Vita consecrata PT


EXORTAÇÃO APOSTÓLICA

PÓS-SINODAL

VITA CONSECRATA

DO SANTO PADRE

JOÃO PAULO II

AO EPISCOPADO E AO CLERO,

ÀS ORDENS E CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS,

ÀS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA,

AOS INSTITUTOS SECULARES

E A TODOS OS FIÉIS

SOBRE A VIDA CONSAGRADA E A SUA MISSÃO

NA IGREJA E NO MUNDO





INTRODUÇÃO

1 A vida consagrada, profundamente arreigada nos exemplos e ensinamentos de Cristo Senhor, é um dom de Deus Pai à sua Igreja, por meio do Espírito. Através da profissão dos conselhos evangélicos, os traços característicos de Jesus — virgem, pobre e obediente — adquirem uma típica e permanente « visibilidade » no meio do mundo, e o olhar dos fiéis é atraído para aquele mistério do Reino de Deus que já actua na história, mas aguarda a sua plena realização nos céus.

Ao longo dos séculos, nunca faltaram homens e mulheres que, dóceis ao chamamento do Pai e à moção do Espírito, escolheram este caminho de especial seguimento de Cristo, para se dedicarem a Ele de coração « indiviso » (cf.
1Co 7,34). Também eles deixaram tudo, como os Apóstolos, para estar com Cristo e colocar-se, como Ele, ao serviço de Deus e dos irmãos. Contribuíram assim para manifestar o mistério e a missão da Igreja, graças aos múltiplos carismas de vida espiritual e apostólica que o Espírito Santo lhes distribuía, e deste modo concorreram também para renovar a sociedade.


Acção de graças pela vida consagrada

2 O papel da vida consagrada na Igreja é tão notável que decidi convocar um Sínodo para aprofundar o seu significado e as suas perspectivas em ordem ao novo milénio, já iminente. Na Assembleia sinodal, quis que, ao lado dos Padres, estivesse também presente um número considerável de pessoas consagradas, a fim de não faltar a sua contribuição para a reflexão comum.

Cientes, como estamos todos, da riqueza que constitui, para a comunidade eclesial, o dom da vida consagrada na variedade dos seus carismas e das suas instituições, juntos damos graças a Deus pelas Ordens e Institutos religiosos dedicados à contemplação ou às obras de apostolado, pelas Sociedades de Vida Apostólica, pelos Institutos seculares, e pelos outros grupos de consagrados, como também por todos aqueles que, no segredo do seu coração, se dedicam a Deus por uma especial consagração. No Sínodo, pôde-se constatar a expansão universal da vida consagrada, achando-se presente nas Igrejas de toda a terra. Ela estimula e acompanha o avanço da evangelização nas diversas regiões do mundo, onde não apenas são acolhidos com gratidão os Institutos vindos de fora, mas constituem-se também novos e com grande variedade de formas e expressões. E se os Institutos de vida consagrada, nalgumas regiões da terra, parecem atravessar momentos de dificuldade, noutras prosperam com um vigor surpreendente, demonstrando que a opção de total doação a Deus em Cristo não é de forma alguma incompatível com a cultura e a história de cada povo. E não prospera só dentro da Igreja católica; na verdade, a vida consagrada acha-se particularmente viva no monaquismo das Igrejas ortodoxas, como rasgo essencial da sua fisionomia, e está a começar ou a ressurgir nas Igrejas e Comunidades eclesiais nascidas da Reforma, como sinal de uma graça comum dos discípulos de Cristo. Uma tal constatação serve de estímulo ao ecumenismo, que alimenta o desejo de uma comunhão cada vez mais plena entre os cristãos, « para que o mundo creia » (
Jn 17,21).


