Vita consecrata PT 31

As relações entre os vários estados de vida do cristão

31 As diversas formas de vida, em que, segundo o desígnio de Cristo Senhor, se articula a vida eclesial, apresentam recíprocas relações, sobre as quais convém deter-se.

Todos os fiéis, em virtude da sua regeneração em Cristo, compartilham a mesma dignidade; todos são chamados à santidade; todos cooperam para a edificação do único Corpo de Cristo, cada qual segundo a própria vocação e o dom recebido do Espírito (cf.
Rm 12,3-8) (58). A dignidade igual entre todos os membros da Igreja é obra do Espírito, está fundada no Baptismo e na Confirmação, e é corroborada pela Eucaristia. Mas é também obra do Espírito a multiplicidade de formas. É Ele que faz da Igreja uma comunhão orgânica na sua diversidade de vocações, carismas e ministérios (59).

As vocações à vida laical, ao ministério ordenado e à vida consagrada podem-se considerar paradigmáticas, uma vez que todas as vocações particulares, sob um aspecto ou outro, se inspiram ou conduzem àquelas, assumidas separada ou conjuntamente, segundo a riqueza do dom de Deus. Além disso, elas estão ao serviço umas das outras, em ordem ao crescimento do Corpo de Cristo na história e à sua missão no mundo. Todos, na Igreja, são consagrados no Baptismo e na Confirmação, mas o ministério ordenado e a vida consagrada supõem, cada qual, uma distinta vocação e uma forma específica de consagração, com vista a uma missão peculiar.

Para a missão dos leigos — aos quais compete « procurar o Reino de Deus, tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus » (60) —, é fundamento adequado a consagração baptismal e crismal, comum a todos os membros do Povo de Deus. Os ministros ordenados, além dessa consagração fundamental, recebem também a da Ordenação, para continuar no tempo o ministério apostólico. As pessoas consagradas , que abraçam os conselhos evangélicos, recebem uma nova e especial consagração que, apesar de não ser sacramental, as compromete a assumirem — no celibato, na pobreza e na obediência — a forma de vida praticada pessoalmente por Jesus, e por Ele proposta aos discípulos. Embora estas diversas categorias sejam manifestação do único mistério de Cristo, os leigos têm como característica peculiar, embora não exclusiva, a secularidade, os pastores a « ministerialidade », os consagrados a conformação especial a Cristo virgem, pobre e obediente.

(58) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium LG 32; Código de Direito Canónico, cân. CIC 208; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. CIO 11.
(59) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 4; Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 4 LG 12 LG 13; Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 32; Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, AA 3; João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), CL 20-21: AAS 81 (1989), 425-428; Congregação para a Doutrina da Fé, Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre alguns aspectos da Igreja, entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 15: AAS 85 (1993), 847.
(60) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 31.


O valor especial da vida consagrada

32 Neste conjunto harmonioso de dons, está confiado a cada um dos estados de vida fundamentais o encargo de exprimir, ao próprio nível, ora uma ora outra das dimensões do único mistério de Cristo. Se, para fazer ressoar o anúncio evangélico no âmbito das realidades temporais, tem uma missão particular a vida laical, no âmbito da comunhão eclesial um ministério insubstituível é desempenhado por aqueles que estão constituídos na Ordem sagrada, de modo especial pelos Bispos. Estes têm a tarefa de guiar o Povo de Deus, mediante o ensinamento da Palavra, a administração dos Sacramentos e o exercício do poder sagrado ao serviço da comunhão eclesial, que é comunhão orgânica e hierarquicamente ordenada (61).

Na manifestação da santidade da Igreja, há que reconhecer uma objectiva primazia à vida consagrada , que reflecte o próprio modo de viver de Cristo. Por isso mesmo, nela se encontra uma manifestação particularmente rica dos valores evangélicos e uma actuação mais completa do objectivo da Igreja que é a santificação da humanidade. A vida consagrada anuncia e de certo modo antecipa o tempo futuro, quando, alcançada a plenitude daquele Reino dos céus que agora está presente apenas em gérmen e no mistério (62), os filhos da ressurreição não tomarão esposa nem marido, mas serão como anjos de Deus (cf.
Mt 22,30).

