quoniam illuc dirigitur ut exspectatio quaedam impleatur, quae proinde consequitur aliquam eschatologicam rationem. Secundum illum locum Gal 4, 4 eiusque contextum, adventus ipse Filii Dei patefacit tempus, ut ita dicatur, complevisse suum destinatum modum; id est aetatem eam, promissis Abrahae datis necnon lege per Moysen tradita designatam, suum attigisse culmen, ita quidem ut Christus ipse iam promissionem impleat divinam veteremque excedat legem.
(3) Cfr. Missale Romanum, Praefatio die 8 Decembris « In Conceptione Immaculata Beatae Mariae Virginis »; S. AMBROSIUS, De Institutione Virginis, XV, 93-94: PL 16, 342; CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 68.



2 Confortada pela presença de Cristo (cf. Mt 28,20), a Igreja caminha no tempo, no sentido da consumação dos séculos e procede para o encontro com o Senhor que vem. Mas nesta caminhada - desejo realçá-lo desde já - a Igreja procede seguindo as pegadas do itinerário percorrido pela Virgem Maria, a qual "avançou na peregrinação da fé, mantendo fielmente a união com o seu Filho até à Cruz".4

Refiro estas palavras tão densas, evocando assim a Constituição Lumen Gentium, o documento que, no último capítulo, apresenta uma síntese vigorosa da fé e da doutrina da Igreja sobre o tema da Mãe de Cristo, venerada como Mãe amantíssima e como seu modelo na fé, na esperança e na caridade.

Poucos anos depois do Concílio, o meu grande Predecessor Paulo VI houve por bem voltar a falar da Virgem Santíssima, expondo primeiramente na Carta Encíclica Christi Matri e, em seguida, nas Exortações Apostólicas Signum Magnum e Marialis Cultus, 5 os fundamentos e os critérios daquela veneração singular que a Mãe de Cristo recebe na Igreja, assim como as formas de devoção mariana - litúrgicas, populares e privadas - em correspondência com o espírito da fé.

(4) CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 58.



3 A circunstância que agora me impele também a mim a retomar este assunto é a perspectiva do Ano Dois Mil, que já está próximo, no qual o Jubileu bimilenário do nascimento de Jesus Cristo, nos leva a volver o olhar simultaneamente para a sua Mãe. Nestes anos mais recentes, foram aparecendo diversos alvitres que apontavam a oportunidade de fazer anteceder a comemoração bimilenária de um outro Jubileu análogo, dedicado à celebração do nascimento de Maria Santíssima.

Na realidade, se não é possível estabelecer um momento cronológico preciso para aí fixar o nascimento de Maria, tem sido constante da parte da Igreja a consciência de que Maria apareceu antes de Cristo no horizonte da história da salvação.6 É um facto que, ao aproximar-se definitivamente a "plenitude dos tempos", isto é, o advento salvífico do Emanuel, Aquela que desde a eternidade estava destinada a ser sua Mãe já existia sobre a terra. Esta sua "precedência", em relação à vinda de Cristo, tem anualmente os seus reflexos na liturgia do Advento. Por conseguinte, se os anos que nos vão aproximando do final do Segundo Milénio depois de Cristo e do início do Terceiro forem cotejados com aquela antiga expectativa histórica do Salvador, torna- se perfeitamente compreensível que neste período desejemos voltar-nos de modo especial para Aquela que, na "noite" da expectativa do Advento, começou a resplandecer como uma verdadeira "estrela da manhã" (Stella matutina). Com efeito, assim como esta estrela, conjuntamente à "aurora", precede o nascer do sol, assim também Maria, desde a sua Conceição imaculada, precedeu a vinda do Salvador, o nascer do "sol da justiça" na história do género humano. 7

A sua presença no meio do povo de Israel - tão discreta que passava quase despercebida aos olhos dos contemporâneos - brilhava bem clara diante do Eterno, que tinha associado esta ignorada "Filha de Sião" (cf.
So 3,14 Za 2,14) ao plano salvífico que compreendia toda a história da humanidade. Com razão, pois, no final deste Milénio, nós cristãos, que sabemos ser o plano providencial da Santíssima Trindade a realidade central da revelação e da fé, sentimos a necessidade de pôr em relevo a presença singular da Mãe de Cristo na história, especialmente no decorrer deste último período de tempo que precede o Ano Dois Mil.

