
Sacramentum caritatis PT 83
84 Na homilia durante a celebração eucarística com que solenemente dei início ao meu ministério na Cátedra de Pedro, disse: « Não há nada de mais belo do que ser alcançado, surpreendido pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada de mais belo do que conhecê-Lo e comunicar aos outros a amizade com Ele ».(233) Esta afirmação cresce de intensidade, quando pensamos no mistério eucarístico; com efeito, não podemos reservar para nós o amor que celebramos neste sacramento: por sua natureza, pede para ser comunicado a todos. Aquilo de que o mundo tem necessidade é do amor de Deus, é de encontrar Cristo e acreditar n'Ele. Por isso, a Eucaristia é fonte e ápice não só da vida da Igreja, mas também da sua missão: « Uma Igreja autenticamente eucarística é uma Igreja missionária ».(234) Havemos, também nós, de poder dizer com convicção aos nossos irmãos: « Nós vos anunciamos o que vimos e ouvimos, para que estejais também em comunhão connosco » (1Jn 1,2-3). Verdadeiramente não há nada de mais belo do que encontrar e comunicar Cristo a todos! Aliás, a própria instituição da Eucaristia antecipa aquilo que constitui o cerne da missão de Jesus: Ele é o enviado do Pai para a redenção do mundo (Jn 3,16-17 Rm 8,32). Na Última Ceia, Jesus entrega aos seus discípulos o sacramento que actualiza o sacrifício que Ele, em obediência ao Pai, fez de Si mesmo pela salvação de todos nós. Não podemos abeirar-nos da mesa eucarística sem nos deixarmos arrastar pelo movimento da missão que, partindo do próprio Coração de Deus, visa atingir todos os homens; assim, a tensão missionária é parte constitutiva da forma eucarística da existência cristã.
233.. Homilia (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 711.
234. Propositio 42.
85 A missão primeira e fundamental, que deriva dos santos mistérios celebrados, é dar testemunho com a nossa vida. O enlevo pelo dom que Deus nos concedeu em Cristo, imprime à nossa existência um dinamismo novo que nos compromete a ser testemunhas do seu amor. Tornamonos testemunhas quando, através das nossas acções, palavras e modo de ser, é Outro que aparece e Se comunica. Pode-se afirmar que o testemunho é o meio pelo qual a verdade do amor de Deus alcança o homem na história, convidando-o a acolher livremente esta novidade radical. No testemunho, Deus expõe-Se por assim dizer ao risco da liberdade do homem. O próprio Jesus é a testemunha fiel e verdadeira (Ap 1,5 Ap 3,14); veio para dar testemunho da verdade (Jn 18,37). Nesta ordem de ideias, apraz-me retomar um conceito caro aos primeiros cristãos mas que nos interpela também a nós, cristãos de hoje: o testemunho até ao dom de si mesmo, até ao martírio, sempre foi considerado, na história da Igreja, o apogeu do novo culto espiritual: « Oferecei os vossos corpos » (Rm 12,1). Pense-se, por exemplo, na narração do martírio de São Policarpo de Esmirna, discípulo de São João: o seu caso, dramático, é todo ele descrito como uma liturgia; mais ainda, como se o próprio mártir se tornasse Eucaristia.(235) Pensemos também na consciência eucarística que Inácio de Antioquia exprime tendo em mente o seu martírio: considera-se « trigo de Deus » e, pelo martírio, deseja transformar-se em « pão puro de Cristo ».(236) O cristão, quando oferece a sua vida no martírio, entra em plena comunhão com a páscoa de Jesus Cristo e, assim, ele mesmo se torna Eucaristia com Cristo. Não faltam, ainda hoje, à Igreja os mártires, nos quais se manifesta de modo supremo o amor de Deus. E, mesmo que não nos seja pedida a prova do martírio, sabemos, porém, que o culto agradável a Deus postula intimamente esta disponibilidade (237) e encontra a sua realização no feliz e convicto testemunho perante o mundo duma vida cristã coerente nos diversos sectores onde o Senhor nos chama a anunciá-Lo.
235. Cf. O martírio de Policarpo 15, 1: PG 5, 1039.1042.
236. Santo Inácio de Antioquia, Epístola aos Romanos 4, 1: PG 5, 690.
237. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 42.
