MONAQUISMO
Autor:
Maria Ester Vargas
INTRODUÇÃO
O objecto do
presente estudo é o monaquismo, que constitui o
grande alicerce para a expansão do Cristianismo à escala mundial. Não é nosso
propósito desenvolver este tema relativamente ao período do seu grande apogeu -
Idade Média -, mas sim referir-nos às suas origens e seus antecedentes, de modo
a podermos compreender melhor como se chegou a um período tão áureo na vida
monacal medieval. Debruçar-nos-emos, pois, sobre o tempo em que o Monaquismo nasceu, à margem da Igreja
oficial, que tinha dificuldade em reconhecer o valor e a utilidade que
os mosteiros poderiam ter na expansão e afirmação do ideal Cristão,1 por
suspeitar que eles espalhavam doutrinas duvidosas, para depois ir ganhando
terreno no seu seio, transformando-se num meio imprescindível na afirmação da
doutrina de Cristo.
Focaremos, igualmente, a evolução e o percurso
do monaquismo, primeiro no Médio Oriente, seguindo-se
o Norte de África e, finalmente, a Europa Central e Ocidental. Tentaremos demonstrar
a importância e o contributo das principais Regras
que ajudaram a fornecer bases bem precisas para "uma vida monástica mais
consistente"2.
Em capítulo detalhado, desenvolveremos com
maior pormenor a questão do monaquismo nas Ilhas
Britânicas, com especial relevo para o monaquismo celta, que teve
características próprias e bem definidas.
Tentaremos demonstrar que a Cristianização das
Ilhas Britânicas não foi um processo pacífico, e que a uma determinada altura
estabeleceu o caos e a confusão, devido à coexistência de várias correntes da
vida monástica: a Celta e a de Roma.
Deter-nos-emos no Sínodo da Whitby
(673), do qual resultou "a unificação religiosa da Inglaterra sob a
orientação de Roma"3, embora tenham persistido
ainda alguns redutos do Monaquismo Celta, sobretudo
na Irlanda.
Escolhemos este facto
por considerarmos que ele culmina um período bem demarcado do Monaquismo Ocidental - o seu nascimento e implantação, que
será fundamental para o período de grande apogeu da vida dos mosteiros que se
lhe seguiu e que, inclusivamente, originou a criação e a difusão de novas
ordens monásticas.
Quanto à metodologia de trabalho utilizada, a
mesma teve por base bibliografia variada e que é indicada em secção própria, de
modo a possibilitar o confronto de ideais e a superação de lacunas que uma
visão unilateral obrigatoriamente teria.
Esperamos que o nosso estudo ajude a uma
reflexão e a uma sistematização sobre a maneira que os homens encontraram de
chegar a Deus, tentando atingir a perfeição, meditando, alheando-se das coisas
terrenas através da oração, humildade e obediência. A esse modo de vida
religiosa se chamou MONAQUISMO.
CONCEITO DE MONAQUISMO
Ao depararmos com o temo Monaquismo, de imediato nos surge a ideia
de isolamento e de alheamento do mundo. Com efeito, o Monaquismo
é um sistema de vida de consagração à causa divina, que tenta chegar a Deus
passando pelo recolhimento e uma vida de dedicação e interiorização.
A esta palavra associa-se uma
outra - monge -, que deriva do grego monos, (único, só).
Etimologicamente, designa aquele que vive solitário, dedicando a sua vida ao
serviço de Deus, dedicação essa assumida livremente e que pressupõe o
cumprimento das normas estabelecidas numa Regra, baseando-se sempre nos
conceitos de castidade, pobreza e obediência.
Embora tenha assumido formas diferentes, como
iremos verificar, o que é certo é que o Monaquismo
tem sido uma constante na vida de várias religiões, à partida
completamente díspares (ex: Monaquismo Budista
versus Monaquismo Cristão), revelando-se acima de
tudo como "algo universal e inerente à condição dos fiéis que pretendem
desenvolver a sua vida espiritual no sentido da perfeição"4.
ORIGENS DO MONAQUISMO CRISTÃO
Desde os primórdios da Cristandade que os
ideais livremente assumidos de virgindade e castidade em louvor do Reino de
Deus foram motivo de admiração. Essa escolha era feita "por fiéis de ambos
os sexos que abraçaram uma vida de plena imitação de Cristo e que, para além
dos votos referidos, praticavam a oração e a mortificação paralelamente com
obras de misericórdia"5.
Como causas deste procedimento, poderemos
referir a "repugnância pela imoralidade reinante"6
e, sobretudo para as mulheres, o facto de esse tipo
de vida lhes proporcionar uma certa emancipação, tendo em conta a servidão
social que o matrimónio assumiia
na época.