(5) PAULUS PP. VI, Ep. Enc. Christi Matri (15 Septembris 1966): AAS 58 (1966) 745- 749 ; Adhort. Apost. Signum magnum (13 Maii 1967): AAS 59 (1967) 465-475; Adhort. Apost.Marialis cultus (2 Februarii 1974): AAS 66 (1974) 113-168.
(6) Vetus Testamentum multimodis praenuntiavit mysterium Mariae: cfr. S. IOANNES DAMASCENUS, Hom. in Dormitionem I, 8-9: S. Ch. 80, 103-107.
(7) Cfr. Insegnamenti di Giovanni Paolo II, VI/2 (1983) 225 s.; Pius PP. IX, Ep. Apost.Ineffabilis Deus (8 Decembris 1854); PII IX P. M. Acta, pars I, 597-599. s



4 Para isso nos prepara já o Concílio Vaticano II, ao apresentar no seu magistério a Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreia. Com efeito, se "o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo Incarnado" - como proclama o mesmo Concílio 8 - então é necessário aplicar este princípio, de modo muito particular, àquela excepcional "filha da estirpe humana", àquela "mulher" extraordinária que se tornou Mãe de Cristo. Só no mistério de Cristo "se esclarece" plenamente o seu mistério. Foi assim, de resto, que a Igreja, desde o princípio, procurou fazer a sua leitura: o mistério da Incarnação permitiu-lhe entender e esclarecer cada vez melhor o mistério da Mãe do Verbo Incarnado. Neste aprofundamento teve uma importância decisiva o Concílio de Éfeso (a. 431), durante o qual, com grande alegria dos cristãos, a verdade sobre a maternidade divina de Maria foi confirmada solenemente como verdade de fé da Igreja. Maria é a Mãe de Deus ( = Theotókos), uma vez que, por obra do Espírito Santo, concebeu no seu seio virginal e deu ao mundo Jesus Cristo, o Filho de Deus consubstancial ao Pai. 9 "O Filho de Deus ... ao nascer da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós ...",10 fez-se homem. Deste modo, pois, mediante o mistério de Cristo, resplandece plenamente no horizonte da fé da Igreja o mistério da sua Mãe. O dogma da maternidade divina de Maria, por sua vez, foi para o Concílio de Éfeso e é para a Igreja como que uma chancela no dogma da Incarnação, em que o Verbo assume realmente, sem a anular, a natureza humana na unidade da sua Pessoa.

(8) Cfr. Const. past. Gaudium et spes de Ecclesia in mundo huius temporis,
GS 22.
(9) CONC. OEC. EPHES., Conciliorum Oecumenicorum Decreta, Bologna 1973', 41-44; 59-62 (DS 250-264); cfr. CONC. OEC. CHALCEDON.: o. mem., 84-87 (DS 300-303).
(10) CONC. OEC. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes de Ecclesia in mundo huius temporis, GS 22.



5 O Concílio Vaticano II, apresentando Maria no mistério de Cristo, encontra desse modo o caminho para aprofundar também o conhecimento do mistério da Igreja. Maria, de facto, como Mãe de Cristo, está unida de modo especial com a Igreja, "que o Senhor constituíu como seu corpo". 11 O texto conciliar põe bem próximas uma da outra, significativamente, esta verdade sobre a Igreja como corpo de Cristo (segundo o ensino das Cartas de São Paulo) e a verdade de que o Filho de Deus "por obra do Espírito Santo nasceu da Virgem Maria". A realidade da Incarnação encontra como que um prolongamento no mistério da Igreja - corpo de Cristo. E não se pode pensar na mesma realidade da Incarnação sem fazer referência a Maria - Mãe do Verbo Incarnado.