De facto, a primazia da castidade perfeita pelo Reino (63), justamente considerada a « porta » de toda a vida consagrada (64), é objecto do ensinamento constante da Igreja. De resto, esta tributa grande estima também à vocação para o matrimónio, que torna os esposos « testemunhas e cooperadores da fecundidade da Igreja, nossa mãe, em sinal e participação daquele amor, com que Cristo amou a sua Esposa e por ela Se entregou »(65).

Neste horizonte comum a toda a vida consagrada, articulam-se caminhos distintos entre si, mas complementares. Os religiosos e religiosas dedicados integralmente à contemplação são, de modo especial, imagem de Cristo em oração sobre o monte (66). As pessoas consagradas de vida activamanifestam Jesus « anunciando às multidões o Reino de Deus, curando os doentes e feridos, trazendo os pecadores à conversão, abençoando as criancinhas e fazendo bem a todos » (67). Um particular serviço ao advento do Reino de Deus, prestam-no as pessoas consagradas nos Institutos Seculares, que unem, numa síntese específica, o valor da consagração com o da secularidade. Vivendo a sua consagração no século e a partir do século (68), elas « esforçam-se, à maneira de fermento, por impregnar todas as coisas do espírito do Evangelho para robustecimento e incremento do Corpo de Cristo » (69). Com vista a tal fim, participam na função evangelizadora da Igreja, mediante o testemunho pessoal de vida cristã, o empenho de que as realidades temporais sejam ordenadas segundo Deus, a colaboração no serviço da comunidade eclesial, segundo o estilo de vida secular que lhes é próprio (70).

(61) Cf. ibid., 12; João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), LG 20-21: AAS 81 (1989), 425-428.
(62) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 5.
(63) Cf. Concílio de Trento, sess. XXIV, cân. 10: DS 1810; Pio XII, Carta enc. Sacra virginitas(25 de Março de 1954): AAS 46 (1954), 176.
(64) Cf. propositio 17.
(65) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 41.
(66) Cf. ibid., LG 46.
(67) Ibid., LG 46.
(68) Cf. Pio XII, Motu próprio Primo feliciter (12 de Março de 1948), 6: AAS 40 (1948), 285.
(69) Código de Direito Canónico, cân. CIC 713, § 1; cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. CIO 563, § 2.
(70) Cf. Código de Direito Canónico, can. CIC 713, 4 2. Uma palavra relativa especificamente aos « membros clérigos » aparece no § 3 deste mesmo cân. CIC 713.


Testemunhar o Evangelho das bem-aventuranças

33 Missão peculiar da vida consagrada é manter viva nos baptizados a consciência dos valores fundamentais do Evangelho, graças ao seu « magnífico e privilegiado testemunho de que não se pode transfigurar o mundo e oferecê-lo a Deus sem o espírito das bem-aventuranças » (71). Deste modo, a vida consagrada suscita continuamente, na consciência do Povo de Deus, a exigência de responder com a santidade de vida ao amor de Deus derramado nos corações pelo Espírito Santo (cf. Rm 5,5), reflectindo na conduta a consagração sacramental realizada por acção de Deus no Baptismo, na Confirmação, ou na Ordem. Na verdade, é preciso que da santidade comunicada nos sacramentos se passe à santidade da vida quotidiana. A vida consagrada existe na Igreja precisamente para se pôr ao serviço da consagração da vida de todo o fiel, leigo ou clérigo.

Por outro lado, não se deve esquecer que também os consagrados recebem, do testemunho próprio das outras vocações, uma ajuda para viver integralmente a adesão ao mistério de Cristo e da Igreja, nas suas múltiplas dimensões. Graças a este enriquecimento recíproco, torna-se mais eloquente e eficaz a missão da vida consagrada: mantendo fixo o seu olhar na paz futura, indica como meta aos irmãos e irmãs a Bem-aventurança definitiva junto de Deus.