É curioso realçar o facto
de, na maior parte dos casos, estes votos serem feitos sem quaisquer
solenidades públicas, permanecendo as pessoas no seio das suas famílias, não
tendo vestuário que os distinguisse das outras pessoas.
A partir do século IV começou a ser habitual a
realização de um ritual de consagração das virgens, - o velario
-7 que costumava ter lugar nas grandes festas litúrgicas e na presença de
fiéis.
Este tipo de consagração a Deus foi-se
generalizando cada vez mais, tornando-se quase numa moda, sobretudo nos meios
aristocráticos. A ilustrar esta afirmação, poderemos citar o exemplo de Paulino
de Nola e Terásia, casal da
nobreza imperial romano-cristã, que "se desfizeram de patrimónios
imensos e assumiram uma existência de fiéis discípulos de Cristo, segundo os
ensinamentos do Evangelho"8. Importante se torna
referir aqui a figura de São Jerónimo, que dirigiu
espiritualmente os círculos ascéticos de nobres senhoras romanas, primeiro em
Roma e depois na Palestina9.
As "virgens consagradas" terão sido,
na nossa opinião, o embrião da vida monástica, uma vez que a sua praxis tinha a ver com a renúncia do mundo pelo ideal de
Cristo, para além do facto de já possuírem uma forma
de vida consagrada, ainda que muito incipiente.
MONAQUISMO ORIENTAL
Mas onde, e quando, terá sido a origem do fenómeno normalmente designado por Monaquismo,
ou Monacato, se utilizarmos a terminologia de Fortunado
de Almeida10?
Ao certo, não se sabe. É comum designar-se
monge aquele que segue uma Regra antiga, mas o que é certo é que, muito antes
de se terem estabelecido Regras, já havia formas de vida monástica baseadas na
segregação do mundo - o contemptus saeculi -, como condição prévia para a purificação
interior, abrindo o caminho da contemplação divina11.
João Cassiano, que depois de passar muitos anos
entre os monges da Palestina, Egipto e Constantinopla
se estabeleceu na Provença e fundou dois mosteiros em Marselha, onde permaneceu
o resto da sua vida, considerava que o Monaquismo já
vinha do tempo dos Apóstolos12. Outros apontam para a
época de Jesus. J. Allegro, no seu livro O Mito Cristão e os Manuscritos do Mar Morto aponta
para o estudo dos documentos encontrados já neste século nas margens do Mar
Morto e que dão testemunho da vida monástica (essénios
e terapeutas) na época de Jesus Cristo, e que teriam influenciado os primeiros
Cristãos. Estas comunidades espalharam-se até à Tebaida e parece ter sido nessa região - fronteira entre a
Ásia e a África -, que a tradição diz ter nascido o Monaquismo
Cristão13.
Com a promulgação da liberdade de culto e
religião decretada pelo Édito de Milão de Constantino, ser Cristão passou a não
comportar os riscos de outrora,
Alguns, desejando levar uma vida mais
fervorosa, menos enredada nas preocupações do mundo, partiram para o deserto
praticando aí uma vida de pobreza e humildade de acordo com os preceitos do
Evangelho, tendo sido designados por Padres do Deserto.
A maior parte vivia isolada, por vezes com
alguns discípulos à volta de um mestre, só voltando a encontrar-se com a
comunidade para a celebração da liturgia. Muito pouco se sabe sobre a sua vida,
que apenas veio até nós através dos Apotegmas -
textos que nos relatam os seus actos através das suas
palavras e que nos apresentam homens submetidos à tentação que se dedicam a
viver o ideal de perfeição ensinado por Jesus14.
Como expoente e símbolo deste tipo de vida
monástica apelidada de anacoreta ou eremita, temos Santo António do Egipto, também conhecido por Santo Antão, que influenciou directamente através do seu próprio exemplo, e indirectamente através do espírito, um grande número de
aderentes ao anacoretismo, o qual se revestia de duas
formas: absoluto, (solidão total) e temperado (sob a direcção
de um "pai" espiritual)15.
Graças à sua acção,
esta forma de Monaquismo espalhou-se pelo alto Egipto, Palestina, indo até à Síria e à Mesopotâmia.
Mas o anacoretismo
não foi a única forma de vida consagrada existente
nesta época.
São Pacómio, coevo de Santo António do Egipto,
trouxe ao Monaquismo novos elementos de grande
importância - a vida em comum e a obediência a um superior religioso: cenobitismo16.