Nas reflexões que passo a apresentar, porém, quero referir-me principalmente àquela "peregrinação da fé", na qual "a Bem-aventurada Virgem Maria avançou", conservando fielmente a união com Cristo. 12 Deste modo, aquele dúplice vínculo, que une a Mãe de Deus com Cristo e com a Igreja, reveste-se de um significado histórico. E não se trata aqui simplesmente da história da Virgem Maria, do seu itinerário pessoal de fé e da "melhor parte" que ela tem no mistério da salvação; trata-se também da história de todo o Povo de Deus, de todos aqueles que tomam parte na mesma peregrinação da fé.

É isto o que exprime o Concílio, ao declarar, numa outra passagem, que a Virgem Maria "precedeu", tornando-se "a figura da Igreja, na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo".13 Este seu "preceder", como figura ou modelo, refere-se ao próprio mistério íntimo da Igreja, a qual cumpre a própria missão salvífica unindo em si - à semelhança de Maria - as qualidades de mãe e de virgem. É virgem que "guarda fidelidade total e pura ao seu esposo" e "torna-se, também ela própria, mãe ... pois gera para vida nova e imortal os filhos concebidos por acção do Espírito Santo e nascidos de Deus".14

(11) Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia,
LG 52.
(12) Ibid., LG 58;
(13) Ibid., LG 63; cfr. S. AMBROSIUS, Expos. Evang. sec. Lucam, II, 7: CSEL 32/4, 45; De Institutione Virginia, XIV, 88-89: PL 16, 341.
(14) Cfr. Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 64.



6 Tudo isto se realiza num grande processo histórico e, por assim dizer, "numa caminhada". "A peregrinação da fé" indica a história interior, que é como quem diz a história das almas. Mas esta é também a história dos homens, sujeitos nesta terra à condição transitória e situados nas dimensões históricas. Nas reflexões que seguem quereria, juntamente convosco, concentrar-me primeiro que tudo na sua fase presente, que aliás de per si não pertence ainda à história; e, contudo, incessantemente já a vai plasmando, também no sentido de história da salvação. Aqui abre-se um espaço amplo, no interior do qual a Bem-aventurada Virgem Maria continua a "preceder" o Povo de Deus. A sua excepcional peregrinação da fé representa um ponto de referência constante para a Igreja, para as pessoas singulares e para as comunidades, para os povos e para as nações e, em certo sentido, para toda a humanidade. É verdadeiramente difícil abarcar e medir o seu alcance.

O Concílio sublinha que a Mãe de Deus já é a realização escatológica da Igreja: "na Santíssima Virgem ela já atingiu aquela perfeição sem mancha nem ruga que lhe é própria (cf.
Ep 5,27)" - e, simultaneamente, que "os fiéis ainda têm de envidar esforços para debelar o pecado e crescer na santidade; e, por isso, eles levantam os olhos para Maria, que brilha como modelo de virtudes sobre toda a comunidade dos eleitos" 15 A peregrinação da fé é algo que já não pertence à Genetriz do Filho de Deus: glorificada nos céus ao lado do próprio Filho, a sua união com o mesmo Deus já transpôs o limiar entre a fé e a visão "face-a-face" (1Co 13,12). Ao mesmo tempo, porém, nesta realização escatológica, Maria não cessa de ser a "estrela do mar" (Maris Stella)16 para todos aqueles que ainda percorrem o caminho da fé. Se levantam os olhos para Ela nos diversos lugares onde se desenrola a sua existência terrena, fazem-no porque Ela "deu à luz o Filho, que Deus estabeleceu como primogénito entre muitos irmãos" (Rm 8,29) 17 e também porque "Ela coopera com amor de mãe" para "a regeneração e educação" destes irmãos e irmãs.18

