Redemptoris missio PT 47


47 Os Apóstolos, movidos pelo Espírito Santo, convidaram todos a mudarem de vida, a converterem-se e a receberem o baptismo. Logo depois do evento do Pentecostes, Pedro fala de modo convincente à multidão: « ao ouvirem aquelas palavras, os presentes sentiram-se emocionados até ao fundo do coração e perguntaram a Pedro e aos outros apóstolos: 'Que havemos de fazer, irmãos?' Pedro respondeu-lhes: 'Convertei-vos e peça cada um o baptismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis então o dom do Espírito Santo' » (Ac 2,37-38). E naquele dia baptizou cerca de três mil pessoas. Noutra ocasião, depois da cura de um paralítico, Pedro fala à multidão, dizendo de novo: « convertei-vos, pois, e mudai de vida, para que sejam apagados os vossos pecados! » (Ac 3,19).

A conversão a Cristo está conexa com o baptismo: está-o não só per força da práxis da Igreja, mas por vontade de Cristo, que enviou a fazer discípulos em todas as nações, e a baptizá-los (cf. Mt Mt 28,19); está-o ainda por intrínseca exigência da recepção em plenitude da vida nova n'Ele: « Em verdade, em verdade, te digo — assim falou Jesus a Nicodemos — quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus » (Jn 3,5). O baptismo, de facto, regenera-nos para a vida de filhos de Deus, une-nos a Jesus Cristo e unge-nos no Espírito Santo: aquele não é um simples selo da conversão, à maneira de um sinal exterior que a comprova e atesta; mas é o sacramento que significa e opera este novo nascimento do Espírito, instaura vínculos reais e inseparáveis com a Trindade, torna-nos membros do Corpo de Cristo, que é a Igreja.

Recordamos tudo isto, porque uns tantos, precisamente onde se realiza a missão ad gentes, tendem a separar a conversão a Cristo, do baptismo, considerando-o como desnecessário. É verdade que, em certos ambientes, alguns aspectos sociológicos, referentes ao baptismo, lhe obscurecem o genuíno significado de fé. Isso fica-se a dever a diversos factores históricos e culturais, que é necessário suprimir onde ainda subsistam, para que o sacramento da regeneração espiritual surja em todo o seu valor: nesta tarefa, empenhem-se as comunidades eclesiais locais. Também é verdade que algumas pcssoas se dizem interiormente comprometidas com Cristo e com a Sua mensagem, mas sem quererem sê-lo sacramentalmente, porque, devido aos seus preconceitos ou por culpa dos cristãos, não chegam a perceber a verdadeira natureza da Igreja, mistério de fé e de amor. 77 Desejo encorajar estas pessoas a abrirem-se plenamente a Cristo, recordando, a quantos sentem o fascínio de Cristo, que foi Ele próprio que quis a Igreja como « lugar » aonde, de facto, O podem encontrar. Ao mesmo tempo, convido os fiéis e as comunidades cristãs a testemunharem autenticamente Cristo com a sua vida nova.

Cada convertido é certamente um dom oferecido à Igreja, mas comporta também para ela uma grave responsabilidade, não só porque ele terá de ser preparado para o baptismo com o catecumenado, e depois continuar a sua instrução religiosa, mas também porque — especialmente se é adulto — traz como que uma energia nova, o entusiasmo da fé, o desejo de encontrar na própria Igreja o Evangelho vivido. Seria para ele uma desilusão se, entrando na comunidade eclesial, encontrasse aí uma vida sem fervor, privada de sinais de renovação. Não podemos pregar a conversão, se nós mesmos não nos convertermos todos os dias.

77 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 6-9.