Ainda uma referência muito especial para o
Cristianismo Copta que, de certa forma, foi uma consequência
do Monaquismo Egípcio19.
Graças à sua acção, O Cristianismo penetrou
amplamente nas populações de camponeses de língua copta, principalmente porque
os monges eram na sua maioria gente de condição humilde. Desde os tempos de São
Atanásio, eram apoiantes acérrimos dos Patriarcas de
Alexandria, a quem apelidavam de chefes religiosos e nacionais. Após o Concílio
de Calcedónia (451), os monges, desconhecedores das
disputas teológicas, seguiram incondicionalmente os seus patriarcas e caíram na
heresia monofisista, surgindo assim outra corrente Cristã
desvinculada de Roma e de Constantinopla que se foi isolando cada vez mais,
sobretudo desde a conquista islâmica do século VII, passando a ser
conhecida por Cristianismo Copta20.
MONAQUISMO OCIDENTAL
Herdeiro das tradições orientais, o Monaquismo Ocidental teve um papel de extrema importância
na consolidação do ideal cristão.
Na Grécia, foi São Basílio, bispo de Cesareia, quem desenvolveu e organizou a vida dos ascetas,
tendo escrito algumas "Regras", que ainda hoje são observadas no
mundo ortodoxo.
Aliás, a fundação de mosteiros no Ocidente está
sempre ligada à elaboração de um conjunto de normas orientadoras na organização
dos Institutos de Vida Consagrada, utilizando a terminologia do actual Código do Direito Canónico.
Santo Agostinho de Hipona
foi outro nome deste período, escrevendo, igualmente, uma Regra que viria a
obter grande sucesso na Idade Média. São Martinho de Tours
notabilizou-se também, através da fundação de
mosteiros, entre os quais se salientam os de Ligugé e
Marmoutier. Referência ainda para os nomes de Columba e Patrício, grandes impulsionadores do monaquismo celta.
Primordial se torna falar de São Bento de Núrsia - "last but not least"
-, cuja Regra iria reger durante vários séculos quase
todos os mosteiros do Ocidente, tornando-se numa grande personagem, senão
maior, entre aqueles que fundaram mosteiros e escreveram Regras, sendo
justamente chamado "Pai dos Monges do Ocidente"21
e designado Patrono da Europa.
Para além de se basear nas suas próprias
experiências recolhidas nos mosteiros que fundou e onde viveu (Subiaco e Montecassino), a sua
Regra, estabelecida em meados do sec. VI, inspirou-se
nas que então se praticavam: as de Pacómio, Agostinho
e Cassiano.
Contudo, segundo Souther,
R.W., no seu livro A Igreja Medieval, "parece hoje indiscutível que São
Bento copiou quase literalmente grande parte da sua Regra, incluindo algumas
das passagens mais famosas acerca do ensino espiritual, da Regra de um autor
anterior conhecido como Mestre"22. De acordo com
a fonte citada, as duas Regras apresentam no entanto algumas diferenças, entre
as quais se salientam:
REGRA DO MESTRE
REGRA DE SÃO BENTO
- muitas generalidades, com pouca prática;
longas descrições da vida no Paraíso e de natureza monástica.
- aspectos demasiado particularizados para
serem significativos:
Regulamentação acerca do tossir, cuspir e
respirar pelo nariz por forma a não ofender os anjos.
- revela espírito impetuoso e investigador do
Mestre.
- o Abade parecia preocupar-se mais com os que
se fingiam doentes.
- a obediência absoluta era uma virtude apenas
alcançável por uns quantos monges perfeitos.
- omitiu-se tudo isto, conservando apenas
o que tinha interesse prático, resumindo tudo o mais possível e conferindo-lhe
claridade.
- deu grande ênfase à rotina exacta dos ofícios diários.
- prova-se a humildade que exigia aos próprios
monges.
- o abade destinava-se acima de tudo a cuidar
dos doentes.
- a obediência absoluta era uma virtude
alcançável por todos os bem-aventurados.
Mas como e porque é que esta Regra se tornou o
expoente máximo do Monaquismo Ocidental?
Em nosso entender, isso ficou a dever-se ao facto de a Regra fornecer bases concretas e precisas para uma
vida monástica, conservando, todavia, uma certa flexibilidade, pretendendo
indicar um caminho para uma nova ordem e incluindo pormenores de vida diária,
indicações sobre os salmos a recitar, quais os livros a ler e sobre as pessoas
responsáveis pelas várias actividades, entre outros
aspectos da vida dos monges. Sendo abrangente, a Regra de São Bento tem como
princípio base da sua doutrina o ideal de obediência de corpo e alma:
- aos princípios espirituais contidos nos
Evangelhos;
- à Regra;
- ao abade;
"Aqueles que cumprem, devem, pelo trabalho
de obediência, regressar a Deus, que abandonaram devido ao pecado da
desobediência"23.