(15) Ibid., LG 65.
(16) « Tolle corpus hoc solare, quod illuminat mundum: ubi dies? Tolle Mariam, liane maris stellam, maris utique magni et spatiosi: quid visi caligo involvens, et umbra mortis ac densisshnae tenebrae relinquuntur? »: S. BERNARDUS, In Nativitate B. Mariae Sermo - De acquaeductu, 6: S. Bernardi Opera, V, 1968, 279; cfr. In laudibus Virginis Matris Homilia II, 17: ed. mem., IV, 1966, 34 s.
(17) Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia. LG 63.
(18) Ibid., LG 63.





PRIMEIRA PARTE - MARIA NO MISTÉRIO DE CRISTO


1. Cheia de graça

7 "Bendito seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual no alto dos céus, nos abençoou com toda a sorte de bênçãos espirituais em Cristo" (Ep 1,3). Estas palavras da Carta aos Efésios revelam o eterno desígnio de Deus Pai, o seu plano de salvação do homem em Cristo. É um plano universal, que concerne todos os homens criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gén Gn 1,26). Todos eles, assim como "no princípio" estão compreendidos na obra criadora de Deus, assim também estão eternamente compreendidos no plano divino da salvação, que se deve revelar cabalmente na "plenitude dos tempos", com a vinda de Cristo. Com efeito, "n'Ele", aquele Deus, que é "Pai de nosso Senhor Jesus Cristo" - são as palavras que vêm a seguir na mesma Carta - "nos elegeu antes da criação do mundo, para sermos santos e imaculados aos seus olhos. Por puro amor Ele nos predestinou a sermos adoptados por Ele como filhos, por intermédio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade, para louvor da magnificência da sua graça, pela qual nos tornou agradáveis em seu amado Filho. N'Ele, mediante o seu sangue, temos a redenção, a remissão dos pecados segundo as riquezas da sua graça" (Ep 1,4-7).

O plano divino da salvação, que nos foi revelado plenamente com a vinda de Cristo, é eterno. Ele é também - segundo o ensino contido na mesma Carta e noutras Cartas paulinas (cf. Col 1,12-14 Rm 3,24 Ga 3,13 2Co 5,18-29) - algo que está eternamente ligado a Cristo. Ele compreende em si todos os homens; mas reserva um lugar singular à "mulher" que foi a Mãe d'Aquele ao qual o Pai confiou a obra da salvação. 19 Como explana o Concílio Vaticano II, "Maria encontra-se já profeticamente delineada na promessa da vitória sobre a serpente, feita aos primeiros pais caídos no pecado", segundo o Livro do Génesis (cf. Gn 3,15). "Ela é, igualmente, a Virgem que conceberá e dará à luz um Filho, cujo nome será Emanuel" segundo as palavras de Isaías (cf. Is 7,14). 20 Deste modo, o Antigo Testamento prepara aquela "plenitude dos tempos", quando Deus haveria de enviar "o seu Filho, nascido duma mulher ..., para que nós recebêssemos a adopção como filhos". A vinda ao mundo do Filho de Deus e o acontecimento narrado nos primeiros capítulos dos Evangelhos segundo São Lucas e segundo São Mateus.

(19) De praedestinatione Mariae, cfr. S. IOANNES DAMASCENUS, Hom. in Nativitatem, 7; 10: S. Ch. 80, 65; 73; Hom. in Dormitionem I, 3: S. Ch. 80, 85: « Est enim ea, quae electa inde a generationibus antiquis virtute praedestinationis et benevolentiae Dei et Patris qui te (Verbum Dei) genuit extra tempus non exiens a seipso ac sine ulla mutatione, est ea quae te peperit, nutrivit sua carne, postremis temporibus ...».
(20) Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 55.



