A
QUESTÃO DO FILIOQUE
Autor:
d. Estêvão Bettencourt
(Fonte:
Pergunte e Responderemos 442 - pp. 120-126)
Um ponto nevrálgico:
Em síntese: As relações entre cristãos
gregos e latinos se tornaram tensas por um motivo teológico: o Espírito Santo
procede do Pai e do Filho? (posição latina) ou procede do Pai pelo Filho?
(posição grega). A controvérsia se tornou candente nos séculos IX-XI, levando
ao cisma bizantino de 1054, cisma que até hoje perdura, embora as conversações
dos teólogos de parte a parte estejam contribuindo para aproximar entre si os
irmãos. No fundo, pode-se dizer que a controvérsia é mais lingüistica
do que propriamente teológica: gregos e latinos não entendem do mesmo modo o
vocábulo "proceder".
* * *
Dando continuidade ao artigo anterior,
voltamos-nos explicitamente para a controvérsia do Filioque,
tida pelos gregos como motivo de cisma em 1054. Na verdade, o Evangelho afirma
que o Espírito Santo procede do Pai (cf. Jo 15, 26);
o Credo niceno-constantinopolitano (381) repetiu esta
profissão de fé. Todavia os latinos acrescentaram ao Credo a partícula Filioque, professando que o Espírito procede do Pai e do
Filho. Isto deu origem a calorosa controvérsia, pois
os cristãos orientais se puseram a acusar os ocidentais de haver alterado o
Símbolo da Fé.
A seguir, examinaremos o desenrolar dos
acontecimentos desde o início e a atual posição da Igreja.
1. O Problema Lingüístico
A doutrina segundo a qual o Espírito Santo
procede do Pai, está no Evangelho de S. João: "...o Espírito da verdade,
que procede (ekporeúetai) do Pai" (15,26).
A Escritura também se refere à relação do
Espírito com o Filho, quando Jesus diz: "Receberá do que é meu e vô-lo anunciará" (Jo 16,14s)
ou ainda: "Quando vier o Paráclito, que vos
enviarei de junto do Pai" (Jo 15,26).
Estes dizeres levaram alguns Padres
gregos a afirmar que o Espírito Santo é "do Pai e do Filho". Assim S.
Cirilo de Alexandria (+444):
"O Espírito é o Espírito de Deus Pai
e, ao mesmo tempo, Espírito do Filho, saindo substancialmente de ambos
simultaneamente, isto é, derramado pelo Pai a partir do Filho" (De adoratione, livro I, PG 68,148).
S. João Damasceno (+749) professava:
"O Espírito Santo provém das duas Pessoas
simultaneamente" (De recta fide
21, PG 76,1408).
S. Epifânio de Salamina (+403) escrevia:
"É preciso crer, a respeito de Cristo, que
Ele vem do Pai, é Deus proveniente de Deus, e, a respeito do Espírito, que Ele
provém do Cristo, ou, melhor; de ambos, pois Cristo disse: '...Ele procede do
Pai' e 'receberá do meu'" (Ancoratus 67).
"Já que o Pai chama Filho o que procede do
Pai e Espírito Santo o que provém de ambos,... fica sabendo que o Espírito
Santo é a luz que vem do Pai e do Filho" (Ancoratus
71).
Dídimo de Alexandria (+398) professava,
comentando palavras de Jesus:
"Ele não falará sem mim e sem a decisão do
Pai, porque Ele não tem origem em si, mas é do Pai e de mim. Pois o que Ele é
como subsistência e como palavra, Ele o é pelo Pai e por mim" (De Spiritu Sancto 34).
Deve-se observar que tais autores admitem, de
certo modo, a origem do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho, mas não
dizem que o Espírito procede do Filho. Segundo esses escritores, o Espírito
procede do Pai pelo Filho ou ainda provém do Filho, mas não procede do Filho.
Acontece, porém, que, para os latinos, a tradução do verbo ekporeúetai,
proceder, não tinha exatamente o mesmo sentido que para os gregos. Para estes, ekporeúetai significava procedência a partir de um
Princípio absoluto, não procedente, não gerado, como somente é o Pai; o Filho é
um Principio gerado, do qual, por conseguinte, não se pode dizer que dele
procede (ekporeúetai) o Espírito Santo.[1]
Já que os latinos traduziam ekporeúesthai
por procedere, entendido como "derivar-se de,
originar-se de, provir de ...", aplicaram o verbo latino para designar a
relação do Filho com o Espírito Santo[2]. Ora isto
ofendeu os gregos, que fizeram deste gesto a ocasião
de candente litígio até hoje não plenamente resolvido.
O desenrolar dos acontecimentos vai, a seguir,
apresentado.