A vida consagrada, dom à Igreja

3 A presença universal da vida consagrada e o carácter evangélico do seu testemunho provam, com toda a evidência — caso isso fosse ainda necessário —, que ela não é uma realidade isolada e marginal, mas diz respeito a toda a Igreja. No Sínodo, os Bispos confirmaram-no por diversas vezes: « de re nostra agitur », « é algo que nos diz respeito »(1) .Na verdade, a vida consagrada está colocada mesmo no coração da Igreja , como elemento decisivo para a sua missão, visto que « exprime a íntima natureza da vocação cristã » (2) e a tensão da Igreja-Esposa para a união com o único Esposo (3). Diversas vezes se afirmou, no Sínodo, que a função de ajuda e apoio exercida pela vida consagrada à Igreja não se restringe aos tempos passados, mas continua a ser um dom precioso e necessário também no presente e para o futuro do Povo de Deus, porque pertence intimamente à sua vida, santidade e missão (4).

As dificuldades actuais, que vários Institutos encontram nalgumas regiões do mundo, não devem induzir a pôr em dúvida o facto de que a profissão dos conselhos evangélicos é parte integrante da vida da Igreja, à qual presta um impulso precioso em ordem a uma coerência evangélica cada vez maior (5). Historicamente poderá haver uma sucessiva variedade de formas, mas não mudará a substância de uma opção que se exprime na radicalidade do dom de si mesmo por amor do Senhor Jesus e, n'Ele, por amor de cada membro da família humana. Sobre esta certeza que animou inúmeras pessoas ao longo dos séculos, o povo cristão continua a esperar , sabendo bem que, da ajuda destas almas generosas, pode receber um apoio muito válido no seu caminho para a pátria celestial.

(1) Cf. propositio 2.
(2) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes,
AGD 18.
(3) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 44; Paulo VI, Exort. ap.Evangelica testificatio (29 de Junho de 1971), 7: AAS 63 (1971), 501-502; Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), EN 69: AAS 68 (1976), 59.
(4) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 44.
(5) Cf. João Paulo II, Discurso na Audiência Geral (28 de Setembro de 1994), 5: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 1 de Outubro de 1994), 12.


Recolhendo os frutos do Sínodo

4 Acedendo ao desejo manifestado pela Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, reunida para reflectir sobre o tema « A vida consagrada e a sua missão na Igreja e no mundo », é meu intuito propor, nesta Exortação Apostólica, os frutos do itinerário sinodal (6) e manifestar a todos os fiéis — Bispos, presbíteros, diáconos, pessoas consagradas e leigos —, e ainda a quantos quiserem prestar atenção, as maravilhas que o Senhor deseja realizar, hoje também, através da vida consagrada.

Este Sínodo, realizado depois dos que foram dedicados aos leigos e aos presbíteros, completa a exposição das peculiaridades características dos vários estados de vida, que o Senhor Jesus quis na sua Igreja. Na verdade, se no Concílio Vaticano II foi sublinhada a grande realidade da comunhão eclesial, que faz convergir todos os dons e carismas para a construção do Corpo de Cristo e para a missão da Igreja no mundo, nestes últimos anos sentiu-se a necessidade de explicitar melhor a identidade dos vários estados de vida, a sua vocação e missão específica na Igreja.

A comunhão na Igreja não é, de facto, uniformidade, mas dom do Espírito que passa também através da variedade dos carismas e dos estados de vida. Estes serão tanto mais úteis à Igreja e à sua missão, quanto maior for o respeito pela sua identidade. Com efeito, todo o dom do Espírito é concedido a fim de frutificar para o Senhor (7), no crescimento da fraternidade e da missão.

(6) Cf. propositio 1.
(7) Cf. S. Francisco de Sales, Introdução à vida devota, I, 3: OEuvres, III (Annecy 1893), 19-20.



A obra do Espírito, nas várias formas de vida consagrada

5 Como não recordar, cheios de gratidão ao Espírito, a abundância das formas históricas de vida consagrada, por Ele suscitadas e continuamente mantidas no tecido eclesial? Assemelham-se a uma planta com muitos ramos (8), que assenta as suas raízes no Evangelho e produz frutos abundantes em cada estação da Igreja. Que riqueza extraordinária! Eu mesmo, no final do Sínodo, senti a necessidade de sublinhar este elemento constante na história da Igreja: a multidão de fundadores e fundadoras, de santos e santas, que escolheram seguir Cristo na radicalidade do Evangelho e no serviço fraterno, especialmente a favor dos pobres e dos abandonados (9). Precisamente neste serviço resulta, com particular evidência, como a vida consagrada manifesta ocarácter unitário do mandamento do amor, na sua conexão indivisível entre o amor de Deus e o amor do próximo.