(71) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 31.


Imagem viva da Igreja-Esposa

34 Particular relevo tem o significado esponsal da vida consagrada, que reflecte a exigência de a Igreja viver em doação plena e exclusiva para seu Esposo, do qual recebe todo o bem. Nesta dimensão esponsal característica de toda a vida consagrada, é sobretudo a mulher que se reconhece de modo singular em sua própria identidade, de certa forma descobrindo aí a índole especial do seu relacionamento com o Senhor.

A tal propósito, é sugestivo o texto neo-testamentário que apresenta Maria reunida com os Apóstolos, no Cenáculo, aguardando em oração a vinda do Espírito Santo (cf.
Ac 1,13-14). Pode-se ver aqui uma expressiva imagem da Igreja-Esposa, atenta aos sinais do Esposo e pronta a acolher o seu dom. Na figura de Pedro e demais apóstolos, ressalta sobretudo a dimensão da fecundidade operada pelo ministério eclesial, que se faz instrumento do Espírito para a geração de novos filhos através da proclamação da Palavra, da celebração dos Sacramentos e pela solicitude pastoral. Já em Maria, é particularmente viva a dimensão do acolhimento esponsal com que a Igreja faz frutificar em si mesma a vida divina, através da totalidade do seu amor virginal.

A vida consagrada sempre foi identificada prevalentemente com esta parte de Maria, a Virgem Esposa. Deste amor virginal, provém uma particular fecundidade que contribui para o nascimento e crescimento da vida divina nos corações (72). A pessoa consagrada, seguindo o exemplo de Maria, nova Eva, exprime a sua fecundidade espiritual, tornando-se acolhedora da Palavra, para colaborar na construção da nova humanidade com a sua dedicação incondicional e o seu testemunho vivo. Desta forma, a Igreja manifesta plenamente a sua maternidade, quer mediante a comunicação da acção divina confiada a Pedro, quer através do acolhimento responsável do dom divino, típico de Maria.

O povo cristão, por seu lado, encontra no ministério ordenado os meios de salvação, e na vida consagrada o estímulo para uma resposta cabal de amor em cada uma das várias formas de diaconia(73).

(72) S. Teresa do Menino Jesus, Manuscrits autobiographiques, MSB 2vs: « Ser vossa esposa, ó Jesus, (...) ser, na minha união convosco, mãe das almas ».
(73) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis, PC 8 PC 10 PC 12.



IV. GUIADOS PELO ESPÍRITO DE SANTIDADE


Existência « transfigurada »: a vocação à santidade

35 « Ao ouvirem isto, os discípulos caíram por terra, muito assustados » (Mt 17,6). No episódio da Transfiguração, os sinópticos põem em evidência, embora com acentuações diferentes, a sensação de temor que se apodera dos discípulos. O fascínio do rosto transfigurado de Cristo não os impede de se sentirem assustados diante da Majestade divina que os ultrapassa. Sempre que o homem vislumbra a glória de Deus, faz também a experiência da sua pequenez, provocando nele uma sensação de medo. Este temor é salutar. Recorda ao homem a perfeição divina, e ao mesmo tempo incita-o com um premente apelo à « santidade ».

Todos os filhos da Igreja, chamados pelo Pai a « escutar » Cristo, não podem deixar de sentir uma profunda exigência de conversão e de santidade. Mas, como se salientou no Sínodo, esta exigência chama em causa, em primeiro lugar, a vida consagrada. Na verdade, a vocação recebida pelas pessoas consagradas para procurarem acima de tudo o Reino de Deus é, antes de mais nada, um chamamento à conversão plena, renunciando a si próprias para viverem totalmente do Senhor, a fim de que Deus seja tudo em todos. Chamados a contemplar e a testemunhar o rosto « transfigurado » de Cristo, os consagrados são chamados também a uma existência transfigurada.

