Agenzia FIDES – 1 agosto 2007
por
N.
Bux e S. Vitiello
1. Os precedentes
Sacrosanctum Concilium
Há um parágrafo na Constituição do
Concílio Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia que parece referir-se à questão
do estatuto jurídico-canônico do Missal de S. Pio V (que chamaremos a partir de
agora também “Missa antiga” ou “Rito antigo”). Antes de especificar os modos
nos quais se deverá rever o rito da Missa, Sacrosanctum Concilium estabelece
no parágrafo 49:
Quapropter,
ut Sacrificium Missae, etiam rituum forma, plenam pastoralem efficacitatem
assequatur, Sacrosanctum Concilium, ratione habita Missarum, quae concurrente
populo celebrantur, praesertim diebus dominicis et festis de praecepto, ea quae
sequuntur decernit:
Para que
o Sacrifício da missa alcance plena eficácia pastoral, mesmo quanto ao seu
rito, o sagrado Concílio, tendo em atenção as missas que se celebram com
assistência do povo, sobretudo aos domingos e nas festas de preceito, determina
o seguinte:
Essa passagem pressupõe que existam duas
formas do rito da Missa, uma com a assistência dos fiéis, especialmente no
Domingo e nas festas de preceito (cum populo), e uma sem a assistência
dos fiéis (sine populo). Parece que era intenção do Concílio que as
revisões, que são introduzidas no parágrafo seguinte de Sacrosanctum
Concilium, dissessem respeito somente ao rito da Missa cum populo. A
Constituição sobre a Sagrada Liturgia obviamente imagina que a Missa antiga
continua existindo como forma sacerdotal de celebração do sacrifício
Eucarístico sine populo; isso significaria também que o sacerdote tem o
direito de celebrar o Rito antigo como Missa privada.
A Constituição Missale Romanum do Papa Paulo VI (1969)
A Constituição Missale Romanum de
1969, emanada pelo Papa Paulo VI é, como esclarece o subtítulo, “uma
promulgação do Missal Romano revisto com base nos decretos do Concílio
Ecumênico Vaticano Segundo”. A Constituição propõe simplesmente uma nova forma
de Missa, e não contém alguma clausula que indique a ab-rogação, ou seja, a
abolição mediante a completa substituição, do Missal do Papa S. Pio V.
A Bula Quo Primum, emanada por Pius
V em 1570, codificava e consolidava o uso imemorável e universal que
regulou a liturgia romana por meio dos séculos, desde o tempo de Gregório Magno
até o final do século VI. Dois pontos são aqui dignos de nota:
Primeiro, na Quo Primum podemos, em
qualquer caso, aplicar o cân. 21 CIC: “In dubio revocatio legis
praexistentis non praesumitur, sed leges posteriores ad priores trahendae sunt
et his, quantum fieri potest, conciliandae”. Praticamente significa que se
a Missa antiga perdeu a sua posição privilegiada, não obstante ela continua
existindo e o fiel tem direito a esta.
Segundo, a Constituição Missale Romanum
não aboliu explicitamente (como a lei requeria) o uso imemorável e universal
sobre o qual se baseava a Missa antiga antes da Quo Primum (e depois
junto a essa). Por isso, essa continua a existir apesar, talvez, de não ser
mais protegida por uma lei escrita. Isso havia sido notado pelos estudiosos,
mas também na época não foi aprovada nenhuma lei suplementar para abolir aquele
uso.
O arcebispo Annibale Bugnini, que Paulo VI
encarregou da reforma litúrgica pós-conciliar, buscou obter uma norma explícita
para que Novus Ordo Missae de 1970 ab-rogasse a Missa antiga, de modo
que, em seguida, fosse suprimida de jure.
Para obter tal norma da Pontifícia
Comissão para a Interpretação dos Documentos Conciliares, ele necessitava da
permissão do Cardeal-Secretário de Estado. Em 10 de junho de 1974, o Secretário
de Estado rejeitou conceder a permissão pedida, fundamentalmente porque isso
teria sido visto como “aversão injustificada à tradição litúrgica” (A. Bugnini,
The Reform of the Liturgy 1948-1975, Collegeville, Minnesota: The
Liturgical Press, 1990, p. 300-301).
O Indulto Quattuor Abhinc Annos do Papa
João Paulo II (1984)
Em 3 de outubro de 1984, o Papa João Paulo
II promulgou o Indulto Quattuor abhinc annos, no qual permitia aos
bispos conceder a celebração da Missa antiga aos fiéis que a pedissem. Um
indulto é uma medida que a autoridade da Igreja pode conceder a fim de
favorecer a salvação das almas (que é o fim da lei canônica, diante da qual
todas as normas devem revocar), uma exceção à lei (revogação); é semelhante à
dispensa, mas com um fim mais amplo.