86 Sublinhar a ligação intrínseca entre Eucaristia e missão faz-nos descobrir também o conteúdo supremo do nosso anúncio. Quanto mais vivo for o amor pela Eucaristia no coração do povo cristão, tanto mais clara lhe será a incumbência da missão: levar Cristo; não meramente uma ideia ou uma ética n'Ele inspirada, mas o dom da sua própria Pessoa. Quem não comunica a verdade do Amor ao irmão, ainda não deu bastante. A Eucaristia enquanto sacramento da nossa salvação chama-nos assim, inevitavelmente, à unicidade de Cristo e da salvação por Ele realizada a preço do seu sangue. Por isso, do mistério eucarístico acreditado e celebrado nasce a exigência de educar constantemente a todos para o trabalho missionário, cujo centro é o anúncio de Jesus, único Salvador.(238) Isto impedirá de confinar, em chave meramente sociológica, a obra decisiva de promoção humana que todo o processo de evangelização autêntico sempre implica.
238. Cf. Propositio 42; Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja Dominus Iesus -15 (6 de Agosto de 2000), 13-15: AAS 92 (2000), 754-755.
87 Neste contexto, desejo dar voz àquilo que os padres referiram, durante a assembleia sinodal, a propósito das graves dificuldades criadas à missão das comunidades cristãs que vivem em condições de minoria ou mesmo de privação da liberdade religiosa.(239) Devemos verdadeiramente dar graças ao Senhor por todos os bispos, sacerdotes, pessoas consagradas e leigos que se prodigalizam a anunciar o Evangelho e vivem a sua fé sob risco da própria vida. Não são poucas as regiões do mundo onde o simples ir à igreja constitui um testemunho heróico que expõe a vida da pessoa à marginalização e à violência. Nesta ocasião, quero também reiterar a solidariedade da Igreja inteira a quantos sofrem por falta de liberdade de culto. Nos lugares onde não há a liberdade religiosa, sabemos que falta, no fim de contas, a liberdade mais significativa, pois é na fé que o homem exprime a decisão íntima relativa ao sentido último da própria existência; por isso, rezemos para que se alargue o espaço da liberdade religiosa em todos os Estados, a fim de os cristãos e os membros das outras religiões poderem livremente viver as suas convicções, pessoalmente e em comunidade.
239. Cf. Propositio 42.
88 « O pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo » (Jn 6,51). Com estas palavras, o Senhor revela o verdadeiro significado do dom da sua vida por todos os homens; as mesmas mostram-nos também a compaixão íntima que Ele sente por cada pessoa. Na realidade, os Evangelhos transmitem-nos muitas vezes os sentimentos de Jesus para com as pessoas, especialmente doentes e pecadores (Mt 20,34 Mc 6,34 Lc 19,41). Ele exprime, através dum sentimento profundamente humano, a intenção salvífica de Deus que deseja que todo o homem alcance a verdadeira vida. Cada celebração eucarística actualiza sacramentalmente a doação que Jesus fez da sua própria vida na cruz por nós e pelo mundo inteiro. Ao mesmo tempo, na Eucaristia, Jesus faz de nós testemunhas da compaixão de Deus por cada irmão e irmã; nasce assim, à volta do mistério eucarístico, o serviço da caridade para com o próximo, que « consiste precisamente no facto de eu amar, em Deus e com Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Então aprendo a ver aquela pessoa já não somente com os meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo ».(240) Desta forma, nas pessoas que contacto, reconheço irmãs e irmãos, pelos quais o Senhor deu a sua vida amando-os « até ao fim » (Jn 13,1). Por conseguinte, as nossas comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem consciencializar-se cada vez mais de que o sacrifício de Jesus é por todos; e, assim, a Eucaristia impele todo o que acredita n'Ele a fazer-se « pão repartido » para os outros e, consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno. Como sucedeu na multiplicação dos pães e dos peixes, temos de reconhecer que Cristo continua, ainda hoje, exortando os seus discípulos a empenharem-se pessoalmente: « Dai-lhes vós de comer » (Mt 14,16). Na verdade, a vocação de cada um de nós consiste em ser, unido a Jesus, pão repartido para a vida do mundo.
240. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005) : AAS 98 (2006), 232.