A figura do abade tem grande peso na ordem
beneditina, considerado o vigário de Cristo na Comunidade. Logo, a sua palavra
tem que ser ouvida como se fosse a do próprio Deus. O abade vai ter na Regra
beneditina um papel de consolador e encorajador, sobretudo relativamente aos
que incorrem na pena de excomunhão por cauda da desobediência24.
Aliás, esta ternura tão pouco habitual em regras anteriores, vai ser uma das
principais características da Ordem, conferindo-lhe um sentido universal,
destinada a todos os homens da Terra, misturando severidade e rigor com
ternura, apoio e compreensão.
A Regra de São Bento ajudou a diluir a ideia defendida no início do séc. VI, e suportada por Santo
Agostinho, segundo a qual era difícil que um bom monge se tornasse um bom
clérigo. "No one
can both perform ecclesiastical (clerical) duties and remain by due order under
monastic rule"25.
Com efeito, a Regra possibilitou a evolução e
preparação dos monges, que inicialmente eram analfabetos na sua maioria, não
tendo formação adequada para exercerem funções de presbíteros. A insistência
numa vida em comunidade fechada - a estabilidade era um dos princípios bases da
Regra-, produzia um tipo de monge mais civilizado que podia ser aproveitado
para o clero secular após uma preparação adequada.
Quando São Bento
faleceu, apenas três mosteiros abservavam as suas
prescrições e trinta anos mais tarde o próprio mosteiro de Montecassino
era destruído pelos Lombardos.
Ao ser eleito Papa, Gregório Grande, antigo
monge beneditino, encarregou-se de propagar a Regra da sua Ordem tendo em mente
dois objectivos bem definidos26:
1. favorecer o monaquismo,
na medida em que era melhor para a expansão do Cristianismo;
2. desenvolver uma legislação unificada sobre a
qual poderia exercer maior controle.
No final do seu pontificado já uma grande rede
de mosteiros beneditinos cobria a Europa, entre os quais se salientaram as
abadias de Jarrow, Malmesbury
e Westminster, na Inglaterra, bem como as fundações
antigas reconvertidas de Lérins
e Marmoutier.
Gradualmente, e com o grande incremento dado
por Gregório o Grande, o ideal beneditino foi-se espalhando e alicerçando tendo
absorvido até a Regra de Columba, na Irlanda.
A Península Ibérica foi também influenciada
pela corrente monástica que então se vivia na Europa.
De imediato ressaltam dois nomes: São Martinho
de Dume, que na segunda metade do séc. VI trouxe à Galécia a doutrina do Monaquismo Oriental; de São Frutuoso de Braga, monge
visigodo propulsor de um movimento ascético que sobreviveu à invasão islâmica,
tendo composto uma Regra para monges e que mais tarde originou uma Regra
comum.27.
No reino visigodo cristão
vários Padres Hispânicos elaboraram Regras. Entre eles, salientaram-se
São Leandro, com uma Regra para Virgens, dedicada a sua irmã Florentina, e
Santo Isidoro, cuja Regra se destinou ao mosteiro Honorianense,
na Bética.
A vida monástica na Hispânia
estava subordinada aos prelados diocesanos-bispos, que tinham o direito não só
de escolher o abade dos mosteiros mas também o de corrigir os excessos
cometidos contra a Regra.
Este facto demarcou o
monaquismo da Espanha goda
do ideal beneditino, que impunha que o abade fosse eleito pela Congregação
tendo a partir desse momento papel soberano sobre toda a comunidade.
No que se refere à província da Lusitânia, um
dos seus mosteiros mais antigos foi o do Lorvão,
segundo Fortunato de Almeida28, sendo provável que a
sua fundação date de meados do séc. VI e que, a par dos mosteiros de Dume e de São Martinho de Tibães,
constitui um marco importante da vida monástica em território que
posteriormente viria a ser Portugal29.
O MONAQUISMO NAS ILHAS BRITÂNICAS
A corrente monástica nas Ilhas Britânicas e, em
especial, na Irlanda revestiu-se de características muito próprias que a
demarcaram relativamente a outras regiões.