Formação de Igrejas locais

48 A conversão e o baptismo inserem na Igreja, onde ela já existe, ou então implicam a constituição de novas comunidades, que confessem Jesus Senhor e Salvador. Isto faz parte do desígnio de Deus, a Quem aprouve « chamar os homens a participar da Sua própria vida, não um a um , ma s con stit uído s co mo p ovo , no qual os Seus filhos dispersos fossem reconduzidos à unidade ». 78

A missão ad gentes tem este objectivo: fundar comunidades cristãs, desenvolver Igrejas até à sua completa maturação. Esta é uma meta central e qualificativa da actividade missionária, de tal modo que esta não se pode considerar verdadeiramente concluída, enquanto não tiver conseguido edificar uma nova Igreja particular actuando normalmente no ambiente local. Disto fala amplamente o Decreto Ad gentes, 79 e, já depois do Concílio, se consolidou a linha teológica que defende que todo o mistério da Igreja está contido em cada uma das Igrejas particulares, desde que esta não se isole, mas permaneça em comunhão com a Igreja universal e, por sua vez, se faça também missionária. Trata-se de um grande e longo trabalho, onde é difícil indicar as etapas em que cessa a acção propriamente missionária para se passar à actividade pastoral. Mas alguns pontos devem ficar daros.




49 Antes de mais, é necessário procurar estabelecer em cada lugar comunidades cristãs, que sejam « sinal da presença divina no mundo » 80 e cresçam até se tornarem Igrejas. Não obstante o elevado número de dioceses, existem ainda vastas áreas onde as Igrejas locais não se encontram, ou são insuficientes relativamente à vastidão do território e à densidade da população: está ainda por realizar um grande trabalho de implantação e de desenvolvimento da Igreja. Não está terminada esta fase da história eclesial, dita plantatio Ecclesiae; pelo contrário, em muitos aglomerados humanos, está ainda por iniciar.

A responsabilidade de tal tarefa recai sobre a Igreja universal e sobre as Igreja particulares, sobre todo o Povo de Deus e sobre as diversas forças missionárias. Cada Igreja, mesmo aquela que é formada por neoconvertidos, é por sua natureza missionária; é simultaneamente evangelizada e evangelizadora, devendo a fé ser apresentada como dom de Deus, tanto a viver em comunidade (família, paróquia, associações) como a irradiar par o exterior, quer pelo testemunho de vida quer pela palavra. A acção evangelizadora da comunidade cristã, primeiramente no próprio território e depois, mais além, como participação na missão universal, é o sinalmais claro da maturidade da fé. Impõe-se uma conversão radical da mentalidade para nos tornarmos missionários — e isto vale tanto para os indivíduos como para as comunidades. O Senhor chama-nos constantemente a sairmos de nós próprios, a partilhar com os outros os bens que temos, começando pelo mais precioso, que é a fé. À luz deste imperativo missionário, dever-se-á medir a validade dos organismos, movimentos, paróquias e obras de apostolado da Igreja. Somente tornando-se missionária é que a comunidade cristã conseguirá superar divisões e tensões internas, e reencontrar a sua unidade e vigor de fé.

As forças missionárias, vindas de outras Igrejas e Países, devem agir em comunhão com as forças locais, no desenvolvimento da comunidade cristã. Em particular, toca àquelas — sempre segundo as directrizes dos Bispos e em colaboração com os responsáveis locais — promover a difusão da fé e a expansão da Igreja nos ambientes e grupos não cristãos; cabe-lhes ainda animar o sentido missionário das Igrejas locais, para que a preocupação pastoral sempre traga associada a si, a da missão ad gentes. Assim cada Igreja fará verdadeiramente sua a solicitude de Cristo, o bom Pastor, que se prodigaliza pelo seu rebanho, mas pensa ao mesmo tempo nas « outras ovelhas que não são deste aprisco » (
Jn 10,16).



50 Tal solicitude constituirá motivo e estímulo para um renovado empenho ecuménico. Os laços existentes entre aactividade ecuménica e a actividade missionária tornam necessário considerar dois factores relativos a elas. Por um lado, temos de reconhecer que « a divisão dos cristãos prejudica a santíssima causa de pregar o Evangelho a toda a criatura e fecha a muitos o acesso à fé ». 81 Na verdade, o facto de a Boa Nova da reconciliação ser proclamada por cristãos, que entre si se apresentam divididos, debilita o seu testemunho, e por isso é urgente trabalhar pela unidade dos cristãos, para que a actividade missionária possa ser mais incisiva. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer que o próprio esforço em direcção à unidade, constitui por si um sinal da obra de reconciliação que Deus realiza no meio de nós.