89 A união com Cristo, que se realiza no sacramento, habilita-nos também a uma novidade de relações sociais: « a ‘‘mística'' do sacramento tem um carácter social, porque (...) a união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele Se entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou hão-de tornar Seus ».(241) A propósito, é necessário explicitar a relação entre mistério eucarístico e compromisso social. A Eucaristia é sacramento de comunhão entre irmãos e irmãs que aceitam reconciliar-se em Cristo, o Qual fez de judeus e gentios um só povo, destruindo o muro de inimizade que os separava (Ep 2,14). Somente esta tensão constante à reconciliação permite comungar dignamente o corpo e o sangue de Cristo (Mt 5,23-24).(242) Através do memorial do seu sacrifício, Ele reforça a comunhão entre os irmãos e, de modo particular, estimula os que estão em conflito a apressar a sua reconciliação, abrindo-se ao diálogo e ao compromisso em prol da justiça. A restauração da justiça, a reconciliação e o perdão são, sem dúvida alguma, condições para construir uma verdadeira paz; (243) desta consciência nasce a vontade de transformar também as estruturas injustas, a fim de se restabelecer o respeito da dignidade do homem, criado à imagem e semelhança de Deus; é através da realização concreta desta responsabilidade que a Eucaristia se torna na vida o que significa na celebração. Como já tive ocasião de afirmar, não é missão própria da Igreja tomar nas suas mãos a batalha política para se realizar a sociedade mais justa possível; todavia, ela não pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça. A Igreja « deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar ».(244)
Na perspectiva da responsabilidade social de todos os cristãos, os padres sinodais lembraram que o sacrifício de Cristo é mistério de libertação que nos interpela e provoca continuamente; dirijo, pois, um apelo a todos os fiéis para que se tornem realmente obreiros de paz e justiça: « Com efeito, quem participa na Eucaristia deve empenhar-se na edificação da paz neste nosso mundo marcado por muitas violências e guerras, e, hoje de modo particular, pelo terrorismo, a corrupção económica e a exploração sexual »;( 245) problemas, estes, que geram por sua vez outros fenómenos degradantes que causam viva preocupação. Sabemos que estas situações não podem ser encaradas de modo superficial. Precisamente em virtude do mistério que celebramos, é preciso denunciar as circunstâncias que estão em contraste com a dignidade do homem, pelo qual Cristo derramou o seu sangue, afirmando assim o alto valor de cada pessoa.
241. Ibid., : o.c., 228-229.
242. Durante a assembleia sinodal ouvimos, comovidos, testemunhos muito significativos sobre a eficácia deste sacramento na obra de pacificação. A tal respeito, afirma-se na Propositio 49: « Graças às celebrações eucarísticas, povos em conflito puderam reunir-se ao redor da palavra de Deus, ouvir o seu anúncio profético da reconciliação através do perdão gratuito, receber a graça da conversão que permite a comunhão no mesmo pão e no mesmo cálice ».
243. Cf. Propositio 48.
244. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005) : AAS 98 (2006), 239.
245. Propositio 48.
90 Não podemos ficar inactivos perante certos processos de globalização, que não raro fazem crescer desmesuradamente a distância entre ricos e pobres a nível mundial. Devemos denunciar quem delapida as riquezas da terra, provocando desigualdades que bradam ao céu (Jc 5,4). Por exemplo, é impossível calar diante das « imagens impressionantes dos grandes campos de deslocados ou refugiados — em várias partes do mundo — amontoados em condições precárias para escapar a sorte pior, mas carecidos de tudo. Porventura estes seres humanos não são nossos irmãos e irmãs? Os seus filhos não vieram ao mundo com os mesmos legítimos anseios de felicidade que os outros? ».(246) O Senhor Jesus, pão de vida eterna, incita a tornarmo-nos atentos às situações de indigência em que ainda vive grande parte da humanidade: são situações cuja causa se fica a dever, frequentemente, a uma clara e preocupante responsabilidade dos homens. De facto, « com base em dados estatísticos disponíveis, pode-se afirmar que bastaria menos de metade das somas imensas globalmente destinadas a armamentos para tirar, de forma estável, da indigência o exército ilimitado dos pobres. Isto interpela a consciência humana. Às populações que vivem sob o limiar da pobreza, mais por causa de situações que dependem das relações internacionais políticas, comerciais e culturais do que por circunstâncias incontroláveis, o nosso esforço comum verdadeiramente pode e deve oferecer-lhes nova esperança ».(247)
O alimento da verdade leva-nos a denunciar as situações indignas do homem, nas quais se morre à míngua de alimento por causa da injustiça e da exploração, e dá-nos nova força e coragem para trabalhar sem descanso na edificação da civilização do amor. Desde o princípio, os cristãos tiveram a preocupação de partilhar os seus bens (Ac 4,32) e de ajudar os pobres (Rm 15,26). O peditório que se realiza nas assembleias litúrgicas constitui viva reminiscência disso mesmo, mas é também uma necessidade muito actual. As instituições eclesiais de beneficência, de modo particular a Caritas nos seus vários níveis, realizam o valioso serviço de auxiliar as pessoas em necessidade, sobretudo os mais pobres. Tirando inspiração da Eucaristia, que é o sacramento da caridade, aquelas tornam-se a sua expressão concreta; por isso, merecem todo o aplauso e estímulo pelo seu empenho solidário no mundo.