A respeito disto, é significativo o que se diz na Relação final da II Assembleia Extraordinária do Sínodo: « Os santos e as santas sempre foram fonte e origem de renovação nas circunstâncias mais difíceis, ao longo de toda a história da Igreja. Hoje, temos muita necessidade de santos, graça esta que devemos implorar continuamente a Deus. Os Institutos de vida consagrada, mediante a profissão dos conselhos evangélicos, devem estar conscientes da sua especial missão na Igreja de hoje, e nós devemos encorajá-los nessa sua missão » (74). Estas considerações encontraram eco nos Padres desta IX Assembleia sinodal, quando afirmam: « A vida consagrada foi, através da história da Igreja, uma presença viva desta acção do Espírito, como um espaço privilegiado de amor absoluto a Deus e ao próximo, testemunho do projecto divino de fazer de toda a humanidade, dentro da civilização do amor, a grande família dos filhos de Deus » (75).

Igreja sempre viu na profissão dos conselhos evangélicos um caminho privilegiado para a santidade. As próprias expressões com que é designada — escola do serviço do Senhor, escola de amor e de santidade, caminho ou estado de perfeição — já manifestam quer a eficácia e a riqueza dos meios próprios desta forma de vida evangélica, quer o especial empenho requerido àqueles que a abraçam(76). Não foi por acaso que, no decorrer dos séculos, tantos consagrados deixaram eloquentes testemunhos de santidade e realizaram façanhas de evangelização e de serviço, particularmente generosas e árduas.

(74) Sínodo dos Bispos - II Assembleia Geral Extraordinária, Relação final Ecclesia sub verbo Dei mysteria Christi celebrans pro salute mundi (7 de Dezembro de 1985), II-A, 4: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa, 22 de Dezembro de 1985), 6.
(75) Sínodo dos Bispos - IX Assembleia Geral Ordinária, Mensagem do Sínodo (27 de Outubro de 1994), IX: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 5 de Novembro de 1994), 3.
(76) Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II 184,5, ad 2um; II-II 186,2, ad 1um.


Fidelidade ao carisma

36 No seguimento de Cristo e no amor pela sua Pessoa, existem alguns pontos referentes ao crescimento da santidade na vida consagrada, que actualmente merecem ser colocados em particular evidência.

Antes de mais, exige-se a fidelidade ao carisma de fundação e sucessivo património espiritual de cada Instituto. Precisamente nessa fidelidade à inspiração dos fundadores e fundadoras, dom do Espírito Santo, se descobrem mais facilmente e se revivem com maior fervor os elementos essenciais da vida consagrada.

Na verdade, cada carisma tem, na sua origem, um tríplice encaminhamento: primeiro, encaminhamento para o Pai , no desejo de procurar filialmente a sua vontade através de um processo contínuo de conversão, no qual a obediência é fonte de verdadeira liberdade, a castidade exprime a tensão de um coração insatisfeito com todo o amor finito, a pobreza alimenta aquela fome e sede de justiça que Deus prometeu saciar (cf.
Mt 5,6). Nesta perspectiva, o carisma de cada Instituto impelirá a pessoa consagrada a ser toda de Deus, a falar com Deus ou de Deus — como se diz de S. Domingos (77)—, para saborear como o Senhor é bom (cf. Ps 34,9 /33,9), em todas as situações.

Os carismas de vida consagrada implicam também um encaminhamento para o Filho, com quem induzem a cultivar uma íntima e feliz comunhão de vida, na escola do seu serviço generoso a Deus e aos irmãos. Deste modo, « o olhar, progressivamente cristificado, aprende a separar-se da exterioridade, do turbilhão dos sentidos, isto é, de tudo aquilo que impede ao homem aquela suave disponibilidade a deixar-se agarrar pelo Espírito » (78), e permite assim partir em missão com Cristo, trabalhando e sofrendo com Ele na difusão do seu Reino.