Por outro lado, é verdade também que todos aqueles que receberam o baptismo em Cristo estão constituídos numa certa comunhão entre si, embora não perfeita. É sobre esta base que se fundamenta a orientação dada pelo Concílio: « Os católicos, banindo toda a forma de indiferentismo, de sincretismo e odiosa rivalidade, colaborem com os irmãos separados, em conformidade com as disposições do decreto sobre o Ecumenismo, por meio da comum profissão de fé em Deus e em Jesus Cristo diante dos gentios, na medida do possível, e pela cooperação em questões sociais e técnicas, culturais e religiosas ». 82

A actividade ecuménica e o testemunho comum de Jesus Cristo, dado pelos cristãos pertencentes a diversas Igrejas e comunidades eclesiais, produziu já abundantes frutos, mas é ainda mais urgente que colaborem e testemunhem de comum acordo, neste tempo em que seitas cristãs e paracristãs semeiam a confusão com a sua acção. A expansão destas seitas constitui uma ameaça para a Igreja Católica e para todas as comunidades eclesiais com quem ela mantém um diálogo. Onde for possível e segundo as circunstâncias locais, a resposta dos cristãos poderá também ser ecuménica.

78 Conc. ECUM. VAT. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes,
AGD 2; cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 9.
79 Cf. Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, cap. III, AGD 19-22.
80 ibid., AGD 15.
81 ibid., AGD 6.
82 ibid., AGD 15; cf. Decreto sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio UR 3.


As « comunidades eclesiais de base » força de evangelização

51 Um fenómeno, com crescimento rápido nas jovens Igrejas, promovido pelos bispos ou mesmo pelas Conferências episcopais, por vezes como opção prioritária da pastoral, são as comunidades eclesiais de base (conhecidas também por outros nomes), que estão a dar boas provas como centros de formação cristã e de irradiação missionária. Trata-se de grupos de cristãos, a nível familiar ou de ambientes restritos, que se encontram para a oração, a leitura da Sagrada Escritura, a catequese, para a partilha dos problemas humanos e eclesiais, em vista de um compromisso comum. Elas são um sinal da vitalidade da Igreja, instrumento de formação e evangelização, um ponto de partida válido para uma nova sociedade, fundada na « civilização do amor ».

Tais comunidades descentralizam e simultâneamente articulam a comunidade paroquial, à qual sempre permanecem unidas; radicam-se em ambientes simples das aldeias, tornando-se fermento de vida cristã, de atenção aos « últimos », de empenho na transformação da sociedade. O indivíduo cristão faz nelas uma experiência comunitária, onde ele próprio se sente um elemento activo, estimulado a dar a sua colaboração para proveito de todos. Deste modo, elas tornam-se instrumento de evangelização e de primeiro anúncio, bem como fonte de novos ministérios; enquanto, animadas pela caridade de Cristo, oferecem uma indicação sobre o modo de superar divisões, tribalismos, racismos.

De facto, cada comunidade, para ser cristã, deve fundar-se e viver em Cristo, na escuta da Palavra de Deus, na oração onde a Eucaristia ocupa o lugar entral, na comunhão expressa pela unidade de coração e de alma, e pela partilha conforme as necessidades dos vários membros (cf.
Ac 2,42-47). Toda a comunidade recordava Paulo VI - deve viver em unidade com a Igreja particular e universal, na comunhão sincera com os Pastores e o Magistério, empenhada na irradiação missionária e evitando fechar-se em si mesma ou deixar-se instrumentalizar ideologicamente. 83 O Sínodo dos Bispos afirmou: « uma vez que a Igreja é comunhão, as novas comunidades de base, se verdadeiramente vivem em unidade com a Igreja, elas representam uma verdadeira expressão de comunhão e um meio eficaz para construir uma comunhão ainda mais profunda. Por isso, são um motivo de grande esperança para a vida da Igreja ». 84

83 Cf. Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 58: l.c., 46-49.
84 Assembleia Extraordinária em 1985, Relação final, II, C, 6.