O Sínodo recordou esta obra incessante do Espírito Santo, que vai explanando, ao longo dos séculos, as riquezas da prática dos conselhos evangélicos através dos múltiplos carismas, e que, também por este caminho, torna o mistério de Cristo perenemente presente na Igreja e no mundo, no tempo e no espaço.

(8) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium,
LG 43.
(9) Cf. João Paulo II, Homilia na Missa de encerramento da IX Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (29 de Outubro de 1994), 3: AAS 87 (1995), 580.


Vida monástica no Oriente e no Ocidente

6 Os Padres sinodais das Igrejas católicas orientais e os representantes das outras Igrejas do Oriente puseram em destaque, nas suas intervenções, os valores evangélicos da vida monástica(10), que aparecera já nos primórdios do cristianismo e continua ainda florescente nos seus territórios, especialmente nas Igrejas ortodoxas.

Desde os primeiros séculos da Igreja, houve homens e mulheres que se sentiram chamados a imitar a condição de servo abraçada pelo Verbo encarnado, e puseram-se a segui-Lo vivendo de um modo específico e radical, na profissão monástica, as exigências derivadas da participação baptismal no mistério pascal da sua morte e ressurreição. Deste modo, fazendo-se portadores da Cruz (staurophóroi), comprometeram-se a tornar-se portadores do Espírito (pneumatophóroi), homens e mulheres autenticamente espirituais, capazes de em segredo fecundar a história, com o louvor e a intercessão contínua, com os conselhos ascéticos e as obras de caridade. Com a intenção de transfigurar o mundo e a vida enquanto se aguarda a visão definitiva do rosto de Deus, o monaquismo oriental privilegia a conversão, a renúncia a si próprio e a contrição do coração, a procura da esichia, isto é, da paz interior, e a prece incessante, o jejum e as vigílias, a luta espiritual e o silêncio, a alegria pascal pela presença do Senhor e pela expectativa da sua vinda definitiva, a oferta de si mesmo e dos próprios bens, vivida na santa comunhão do mosteiro ou na solidão eremítica (11).

Também o Ocidente praticou, desde os primeiros séculos da Igreja, a vida monástica, registando uma grande variedade de expressões tanto no âmbito comunitário como no eremítico. Na sua forma actual, inspirada especialmente em S. Bento, o monaquismo ocidental recolhe a herança de tantos homens e mulheres que, renunciando à vida levada no mundo, procuraram a Deus e a Ele se dedicaram, « sem nada antepor ao amor de Cristo » (12).Também os monges de hoje se esforçam por conciliar harmoniosamente a vida interior e o trabalho , no compromisso evangélico da conversão dos costumes, da obediência, da clausura, e na dedicação assídua à meditação da Palavra (lectio divina), à celebração da liturgia, à oração. Os mosteiros foram e continuam a ser, no coração da Igreja e do mundo, um sinal eloquente de comunhão, um lugar acolhedor para aqueles que buscam Deus e as coisas do espírito, escolas de fé e verdadeiros centros de estudo, diálogo e cultura para a edificação da vida eclesial e também da cidade terrena, à espera da celeste.

(10) Cf. Sínodo dos Bispos - IX Assembleia Geral Ordinária, Mensagem do Sínodo (27 de Outubro de 1994), VII: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 5 de Novembro de 1994), 2-3.
(11) Cf. propositio 5, B.
(12) Cf. regula,
RB 4,21 RB 72,11.


A Ordem das virgens, os eremitas, as viúvas

7 Um motivo de alegria e esperança é ver que hoje volta a florescer a antiga Ordem das virgens, cuja presença nas comunidades cristãs é testemunhada desde os tempos apostólicos (13). Consagradas pelo Bispo diocesano, elas contraem um vínculo particular com a Igreja, a cujo serviço se dedicam, mesmo permanecendo no mundo. Sozinhas ou associadas, constituem uma imagem escatológica especial da Esposa celeste e da vida futura, quando, finalmente, a Igreja viverá em plenitude o seu amor por Cristo Esposo.