246. Bento XVI, Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé (9 de Janeiro de 2006): AAS 98 (2006), 127.
247. Ibid.: o.c., 127.
91 O mistério da Eucaristia habilita-nos e impele-nos a um compromisso corajoso nas estruturas deste mundo para lhes conferir aquela novidade de relações que tem a sua fonte inexaurível no dom de Deus. O pedido que repetimos em cada Missa: « O pão nosso de cada dia nos dai hoje », obriga-nos a fazer tudo o que for possível, em colaboração com as instituições internacionais, estatais, privadas, para que cesse ou pelo menos diminua, no mundo, o escândalo da fome e da subnutrição que padecem muitos milhões de pessoas, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento. Particularmente o leigo cristão, formado na escola da Eucaristia, é chamado a assumir directamente a sua responsabilidade político-social; a fim de poder desempenhar adequadamente as suas funções, é preciso prepará-lo através duma educação concreta para a caridade e a justiça. Para isso, como foi pedido pelo Sínodo, é necessário que, nas dioceses e comunidades cristãs, se dê a conhecer e incremente a doutrina social da Igreja.(248) Neste precioso património, nascido da mais antiga tradição eclesial, encontramos os elementos que orientam, com profunda sabedoria, o comportamento dos cristãos nas questões sociais em ebulição. Amadurecida durante toda a história da Igreja, esta doutrina caracteriza-se pelo seu realismo e equilíbrio, ajudando assim a evitar promessas enganadoras ou vãs utopias.
248. Cf. Propositio 48. A este respeito, revela-se muito útil o Compêndio da Doutrina Social da Igreja.
92 Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda, capaz de incidir significativamente também no tecido social, é necessário que o povo cristão, ao dar graças por meio da Eucaristia, tenha consciência de o fazer em nome da criação inteira, aspirando assim à santificação do mundo e trabalhando intensamente para tal fim.(249) A própria Eucaristia projecta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo. Nesta perspectiva sacramental, aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o carácter de sinal, pelo qual Deus Se comunica a Si mesmo e nos interpela. Desta maneira, a forma eucarística da existência pode verdadeiramente favorecer uma autêntica mudança de mentalidade no modo como lemos a história e o mundo. Para tudo isto nos educa a própria liturgia quando o sacerdote, durante a apresentação dos dons, dirige a Deus uma oração de bênção e súplica a respeito do pão e do vinho, « fruto da terra », « da videira » e do « trabalho do homem ». Com estas palavras, o rito, além de envolver na oferta a Deus toda a actividade e canseira humana, impele-nos a considerar a terra como criação de Deus, que produz quanto precisamos para o nosso sustento. Não se trata duma realidade neutral, nem de mera matéria a ser utilizada indiferentemente segundo o instinto humano; mas coloca-se dentro do desígnio amoroso de Deus, segundo o qual todos nós somos chamados a ser filhos e filhas de Deus no seu único Filho, Jesus Cristo (Ep 1,4-12). As condições ecológicas em que a criação subjaz em muitas partes do mundo suscitam justas preocupações, que encontram motivo de conforto na perspectiva da esperança cristã, pois esta compromete-nos a trabalhar responsavelmente na defesa da criação; (250) de facto, na relação entre a Eucaristia e o universo, descobrimos a unidade do desígnio de Deus e somos levados a individuar a relação profunda da criação com a « nova criação » que foi inaugurada na ressurreição de Cristo, novo Adão. Dela participamos já agora em virtude do Baptismo (Col 2, 12s), abrindo-se assim à nossa vida cristã, alimentada pela Eucaristia, a perspectiva do mundo novo, do novo céu e da nova terra, onde a nova Jerusalém desce do céu, de junto de Deus, « bela como noiva adornada para o seu esposo » (Ap 21,2).