Todo o carisma comporta, enfim, um encaminhamento para o Espírito Santo, enquanto dispõe a pessoa a deixar-se guiar e sustentar por Ele, tanto no próprio caminho espiritual como na vida de comunhão e na acção apostólica, para viver naquela atitude de serviço que deve inspirar toda a opção de um autêntico cristão.

Com efeito, é sempre esta tríplice relação que transparece em cada carisma de fundação, naturalmente com os traços específicos dos vários modelos de vida, precisamente pelo facto de predominar naquele « um profundo ardor do espírito de se configurar com Cristo, para testemunhar algum aspecto do seu mistério » (79), aspecto esse que se há-de encarnar e desenvolver na mais genuína tradição do Instituto, segundo as Regras, as Constituições e os Estatutos (80).

(77) Cf. Libellus de principiis Ordinis Praedicatorum. Acta canonizationis Sancti Dominici: Monumenta Ordinis Praedicatorum historica, 16 (1935), 30.
(78) João Paulo II, Carta ap. Orientale lumen (2 de Maio de 1995), 12: AAS 87 (1995), 758.
(79) Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares e Congregação para os Bispos, Directrizes para as relações entre os Bispos e os Religiosos na Igreja Mutuae relationes (14 de Maio de 1978), 51: AAS 70 (1978), 500.
(80) Cf. propositio 26.


Fidelidade criativa

37 Deste modo, os Institutos são convidados a repropor corajosamente o espírito de iniciativa, a criatividade e a santidade dos fundadores e fundadoras, como resposta aos sinais dos tempos visíveis no mundo de hoje (81). Este convite é, primariamente, um apelo à perseverança no caminho da santidade, através das dificuldades materiais e espirituais que marcam as vicissitudes diárias. Mas é, também, um apelo a conseguir a competência no próprio trabalho e a cultivar uma fidelidade dinâmica à própria missão, adaptando, quando for necessário, as suas formas às novas situações e às várias necessidades, com plena docilidade à inspiração divina e ao discernimento eclesial. Contudo, há que manter viva a convicção de que a garantia de toda a renovação, que pretenda permanecer fiel à inspiração originária, está na busca de uma conformidade cada vez mais plena com o Senhor (82).

Neste espírito, torna-se hoje premente em cada Instituto a necessidade de um renovado referimento à Regra, pois, nela e nas Constituições, se encerra um itinerário de seguimento, qualificado por um carisma específico e autenticado pela Igreja. Uma maior consideração pela Regra não deixará de proporcionar às pessoas consagradas um critério seguro para procurar as formas adequadas para um testemunho capaz de responder às exigências actuais, sem se afastar da inspiração inicial.

(81) Cf. propositio 27.
(82) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis,
PC 2.


Oração e ascese: o combate espiritual

38 A vocação à santidade só pode ser acolhida e cultivada no silêncio da adoração na presença da transcendência infinita de Deus: « Devemos confessar que todos precisamos deste silêncio repleto de presença adoradora: a teologia, para poder valorizar plenamente a própria alma sapiencial e espiritual; a oração, para que nunca esqueça que ver Deus significa descer do monte com um rosto tão radiante ao ponto de sermos obrigados a cobri-lo com um véu (cf. Ex 34,33) [...]; o compromisso, para renunciar a fechar-se numa luta sem amor e perdão. [...] Todos, crentes e não crentes, precisam de aprender um silêncio que permita ao Outro falar, quando e como quiser, e a nós compreender esta palavra » (83). Isto exige, concretamente, uma grande fidelidade à oração litúrgica e pessoal, aos tempos dedicados à oração mental e à contemplação, à adoração eucarística, às recolecções mensais e aos retiros espirituais.

É preciso redescobrir também os meios ascéticos , típicos da tradição espiritual da Igreja e do próprio Instituto. Eles foram, e continuam a sê-lo, um auxílio poderoso para um autêntico caminho de santidade. Ajudando a dominar e a corrigir as tendências da natureza humana ferida pelo pecado, a ascese é verdadeiramente indispensável para a pessoa consagrada permanecer fiel à própria vocação e seguir Jesus pelo caminho da Cruz.