Os homens e as mulheres eremitas, ligados a Ordens antigas ou a novos Institutos ou então dependentes directamente do Bispo, testemunham através da separação interior e exterior do mundo o carácter provisório do tempo presente, e pelo jejum e pela penitência atestam que o homem não vive só de pão, mas da Palavra de Deus (cf.
Mt 4,4). Uma vida assim « no deserto » é um convite aos indivíduos e à própria comunidade eclesial para nunca perderem de vista a vocação suprema, que é estar sempre com o Senhor.

Hoje voltou a ser praticada também a consagração tanto das viúvas (14),conhecida desde os tempos apostólicos (cf. 1Tm 5,5 1Tm 5,9-10 1Co 7,8), como dos viúvos. Estas pessoas, mediante o voto de castidade perpétua como sinal do Reino de Deus, consagram a sua condição para se dedicarem à oração e ao serviço da Igreja.

(13) Cf. propositio 12.
(14) Cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. CIO 570.


Institutos inteiramente dedicados à contemplação

8 Os Institutos orientados completamente à contemplação, formados por mulheres ou por homens, constituem um motivo de glória e uma fonte de graças celestes para a Igreja. Com a sua vida e missão, as pessoas que deles fazem parte imitam Cristo em oração no cimo do monte, testemunham o domínio de Deus sobre a história, antecipam a glória futura.

Na solidão e no silêncio, mediante a escuta da Palavra de Deus, a realização do culto divino, a ascese pessoal, a oração, a mortificação e a comunhão do amor fraterno, orientam toda a sua vida e actividade para a contemplação de Deus. Oferecem assim à comunidade eclesial um testemunho singular do amor da Igreja pelo seu Senhor, e contribuem, com uma misteriosa fecundidade apostólica, para o crescimento do Povo de Deus (15).

É justo, portanto, desejar que as várias formas de vida contemplativa conheçam uma difusão crescente nas jovens Igrejas, enquanto expressão de pleno enraizamento do Evangelho, sobretudo naquelas regiões do mundo onde predominam outras religiões. Isto permitirá testemunhar o vigor das tradições cristãs de ascese e mística, e favorecerá também o diálogo inter-religioso(16).

(15) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis,
PC 7; Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 40.
(16) Cf. propositio 6.


A vida religiosa apostólica

9 No Ocidente, floresceram ao longo dos séculos muitas outras expressões de vida religiosa, nas quais inúmeras pessoas, renunciando ao mundo, se consagraram a Deus, através da profissão pública dos conselhos evangélicos segundo um carisma específico e numa forma estável de vida comum (17),para um serviço apostólico pluriforme ao Povo de Deus. Temos, assim, as diversas famílias de Cónegos regulares, as Ordens mendicantes, os Clérigos regulares, e as Congregações religiosas masculinas e femininas, em geral, dedicadas à actividade apostólica e missionária e às múltiplas obras que a caridade cristã suscitou.

É um testemunho esplêndido e variegado, onde se reflecte a multiplicidade dos dons dispensados por Deus aos fundadores e fundadoras que, abertos à acção do Espírito Santo, souberam interpretar os sinais dos tempos e responder, de forma esclarecida, às exigências que sucessivamente iam aparecendo. Seguindo os seus passos, muitas outras pessoas procuraram, com a palavra e a acção, encarnar o Evangelho na própria existência, para apresentar aos seus contemporâneos a presença viva de Jesus, o Consagrado por excelência e o Apóstolo do Pai. É em Cristo Senhor que se devem continuar a rever os religiosos e religiosas de cada época, alimentando na oração uma profunda comunhão de sentimentos com Ele (cf.
Ph 2,5-11), para que toda a sua vida seja permeada de espírito apostólico, e toda a acção apostólica seja repassada de contemplação (18).

(17) Cf. propositio 4.
(18) Cf. propositio 7.


Os Institutos seculares

10 O Espírito Santo, artífice admirável da diversidade de carismas, suscitou no nosso tempo novas expressões de vida consagrada, como que desejando corresponder, segundo um desígnio providencial, às novas necessidades que a Igreja encontra hoje no cumprimento da sua missão no mundo.