Com efeito, quando o Cristianismo espalhava a
sua influência em ambas as margens do Mediterrâneo, a Inglaterra encontrava-se
ainda sob o domínio de Roma. A lenda e a tradição falam das viagens à Bretanha
(hoje Grã-Bretanha) de Paulo, Filipe e José de Arimateia,
bem como da fundação cristã em Glastonbury. Contudo, tudo
isto não passa de uma mera hipótese, à qual se vem juntar a ideia
de que até mesmo entre os romanos, que se encontravam na Bretanha durante o
período de ocupação, alguns podiam ter ouvido e aceitado a mensagem do Cristianismo30. A primeira menção a cristãos na
Grã-Bretanha aparece no Tratado contra os Judeus (202), de Tertuliano,
no qual se faz referência a zonas da Bretanha inacessíveis aos Romanos, mas
onde já vigoravam os ensinamentos de Cristo.
Em 314, por ocasião do Concílio de Arles, três bispos representaram a Bretanha, o que denota
já um avanço considerável da Igreja numa base diocesana. Anos mais tarde, em
359, alguns bispos britânicos estiveram presentes num dos maiores concílios da
Igreja - o de Rimini, ainda que com uma fraca
representação.
Com excepção para
Santo Albano, que no dizer do Venerável Bede, é o
primeiro cristão digno de registo na Bretanha, é a
partir do séc. V que passa a ser possível distinguir as grandes personalidades
no processo de cristianização das Ilhas Britânicas, e em especial da Irlanda. São Patrício surge então como responsável pela chamada
"conversão da Irlanda", sendo reconhecido como herói nacional.
Considerada uma ilha bárbara, a Irlanda nunca se integrou no Orbis Romanus31. São Jerónimo referia-se aos seus habitantes em termos pouco
lisonjeiros e o espírito irlandês sempre se manifestou de um
modo muito particular, envolto numa auréola de mistério e magia.
Tendo passado alguns anos da sua juventude
nesta ilha, para onde tinha sido levado como escravo aos quinze anos, Patrício
ficou sempre marcado pelo povo irlandês. Conseguiu escapar ao seu cativeiro e
refugiou-se na Gália, onde entrou em contacto com o movimento monástico em Lérins, sob a jurisdição de São Martinho de Tours. Após ter sido sagrado bispo em Roma, regressou à sua
amada Irlanda, ouvindo e correspondendo ao "chamado das crianças que ainda
não tinham nascido"32. Fixando residência em Armagh, Patrício passou o resto da sua vida a lutar contra
o paganismo das tribos irlandesas convertendo pessoas, baptizando
e ordenando membros do clero. O seu objectivo era
bastante ambicioso, pois pretendia implantar na Irlanda o sistema diocesano que
tinha visto na Gália, o que não era fácil, dada a inexistência de muitas
cidades que pudessem ser centros de governo, para além do facto
de Patrício ter de "combater" a grande influência das escolas de
bardos que proliferavam na ilha. O seu grande esforço missionário foi de tal
ordem que conseguiu converter a Irlanda sem choques nem violências servindo-se
do jogo de concorrência com os antagonistas e da manifestação de um poder
espiritual superior33. Tal facto
foi de importância capital não só para a ilha em causa, mas também para todo o
Cristianismo, pois realçou e provou o seu carácter de
universalidade, dado que se mostrou passível de adaptação a formas de culturas
diferenciadas, dando-lhe uma nova vitalidade. A evolução da Igreja Irlandesa
foi tão rápida, sobretudo em relação às instituições monásticas, que pouco se
nota nela a influência secular. Aliás, consideramos ser este um ponto de
oposição entre o monaquismo celta e o europeu e um
dos seus traços mais característicos. Senão, vejamos:
MONAQUISMO EUROPEU
MONAQUISMO CELTA
- o bispo tinha a jurisdição dos mosteiros na
sua diocese.
- o bispo tinha plenos poderes.
- tinha funções administrativas.
- o abade era a entidade soberana e
muitas igrejas tinham alguns bispos entre os seus monges.
- o bispo não tinha jurisdição territorial
- o monge ascendia ao episcopado por causa da
santidade da sua vida e eram-lhe atribuídos os poderes de:
- ordenação;
- confirmação;
- não tinha funções administrativas, as quais
eram exercidas por um abade.
À medida que São Patrício
viajava, eram fundados novos mosteiros, alguns deles tão grandes que incluíam
alguns milhares de monges que aí se recolhiam com o principal objectivo de se prepararem para aumentarem o seu grupo baptizando novos monges 34. É a época do
monge missionário, traço característico do monge celta, que quer levar o
Evangelho a toda a parte, fazendo da sua vida uma
"peregrinação" por Cristo.