Encarnar o Evangelho nas culturas dos povos

52 Desenvolvendo a sua actividade missionária no meio dos povos, a Igreja encontra várias culturas, vendo-se envolvida no processo de inculturação. Esta constitui uma exigência que marcou todo o seu caminho histórico, mas hoje é particularmente aguda e urgente.

O processo de inserção da Igreja nas culturas dos povos requer un tempo longo: é que não se trata de uma mera adaptação exterior, já que a inculturação « significa a íntima transfor mação dos valores culturais autênticos, pela sua integração no cristianismo, e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas ». 85 Trata-se, pois, de um processo profundo e globalizante que integra tanto a mensagem cristã, como a reflexão e a práxis da Igreja. Mas é também um processo difícil, porque não pode comprometer de modo nenhum a especifícídade e a integridade da fé cristã.

Pela inculturação, a Igreja encarna o Evangelho nas diversas culturas e simultaneamente introduz os povos com as suas culturas na sua própria comunidade, 86 transmitindo-lhes os seus próprios valores, assumindo o que de bom nelas existe, e renovando-as a partir de dentro. 87 Por sua vez, a Igreja, com a inculturação, torna-se um sinal mais transparente daquilo que realmente ela é, e um instrumento mais apto para a missão.

Graças a esta acção das Igrejas locais, a própria Igreja universal se enriquece com novas expressões e valores nos diversos sectores da vida cristã, tais como a evangelização, o culto, a teologia, a caridade; conhece e exprime cada vez melhor o mistério de Cristo, e é estimulada a uma renovação contínua. Estes temas, presentes no Concílio e no Magistério sucessivo, tenho-os afrontado repetidamente nas minhas visitas pastorais às jovens Igrejas. 88

A inculturação é um caminho lento, que acompanha toda a vida missionária e que responsabiliza os vários agentes da missão ad gentes, as comunidades cristãs à medida que se vão desenvolvendo, e os Pastores que têm a responsabilidade de discernimento e de estímulo na sua realização. 89




53 Os missionários, provenientes de outras Igrejas e Países, devem inserir-se no mundo socio-cultural daqueles a quem são enviados, superando os condicionalismos do próprio ambiente de origem. Assim, torna-se necessário aprender a língua da região onde trabalham, conhecer as expressões mais significativas da sua cultura, descobrindo os seus valores por experiência directa. Eles só poderão levar aos povos, de maneira crível e frutuosa, o conhecimento do mistério escondido (cf. Rm Rm 16,25-27 Ep 3,5), através daquela aprendizagem. Não se trata, por certo, de renegar a própria identidade cultural, mas de compreender, estimar, promover e evangelizar a do ambiente em que actuam e, deste modo, conseguir realmente comunicar com ele, assumindo um estilo de vida que seja sinal de testemunho evangélico e de solidariedade com o povo.

As comunidades eclesiais em formação, inspiradas pelo Evangelho, poderão exprímir progressivamente a própria experiência cristã em modos e formas originais, em consonância com as próprias tradições culturais, embora sempre em sintonia com as exigências objectivas da própria fé. Para isso, especialmente no que toca aos sectores mais delicados da inculturaçáo, as Igrejas particulares do mesmo território devem trabalhar em comunhão entre si 90 e com toda a Igreja, certas de que só a atenção tanto à Igreja universal como à Igreja particular as tornará capazes de traduzirem o tesouro da fé, na legítima variedade das suas expressões. 91 Portanto os grupos evangelizados oferecerão os elementos para uma « tradução » da mensagem evangélica, 92 tendo presente os contributos positivos provenientes do contacto do cristianismo com as várias culturas, ao longo dos séculos, mas sem nunca esquecer os perigos de alteração, de quando em vez a tentar- nos. 93