Vêm ao pensamento, antes de mais, os Institutos seculares, cujos membros pretendem viver a consagração a Deus no mundo, através da profissão dos conselhos evangélicos no contexto das estruturas temporais, para serem assim fermento de sabedoria e testemunhas da graça no âmbito da vida cultural, económica e política. Através da síntese de secularidade e consagração, que os caracteriza, eles querem infundir na sociedade as energias novas do Reino de Cristo, procurando transfigurar o mundo a partir de dentro com a força das bem-aventuranças. Desta forma, ao mesmo tempo que a pertença total a Deus os torna plenamente consagrados ao seu serviço, a sua actividade nas condições normais dos leigos contribui, sob a acção do Espírito, para a animação evangélica das realidades seculares. Os Institutos seculares contribuem assim para garantir à Igreja, segundo a índole específica de cada um, uma presença incisiva na sociedade (19).

Também realizam uma função preciosa os Institutos seculares clericais, onde sacerdotes pertencentes ao presbitério diocesano — mesmo quando lhes é reconhecida a incardinação no próprio Instituto — se consagram a Cristo através da prática dos conselhos evangélicos segundo um específico carisma. Eles encontram, nas riquezas espirituais do próprio Instituto a que pertencem, uma grande ajuda para viver intensamente a espiritualidade própria do sacerdócio e ser assim fermento de comunhão e generosidade apostólica entre os seus irmãos.

(19) Cf. propositio 11.



As Sociedades de Vida Apostólica

11 Merecem, depois, uma especial menção as Sociedades de Vida Apostólica ou de vida comum, masculinas e femininas, que perseguem, com seu estilo próprio, um específico fim apostólico e missionário. Em muitas delas, assumem-se expressamente os conselhos evangélicos, com vínculos sagrados reconhecidos oficialmente pela Igreja. Mesmo neste caso, todavia, a peculiaridade da sua consagração distingue-as dos Institutos religiosos e dos Institutos seculares. Há que salvaguardar e promover a especificidade desta forma de vida, que, ao longo dos últimos séculos, produziu tantos frutos de santidade e de apostolado, especialmente no campo da caridade e na difusão missionária do Evangelho (20).

(20) Cf. propositio 14.


Novas expressões de vida consagrada

12 A perene juventude da Igreja continua a manifestar-se também hoje: nos últimos decénios, depois do Concílio Ecuménico Vaticano II, apareceram formas novas ou renovadas de vida consagrada . Em muitos casos, trata-se de Institutos semelhantes aos que já existem, mas nascidos de novos estímulos espirituais e apostólicos. A sua vitalidade deve ser ponderada pela autoridade da Igreja, a quem compete proceder aos devidos exames, quer para comprovar a autenticidade da sua finalidade inspiradora, quer para evitar a excessiva multiplicação de instituições análogas entre si, com o consequente risco de uma nociva fragmentação em grupos demasiadamente pequenos. Noutros casos, trata-se de experiências originais, que estão à procura da sua própria identidade na Igreja e esperam ser reconhecidas oficialmente pela Sé Apostólica, a única a quem compete o juízo definitivo (21).

Estas novas formas de vida consagrada, que se vêm juntar às antigas, testemunham a constante atracção que a doação total ao Senhor, o ideal da comunidade apostólica, os carismas de fundação continuam a exercer mesmo sobre a geração actual, e são sinal também da complementaridade dos dons do Espírito Santo.

Mas o Espírito não Se contradiz na inovação. Prova-o o facto de que as novas formas de vida consagrada não substituíram as antigas. Numa variedade tão grande de formas, pôde-se conservar a unidade de fundo graças ao chamamento sempre idêntico a seguir, na busca da perfeita caridade, Jesus virgem, pobre e obediente. Este chamamento, tal como se encontra em todas as formas já existentes, assim é requerido naquelas que se propõem como novas.

(21) Cf. Código de Direito Canónico, can.
CIC 605; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. CIO 571; propositio 13.