2. As etapas da controvérsia
A profissão de fé mais antiga que menciona a
proveniência do Espírito a partir do Pai e do Filho é um Credo atribuído a S. Dâmaso Papa (366-384)[3]. Outras
profissões de fé dos séculos IV-VI incluem o Filioque,
geralmente na Espanha, onde estava difundida a concepção do Filioque.
Compreende-se então que alguns Concílios
regionais de Toledo tenham feito idêntica declaração. Foi o que se deu em 447,
633, 638...
Muito mais importante e ousada foi a inserção do Filioque no Credo niceno-constantinopolitano. Os Concílios da Espanha
adotaram esta medida no intuito de mais difundir tal crença. O primeiro
testemunho de tal inserção data de 589: o Concílio de Toledo III recitou o
símbolo da fé com o Filioque, e pronunciou o anátema
sobre quem recusasse crer que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho; os
conciliares, por quanto se depreende das atas do Concílio, julgavam que tal
doutrina já fora professada por Nicéia I e Constantinopla I. - A inserção do Filioque no símbolo foi igualmente professada pelos
Concílios regionais de Toledo VIII (653), XII (681), XIII (683), XIV (688),
XVII (694), como também pelo 4º Concilio regional de Braga (675) e pelo de
Mérida (666).
Enquanto isto acontecia, alguns teólogos
rejeitavam o acréscimo do Filioque ao símbolo. A sé
de Roma ou os Papas aceitavam a doutrina do Filioque,
mas não favoreciam a inserção feita no Credo; repetidamente rejeitaram
instâncias de cristãos sinceros que pediam à Santa Sé o reconhecimento e a
oficialização do Filioque no símbolo de fé. Tinham
consciência de que tal gesto podia melindrar os gregos, que, por razões
culturais, lingüisticas e políticas, se distanciavam
aos poucos da Sé de Roma (desejosos de fazer de Constantinopla a Nova Roma).
Por conseguinte, nos séculos VI/VIII os Papas se
abstinham de falar do Filioque na sua profissão de
fé.
Da península ibérica a profissão do Filioque passou para o reino dos francos. Como atestam os
Livros Carolinos, redigidos em 794
por ordem de Carlos Magno, tal uso era comum no território franco. A
propagação deste costume era, em grande parte, movida pelo desejo de afastar
qualquer heresia que restaurasse o adopcionismo ou o subordinacionismo. Em 809 o Filioque
era cantado na capela de Carlos Magno.
No séc. VIII deu-se ainda o caso dos monges latinos
de Jerusalém. Com efeito; Carlos Magno estava em boas relações com o Califa Haroum-al-Raschid, senhor da Terra Santa; em conseqüência o
califa outorgou ao rei dos francos uma certa soberania sobre Jerusalém. Havia
monges latinos estabelecidos no monte das Oliveiras, que seguiam suas Regras
como eram vigentes no país franco e, por isto, cantavam o Filioque
no Credo. Quando certo dia os monges gregos os depreenderam observando este
costume ocidental, acusaram-nos de heresia e os agrediram, considerando-os
bárbaros. Os monges latinos então apelaram para o Papa Leão III. Este houve por
bem escrever uma encíclica, que ele enviou aos monges francos de Jerusalém,
dizendo-lhes:
"Nós vos enviamos este símbolo de fé
ortodoxa, para que vós, assim como o mundo inteiro, guardeis
inviolavelmente a fé segundo a profissão da Igreja Romana Católica e
Apostólica".
O Papa acrescenta por duas vezes que o Espírito
procede do Pai e do Filho, e termina afirmando que este artigo pertence à
íntegra da fé católica.
Leão III enviou a Carlos Magno a carta dos
monges de Jerusalém, já que estes contavam com a tutela do monarca. O Imperador
então reuniu um sínodo em Aquisgrano (809), que
reafirmou a doutrina do Filioque e cujas atas foram
enviadas ao Papa mediante delegados. O Papa recebeu estes emissários;
mostrou-se plenamente de acordo com as conclusões do Concílio de Aquisgrano fundamentadas na tradição latina, mas não quis
consentir na inserção do Filioque no Credo, mantendo
assim a posição de seus antecessores. Eis o trecho final do diálogo de Leão III
com os legados francos:
"Legados: Cantar o Credo sem o Filioque não dará aos
fiéis a ocasião de crer que tal palavra foi condenada? Que remédio podemos dar
a isto?