Quanto à existência de Regras, não se seguia
nenhuma em especial, podendo cada mosteiro adoptar a
que achasse mais conveniente. Contudo, continham todas a mesma filosofia de
base, que se apoiava numa grande rigidez para disciplinar e controlar o grande
número de pagãos recém-convertidos. A austeridade e a rigidez tornaram-se,
deste modo, numa terceira característica do monaquismo
celta, apontando para a total renúncia da vida mundana, bem como de todos os
prazeres dos sentidos, a favor de uma vida contemplativa de oração, com uma
tendência para a vida de eremita, ainda que integrada numa comunidade. Apesar
de parecer uma contradição com o que atrás referimos, não nos podemos esquecer
da influência que o monaquismo oriental exerceu no monaquismo celta. Esta questão do fomento de vida
contemplativa no seio da austeridade é ainda outro ponto distanciado entre este
tipo de monaquismo e o beneditino, mais flexível e
mais virado para a vida comunitária.
A finalidade dos dois casos era atingir a
perfeição tendo Cristo como modelo, "divergindo basicamente no modo de actuação e implementação das Regras".35
Enquanto o Cristianismo na Irlanda ia
progredindo, na Inglaterra tinha sido obrigado a retroceder devido às invasões anglo-saxónicas. Nas zonas conquistadas, o Cristianismo foi
destruído e praticamente extinto, tendo persistido apenas em zonas mais
recônditas, como as montanhas do País de Gales, para sermos fiéis ao relato de Gilda36. Tornando-se, todavia, limitado e insular, parece
não ter feito grande coisa para converter os Saxões, o que para alguns
historiadores, entre os quais se salienta Bede, foi
um aspecto negativo da situação vivida em Gales. Mesmo assim, aparece no Séc.
VI como modelo de missionarização, a par da Irlanda.
Após o falecimento de São Patrício, a vida
monástica continuou a ser uma constante na Irlanda, com o mosteiro a ser o
centro irradiador da organização e do trabalho. Segundo Southern37,
o maior mosteiro celta era o de Bangor, em Belfast Lough.
Daqui saiu São Columbano que, acompanhado por doze
companheiros, atravessou a Grã-Bretanha e a Gália, indo fundar um grande
mosteiro celta nos Vosgues. Posteriormente, fundou outros em Fontaines e nos Apeninos (Bobbio), onde passou grande parte da sua vida. A disciplina
nestes mosteiros celtas era severa, sendo obrigatório jejuar, rezar, trabalhar
e ler todos os dias.
"A monk must live under the rule of the
father and in the society of many brethren, yhat he
may learn humility from one, patience from another, silence from a third,
gentleness from a fourth. He is not to do what he likes. He is to eat what he
is told to eat, he is to have only what is given to him, he must do the work
which is set him, he must be subject to those whom he
dislikes. He must go to bed so tired that he will fall asleep on the way, and
he must rise before he has had as much sleep as he wants. When he is
ill-treated, he must be silent. He must fear the prior of his monastery as a
master and yet love him as a father: he must believe that whatever order he
gives as good"38.
Este tipo de vida austera e dura, levando o
monge a não passar o dia confinado ao claustro, é uma
das características do monaquismo celta que permite
distingui-lo do europeu continental. Aliás, já Columba,
que fundou o mosteiro de Iona numa pequena ilha do
extremo setentrional da Escócia, tinha defendido este tipo de vida monástica. Iona converteu-se num viveiro de bispos, de onde a Boa-Nova irradiou para as ilhas Orkney,
Shetland, Faeroe, e até
para a Islândia,39 tornando-se também o centro de partida para a evangelização
de zonas da Europa Central.
Daniel Rops chama a
tal facto o "milagre irlandês"40,
que consistiu numa arrancada do Cristianismo a partir de um país que acabava de
ser convertido e que em pouco tempo mostrou ser fiel ao espírito de missionarização. Segundo o autor citado, a Irlanda foi, nos
tempos obscuros do Cristianismo, como que uma segunda Palestina, como que um
novo berço de fé.
Pode-se dizer que no que se refere à
Inglaterra, o grande impulsionador da sua conversão foi São Gregório, numa fase
de instabilidade político-religiosa a que o país
estava sujeito. Na verdade, os invasores germânicos tinham estabelecido núcleos
isolados sobretudo na zona leste do país, que cerca de cinquenta
anos mais tarde se tinham reduzido a sete - heptarquia41.