Também se torna necessário identificar e vencer algumas tentações que às vezes se apresentam, por insídia diabólica, sob a falsa aparência de bem. Assim, por exemplo, a exigência legítima de conhecer a sociedade actual, para responder aos seus desafios, pode induzir a ceder a modas efémeras, com a diminuição do fervor espiritual ou com atitudes de desânimo. A possibilidade de uma formação espiritual mais elevada poderá levar as pessoas consagradas a um certo sentimento de superioridade relativamente aos outros fiéis, enquanto a urgência de uma legítima e indispensável habilitação se pode transformar numa busca exacerbada de eficiência como se o serviço apostólico dependesse prevalentemente dos meios humanos, e não de Deus. O desejo louvável de solidarizar-se com os homens e mulheres do nosso tempo, crentes e não crentes, pobres e ricos, pode levar à adopção de um estilo de vida secularizado ou a uma promoção dos valores humanos em sentido puramente horizontal. A partilha das instâncias legítimas da própria nação ou cultura poderá induzir a abraçar formas de nacionalismo ou a acolher elementos da tradição, que, ao contrário, precisam de ser purificados e elevados à luz do Evangelho.

O caminho que conduz à santidade comporta, pois, a adopção do combate espiritual. É um dado exigente, ao qual hoje nem sempre se dedica a necessária atenção. Muitas vezes a tradição viu representado este combate espiritual na luta de Jacob a contas com o mistério de Deus, que ele afronta para ter acesso à sua bênção e à sua visão (cf. Gn 32,23-31). Neste episódio dos primórdios da história bíblica, as pessoas consagradas podem ler o símbolo do empenhamento ascético de que têm necessidade para dilatar o coração e abri-lo ao acolhimento do Senhor e dos irmãos.

(83) João Paulo II, Carta ap. Orientale lumen (2 de Maio de 1995), 12: AAS 87 (1995), 762.


Promover a santidade

39 Um renovado empenho de santidade das pessoas consagradas é hoje mais necessário do que nunca para favorecer e apoiar a tensão de todo o cristão para a perfeição . « É necessário, por conseguinte, suscitar em cada fiel um verdadeiro anseio de santidade, um forte desejo de conversão e renovamento pessoal num clima de oração cada vez mais intensa e de solidário acolhimento do próximo, especialmente do mais necessitado » (84).

As pessoas consagradas, na medida em que aprofundam a sua própria amizade com Deus, ficam em condições de ajudar os irmãos e irmãs com válidas iniciativas espirituais, como escolas de oração, retiros e recolecções espirituais, jornadas de deserto, escuta e direcção espiritual. Deste modo, é facilitado o progresso na oração a pessoas que poderão, depois, realizar um melhor discernimento da vontade de Deus sobre elas próprias, e decidir-se por opções corajosas, às vezes heróicas, exigidas pela fé. De facto, as pessoas consagradas, « pelo mais profundo do seu ser, situam-se no dinamismo da Igreja, sequiosa do Absoluto, que é Deus, e chamada à santidade. É desta santidade que dão testemunho » (85).O facto de todos serem chamados a tornar-se santos, não pode senão estimular ainda mais aqueles que, pela própria opção de vida que fizeram, têm a missão de o recordar aos outros.

(84) João Paulo II, Carta ap. Tertio millenio adveniente (10 de Novembro de 1994),
TMA 42: AAS 87 (1995), 32.
(85) Paulo VI, Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), EN 69: AAS 68 (1976), 58.


« Levantai-vos e não tenhais medo »: uma renovada confiança

40 « Aproximando-Se deles, Jesus tocou-lhes, dizendo: “Levantai-vos e não tenhais medo” » (Mt 17,7). Como os três apóstolos no episódio da Transfiguração, as pessoas consagradas sabem por experiência que a sua vida nem sempre é iluminada por aquele fervor sensível que faz exclamar: « É bom estarmos aqui » (Mt 17,4). Porém, é sempre uma vida « tocada » pela mão de Cristo, abrangida pela sua voz, sustentada pela sua graça.