54 A propósito disto, continuam fundamentais algumas indicações. A inculturação, em seu correcto desenvolvimento, deve ser guiada por dois princípios: « a compatibilidade com o Evangelho e a comunhão com a Igreja universal ». 94 Os Bispos, defensores do « depósito da fé », velarão pela fidelidade e, sobretudo, pelo discernimento, 95 para o qual se requer um profundo equilíbrio: de facto corre-se o risco de se passar acriticamente de um alheamento da cultura para uma sobrevalorização da mesma, que não deixa de ser um produto do homem e, como tal, está marcada pelo pecado. Também ela deve ser « purificada, elevada, e aperfeiçoada ». 96

Um tal processo requer gradualidade, para que seja verdadeiramente uma expressão da experiência cristã da comunidade: « será necessária uma incubação do mistério cristão no carácter do vosso povo - dizia Paulo VI em Kampala para que a sua voz nativa, mais límpida e franca, se levante harmoniosa no coro das vozes da Igreja universal ». 97 Enfim, a inculturação deve envolver todo o povo de Deus, e não apenas alguns peritos, dado que o povo reflecte aquele sentido da fé, que é necessário nunca perder de vista. Ela seja guiada e estimulada, mas nunca forçada, para não provocar reacções negativas nos cristãos: deve ser uma expressão da vida comunitária, ou seja, amadurecida no seio da comunidade, e não fruto exclusivo de investigações eruditas. A salvaguarda dos valores tradicionais é efeito de uma fé madura.

85 ibid., II, D, 4.
86 Cf. Exort. Ap. Catechesi tradendae (16/X/1979),
CTR 53: AAS 71 (1979), 1320; Epist. Enc. Slavorum apostoli (2/VI/1985), 21: AAS 77 (1985), 802 s.
87 Cf. Paulo VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 20: l.c., 18 s.
88 Cf. Discurso aos Bispos do Zaire, em Kinshasa, a 3 de Maio de 1980, 4-6: AAS 72 (1980), 432-435; Discurso aos Bispos do Quénia, em Nairóbi, a 7 de Maio de 1980, 6: AAS 72 (1980), 497; Discurso aos Bispos da Índia, em Nova Déli, a 1 de Fevereiro de 1986, 5: AAS 78 ( 1986), 748 s.; Homilia em Cartagena, a 6 de Julho de 198G, 7-8: AAS 79 (1987), 105 s.; cf. também Carta Enc. Slavorum apostoli, 21-22: l.c., 802-804.
89 CONC. ECUM. Vat. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 22.
90 Cf. ibid., AGD 22.
91 Cf. Paulo VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 64: l.c., 55.
92 As Igrejas particulares « têm a missão de assimilar o essencíal da mensagem evangélica, de o traduzir, sem a mínima alteração da sua verdade fundamental, na linguagem que estes homens compreendem, e depois anunciá-lo nessa mesma linguagem ... O termo "linguagem" deve ser entendido aqui não tanto no sentido semântico ou literário, como sobretudo naquele que podemos designar antropológico ou cultural » (ibid., EN 63: l.c., 53).
93 Cf. Discurso na Audiência Geral de 13 de Abril de 1988: Insegnamenti XI/1 (1988), 877-881.
94 Exort. Ap. Familiaris consortio (22/XI/1981), FC 10, que trata da inculturação « no âmbito do matrimónio e da família »: AAS 74 (1982), 91.
95 Cf. Paulo VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 63-65: l.c., 53-56.
96 Cocc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 17.
97 Discurso aos participantes no Simpósio dos Bispos da África, em Kampala, a 31 de Julbo de 1969, 2: AAS 61 (1969), 577.