A Igreja ia sobrevivendo, embora de forma precária, e o encontro de Gregório
com os jovens anglos no Forum Romano foi um"turning point
in the History of Latin Cristianity"42 . Ao
tornar-se Papa, dedicou parte do rendimento do papado a comprar rapazes da Anglia como escravos, tendo em mente a sua educação na fé
cristã e o seu posterior reenvio para a Inglaterra, já
na qualidade de embaixadores de Cristo. Assim começou a interferência da Igreja
de Roma em terras Saxónicas. Para reforçar essa
interferência, Gregório enviou um dos seus monges, Agostinho, para o convento
de Célio. Ao chegar a Kent, Agostinho teve a
agradável surpresa de ser muito bem recebido por parte do rei Ethelbert, cuja esposa, Berta, filha de um rei franco, já
era cristã. As conversões foram tão rápidas que Agostinho foi sagrado bispo na
Gália e no dia de Natal baptizou 10.000 convertidos
"in and around Canterbury"43, que se tornou
na mais antiga sede episcopal da Inglaterra.
O entusiasmo foi tão grande que Gregório
conferiu demasiada autoridade a Agostinho, passando por cima dos bispos
britânicos que tinham mantido acesa a chama do Cristianismo durante os anos em
que a Inglaterra tinha regressado ao ateísmo44.
"Nunca iremos pregar a nossa fé a essa
raça cruel de estrangeiros, que à traição nos despojaram da nossa terra
natal" - deste modo reagia o abade de Bangor ao pedido de Santo Agostinho
no sentido de praticar a caridade com os Anglos. Recusando-se então os bispos-monges celtas a cooperar com a missão de Roma e a
tentar chegar a acordos sobre assuntos que distinguiram as duas correntes:
celta e romana, "the chance of a united church in Britain was lost
for centuries45."
Será preciso então lutar, entrando-se num
período de fracassos e de êxitos, com avanços e recuos, de homens violentos e
de figuras santas, como Paulino, chefe da missão romana em Northumbria,
e Aidan, fundador de muitos mosteiros, entre os quais
se destaca o de Whitby, sob a direcção
de Hilda. Aidan deslocava-se a pé por toda a diocese
pregando, baptizando, confirmando e ordenando, sempre
acompanhado por monges e pelo próprio rei Oswaldo, que lhe servia de intérprete
numa manifestação de declarada aliança entre a Igreja e o Estado.
Como atrás referimos, as duas
correntes - celta e romana - , coexistiram nas Ilhas Britânicas, ora
conseguindo posições, ora perdendo-as num "combate" em nome de Deus e
com duas diferenças de fundo que iam desde a celebração da data da Páscoa à
tonsura, passando pelo próprio ritual ou Liturgia.
Em meados do séc. VI, punha-se a questão de
saber se a Igreja de Northumbria deveria obedecer a
Roma ou a Iona, que continuava a ser base da Igreja
Celta. Tal divergência impedia a unidade religiosa da Inglaterra.
Perante tal situação, o rei Oswaldo, de Northumbria, decidiu convocar uma reunião em Whitby em 664, com representantes das duas correntes, de
modo a tentar chegar a um possível acordo, partindo da questão há muito polémica da marcação da data da Páscoa. Tal reunião seria
de importância capital, uma vez que dela resultou a
unificação religiosa da Grã-Bretanha, subordinando-a a Roma. Esta
decisão ficou a dever-se sobretudo ao próprio rei, que, segundo Moorman46 agiu sensatamente pois, caso tivesse tomado outra
posição, a Igreja de Inglaterra teria ficado isolada e não teria acompanhado a
corrente da Igreja Católica que se espalhava pela Europa.
"The king said: Peter is the guardian of
the gates of heaven and I shall not contradict him. I shall obey to his
commands in everything to the best of my knowledge and ability; otherwise, when
I come to the gates of heaven, there may be no one to open them, because he who
holds the key has turned away."47.
A missão escocesa de Iona
cessou funções tendo os monges celtas retirado para regiões mais afastadas da
Irlanda onde continuaram ainda a defender os seus princípios.
O Sínodo de Whitby
não pôs ponto final às divergências nem tão pouco garantiu a estabilidade
religiosa imediata. Seguiu-se um período de transição, com nomes de relevo como
São Cuthbert e São Teodoro de Tarso, mas importante
foi o facto de, com o Cristianismo Romano, terem
penetrado em Inglaterra o Latim e os elementos do Direito Romano, que
libertaram o país do seu isolamento. Os mosteiros anglo-saxões serão, com
efeito, os reservatórios a partir dos quais se espalharão mais tarde os valores
culturais sobre o continente.