8 Maria é introduzida no mistério de Cristo definitivamente mediante aquele acontecimento que foi a Anunciação do Anjo. Esta deu-se em Nazaré, em circunstâncias bem precisas da história de Israel, o povo que foi o primeiro destinatário das promessas de Deus. O mensageiro divino diz à Virgem: "Salve, ó cheia de graça, o Senhor é contigo" (Lc 1,28). Maria "perturbou-se e interrogava-se a si própria sobre o que significaria aquela saudação" (Lc 1,29): que sentido teriam todas aquelas palavras extraordinárias, em particular, a expressão "cheia de graça" (kecharitoméne). 21

Se quisermos meditar juntamente com Maria em tais palavras e, especialmente, na expressão "cheia de graça", podemos encontrar uma significativa correspondência precisamente na passagem acima citada da Carta aos Efésios. E se, depois do anúncio do mensageiro celeste, a Virgem de Nazaré é chamada também a "bendita entre as mulheres" (cf. Lc 1,42), isso explica-se por causa daquela bênção com que "Deus Pai" nos cumulou "no alto dos céus, em Cristo". É uma bênção espiritual, que se refere a todos os homens e traz em si mesma a plenitude e a universalidade ("toda a sorte de bênçãos"), tal como brota do amor que, no Espírito Santo, une ao Pai o Filho consubstancial. Ao mesmo tempo, trata-se de uma bênção derramada por obra de Jesus Cristo na história humana até ao fim: sobre todos os homens. Mas esta bênção refere-se a Maria em medida especial e excepcional: ela, de facto, foi saudada por Isabel como "a bendita entre as mulheres".

O motivo desta dupla saudação, portanto, está no facto de se ter manifestado na alma desta "filha de Sião", em certo sentido, toda a "magnificência da graça", daquela graça com que "o Pai ... nos tornou agradáveis em seu amado Filho". O mensageiro, efectivamente, saúda Maria como "cheia de graça"; e chama-lhe assim, como se este fosse o seu verdadeiro nome. Não chama a sua interlocutora com o nome que lhe é próprio segundo o registo terreno: "Miryam" ( = Maria); mas sim com este nome novo: "cheia de graça". E o que significa este nome? Por que é que o Arcanjo chama desse modo à Virgem de Nazaré?

Na linguagem da Bíblia "graça" significa um dom especial, que, segundo o Novo Testamento, tem a sua fonte na vida trinitária do próprio Deus, de Deus que é amor (cf. 1Jn 4,8). É fruto deste amor a "eleição" - aquela eleição de que fala a Carta aos Efésios. Da parte de Deus esta "escolha" é a eterna vontade de salvar o homem, mediante a participação na sua própria vida divina (cf. 2P 1,4) em Cristo: é a salvação pela participação na vida sobrenatural. O efeito deste dom eterno, desta graça de eleição do homem por parte de Deus, é como que um gérmen de santidade, ou como que uma nascente a jorrar na alma do homem, qual dom do próprio Deus que, mediante a graça, vivifica e santifica os eleitos. Desta forma se verifica, isto é, se torna realidade aquela "bênção" do homem "com toda a sorte de bênçãos espirituais", aquele "ser seus filhos adoptivos ... em Cristo", ou seja, n'Aquele que é desde toda a eternidade o "Filho muito amado" do Pai.

Quando lemos que o mensageiro diz a Maria "cheia de graça", o contexto evangélico, no qual confluem revelações e promessas antigas, permite-nos entender que aqui se trata de uma "bênção" singular entre todas as "bênçãos espirituais em Cristo". No mistério de Cristo, Maria está presente já "antes da criação do mundo", como aquela a quem o Pai "escolheu" para Mãe do seu Filho na Incarnação - e, conjuntamente ao Pai, escolheu-a também o Filho, confiando-a eternamente ao Espírito de santidade. Maria está unida a Cristo, de um modo absolutamente especial e excepcional; e é amada neste "Filho muito amado" desde toda a eternidade, neste Filho consubstancial ao Pai, no qual se concentra toda "a magnificência da graça". Ao mesmo tempo, porém, ela é e permanece perfeitamente aberta para este "dom do Alto" (cf. Jc 1,17) Como ensina o Concílio, Maria "é a primeira entre os humildes e os pobres do Senhor, que confiadamente esperam e recebem d'Ele a salvação". 22