« Levantai-vos e não tenhais medo ». Este encorajamento do Mestre é dirigido obviamente a todo o cristão. Mas, por maior força de razão, vale para quem foi chamado a « deixar tudo » e, portanto, a « arriscar tudo » por Cristo. Isto vale, de modo particular, quando, com o Mestre, se desce do « monte » para tomar a estrada que do Tabor leva ao Calvário.

Ao referir que Moisés e Elias falavam com Cristo do seu mistério pascal, Lucas significativamente usa o termo « partida » [éxodos ]: « falavam da sua partida que iria consumar-se em Jerusalém» (Lc 9,31). « Êxodo »: palavra fundamental da revelação à qual toda a história da salvação faz referência e que exprime o sentido profundo do mistério pascal. Tema particularmente grato à espiritualidade da vida consagrada e que manifesta bem o seu significado. Nele, está inevitavelmente incluído o que pertence ao mysterium Crucis.Mas este difícil « caminho exodal », visto da perspectiva do Tabor, aparece colocado entre duas luzes: a luz preanunciadora da Transfiguração e a luz definitiva da Ressurreição.

A vocação à vida consagrada — no horizonte de toda a vida cristã —, não obstante as suas renúncias e provas, antes em virtude delas, é um caminho « de luz », sobre o qual vela o olhar do Redentor: « Levantai-vos e não tenhais medo ».



CAPÍTULO II

SIGNUM FRATERNITATIS

A VIDA CONSAGRADA, SINAL DE COMUNHÃO NA IGREJA



I. VALORES PERMANENTES


À imagem da Trindade

41 Durante a sua vida terrena, o Senhor Jesus chamou aqueles que quis, para andarem com Ele e ensiná-los a viver, segundo o seu exemplo, para o Pai e para a missão d'Ele recebida (cf. Mc 3,13-15). Inaugurava assim aquela nova família da qual haveriam de fazer parte, ao longo dos séculos, quantos estivessem prontos a « cumprir a vontade de Deus » (cf. Mc 3,32-35). Depois da Ascensão, mercê do dom do Espírito, constituiu-se ao redor dos Apóstolos uma comunidade fraterna, unida no louvor de Deus e por uma concreta experiência de comunhão (cf. Ac 2,42-47 Ac 4,32-35). A vida dessa comunidade e mais ainda a experiência de plena partilha com Cristo, vivida pelos Doze, foram constantemente o modelo em que a Igreja se inspirou, quando quis reviver o fervor das origens e retomar, com novo vigor evangélico, o seu caminho na história (86).

Na realidade, a Igreja é essencialmente um mistério de comunhão , « um povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo » (87). A vida fraterna intenta reflectir a profundidade e a riqueza desse mistério, apresentando-se como um espaço humano habitado pela Trindade, que difunde assim na história os dons da comunhão próprios das três Pessoas divinas. Na vida eclesial, são muitos os âmbitos e as modalidades em que se exprime a comunhão fraterna. À vida consagrada pertence seguramente o mérito de ter contribuído eficazmente para manter viva na Igreja a exigência da fraternidade como confissão da Trindade. Com a incessante promoção do amor fraterno, mesmo sob a forma de vida comum, a vida consagrada revelou que a participação na comunhão trinitária pode mudar as relações humanas , criando um novo tipo de solidariedade. Deste modo, ela aponta aos homens quer a sublimidade da comunhão fraterna, quer os caminhos concretos que a esta conduzem. De facto, as pessoas consagradas vivem « para » Deus e « de » Deus, e por isso mesmo podem confessar a força da acção reconciliadora da graça, que abate os dinamismos desagregadores presentes no coração do homem e nas relações sociais.