O Papa: Se de antemão me tivessem consultado
sobre o acréscimo, eu o teria proibido. Eis agora o expediente que me aflora à
mente: pouco a pouco no palácio imperial deixai de cantar o Filioque
no símbolo de fé; dai como razão para isto o fato de que não é cantado na Santa
lgreja Romana. Quando tiverdes cessado de o fazer;
todos também cessarão. Desta maneira os fiéis guardarão o que tiverem
aprendido, e desaparecerá um canto ilícito sem escândalo para a fé".
Esta declaração revela bem a prudência da Santa
Sé, que, apesar de tudo, não conseguiu convencer os francos, levando-os à
obediência, e queria evitar novos choques com os gregos. Para evitar, frente a
estes, qualquer mal-entendido, Leão III mandou gravar sobre duas placas de
prata o mesmo texto do Credo Niceno-Constantinopolitano
em grego e em latim e quis que fossem afixadas na confissão (altar-mor) de São
Pedro como testemunho de comunhão de fé entre o Oriente e o Ocidente.
A pressão dos cristãos ocidentais continuou a
se exercer sobre a Santa Sé, que resistiu até o século XI. Em 1013, porém, o
Imperador Henrique II (1002-1024) instou, mais uma vez, junto ao Papa Bento
VIII (1012-1024) para que inserisse o Filioque no
canto do Credo em Roma; o Pontífice anuiu ao pedido em 1014, ficando assim os
latinos unânimes na observância de tal praxe.
No século IX, o Patriarca Fócio
de Constantinopla levantou de novo a questão acusando os latinos de ser
"transgressores da Palavra de Deus, corruptores da doutrina de Jesus
Cristo, dos Apóstolos e dos Padres; seriam novos Judas a dilacerar os membros
de Cristo". O Patriarca era movido não somente por zelo religioso, mas
também por ambição política, já que desejava exaltar a nova Roma em detrimento
da primeira. Redigiu uma carta encíclica aos Patriarcas e Arcebispos do
Oriente, em que abordava questões discutidas, inclusive a do Filioque, e chegou a escrever:
"O símbolo de fé diz somente que o
Espírito Santo procede do Pai. Por conseguinte o símbolo afirma que o Espírito
Santo procede do Pai somente".
Como se vê, Fócio usa
uma dialética vazia, que peca contra as regras da Lógica,
maltratando o advérbio somente.
Em 867, Fócio reuniu
em Constantinopla um Concílio anti-romano, pouco freqüentado.
Depois de Fócio, a
situação se acalmou até o Patriarca Sísimo, de
Constantinopla, que em 995 renovou os ataques aos latinos. As suas invectivas
chegaram ao termo final sob o Patriarca Miguel Cerulário,
quando em 1054 se deu a ruptura, até hoje existente, entre
gregos e latinos.
De então por diante o Filioque
foi sendo abertamente professado pelos Papas e pelos Concílios do Ocidente. Com
efeito, em 1098 um Concílio em Bari (Itália) travou um debate com os gregos,
professando o Credo ampliado. Em 1215 o Concílio do Latrão
IV professou a processão do Espírito a partir do Pai
e do Filho na sua exposição dogmática Firmiter credimus. Em 1274 o Concílio de Lião
II condenou com anátema os que negavam tal artigo.
Ao afirmar que o Espírito procede do Pai e do
Filho, os latinos não quiseram negar a fórmula grega "... do Pai pelo
Filho"; elas se conciliam entre si, pois que o Pai gera o Filho dando-lhe
a peculiaridade de ser Princípio do qual procede o
Espírito Santo (está claro que isto não implica prioridade de dignidade ou de
tempo para o Pai em relação ao Filho e ao Espírito Santo).
A teologia escolástica medieval latina,
seguindo as pegadas de Santo Agostinho (+430), prova que o Espírito Santo
procede do Filho, pois, se assim não fosse, não se distinguiria do Filho. Com
efeito, em Deus há uma só essência ou divindade, na qual só pode haver
distinção onde há oposição relativa; ora, para que o Espírito se distinga do
Filho, tem que se lhe opor como o termo de processão
se opõe ao ponto de partida da processão.
3. A atual posição da Igreja Católica
A Igreja Católica continua a professar o Filioque em sua Liturgia e em suas diversas declarações,
mas não impõe aos orientais a sua inserção no Credo.
Assim já no Concílio de Lião
II (1274) o Papa Gregório X pediu aos gregos que reconhecessem a verdade
dogmática do Filioque, mas não os obrigou a cantar o
símbolo da fé com esse acréscimo. Mesmo assim os gregos presentes a tal
Concílio cantaram o símbolo com a partícula controvertida.