Um indulto, portanto, pressupõe a
existência de uma lei que necessita ser atenuada, no nosso caso uma lei que
tinha proibido ou abolida a Missa antiga. Como vimos, tal lei não existia, e
por isso, em tal caso, estreitamente falando, é uma denominação imprópria, já
que o fiel ainda hoje tem direito à Missa antiga com base no uso imemorável
jamais abolido.
A Comissão Cardinalícia de 1986
Em 1986,
o Papa João Paulo II instituiu uma comissão de nove cardeais para examinar o
estatuto jurídico da Missa antiga. A comissão era composta pelos cardeais
Agostino Casaroli, Bernardin Gantin, Paul Augustin Mayer, Antonio Innocenti,
Silvio Oddi, Pietro Palazzini, Joseph Ratzinger, Alfons Stickler e Jozef Tomko
e foi encarregada de examinar se o Novo Rito da Missa, promulgado pelo Papa
Paulo VI, tinha ab-rogado o Rito antigo, e se um bispo podia proibir seus
sacerdotes de celebrar a Missa antiga.
A
comissão se reuniu em dezembro de 1986. Oito dos nove cardeais responderam que
a Nova Missa não tinha ab-rogado a Antiga. Todos os nove cardeais unanimemente
afirmaram que o papa Paulo VI nunca tinha concedido aos bispos a autoridade de
proibir os sacerdotes de celebrar a Missa segundo o Missal de S. Pio V. A
comissão julgou demasiado restritivas as condições do indulto de 1984 e propôs
seu alargamento. Tais conclusões serviram como diretrizes para a Comissão
Ecclesia Dei, mas não se tornaram públicas.
Neste
contexto, deve-se notar que a Santa Sé reconhecia o direito do sacerdote de
celebrar a Missa tradicional; isso provinha do fato de que cada vez que os
sacerdotes eram injustamente suspensos por ter celebrado a Missa antiga contra
a vontade de seus bispos, a Cúria Romana sempre anulava a medida toda vez que
um apelo era dirigido a ela. Pertence ainda à atual jurisprudência da Igreja
que, por meio de apelo, qualquer suspensão que um Ordinário tenta infligir a um
sacerdote para a celebração da Missa antiga contra a vontade do bispo é automaticamente
anulada.
O Motu Proprio Ecclesia Dei Adflicta do Papa João Paulo II (1988)
Em 2 de julho de 1988, o Papa João Paulo
II promulgou o Motu Proprio Ecclesia Dei, no qual expressava a vontade
de salvaguardar as justas aspirações daqueles que eram afeiçoados à tradição
litúrgica latina, e a fim de alcançar este objetivo, instituiu a Pontifícia
Comissão Ecclesia Dei.
Em uma carta à Ecclesia Dei Society of
Australia de 11 de maio de 1990, o Cardeal Mayer forneceu uma interpretação
autorizada do Motu Proprio. O Presidente da Comissão Ecclesia Dei criticava a
Congregação para o Culto divino por ter sabotado as intenções do papa, e,
portanto, passou a explicar as prerrogativas garantidas pela Ecclesia Dei
enquanto, ao mesmo tempo, observava que a Missa antiga nunca havia sido
realmente abolida:
Deve-se
notar que uma certa linguagem pejorativa da Quattuor abhinc annos quanto
ao “problema dos sacerdotes e fiéis que assistem a assim dita Missa
tridentina” é completamente evitada na Carta Apostólica Ecclesia Dei.
No recente documento promulgado pelo Sumo Pontífice, refere-se simplesmente a
“a todos estes fiéis católicos, que se sentem vinculados a algumas precedentes
formas litúrgicas e disciplinares da tradição latina” (5, c) e a “aqueles que
se sentem ligados à tradição litúrgica latina” (6, c). Aparece, portanto, um
inútil preconceito continuar a referir-se com alusões a precedentes documentos
da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos que foram
superados por um Motu Proprio pontifício.
O Cardeal Medina sobre a Terceira Editio Typica
do Missal de Paulo VI (2002)
O Cardeal Medina Estévez, Prefeito Emérito
da Congregação para o Culto Divino, escreve em uma carta de 21 de maio de 2004:
Reafirmo
a minha pessoal opinião de que a ab-rogação do Missal de São Pio V não é
provada e posso acrescentar que o decreto que assinei para promulgar a terceira
editio typica do Missal Romano não contém alguma clausula que ab-rogue a
forma antiga do Rito romano (…). E posso acrescentar ainda que a ausência de
qualquer clausula de ab-rogação não é devida ao acaso nem causada por
inadvertência, mas foi intencional.