O diálogo com os irmãos de outras religiões

55 O diálogo interreligioso faz parte da missão evangelizadora da Igreja. Entendido como método e meio para um conhecimento e enriquecimento recíproco, ele não está em con traposição com a missão ad gentes; pelo contrário, tem laços especiais com ela, e constitui uma sua expressão. Na verdade, a missão tem por destinatários os homens que não conhecem Cristo e o seu Evangelho, e pertencem, na sua grande maioria, a outras religiões. Deus atrai a Si todos os povos, em Cristo, desejando comunicar-lhes a plenitude da sua revelação e do seu amor; Ele não deixa de Se tornar presente de tantos modos, quer aos indivíduos quer aos povos, através das suas riquezas espirituais, das quais a principal e essencial expressão são as religiões, mesmo se contêm também « lacunas, insuficiências e erros ». 98 Tudo isto foi amplamente sublinhado pelo Concílio e pelo Magistério sucesivo, sem nunca deixar de afirmar que a salvação vem de Cristo, e o diálogo não dispensa a evangelização. 99

À luz do plano de salvação, a Igreja não vê contraste entre o anúncio de Cristo e o diálogo interreligioso; sente necessidade, porém, de os conjugar no âmbito da sua missão ad gentes. De facto, é necessário que esses dois elementos mantenham o seu vínculo íntimo e, ao mesmo tempo, a sua distinção, para que não sejam confundidos, instrumentalizados, nem considerados equivalentes a ponto de se puderem substituir entre si.

Recentemente escrevi aos Bispos da Ásia: « mesmo reconhecendo a Igreja de bom grado o quanto há de verdadeiro e de santo nas tradições religiosas do Budismo, do Induismo e do Islão - reflexos daquela verdade que ilumina todos os homens -, isso não diminui o seu dever e a sua determinação de proclamar sem hesitações Jesus Cristo que é 'o Caminho a Verdade, e a Vida' ( ... ) O facto de os crentes de outras religiões poderem receber a graça de Deus e serem salvos por Cristo independentemente dos meios normais por Ele estabelecidos, não suprime, de facto, o apelo à fé e ao baptismo que Deus dirige a todos os povos ». 100 Na verdade, o próprio Senhor, « ao inculcar expressamente a necessidade da fé e do baptismo, ao mesmo tempo corroborou a necesszdade da Igreja, na qual os homens entram pela porta do baptismo », 101 O diálogo deve ser conduzido e realizado com a convicção de que a Igreja é o camznho normal de salvação e que só ela possui a plenitude dos meios de salvação. 102




56 O diálogo não nasce de tácticas ou de interesses, mas é uma actividade que apresenta motivações, exigências, dignidade própria: é exigído pelo profundo respeito por tudo o que o Espírito, que sopra onde quer, operou em cada homem. 103 Por ele, a Igreja pretende descobrir as « sementes do Verbo », 104 os « fulgores daquela verdade que ilumina todos os homens "105 - sementes e fulgores que se abrigam nas pessoas e nas tradições religiosas da humanidade. O diálogo fundamenta-se sobre a esperança e a caridade, e produzirá frutos, no Espírito. As outras religiões constituem um desafio positivo para a Igreja: estimulam-na efectivamente quer a descobrir e a reconhecer os sinais da presença de Cristo e da acção do Espírito, quer a aprofundar a própria identidade e a testemunhar a integridade da revelação, da qual é depositária para o bem de todos.

Daqui deriva o espírito que deve animar um tal diálogo, no contexto da missão. O interlocutor deve ser coerente com as próprias tradições e convicções religiosas, e disponível para compreender as do outro, sem dissimulações nem restrições, mas com verdade, humildade, e lealdade, sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos. Não deve haver qualquer abdicação, nem irenismo, mas o testemunho recíproco em ordem a um progresso comum, no caminho da procura e da experiência religiosa, e simultameamente em vista do superamento de preconceitos, intolerâncias e malentendidos. O diálogo tende à purificação e conversão interior que, se for realizada na docilidade ao Espírito, será espiritualmente frutuosa.




57 Ao diálogo, abre-se um vasto campo, podendo ele assumir múltiplas formas e expressões: desde o intercâmbio entre os peritos de tradições religiosas ou com seus representantes oficiais, até à colaboração no desenvolvimento integral e na salvaguarda dos valores religiosos; desde a comunicação das respectivas experiências espirituais, até ao denominado « diálogo de vida », pelo qual os crentes das diversas religiões mutuamente testemunham, na existência quotidiana, os próprios valores humanos e espirituais, ajudando-se a vivê-los em ordem à edificação de uma sociedade mais justa e fraterna.