(86) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis, PC 15; S. Agostinho, Regula ad servos Dei, 1,1: PL 32, 1372.
(87) S. Cipriano, De oratione Dominica, 23: PL 4, 553; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 4.


Vida fraterna no amor

42 A vida fraterna, concebida como vida partilhada no amor, é sinal eloquente da comunhão eclesial. Com particular cuidado, é cultivada pelos Institutos religiosos e pelas Sociedades de Vida Apostólica, onde adquire especial significado a vida em comunidade (88). Mas a dimensão da comunhão fraterna está presente também nos Institutos seculares e mesmo nas formas individuais de vida consagrada. Os eremitas, na profundidade da sua solidão, não se subtraem à comunhão eclesial, antes pelo contrário servem-na com o seu específico carisma contemplativo; as virgens consagradas, no século, realizam a sua consagração numa especial relação de comunhão com a Igreja particular e universal. E de modo semelhante, as viúvas e os viúvos consagrados.

Todas estas pessoas, no cumprimento do discipulado evangélico, se empenham a viver o « mandamento novo » do Senhor, amando-se umas às outras como Ele nos amou (cf.
Jn 13,34). O amor levou Cristo a fazer-Se dom até ao sacrifício supremo da Cruz. Também entre os seus discípulos não há unidade verdadeira sem este amor recíproco e incondicional, que exige disponibilidade para o serviço sem regatear energias, prontidão no acolhimento do outro tal como é, sem « o julgar » (cf. Mt 7,1-2), capacidade de perdoar inclusive « setenta vezes sete » (Mt 18,22). Para as pessoas consagradas, feitas « um só coração e uma só alma » (Ac 4,32) por este amor derramado nos corações pelo Espírito Santo (cf. Rm 5,5), torna-se uma exigência interior o colocar tudo em comum: bens materiais e experiências espirituais, talentos e inspirações, como também ideais apostólicos e serviço caritativo: « Na vida comunitária, a energia do Espírito que existe numa pessoa, passa contemporaneamente a todos. Nela, não só se usufrui do dom próprio, mas este é multiplicado quando se participa aos outros, e goza-se tanto do fruto do dom alheio como do próprio » (89).

Na vida de comunidade, também se deve tornar de algum modo palpável que a comunhão fraterna, antes de ser instrumento para uma determinada missão, é espaço teologal, onde se pode experimentar a presença mística do Senhor ressuscitado (cf. Mt 18,20) (90). Isto verifica-se graças ao amor recíproco de quantos compõem a comunidade: um amor alimentado pela Palavra e pela Eucaristia, purificado no sacramento da Reconciliação, sustentado pela invocação da unidade, especial dom do Espírito para aqueles que se colocam numa escuta obediente do Evangelho. É precisamente Ele, o Espírito, que introduz a alma na comunhão com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo (cf. 1Jn 1,3), comunhão essa que é a fonte da vida fraterna. É pelo Espírito que as comunidades de vida consagrada são guiadas no cumprimento da sua missão ao serviço da Igreja e da humanidade inteira, segundo a respectiva inspiração originária.

Nesta perspectiva, assumem particular importância os « Capítulos » (ou reuniões análogas), tanto particulares como gerais, onde cada Instituto é chamado a eleger os Superiores ou Superioras, segundo as normas estabelecidas pelas respectivas Constituições, e a discernir, à luz do Espírito, as modalidades adequadas para proteger e renovar, nas diversas situações históricas e culturais, o próprio carisma e património espiritual (91).

(88) Cf. propositio 20.
(89) S. Basílio, As regras maiores, q. 7: PG 31, 931.
(90) S. Basílio, As regras mais breves, q. 225: PG 31, 1231.
(91) Cf. Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares, Instr. « Elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre a vida religiosa aplicados aos Institutos consagrados ao apostolado » (31 de Maio de 1983), 51: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa: 28 de Agosto de 1983), 6; Código de Direito Canónico, cân. CIC 631, § 1; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân CIO 512, § 1.



Vita consecrata PT 31