Uma versão inglesa desta carta foi
publicada em Mass of Ages, Novembro de 2005, p. 28.
O Santo Padre Bento XVI, como cardeal, expressava
em mérito o seu pensamento no livro Dio e il mondo. Una conversazione con
Peter Seewald, publicado na Alemanha em 2000 e na Itália em 2001 pelas
edições São Paulo, p 380:
Para uma reta conscientização em matéria
litúrgica é importante que não se sobressaia a atitude de suficiência para a
forma litúrgica em vigor até 1970. Quem hoje defende a continuação desta
liturgia, ou participa diretamente de celebrações dessa natureza, é colocado no
índice; qualquer tolerância fica em segundo plano a propósito. Nunca aconteceu
nada do gênero na história; deste modo, é todo o passado da Igreja a ser
desprezado. Como se pode esperar no seu presente se as coisas estão assim? Para
ser franco, tão pouco entendo porque tanta subjeção, por parte de muitos
coirmãos bispos, em relação a essa intolerância, que parece ser um tributo
obrigatório ao espírito dos tempos, e que parece contrastar, sem um motivo
compreensível, o processo de necessária reconciliação no seio da Igreja.
Bibliografia essencial aos cuidados de Uwe Michel Lang
– Neri Capponi, “Bishops against the Pope:
The Motu Proprio ‘Ecclesia Dei’ and the Extension of the Indult”, in The
Latin Mass, Winter 1996 (available on http://www.ewtn.com/library/LITURGY/BISHPOPE.TXT)
– Georg May, Die alte und die neue
Messe. Die Rechtslage hinsichtlich des Ordo Missae, 4. durchgesehene und
durch ein Register ergänzte Auflage, Sankt Augustin: Richarz, 1991
2. A ‘RENOVATIO’ DO MISSAL ROMANO
1. O Ordo
Missae e o Institutio generalis Missalis Romani, promulgados com a
Constituição Apostólica Missale Romanum de Paulo VI, constituem – como
afirma a mesma – uma “renovatio” do Missal Romano promulgado por S. Pio
V por decreto do concílio Tridentino em 1570; com efeito, dele a Constituição
teceu louvores pelos frutos de evangelização e de santidade obtidos por quatro
séculos de sacerdotes e fiéis.
Em verdade,
já Pio XII – recorda ainda a Constituição – havia auspiciado a sua perlustração
e o seu enriquecimento, dando início à revisão do Ordo da Semana Santa;
portanto, “huiusmodi Missalis Romani renovatio nequaquam ex improvviso
inducta putanda est”. O próprio Missal Romano de 1570 era o resultado do
confronto e da revisão de antigos códigos e fontes litúrgicas reconduzidos à
luz, e também orientais.
Quanto aos ritos
do Ordo Missae, a Constituição diz: “probe servata eorum substantia,
simpliciores facti sunt”. Além disso, afirma que o Missal foi renovado
introduzindo, ao lado do patrimônio venerando da liturgia romana, novas normas
para a celebração.
2. Apesar das
perplexidades suscitadas por algumas versões em língua corrente, a “renovatio”
das outras partes do Missal faz parte do processo fisiológico de formação dos
livros litúrgicos, a começar pelos antigos Sacramentos romanos e pelos
Eucológios orientais que, notoriamente, conhecem no tempo diversas edições, sem
que para isso uma ob-rogue a outra. Se o Sacramentário Gregoriano e o Missal
de S. Pio V, por exemplo, tivessem sido ab-rogados, como teria sido
possível atingir para a “renovatio”? Novus significa simplesmente
último, evolução ulterior, e não outra coisa. Justamente por esse progresso
coerente, o Missal é o instrumento de uma certa unidade litúrgica, no qual
subsistem “legitimas varietates et aptationes”(cfr Sacrosanctum
Concilium, n 38-40).
Ora, é a
todos conhecido que o novo Ordo contém não poucas variantes; aliás,
estas cresceram até a Editio Typica de 2000 e são indicadas, por
exemplo, com os termos como “vel” e “ pro opportunitate”.
Acontece assim que, de um lado, alguns as utilizam para deturpar, substituir,
pospor e, até mesmo, omitir algumas partes; de outro, há quem prefere usar
sempre a mesma oração eucarística e as mesmas fórmulas. Então, por que
surpreender-se com aqueles que pedem para usar sempre o Cânone Romano,
determinados prefácios e a estrutura ritual do Missal Romano na edição de 1962
desejado pelo papa João XXIII, e erroneamente chamado “rito tridentino”?