Finalidade da Exortação Apostólica

13 Com esta Exortação Apostólica, que recolhe os frutos dos trabalhos sinodais, pretendo dirigir-me a toda a Igreja, para oferecer não só às pessoas consagradas, mas também aos Pastores e aos fiéis, os resultados de um sugestivo confronto, sobre cujo desenvolvimento o Espírito Santo não cessou de velar com os seus dons de verdade e de amor.

Nestes anos de renovação, a vida consagrada atravessou, como de resto outras formas de vida na Igreja, um período delicado e árduo. Foi um período rico de esperanças, de tentativas e propostas inovadoras, visando revigorar a profissão dos conselhos evangélicos. Mas foi também um tempo com as suas tensões e angústias, ao longo do qual experiências até generosas nem sempre foram coroadas de resultados positivos. As dificuldades, porém, não devem levar ao desânimo. Pelo contrário, é preciso empenhar-se com novo ardor, porque a Igreja necessita da contribuição espiritual e apostólica de uma vida consagrada renovada e vigorosa. Através da presente Exortação pós-sinodal, desejo dirigir-me às comunidades religiosas e às pessoas consagradas, com o mesmo espírito que animava a carta enviada pelo Concílio de Jerusalém aos cristãos de Antioquia, e nutro a esperança de que se possa repetir, hoje também, a mesma experiência de outrora: « Depois de a lerem, todos ficaram satisfeitos com o encorajamento que lhes trazia » (
Ac 15,31). Mais: nutro ainda a esperança de fazer crescer a alegria de todo o Povo de Deus, que, conhecendo melhor a vida consagrada, poderá mais conscientemente dar graças ao Omnipotente por este grande dom.

Em atitude de cordial sintonia com os Padres sinodais, recolhi como um tesouro as preciosas contribuições surgidas durante os intensos trabalhos da Assembleia, nos quais quis estar sempre presente. Naquela época, tive o cuidado também de oferecer a todo o Povo de Deus algumas catequeses sistemáticas sobre a vida consagrada na Igreja. Nelas propus novamente os ensinamentos presentes nos textos do Concílio Vaticano II, tendo este sido um luminoso ponto de referência para os sucessivos desenvolvimentos doutrinais e para a própria reflexão realizada pelo Sínodo durante as semanas intensas dos seus trabalhos (22).

Com a confiança de que os filhos da Igreja, de modo particular as pessoas consagradas, vão também acolher com cordial adesão esta Exortação, faço votos por que a reflexão prossiga em ordem ao aprofundamento do grande dom da vida consagrada na tríplice dimensão da consagração, da comunhão e da missão, e que os consagrados e as consagradas, em plena sintonia com a Igreja e o seu Magistério, encontrem deste modo novos estímulos para enfrentar espiritual e apostolicamente os desafios que forem surgindo.

(22) Cf. propositiones 3; 4; 6; 7; 8; 10; 13; 28; 28; 30; 35; 48.


CAPÍTULO I

CONFESSIO TRINITATIS

NAS FONTES CRISTOLÓGICO-TRINITÁRIAS DA VIDA CONSAGRADA


O ícone de Cristo transfigurado

14 O fundamento evangélico da vida consagrada há-de ser procurado naquela relação especial que Jesus, durante a sua existência terrena, estabeleceu com alguns dos seus discípulos, convidando-os não só a acolherem o Reino de Deus na sua vida, mas também a colocarem a própria existência ao serviço desta causa, deixando tudo e imitando mais de perto a sua forma de vida.

Esta existência « cristiforme », proposta a tantos baptizados ao longo da história, só é possível com base numa vocação especial e por um dom peculiar do Espírito. De facto, numa tal existência, a consagração baptismal é levada a uma resposta radical no seguimento de Cristo pela assunção dos conselhos evangélicos, sendo o vínculo sagrado da castidade pelo Reino dos Céus o primeiro e mais essencial deles (23). Assim, este especial « seguimento de Cristo », em cuja origem está sempre a iniciativa do Pai, reveste uma conotação essencialmente cristológica e pneumatológica, exprimindo de forma muito viva o carácter trinitário da vida cristã, da qual antecipa de algum modo a realizaçãoescatológica, para onde tende a Igreja inteira (24).