Todos os fiéis e comunidades cristãs são chamadas a praticar o diálogo, embora não seja no mesmo grau e forma. Para isso é indispensável o contributo dos leigos, que « com o exemplo da sua vida e com a própria acção podem favorecer a melhoria das relações entre os crentes das diversas religiões » 106 enquanto alguns deles poderão mesmo oferecer uma ajuda na pesquisa e no estudo. 107

Sabendo que bastantes missionários e comunidades cristãs encontram, no caminho difícil e por vezes incompreendido do diálogo, a única maneira de prestar um sincero testemunho de Cristo e um generoso serviço ao homem, desejo encorajá-los a perseverar con fé e caridade, mesmo onde os seus esforços não encontrem acolhimento nem resposta. O diálogo é um caminho que conduz ao Reino e seguramente dará frutos, mesmo se os tempos e os momentos estão reservados ao Pai (cf.
Ac 1,7).

98 Paulo VI, Discurso na Abertura da II Sessão do Conc. Ecum. Vat. II, a 29 de Setembro de 1963: AAS 55 (1963), 858; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs Nostra aetate, NAE 2; Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 16; Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 9; PAULO VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi; EN 53: l.c., 41 s.
99 Cf. Paulo VI, Carta Enc. Ecclesiam suam (6/XII/1964): AAS 56 ( 1964), 609-659; Conc. Ecum. Vat. II, Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs Nostra aetate NAE 1ss; Decreto sobre a actividade missionáría da Igreja Ad Gentes, AGD 11 AGD 41; SECRETARIADO PARA OS NÃO CRISTÃOS, A atitude da Igreja face aos sequazes de outras religiões: reflexões e orientações do dialogo e missão (4/IX/1984): AAS 76 (1984), 816-828.
100 Carta aos Bispos da Ásia, por ocasião da Va Assembleia Plenária da Federação das suas Conferências Episcopais (23/VI/1990), 4: L'Osservatore Romano, de 18 de Julho de 1990.
101 Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 14; cf. Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 7.
102 Cf. Conc. Ecum. VAT. II, Decreto sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, UR 3; Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 7.
103 Cf. Carta Enc. Redemptor hominis, RH 12: l.c., 279.
104 Cone. Ecum. Vat. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 11 AGD 15.
105 Conc. Ecum. Vat. II, Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs Nostra aetate, NAE 2.
106 Exorc. Ap. pós-sinodal Christifideles laici, CL 35: l.c., 458.
107 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 41.


Promover o desenvolvimento educando as cosciências

58 A missão ad gentes desenvolve-se ainda hoje, na sua maior parte, nas regiões do hemisfério Sul, onde é mais urgente a acção em favor do desenvolvimento integral e da libertação de toda a opressão. A Igreja sempre soube suscitar, nas população que evangelizou, o impulso para o progresso, e hoje os missionários, mais do que no passado, são reconhecidos também como promotores de desenvolvimento por governos e peritos internacionais, que ficam admirados do facto de obterem notáveis resultados com escassos meios.

Na Encíclica Sollicitudo rei socialis, afirmei que « a Igreja não tem soluções técnicas para resolver o subdesenvolvimento como tal », mas « dá o primeiro contributo para a solução do urgente problema do progresso, quando proclama a verdade acerca de Cristo, de Si própria e do homem, aplicando-a a uma situação concreta ». 108 A Conferência dos Bispos latino-ameri canos, em Puebla, afirmou que « o melhor servíço ao irmão é a evangelização, que o predispõe a realizar-se como filho de Deus, o liberta da injustiça e promove-o integralmente ». 109 A missão da Igreja não é a íntervenção directa no plano económico, técnico, político ou do contributo material para o desenvolvimento, mas consiste essencialmente em oferecer aos povos não um « ter mais » mas um « ser mais », despertando as consciências com o Evangelho. « O progresso humano autêntico deve assentar as suas raízes sobre uma evangelização cada vez mais profunda ». 110