Por outro lado, ao conquistar esses povos
radicalmente estranhos à civilização latina, o catolicismo romano estendia para
além dos antigos limites da Europa uma nova autoridade que já nada devia ao
imperador e em que o Papa aparecia como único soberano.
Libertada de qualquer ligação com os poderes
civis, essencialmente por ser fundação directa do
Papado, a Igreja Inglesa conduzirá os seus destinos mais livremente do que as
do Continente Europeu, mantendo-se fiel à Santa Sé até ao período da Reforma.
Tudo isto, devido a esse movimento ímpar na
História ao qual se chamou MONAQUISMO.
BIBLIOGRAFIA
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Janeiro, 1969.
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Portugal (Vol. 1). Portucalense Editora, Porto, 1967.
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ROPS, Daniel A Igreja dos Tempos Bárbaros. Col. História da Igreja de Cristo, Quadrante, São Paulo,
1991.
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Lisboa, 1970.
OUTRAS PUBLICAÇÕES
"Cragside: O
Palácio Mágico Moderno", in Suplemento do Jornal de Notícias, Porto,
23.02.92.
Facts about Ireland, Department of
Foreign Affairs, Dublin, 1981, 5ª Ed.
Revista D.N. Magazine, Suplemento do Diário de
Notícias, Lisboa, 19.91.92.
______________________________________
* Equiparada a Assistente do 2º triénio da ESEV.
1 Bruno Murray, - As
Ordens Monásticas e Religiosas, Pág. 26.
2 Jean Comby, - Para
Ler a História da Igreja 1, Pág. 90.
3 John Moorman, - A History of the Chruch in England, Pág. 21.
4 Jean Canu, - Les Ordres Religieux
Masculins, Paris, Libr. Asthèmes Fayard, 1959, Pág. 10.
5 José Orlandis, -
História Breve do Cristianismo, Pág. 45.
6 Jean Combi, - Para
Ler a História de Igreja 1, Pág. 85.
7 José Orlandis, -
Historia de la Iglesia,
Pág. 112.
8 José Orlandis, - vidé nota 5, Pág. 45.
9 idem.
10 Fortunato Almeida, - História da Igreja em
Portugal, Pág. 51.
11 José Orlandis, -
Historia de la Iglesia,
Pág. 112.
12 Bruno Murray, - As
Ordens Monásticas e Religiosas, Pág. 15.
13 idem.
14idem.
15 idem, Pág. 24.
16 José Orlandis, -
História Breve do Cristianismo, Pág. 46.
17 Bruno Murray, - As
Ordens Monásticas e Religiosas, Pég. 25.
18 Jean Comby, - Para
Ler a História da Igreja, Pág. 86.
19 José Orlandis, -
Historia de la Iglesia,
Pág. 116/7.
20 Copta - vem de "gobt",
palavra árabe derivada do termo grego "aigyptios",
designação dos antigos habitantes do Egipto. In
"Com Butros Ghali os
Coptas saem da sombra" in D.N. Magazine, 19.01.92, Pág. 10.
21 José Orlandis, -
História Breve do Cristianismo, Pág. 47.
22 R.W. Southern, - A
Igreja Medieval, Pág. 229-30.
23 idem, Pág. 226.
24 idem, Pág. 227.
25 Margaret Deanesley,
- A History of the Medieval Church 590-1500, Pág. 40.
26 Bruno Murray, - As
Ordens Monásticas e Religiosas, Pág. 31.
27 José Orlandis, -
Pequena História do Cristianismo, Pág. 47.
28 Fortunato de Almeida, - Histórtia
da Igreja em Portugal, (Vol. I), Pág. 52-3
29 idem, Pág. 52.
30 John Moorman, A
History of the Church in England, Pág. 4.
31 Daniel Rops, A
Igreja dos Tempos Bárbaros, Pág. 218.
32 idem, Pág. 219.
33 idem.
34 idem, Pág. 217.
35 S.W. Southern, A
Igreja Medieval, Pág ?
36 John Moorman, A
History of the Church in England, Pág. 4.
37 S.W. Southern, A
Igreja Medieval, Pág. 36.
38 idem, Pág. 36/7.
39 Daniel Rops, A
Igreja dos Tempos Bárbaros, Pág. 221.
40 idem, Pág. 225.
41 idem, Pág. 237.
42 R.H. Hodgkin, History of the Anglo-Saxons,
in Moorman, op. cit. Pág.
259.
43 in Moorman, op. cit., Pág. 240.
44 idem, Pág. 268.
45 idem, Pág. 21.
46 in Bede, Ecclesiastical
History of the English People, Pág. 193.
47 in Moorman, op. cit., Pág. 241.