249. Cf. Propositio 43.
250. Cf. Propositio 47.
93 No termo destas reflexões em que de boa vontade me detive sobre as indicações surgidas no Sínodo, desejo acolher também o pedido que os padres apresentaram para ajudar o povo cristão a crer, celebrar e viver cada vez melhor o mistério eucarístico. Cuidado pelos Dicastérios competentes, há-de ser publicado um Compêndio, que recolha textos do Catecismo da Igreja Católica, orações, explicações das Orações Eucarísticas do Missal e tudo o mais que possa demonstrar-se útil para a correcta compreensão, celebração e adoração do sacramento do altar.(251) Espero que este instrumento possa contribuir para que o memorial da páscoa do Senhor se torne cada dia sempre mais fonte e ápice da vida e da missão da Igreja; isto animará cada fiel a fazer da sua própria vida um verdadeiro culto espiritual.
251. Cf. Propositio 17.
94 Amados irmãos e irmãs, a Eucaristia está na origem de toda a forma de santidade, sendo cada um de nós chamado à plenitude de vida no Espírito Santo. Quantos santos tornaram autêntica a própria vida, graças à sua piedade eucarística! De Santo Inácio de Antioquia a Santo Agostinho, de Santo Antão Abade a São Bento, de São Francisco de Assis a São Tomás de Aquino, de Santa Clara de Assis a Santa Catarina de Sena, de São Pascoal Bailão a São Pedro Julião Eymard, de Santo Afonso Maria de Ligório ao Beato Carlos de Foucauld, de São João Maria Vianey a Santa Teresa de Lisieux, de São Pio de Pietrelcina à Beata Teresa de Calcutá, do Beato Pedro Jorge Frassati ao Beato Ivan Merz, para mencionar apenas alguns de tantos nomes, a santidade sempre encontrou o seu centro no sacramento da Eucaristia.
Por isso, é necessário que, na Igreja, este mistério santíssimo seja verdadeiramente acreditado, devotamente celebrado e intensamente vivido. A doação que Jesus faz de Si mesmo no sacramento memorial da sua paixão, atesta que o êxito da nossa vida está na participação da vida trinitária, que nos é oferecida n'Ele de forma definitiva e eficaz. A celebração e a adoração da Eucaristia permitem abeirar-nos do amor de Deus e a ele aderir pessoalmente até à união com o bem-amado Senhor. A oferta da nossa vida, a comunhão com a comunidade inteira dos crentes e a solidariedade com todo o homem são aspectos imprescindíveis da logiké latreía, ou seja, do culto espiritual, santo e agradável a Deus (Rm 12,1), no qual toda a nossa realidade humana concreta é transformada para glória de Deus. Convido, pois, todos os pastores a prestarem a máxima atenção à promoção duma espiritualidade cristã autenticamente eucarística. Os presbíteros, os diáconos e todos aqueles que exercem um ministério eucarístico possam sempre tirar destes mesmos serviços, realizados com solicitude e constante preparação, força e estímulo para o seu caminho pessoal e comunitário de santificação. Exorto todos os leigos, e as famílias em particular, a encontrarem continuamente no sacramento do amor de Cristo a energia de que precisam para transformar a própria vida num sinal autêntico da presença do Senhor ressuscitado. Peço a todos os consagrados e consagradas para manifestarem, com a própria existência eucarística, o esplendor e a beleza de pertencer totalmente ao Senhor.