No Evangelho, são muitas as palavras e gestos de Cristo, que iluminam o sentido desta vocação especial. No entanto, para se abarcar numa visão de conjunto os seus traços essenciais, revela-se particularmente útil fixar o olhar no rosto resplandecente de Cristo, no mistério da Transfiguração. A este « ícone » faz referência toda a tradição espiritual antiga, quando relaciona a vida contemplativa com a oração de Jesus « no monte » (25). Mas de algum modo podem-se espelhar lá também as dimensões « activas » da vida consagrada, visto que a Transfiguração não é só revelação da glória de Cristo, mas também preparação para enfrentar a cruz. Implica um « subir ao monte » e um « descer do monte »: os discípulos que gozaram da intimidade do Mestre, envolvidos durante alguns momentos pelo esplendor da vida trinitária e da comunhão dos santos, como que arrebatados até ao limiar da eternidade, são reconduzidos logo a seguir à realidade quotidiana, onde vêem « apenas Jesus » na humildade da sua natureza humana, e são convidados a regressar ao vale para partilharem com Ele o peso do desígnio de Deus e empreender corajosamente o caminho da cruz.

(23) Cf. popositio 3, A e B.
(24) Cf. propositio 3, C.
(25) Cf. S. Cassiano: « Secessit tamen solus in monte orare, per hoc scilicet nos instruens suae secessionis exemplo (...) ut similiter secedamus » (Conlat.10,6: PL 49, 827); S. Jerónimo: « Et Christum quaeras in solitudine et ores solus in monte cum Iesu » (EP ad Paulinum 58,4,2: PL 22, 582); Guilherme de Saint Thierry: « [Vita solitaria] ab ipso Domino familiarissime celebrata, ab eius discipulis ipso praesente concupita: cuius transfigurationis gloriam cum vidissent qui cum eo in monte sancto erant, continuo Petrus (...) optimum sibi iudicavit in hoc semper esse » (Ad fratres de Monte Dei 1,1: PL 184, 310).



« Transfigurou-Se diante deles »

15 Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e levou-os, em particular, a um alto monte. Transfigurou-Se diante deles: o seu rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. Nisto, apareceram Moisés e Elias a conversar com Ele.
Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus:
« Senhor, é bom [nós] estarmos aqui; se quiseres, farei aqui três tendas: uma para Ti, uma para Moisés e outra para Elias ».
Ainda ele estava a falar, quando uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra, e uma voz dizia da nuvem:
« Este é o meu Filho muito amado, no qual pus todo o meu enlevo; escutai-O ».
Ao ouvirem isto, os discípulos caíram por terra, muito assustados.
Aproximando-Se deles, Jesus tocou-lhes, dizendo:
« Levantai-vos e não tenhais medo ».
E, erguendo os olhos, apenas viram Jesus e mais ninguém.
Enquanto desciam do monte, Jesus ordenou-lhes:
« Não conteis a ninguém o que acabastes de ver, até que o Filho do Homem ressuscite dos mortos » (
Mt 17,1-9).

O episódio da Transfiguração assinala um momento decisivo no ministério de Jesus. É um evento de revelação que consolida a fé no coração dos discípulos, prepara-os para o drama da Cruz, e antecipa a glória da ressurreição. É um episódio misterioso revivido incessantemente pela Igreja, povo a caminho do encontro escatológico com o seu Senhor. Como os três apóstolos escolhidos, a Igreja contempla o rosto transfigurado de Cristo, para se confirmar na fé e não correr o risco de soçobrar ao ver o seu rosto desfigurado na Cruz. Em ambos os casos, ela é a Esposa na presença do Esposo, que participa do seu mistério, envolvida pela sua luz.