Também no Concílio geral de Florença, o Papa
Eugênio IV (1431-1447) não obrigou os gregos a cantar o Credo ampliado. Da
mesma forma Clemente VIII (1592-1605) não exigiu que os rutenos
uniatas[4] cantassem o Filioque, desde que o aceitassem como artigo de fé. Mais
importante ainda é a bula Etsi Pastoralis
de Bento XIV, promulgada em 1742, que reza explícita e definitivamente:
"Embora os gregos tenham a obrigação de
crer que o Espírito Santo procede também do Filho, não são obrigados a
professá-lo no símbolo".
Esta regra está vigente até nossos dias.
Em 1995 deu-se um acontecimento significativo:
o Patriarca Bartolomeu I, de Constantinopla, esteve reunido com o Papa João
Paulo II aos 29/06 na basílica de São Pedro em Roma, ocasião em que o Papa
pediu ao Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos que esclarecesse a
questão do Filioque, a fim de facilitar o bom
relacionamento com os orientais. Desse pedido resultou um longo texto assinado
aos 08/09/1995, do qual extraímos a seguinte passagem, que reafirma quanto foi
dito na Lição 1 deste Módulo:
"Apresentamos aqui o sentido doutrinal
autêntico do Filioque na base da fé trinitária professada pelo Concílio Ecumênico de
Constantinopla. Damos esta interpretação abalizada,
conscientes da pobreza da linguagem humana para exprimir o inefável mistério da
SS. Trindade...
A Igreja Católica interpreta o Filioque referindo-o à sentença normativa e irrevogável do
Concilio Ecumênico de Constantinopla em seu símbolo... Na base da tradição
teológica latina anterior, alguns Padres do Ocidente, como S. Hilário, S.
Ambrósio, S. Agostinho e S. Leão Magno, haviam professado que o Espírito Santo
procede (procedit) eternamente do Pai e do Filho.[5]
Como a Biblia latina
(a Vulgata e as traduções latinas anteriores) tinha traduzido Jo 15,26 (parà tou Patrós ekporeúetal)
por 'qui a Patre procedit', os latinos traduziram o ék
tou Patrós ekporeuómenon do Símbolo niceno-constatinopolitano
por 'ex Patre procedentem'.
Assim foi criada uma falsa equivalência a propósito da origem do Espírito Santo
entre a teologia oriental da 'ekpóreusís' e a
teologia latina da 'processio'.
A 'ekpóreusis' grega
significa apenas a relação de origem do Espírito frente ao Pai tão somente, Pai
que é o Princípio sem princípio da Trindade. Ao contrário, a 'processio' latina é um termo mais amplo que significa a
comunicação da divindade consubstancial do Pai ao Filho e do Pai, com e pelo
Filho, ao Espírito Santo. Confessando o Espírito Santo 'ex Patre
procedentem', os latinos supunham um 'Filioque' implícito, que seria explicitado mais tarde na
sua versão litúrgica do Credo" (Ver La Documentation Catholique, 5/11/1995, p. 942).
Esta explicação, como dito, não é senão a que
propusemos em nosso primeiro subtítulo pp. 120s. - Reduz o problema a um
mal-entendido lingüístico. É para desejar que encontre acolhida entre os nossos
irmãos orientais.
-----
Notas:
[1] Quando se fala do Pai como princípio absoluto, não se tenciona dizer que o Filho é relativo ou é inferior ao Pai. Em Deus não há maior ou menor nem anterior ou posterior.
[2] Do verbo latino faz-se 'processão',
vocábulo da Teologia Sistemática, que difere de 'procissão'.
[3] Há quem diga que a prioridade toca a S.
Ambrósio de Milão (+397).
[4] Rutenos são os
cristãos dependentes da antiga metrópole Kiev (Ucrânia), que após o cisma se uniram à Santa Sé pelo tratado de Brest-Litovak
(25/12/1595). São ditos "uniatas" porque se
uniram a Roma.
[5] S. Hilário de Poitiers (+367) escreve: "A quem julga que há diferença entre receber do Filho (Jo 16,15) e proceder (procedere) do Pai (Jo 15,26), respondemos que é certo que é uma só e mesma coisa receber do Filho e receber do Pai" (De Trinitate VIII 20). É neste sentido da comunicação da Divindade pela processão que S. Ambrósio de Milão formula o Filioque: "O Espírito Santo, quando procede (procedit) do Pai e do Filho, não se separa do Pai nem se separa do Filho" (De Spiritu Sancto 1,11,120). Desenvolvendo a teologia do Filioque, S. Agostinho quis salvaguardar a monarquia do Pai no seio da comunhão consubstancial da Trindade: "O Espírito Santo procede do Pai a título de princípio (principaliter), e, pelo dom intemporal do Pai ao Filho, procede do Pai e do Filho em comunhão (communiter)" (De Trinitate XV 25,47). Ver S. Leão Magno, sermões LXXV, 3 e LXXVi, 2.