A Igreja e os missionários são também promotores de desenvolvimento com as suas escolas, hospitais, tipografias, universidades, explorações agrícolas experimentais. O pro gresso de um povo, porém, não deriva primariamente do dinheiro, nem dos auxílios materiais, nem das estruturas técnicas, mas sobretudo da formação das consciências, do amadurecimento das mentalidades e dos costumes. O homem é que é o protagonista do desenvolvimento, não o dinheiro ou a técnica. A Igreja educa as consciências, revelando aos povos aquele Deus, que procuram sem O conhecer, a grandeza do homem criado à imagem de Deus e por Ele amado, a igualdade de todos os homens enquanto filhos de Deus, o domínio sobre a natureza criada e posta ao serviço do homem, o dever de se empenhar no progresso do homem todo e de todos os homens.




59 Com a mensagem evangélica, a Igreja oferece uma força libertadora e criadora de desenvolvimento, exartamente porque leva à conversão do coração e da mentalidade, faz reconhecer a dignidade de cada pessoa, predispõe à solidariedade, ao compromisso e ao serviço dos irmãos, insere o homem no projecto de Deus, que é a construção do Reino de paz e de justiça, já a partir desta vida. É a perspectiva bíblica dos « novos céus e da nova terra » (cf. Is 65,17 2P 3,13 Ap 21,1), a qual inseriu na história, o estímulo e a meta para o avanço da humanidade. O progresso do homem vem de Deus, do modelo Jesus e deve conduzir a Deus. 111 Eis porque entre anúncio evangélico e promoção do homem existe uma estreita conexão.

O contributo da Igreja e da sua obra evangelizadora para o desenvolvimento dos povos, não se restringe apenas ao hemisfério Sul, visando combater aí a miséria material e o subdesenvolvimento, mas envolve também o Norte, que está exposto à miséria moral e espiritual, causada pelo « superdesenvolvimento ». 112 Uma certa concepção a-religiosa da vida moderna, dominante em algumas partes do mundo, está baseada na ideia de que, para tornar o homem mais homem, basta enriquecer e elevar o crescimento técnico e económico. Mas um desenvolvimento sem alma não pode bastar ao homem, e o excesso de opulência é tão nocivo como o excesso de pobreza. O hemisfério Norte construiu um « modelo de desenvolvimento », e quer difundi-lo para o Sul, onde o sentido de religiosidade e os valores humanos, que ali existem, correm o risco de serem submersos pela vaga do consumísmo.

« Contra a fome: muda de vida » é um lema, nascido em ambientes eclesiais, que indica, aos povos ricos, o caminho para se tornarem irmãos dos pobres: é preciso voltar a uma vida mais austera que favoreça um novo modelo de progresso, atento aos valores éticos e religiosos. A actividade missionária leva aos pobres a luz e o estímulo para o verdadeiro progresso, enquanto a nova evangelização, entre outras tarefas, deve criar, nos ricos, a consciência de que chegou o momento de se tornarem realmente irmãos dos pobres, na conversão comum ao « progresso integral », aberto ao Absoluto. 113

108 Carta Enc. Sollicitudo rei socialis (30/XII/1987), SRS 41: AAS 80 ( 1988), 570 s.
109 Documentos da III Conferência Geral do Episcopado latino-americano, em Puebla ( 1979), 3760 (1145).
110 Discurso aos Bispos, sacerdotes, religiosas e religiosos, em Jacarta, a 10 de Outubro de 1989, 5: L'Osservatore Romano de 11 de Outubro de 1989.
111 Cf. PAULO VI, Carta Enc. Populorum progressio, PP 14-21 PP 40-42: l.c., 264-268, 277 s.; JOÃO PAULO II, Carta Enc. Sollicitudo rei socialis, SRS 27-41: l.c., 547-572.
112 Cf. Carta Enc. Sollicitudo rei socialis, SRS 28: l.c., 548-550.
113 Cf. ibid., cap. IV, SRS 27-34: l.c., 547-560; Paulo VI, Carta Enc. Populorum progressio, PP 19-21 PP 41-42: l.c., 266-268, 277 s.



Redemptoris missio PT 47