(21) Quod attinet ad hanc vocem, inveniuntur in traditione Patrum amplae et variae interpretationes: cfr. ORIGENES, In Lucam homiliae, VI, 7: S. Ch. 87, 148; SEVERIANUS GABALORUM, In mundi creationem, Oratio VI, 10: PG 56, 497 s.; S. IOANNES CHRYSOSTOMUS (pseudo),In Annuntiationem Deiparae et contra Arium impium: PG 62, 765 s.; BASILIUM SELEUCIENSIS, Oratio 39, In Sanctissimae Deiparae Annuntiationem, 5: PG 85, 441-446; ANTIPATER BOSTRENSIS, Hom. Il, In Sanctissimae Deiparae Annuntiationem, 3-11: PG85, 1777-1783; SOPHEONIUS HIEROSOLYMITANUS, Oratio II, In Sanctissimae Deiparae Annuntiationem, 17-19: PG 87/3, 3235-3240; S. IOANNES DAMASCENUS, Hom. in Dormitionem, I, 7: S. Ch.80, 96-101; S. HIERONYMUS, Epistola 65, 9: PL 22, 628; S. AMBROSIUS, Expos. Evang. sec. Lucam, II, 9: CSEL 32/4, 45 s.; S. AUGUSTINUS, Sermo291, 4-6: PL 38, 1318 s.; Enchiridion, 36, 11: PL 40, 250; S. PETRUS CHRYSOLUGUS,Sermo 142: PL 52, 579 s.; Sermo 143: PL 52, 583; S. FULGENTIUS RUSPENSIS, Epistola17, VI, 12: PL 65, 458; S. BERNARDUS, In laudibus Virginis Matris, Homilia III, 2-3: S. Bernardi Opera, IV, 1966, 36-38
(22) Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 55.



9 A saudação e o nome "cheia de graça" dizem-nos tudo isto; mas, no contexto do anúncio do Anjo, referem-se em primeiro lugar à eleição de Maria como Mãe do Filho de Deus. Todavia, a plenitude de graça indica ao mesmo tempo toda a profusão de dons sobrenaturais com que Maria é beneficiada em relação com o facto de ter sido escolhida e destinada para ser Mãe de Cristo. Se esta eleição é fundamental para a realização dos desígnios salvíficos de Deus, a respeito da humanidade, e se a escolha eterna em Cristo e a destinação para a dignidade de filhos adoptivos se referem a todos os homens, então a eleição de Maria é absolutamente excepcional e única. Daqui deriva também a singularidade e unicidade do seu lugar no mistério de Cristo.

O mensageiro divino diz-lhe: "Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo" (
Lc 1,30-32). E quando a Virgem, perturbada por esta saudação extraordinária, pergunta: "Como se realizará isso, pois eu não conheço homem?", recebe do Anjo a confirmação e a explicação das palavras anteriores. Gabriel diz-lhe: "Virá sobre ti o Espírito Santo e a potência do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso mesmo o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus" (Lc 1,35).

A Anunciação, portanto, é a revelação do mistério da Incarnação exactamente no início da sua realização na terra. A doação salvífica que Deus faz de si mesmo e da sua vida, de alguma maneira a toda a criação e, directamente, ao homem, atinge no mistério da Incarnação um dos seus pontos culminantes. Isso constitui, de facto, um vértice de todas as doações de graça na história do homem e do cosmos. Maria é a "cheia de graça", porque a Incarnação do Verbo, a união hipostática do Filho de Deus com a natureza humana, se realiza e se consuma precisamente nela. Como afirma o Concílio, Maria é "Mãe do Filho de Deus e, por isso, filha predilecta do Pai e templo do Espírito Santo; e, por este insigne dom de graça, leva vantagem a todas as demais criaturas do céu e da terra". 23

(23) Ibid., LG 53.