95 No início do século IV, quando o culto cristão era ainda proibido pelas autoridades imperiais, alguns cristãos do norte de África, que se sentiam obrigados a celebrar o dia do Senhor, desafiaram tal proibição. Foram martirizados enquanto declaravam que não lhes era possível viver sem a Eucaristia, alimento do Senhor: « Sine dominico non possumus – sem o domingo, não podemos viver ».(252) Estes mártires de Abitinas, juntamente com muitos outros santos e beatos que fizeram da Eucaristia o centro da sua vida, intercedam por nós e nos ensinem a fidelidade ao encontro com Cristo ressuscitado! Também nós não podemos viver sem participar no sacramento da nossa salvação e desejamos ser iuxta dominicam viventes, isto é, traduzir na vida o que celebramos no dia do Senhor. Com efeito, este é o dia da nossa libertação definitiva. Então porquê maravilhar-se quando desejamos que cada dia seja vivido segundo a novidade introduzida por Cristo com o mistério da Eucaristia?
252. Acta ss. Saturnini, Dativi et aliorum plurimorum martyrum in Africa 7, 9, 10: PL 8, 707.709-710.
96 Que Maria Santíssima, Virgem Imaculada, arca da nova e eterna aliança, nos acompanhe neste caminho ao encontro do Senhor que vem! N'Ela encontramos realizada, na forma mais perfeita, a essência da Igreja. Esta vê em Maria, « Mulher eucarística » — como A designou o servo de Deus João Paulo II (253) —, o seu ícone melhor conseguido e contempla-A como modelo insubstituível de vida eucarística. Por isso, preparando-se para acolher sobre o altar «verum corpus natum de Maria Virgine – o verdadeiro corpo nascido da Virgem Maria», o sacerdote, em nome da assembleia litúrgica, proclama com as palavras do cânone: « Veneramos a memória da gloriosa sempre Virgem Maria, Mãe do nosso Deus e Senhor, Jesus Cristo ».(254) O seu nome santo é invocado e venerado também nos cânones das tradições orientais cristãs. Por sua vez, os fiéis « recomendam a Maria, Mãe da Igreja, a sua existência e trabalho. Esforçando-se por ter os mesmos sentimentos que Maria, ajudam toda a comunidade a viver em oferta viva, agradável ao Pai ».(255) Ela é a Tota Pulchra, a Toda Formosa, porque n'Ela resplandece o fulgor da glória de Deus. A beleza da liturgia celeste, que deve reflectir-se também nas nossas assembleias, encontra n'Ela um espelho fiel. D'Ela devemos aprender a tornar-nos pessoas eucarísticas e eclesiais para podermos também nós apresentar-nos, segundo a palavra de São Paulo, « imaculados » perante o Senhor, tal como Ele nos quis desde o princípio (Col 1,22 Ep 1,4).(256)
253. Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), EE 53: AAS 95 (2003), 469.
254. Oração Eucarística I (Cânone Romano).
255. Propositio 50.
256. Cf. Bento XVI, Homilia no 40º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II e solenidade da Imaculada Conceição (8 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 15.
97 Por intercessão da bem-aventurada Virgem Maria, o Espírito Santo acenda em nós o mesmo ardor que experimentaram os discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) e renove na nossa vida o enlevo eucarístico pelo esplendor e a beleza que refulgem no rito litúrgico, sinal eficaz da própria beleza infinita do mistério santo de Deus. Os referidos discípulos levantaram-se e voltaram a toda a pressa para Jerusalém a fim de partilhar a alegria com os irmãos e irmãs na fé. Com efeito, a verdadeira alegria é reconhecer que o Senhor permanece no nosso meio, companheiro fiel do nosso caminho; a Eucaristia faz-nos descobrir que Cristo, morto e ressuscitado, Se manifesta como nosso contemporâneo no mistério da Igreja, seu corpo. Deste mistério de amor fomos feitos testemunhas. Os votos que reciprocamente formulamos sejam os de irmos cheios de alegria e maravilha ao encontro da santíssima Eucaristia, para experimentar e anunciar aos outros a verdade das palavras com que Jesus Se despediu dos seus discípulos: « Eu estou sempre convosco, até ao fim dos tempos » (Mt 28,20).
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 22 de Fevereiro — festa da Cátedra de São Pedro — de 2007, segundo ano de Pontificado.
BENEDICTUS PP. XVI
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Sacramentum caritatis PT 83