Por conseguinte, o
Concílio Vaticano II operou no contexto da tradição e nela se insere a
legitimidade do Ordo Missae de Paulo VI. Mas este não pode ser colocado
em oposição com aquele do seu antecessor, algo jamais ocorrido. Portanto,
nenhum livro litúrgico, ou parte dele, foi ab-rogado, a não ser que cometesse
erros: algo que aconteceu justamente para o Institutio generalis Missalis
Romani em 1969, que acabara de ser publicado, e que Paulo VI suspendeu por
algumas ‘imprecisões’ doutrinais, e depois fez novamente publicar em maio de
1970 com as emendas inseridas no n 7.
3. A todos pede-se
para reconhecer no Missal uma eloqüente expressão da Tradição da Igreja: não
faz sentido deslegitimar ninguém e nada do antigo rito – seria como cortar as
próprias raízes –, do qual provém o novo que, por sua vez, manifesta a
fecundidade do antigo. João Paulo II recordou que “no Missal Romano, dito de
são Pio V, como em diversas Liturgias orientais, existem belíssimas orações com
as quais o sacerdote expressa o mais profundo senso de humildade e de
reverência diante dos santos mistérios: eles revelam a própria substância de
qualquer Liturgia”( 21 de Setembro de 2001).
Para não dizer
que o critério da generosidade e da misericórdia recíprocas deva prevalecer na
Igreja à imitação do Senhor. É justamente este o sentido do Indulto de
João Paulo II, de 3 de outubro de 1984, para celebrar a Missa segundo o Missal
Romano de 1962 e, agora, do Motu Proprio de Bento XVI; com este não é
desacreditada a renovação litúrgica em si, mas prevalece a preocupação pela
unidade da Igreja. Além do mais, contra
qualquer enrijecimento deve valer para a liturgia o princípio da Ecclesia
semper reformanda, na sábia dose evangélica entre nova et vetera.
Podemos concluir com um importante texto
do então Cardeal Ratzinger, que em 24 de outubro de 1998 preferiu uma
conferência aos peregrinos vindos para celebrar o décimo aniversário do Motu
Proprio Ecclesia Dei de João Paulo II:
“O Concílio, por si só, não reformou (no
sentido de inventar) os livros litúrgicos, mas dispôs a sua revisão, e a tal
fim ofereceu algumas normas fundamentais. Antes de qualquer coisa, o Concílio
deu uma definição do que é a liturgia, e tal definição constitui o termo de
comparação para toda celebração litúrgica. Onde se ignoram tais normais e
colocam-se de lado as normae generales que se encontram nos números 34 -
36 da Constitutio De Sacra Liturgia (SC), em tal caso certamente
torna-se culpado de desobediência ao Concílio! É à luz desses critérios que as
celebrações litúrgicas devem ser avaliadas, seja que ocorram segundo os livros
antigos, seja que ocorram segundo os novos. É bem recordar aqui que o Cardeal
Newman observava que a Igreja, durante a sua história, nunca proibiu ou aboliu
as formas litúrgicas ortodoxas, algo que seria completamente alheio ao espírito
eclesial. Uma liturgia ortodoxa, ou seja, aquela que manifesta a verdadeira fé,
jamais é uma reunião de diferentes cerimônias, feita segundo critérios
pragmáticos, construída de modo positivístico e arbitrário, hoje de uma maneira
e amanhã de outra. As formas ortodoxas de um rito são realidades vivas,
oriundas do diálogo de amor entre a Igreja e o seu Esposo. Estas são a
expressão da vida da Igreja, que nutriram a fé, a oração e a verdadeira vida de
todas as gerações, e que encarnam em formas específicas seja a ação de Deus,
seja a resposta do homem. Tais ritos podem acabar se aqueles que os usaram em
uma época particular desaparecerem, ou se as condições de vida daquelas mesmas
pessoas tivessem que mudar. A autoridade da Igreja tem o poder de definir e
limitar o uso de tais ritos nas diferentes situações históricas, mas esta não
pode jamais puramente e simplesmente proibi-los! Assim, o Concílio dispôs a
reforma dos livros litúrgicos, mas não proibiu os livros precedentes” (Notiziario
126-127 di UNA VOCE).
A rigidez e a uniformidade postulada
inclusive por alguns famosos liturgistas nunca foi a práxis litúrgica da
Igreja. O Indulto queria ser justamente um convite à tolerância, o Motu
Proprio o ampliou e, esperemos, mais plenamente realizado.
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Cfr O.Nuβbaum, Die bedingte Wiederzulassung einer Meβfeier nach dem Missale Romanum von 1962, in <Pastoralblatt> 37(1985), p 130-143.