10 A Carta aos Efésios, falando da "magnificência da graça" pela qual "Deus Pai ... nos tornou agradáveis em seu amado Filho", acrescenta: "N'Ele temos a redenção pelo seu sangue" (Ep 1,7). Segundo a doutrina formulada em documentos solenes da Igreja, esta "magnificência da graça" manifestou-se na Mãe de Deus pelo facto de ela ter sido "redimida de um modo mais sublime". 24 Em virtude da riqueza da graça do amado Filho e por motivo dos merecimentos redentores d'Aquele que haveria de tornar-se seu Filho, Maria foi preservada da herança do pecado original. 25 Deste modo, logo desde o primeiro instante da sua concepção, ou seja da sua existência, ela pertence a Cristo, participa da graça salvífica e santificante e daquele amor que tem o seu início no "amado Filho", no Filho do eterno Pai que, mediante a Incarnação, se tornou o seu próprio Filho. Sendo assim, por obra do Espírito Santo, na ordem da graça, ou seja, da participação da natureza di vina, Maria recebe a vida d'Aquele, ao qual ela própria, na ordem da geração terrena, deu a vida como mãe. A Liturgia não hesita em chamá-la "genetriz do seu Genitor" 26 e em saudá-la com as palavras que Dante Alighieri põe na boca de São Bernardo: "filha do teu Filho" 27. E, uma vez que Maria recebe esta "vida nova" numa plenitude correspondente ao amor do Filho para com a Mãe, e por conseguinte à dignidade da maternidade divina, o Anjo na Anunciação chama-lhe "cheia de graça".


(24) Cfr. PIUS PP. IX, Ep. Apost. Ineffabilis Deus (8 Decembris 1854): Pii IX P. M. Acta, Pars I, 616; CONC. OEC. VAT. II, Const dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 53.
(25) Cfr. S. GERMANUS CONSTANTINOLITANUS, In Annuntiationem SS. Deiparae Hom.: PG 98, 327 s.; S. ANDREAS CRETENSIS, Canon in B. Mariae Natalem, 4: PG 97, 1321 s.; In Nativitatem B. Mariae, I: PG 97, 811s.; Hom. in Dormitionem S. Mariae 1: PG 97, 1067 s.
(26) Liturgia Horarum, die 15 Augusti in sollemnitate Assumptionis B. Mariae Virginis, Hymnus ad I et II Vesperas; S. PETRUS DAMIANUS, Carmina et preces, XLVII: PL 145, 934.
(27) Divina Commedia, Paradiso, XXXIII, 1; cfr. Liturgia Horarum, Memoria Sanctae Mariae in Sabbato, Hymnus alter ad Officium Lectionis.



11 No desígnio salvífico da Santíssima Trindade o mistério da Incarnação constitui o cumprimento superabundante da promessa feita por Deus aos homens, depois do pecado original, depois daquele primeiro pecado cujos efeitos fazem sentir o seu peso sobre toda a história do homem na terra (cf. Gn 3,15). E eis que vem ao mundo um Filho, a "descendência da mulher", que vencerá o mal do pecado nas suas próprias raízes: "esmagará a cabeça" da serpente. Como resulta das palavras do Proto-Evangelho, a vitória do Filho da mulher não se verificará sem uma árdua luta, que deve atravessar toda a história humana. "A inimizade", anunciada no princípio, é confirmada no Apocalipse, o livro das realidades últimas da Igreja e do mundo, onde volta a aparecer o sinal de uma "mulher", desta vez "vestida de sol" (Ap 12,1).