Esta luz atinge todos os seus filhos, todos igualmente chamados a seguir Cristo, repondo n'Ele o sentido último da sua própria vida podendo dizer com o Apóstolo: « Para mim, o viver é Cristo » (Ph 1,21). Mas uma singular experiência dessa luz que dimana do Verbo encarnado é feita, sem dúvida, pelos que são chamados à vida consagrada. Na verdade, a profissão dos conselhos evangélicos coloca-os como sinal e profecia para a comunidade dos irmãos e para o mundo. Por isso, não podem deixar de encontrar neles um eco particular as palavras extasiadas de Pedro: « Senhor, é bom estarmos aqui! » (Mt 17,4). Estas palavras manifestam a tensão cristocêntrica de toda a vida cristã, mas exprimem também, com particular eloquência, o carácter totalizante que constitui o dinamismo profundo da vocação à vida consagrada: « Como é bom estarmos contigo, dedicarmo-nos a Ti, concentrar a nossa existência exclusivamente em Ti! ». De facto, quem recebeu a graça desta especial comunhão de amor com Cristo, sente-se de certa forma arrebatado pelo seu fulgor: Ele é o « mais belo entre os filhos do homem » (Ps 45,3), o Incomparável.


« Este é o meu Filho muito amado: escutai-O! »

16 Aos três discípulos extasiados chega o apelo do Pai a que se ponham à escuta de Cristo, depositem n'Ele toda a confiança, façam d'Ele o centro da vida. À luz desta palavra que vem do alto, adquire nova profundidade aquele convite que lhes fizera Jesus, ao início da sua vida pública, quando os chamara a segui-Lo, arrancando-os à sua vida normal e acolhendo-os na sua intimidade. É precisamente desta graça especial de intimidade que brota, na vida consagrada, a possibilidade e a exigência do dom total de si mesmo na profissão dos conselhos evangélicos. Estes, antes e mais do que renúncia, são um acolhimento específico do mistério de Cristo, vivido no seio da Igreja.

De facto, na unidade da vida cristã, as diversas vocações são comparáveis a raios da única luz de Cristo, « que resplandece no rosto da Igreja » (26).Os leigos, em virtude da índole secular da sua vocação, reflectem o mistério do Verbo encarnado sobretudo enquanto Ele é Alfa e Ómega do mundo, fundamento e medida do valor de todas as coisas criadas. Os ministros sagrados, por sua vez, são imagens vivas de Cristo, Cabeça e Pastor, que guia o seu povo neste tempo do « já e ainda não », na expectativa da sua vinda gloriosa. À vida consagrada está confiada a missão de indicar o Filho de Deus feito homem como a meta escatológica para onde tudo tende, o esplendor perante o qual qualquer outra luz empalidece, a beleza infinita, a única que pode saciar totalmente o coração do homem. É que na vida consagrada não se trata apenas de seguir Cristo de todo o coração, amando-O « mais do que o pai ou a mãe, mais do que o filho ou a filha » (cf.
Mt 10,37), como é pedido a todo o discípulo, mas trata-se de viver e exprimir isso mesmo com uma adesão « conformativa » a Cristo da existência inteira, numa tensão totalizante que antecipa, por quanto possível no tempo e aos vários carismas, a perfeição escatológica.

Na verdade, pela profissão dos conselhos, o consagrado não só faz de Cristo o sentido da própria vida, mas preocupa-se por reproduzir em si mesmo, na medida do possível, « aquela forma de vida que o Filho de Deus assumiu ao entrar no mundo » (27). Abraçando a virgindade, ele assume o amor virginal de Cristo e confessa-O ao mundo como Filho unigénito, um só com o Pai (cf. Jn 10,30 Jn 14,11); imitando a sua pobreza, confessa-O como Filho que tudo recebe do Pai e no amor tudo Lhe devolve (cf. Jn 17,7 Jn 17,10); aderindo, com o sacrifício da própria liberdade, ao mistério da sua obediência filial, confessa-O infinitamente amado e amante, como Aquele que Se compraz somente na vontade do Pai (cf. Jn 4,34), ao qual está perfeitamente unido e do qual depende em tudo.

Com tal identificação « conformativa » ao mistério de Cristo, a vida consagrada realiza a título especial aquela confessio Trinitatis, que caracteriza toda a vida cristã, reconhecendo extasiada a beleza sublime de Deus Pai, Filho e Espírito Santo, e testemunhando com alegria a sua amorosa magnanimidade com todo o ser humano.

(26) Conc. Ecum. Vat. II, Consti. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 1.
(27) Ibid., LG 44.


Vita consecrata PT