Maria, Mãe do Verbo Incarnado, está colocada no próprio centro dessa "inimizade", dessa luta que acompanha o evoluir da história da humanidade sobre a terra e a própria história da salvação. Neste seu lugar, ela, que faz parte dos "humildes e pobres do Senhor", apresenta em si, como nenhum outro dentre os seres humanos, aquela "magnificência de graça" com que o Pai nos agraciou no seu amado Filho; e esta graça constitui a extraordinária grandeza e beleza de todo o seu ser. Maria permanece, assim, diante de Deus e também diante de toda a humanidade, como o sinal imutável e inviolável da eleição por parte do mesmo Deus, de que fala a Carta paulina: "em Cristo nos elegeu antes da criação do mundo ... e nos predestinou para sermos seus filhos adoptivos" (Ep 1,4 Ep 1,5). Esta eleição é mais forte do que toda a experiência do mal e do pecado, do que toda aquela "inimizade" pela qual está marcada toda a história do homem. Nesta história, Maria permanece um sinal de segura esperança.



2. Feliz daquela que acreditou

12 Logo depois de ter narrado a Anunciação, o Evangelista São Lucas faz-nos de guia, seguindo os passos da Virgem em direcção a "uma cidade de Judá" (Lc 1,39). Segundo os estudiosos, esta cidade devia ser a "Ain-Karim" de hoje, situada entre as montanhas, não distante de Jerusalém. Maria dirigiu-se para lá "apressadamente", para visitar Isabel, sua parente. O motivo desta visita há-de ser procurado também no facto de Gabriel, durante a Anunciação, ter nomeado de maneira significativa Isabel, que em idade avançada tinha concebido do marido Zacarias um filho, pelo poder de Deus: "Isabel, tua parente, concebeu um filho, na sua velhice; e está já no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril, porque nada é impossível a Deus" (Lc 1,36-37). O mensageiro divino tinha feito recurso ao evento, que se realizara em Isabel, para responder à pergunta de Maria: "Como se realizará isso, pois eu não conheço homem?" (Lc 1,34). Sim, será possível exactamente pelo "poder do Altíssimo", como e ainda mais do que no caso de Isabel.

Maria dirige-se, pois, impelida pela caridade, a casa da sua parente. Quando aí entrou, Isabel, ao responder à sua saudação, tendo sentido o menino estremecer de alegria no próprio seio, "cheia do Espírito Santo", saúda por sua vez Maria em alta voz: "Bendita és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre" (cf. Lc Lc 1,40-42). Esta proclamação e aclamação de Isabel deveria vir a entrar na Ave Maria, como continuação da saudação do Anjo, tornando-se assim uma das orações mais frequentes da Igreja. Mas são ainda mais significativas as palavras de Isabel, na pergunta que se segue: "E donde me é dada a dita que venha ter comigo a mãe do meu Senhor?" (Lc 1,43). Isabel dá testemunho acerca de Maria: reconhece e proclama que diante de si está a Mãe do Senhor, a Mãe do Messias. Neste testemunho participa também o filho que Isabel traz no seio: "estremeceu de alegria o menino no meu seio" (Lc 1,44). O menino é o futuro João Baptista, que, nas margens do Jordão, indicará em Jesus o Messias.

Todas as palavras, nesta saudação de Isabel, são densas de significado; no entanto, parece ser algo de importância fundamental o que ela diz no final: "Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor" (Lc 1,45). 28 Estas palavras podem ser postas ao lado do apelativo "cheia de graça" da saudação do Anjo. Em ambos os textos se revela um conteúdo mariológico essencial, isto é, a verdade acerca de Maria, cuja presença se tornou real no mistério de Cristo, precisamente porque ela "acreditou". A plenitude de graça, anunciada pelo Anjo, significa o dom de Deus mesmo; a fé de Maria, proclamada por Isabel aquando da Visitação, mostra como a Virgem de Nazaré tinha correspondido a este dom.

(28) Cfr. S. AUGUSTINUS, De Sancta Virginitate, III, 3: PL 40, 398; Sermo 25, 7: PL 46, 937 s.



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